CRIME DE COACÇÃO
AGRAVAÇÃO
REQUISITOS
CAUSA DE JUSTIFICAÇÃO
PRESSUPOSTOS
NÃO PUNIBILIDADE
CENSURABILIDADE
MEIO USADO
Sumário

I – O crime de coacção contempla o uso de violência ou a ameaça com um mal importante para levar – constranger - outra pessoa, contra a sua vontade, a uma acção ou omissão ou a suportar uma actividade, protegendo-se o direito individual de liberdade de acção.
II – A finalidade do constrangimento é levar o constrangido a fazer uma coisa, a deixar de a fazer ou a suportar uma actividade, em violação da sua liberdade de agir e de querer, consubstanciando-se no uso de certo meio com vista a determinado fim.
III – A alínea a) do n.º 3 do artigo 154.º do Código Penal consagra uma causa de não punibilidade da conduta, que tem como pressuposto a não censurabilidade do meio usado para atingir o fim visado, tratando-se de uma norma impeditiva de criminalizações injustificadas, isto é, uma causa de justificação.
IV – A delimitação entre a coacção “ilícita” – como tal punida - e “lícita” – não punida – tem a ver com a dualidade meio - fim, ao nível da sua ilicitude ou licitude / ilegitimidade ou legitimidade.
V - Sendo o fim ilegítimo, a coacção será ilícita, mesmo que o meio utilizado - a ameaça - seja em si lícito, ao passo que sendo o meio ilícito, a coacção será, em geral, ilícita, mesmo que o fim seja legítimo.
VI – Neste contexto, não é excluída a punibilidade da conduta do arguido que, invocando a ofensa do seu direito ao descanso e ao sossego por parte dos ofendidos, que circulavam de mota num caminho junto da sua habitação, efectuou um disparo com uma arma de características não concretamente apuradas para o ar, tendo afirmado “toca a andar daqui para fora, o próximo já não é para o ar”, querendo com tal significar que dispararia contra o corpo dos mesmos, tendo proferido essa expressão de modo sério, intimidatório, de forma exaltada e de molde a fazer crer que estava firmemente decidido a concretizar tais palavras, levando a que os visados ficassem com medo que ele cumprisse o que anunciara, sentindo-se perturbados na sua segurança, receando pela sua integridade física e pela sua vida, razão pela qual abandonaram o local.

[Sumário da responsabilidade do Relator]

Texto Integral

Proc. n.º 325/20.9GAPRD.P1


I

Acordam, em conferência, os Juízes da 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

Nos presentes autos de Processo Comum Singular n.º 325/20.9GAPRD, do Juízo Local Criminal de Paredes – Juiz 2, foi proferida sentença, em 16-11-2023, com o seguinte dispositivo:

“Assim, em face do exposto, de facto e de Direito, decide-se, julgar a acusação do Ministério Público totalmente procedente, por provada e, em consequência:

1 - Absolver o arguido AA da prática, em autoria material e concurso efectivo, de cinco crimes de coacção agravada, previstos e punidos pelos artigos 154.º, n.ºs 1 e 2, e 155.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal.

2 - Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material, de um crime de coacção agravada, previsto e punido pelos artigos 154.º, n.ºs 1 e 2, e 155.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão.

3 - Nos termos do disposto no artigo 45.º, n.º 1, do Código Penal, decide-se substituir a pena de prisão aplicada ao arguido pela pena de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de € 10,00 (dez euros), que perfaz o montante global de € 3.000,00 (três mil euros).

Condena-se o arguido a pagar as custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em duas unidades de conta, atento o processado, nos termos dos arts. 513.º, n.º 1, e 514.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e do art. 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e tabela III do anexo ao D.L. 34/2008 de 26 de Fevereiro.” (ref.ª 93590866).


*

O Ministério Público e o arguido AA interpuseram recurso de tal decisão, tendo apresentado a respectiva motivação, com conclusões, as quais se sintetizam nas seguintes questões:

Recurso do Ministério Público.

- Erro de qualificação jurídica dos factos dados como provados, sustentando o recorrente que o Tribunal a quo deveria ter condenado o arguido por seis crimes de coacção agravada, em concurso efectivo, por tantos serem os ofendidos, tendo a sentença incorrido numa insanável contradição entre a fundamentação e a decisão, vício previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, além de ter invocado, para assim decidir, o facto de o arguido não ter tido a certeza de que se tratava de seis vítimas, incorrendo no vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do mesmo Código (ref.ª 9222226).

Recurso do arguido AA.

a) Erro de julgamento da matéria de facto, invocando o recorrente que foram incorrectamente julgados os factos constantes dos pontos 1., 3., 5. e 6. dados como provados, além de que resultaram da prova produzida outros factos relevantes para a decisão da causa, que devem ser aditados à matéria de facto dada como provada, verificando-se um manifesto erro na apreciação da prova - art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP (conclusões 1. a 5.). 

b) Não punibilidade da conduta do arguido, em face da alteração peticionada para a matéria de facto e atento o disposto no artigo 154.º, n.º 3, alínea a), do Código Penal, com a sua consequente absolvição (conclusões 6. a 18.).

c) Inaplicabilidade da agravante prevista no artigo 86.º, n.º 3, da Lei das Armas, sendo também os dias de multa fixados excessivos, com violação do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal, devendo ser reduzidos em conformidade (conclusões 19. a 23.) - (ref.ª 9276142).


*

Admitidos tais recursos, o Ministério Público e o arguido AA responderam ao recurso do outro, dizendo, em síntese, o seguinte: o primeiro refere que a prova produzida em audiência foi bem apreciada, não permitindo a mesma a alteração da matéria de facto preconizada, preenchendo os factos dados como provados os elementos típicos de tal ilícito e não se verificando a exclusão da sua punibilidade, sendo que não foi aplicada a agravante da Lei das Armas e a pena não se revela excessiva; o segundo refere que a sentença, nessa parte, se mostra coerente e adequada ao caso, não existindo os invocados contradição entre a fundamentação e a decisão ou erro notório na apreciação da prova, devendo tal recurso improceder (ref.ªs 9305655 e 9382941).

*

Recebidos os autos neste Tribunal, a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, no qual, em síntese, sustentou que, perante a matéria da facto dada como provada, se impunha a condenação do arguido pela prática de seis crimes de coacção agravada, por tantos serem os ofendidos, não se impondo, contudo, a alteração da matéria de facto, nos termos pretendidos pelo arguido, pois que a mesma está conforme à prova produzida em audiência, sendo que em nada releva a natureza do caminho em causa, na medida em que se situava no exterior da propriedade do arguido, não tendo ele sido agredido ou ameaçado pelos ofendidos, pelo que nunca a sua actuação poderia ser considerada como não punível, nomeadamente por força da alínea a) do n.º 3 do artigo 154.º do Código Penal, pois que existe desproporcionalidade entre o fim pretendido e o meio coactivo utilizado, podendo ele ter-se socorrido dos agentes de autoridade para atingir aquele fim, concluindo no sentido do provimento do recurso interposto pelo Ministério Público e pelo não provimento do recurso do arguido (ref.ª 17746546).

*

O recorrente AA apresentou resposta a tal Parecer, dizendo, em síntese, dar por reproduzidas as suas alegações de recurso e da resposta e reafirmando a aplicação ao caso do disposto na alínea a) do n.º 3 do artigo 154.º do Código Penal, atentos os factos dados como provados e a alteração aos mesmos pedida no recurso, mais dizendo não existir desproporcionalidade entre o fim pretendido e o meio coactivo utilizado, sendo a ameaça aos seus direitos e da sua família imediata e a sua resolução premente, concluindo pela procedência do recurso que interpôs e pela improcedência do recurso interposto pelo Ministério Público (ref.ª 383625).

*

Foi proferido despacho liminar e colhidos os vistos, com decisão em conferência.

II

As conclusões formuladas, que se sintetizaram, resultado das motivações apresentada, delimitam o objecto dos recursos (art. 412.º, n.º 1, do CPP), sem prejuízo de apreciação de questões de conhecimento oficioso que pudessem suscitar-se, como é o caso dos vícios indicados no n.º 2 do artigo 410.º do mesmo Código, mesmo que o recurso verse apenas sobre a matéria de direito (cfr. Acórdão do STJ de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/95, de 19-10-1995, in DR I, de 28-12-1995).

Assim, não havendo outras de conhecimento oficioso, passa a apreciar-se, sucessivamente, as questões colocadas pelos recorrentes à apreciação deste Tribunal, para o que importa ter presentes os factos dados como provados e não provados pelo Tribunal recorrido, que se transcrevem.

A. Factos Provados:

Da audiência de julgamento e com interesse para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:

1) No dia 30 de Maio de 2020, cerca das 23 horas e 40 minutos, os ofendidos BB, CC, DD, EE, FF e GG encontravam-se a circular de moto nas serras de ..., Paredes, passando numa estrada de terra batida no exterior da propriedade do arguido, situada na Avenida ..., em ..., Paredes.

2) Nesse seguimento, e porque pararam a marcha a aguardar outros motociclistas que estavam atrasados, foram abordados pelo arguido que lhes pediu para se retirarem porque tinha uma criança de 4 anos a dormir e com o barulho das motas os cães começavam a latir e acordavam o filho.

3) Estando todos os ofendidos reunidos, o arguido disse: “então, já acabou a reunião?!, toca a andar daqui para fora” e, de seguida, efectuou um disparo com arma de características não concretamente apuradas para o ar afirmando “toca a andar daqui para fora, o próximo já não é para o ar”, querendo com tal significar que dispararia contra o corpo dos ofendidos.

4) O arguido proferiu a afirmação acima referida de modo sério, intimidatório, de forma exaltada e de molde a fazer crer que estava firmemente decidido a concretizar tais palavras.

5) Ao ouvirem as afirmações proferidas pelo arguido, e após o disparo da arma de fogo, os ofendidos ficaram com medo que o mesmo cumprisse o que anunciara, sentindo-se perturbados na sua segurança, receando pela sua integridade física e pela sua vida, razão pela qual abandonaram o local.

6) O arguido sabia que a sua conduta e afirmações eram adequadas a fazer os ofendidos recear, como efectivamente sucedeu, pela sua vida e integridade física, tendo actuado nesse propósito.

7) Agiu ainda o arguido com a intenção de, através de intimidação com ameaças contra a integridade física e vida dos ofendidos, constranger os visados, limitando a sua liberdade de decisão e acção, forçando-os a abandonarem o local.

8) O arguido actuou de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

9) Do Certificado de Registo Criminal do arguido nada consta.

10) O arguido é engenheiro civil de profissão e aufere salário no valor de € 1.200,00.

11) Vive com a esposa, o filho de 7 anos de idade e os pais, em casa destes.

12) A esposa é professora e aufere salário no valor de € 1.000,00.

13) Suporta prestação relativa a crédito habitação no valor de € 2.000,00.

14) O arguido é socialmente bem considerado.

15) Encontra-se inscrito na matriz, a favor do arguido, o prédio rústico melhor identificado a fls. 215, documento cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

16) Durante os anos de 2022 e 2023, o arguido auferiu os rendimentos melhor descritos a fls. 213 e 214, documentos cujo teor se dá por integralmente reproduzido.


*

B. Factos Não Provados.

Não se provou que:

- Os factos ocorreram no dia 03 de Março de 2020.

- O disparo referido em 3) foi realizado com arma de fogo.”


*

E importa também ter presente a motivação da convicção do Tribunal a quo, a qual é a seguinte:

C. Motivação da matéria de facto.

No que toca à data, ao local e ao objecto do processo, o Tribunal fundou a sua convicção com base na prova produzida em audiência, designadamente na confissão parcial levada a cabo pelo/a arguido/a, conjugado com os depoimentos das testemunhas ouvidas e o teor dos documentos juntos aos autos, tudo devidamente valorado e conjugado com as regras da experiência comum, com especial relevo para a análise dos seguintes:

- Auto de notícia de fls. 4 a 5 verso.

- Certidão de diligência de fls. 12.

- Informação de fls. 79 a 80 – armas.

- Informação da AT de fls. 212 a 215


*

O arguido explicou ao tribunal que apenas procedeu do modo descrito uma vez que se encontrava em casa com a esposa e o filho menor a repousar, numa altura em que este se encontrava em recuperação de um problema grave nos pulmões, e porque os ofendidos estavam a fazer muito barulho, fruto da condução das motorizadas que encetavam no local, e atenta a hora tardia da noite.

Terá pedido aos ofendidos para pararem com o barulho, uma primeira vez, mas como não pararam, da segunda vez, confirmou ter praticado os factos, do modo dado por provado.

Apenas não recordava ter dito a expressão “toca a andar daqui para fora, o próximo já não é para o ar”, que também não descartou ter dito, mas que de resto foi confirmada pelos ofendidos CC e GG, que também confirmaram os demais factos do modo que se deu por assente.

No caso, duvidas não restaram que o arguido praticou os factos mercê da confissão parcial levada a cabo, sendo certo que o mesmo admitiu que pretendia “causar um susto” aos ofendidos, para que, desse modo, se ausentassem do local, parando com o barulho.

O arguido negou, porém, ter efectuado disparo com arma de fogo, alegando que se tratava de uma pistola de alarme, razão pela qual não foi possível ter a certeza das concretas características da dita arma, não obstante se saber que o arguido possui armas de fogo, dada a informação de fls. 79 e 80.

No que respeita à data e hora dos factos, o arguido e esposa HH alegaram terem ocorrido em finais de Março de 2020, numa altura em que já havia obrigação de confinamento devido à COVID19, cerca das 02:00 horas, tendo os ofendidos contrariado essa versão, já que asseguraram que estiveram a jantar num restaurante momentos antes dos factos ocorrerem, alegando não terem sido na altura do confinamento, tendo os mesmos tido lugar cerca das 23:00 / 00:00 horas.

Quanto a estes factos, foi preponderante o teor do auto de notícia de fls. 4 a 5 verso, de onde resultam a data e hora que se deram por assentes. É que na altura em que formalizaram a queixa, é natural que os ofendidos estivessem com a memória mais viva, sendo certo que em julgamento também afirmaram terem ido apresentar queixa poucos dias depois dos factos, não tendo decorrido mais do que um mês. Assim, deu-se essa data e hora por assentes.

II, Militar da GNR descreveu as diligências que fez de molde a apurar a identidade do arguido.

Quanto ao elemento subjectivo do crime em questão, o mesmo retira-se da conjugação dos factos provados com as regras da experiência comum, pois qualquer cidadão, que corresponde ao padrão do homem médio, agindo como agiu o arguido, revela intenção directa de praticar os factos, como efectivamente, o fez.

O próprio arguido manifestou pretender assustar os ofendidos para que abandonassem o local, assim deixando de fazer barulho.

Em sede de condições de vida, designadamente no que concerne à situação económica, social e familiar do arguido, o Tribunal fez fé nas declarações pelo mesmo proferidas, uma vez que as mesmas pareceram credíveis no que concerne a tais aspectos.

Quanto à personalidade do arguido depôs a testemunha JJ, militar da GNR, que colabora com aquele no combate aos incêndios.

Os antecedentes criminais do arguido resultaram provados com base na análise do respectivo Certificado de Registo Criminal junto aos autos.

Todos os elementos probatórios constantes dos autos foram analisados de uma forma crítica e com recurso a juízos de experiência comum, tendo sido todos articulados e concatenados entre si.”


*

Apreciando.

Recurso do arguido AA:

a) Erro de julgamento da matéria de facto, invocando o recorrente que foram incorrectamente julgados os factos constantes dos pontos 1., 3., 5. e 6. dados como provados, além de que resultaram da prova produzida outros factos relevantes para a decisão da causa, que devem ser aditados à matéria de facto dada como provada, verificando-se um manifesto erro na apreciação da prova - art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP (conclusões 1. a 5.). 

Nesta parte da motivação o recorrente AA invoca o erro de julgamento de facto por parte do Tribunal a quo apontando, essencialmente, à natureza particular do caminho utilizado pelos ofendidos, às características do objecto que ele utilizou para os afastar do local, que diz não ser uma arma de fogo, bem como às consequências do seu acto nos ofendidos, dizendo que não foi feita prova de que os mesmos ficassem com medo ou receio e perturbados na sua segurança, receando pela sua integridade física e pela vida, sendo que eles emitiram barulhos que perturbaram o sossego do seu filho menor, então com problemas de saúde, transcrevendo excertos de declarações suas e de depoimentos de testemunhas (págs. 2 a 18 da motivação).

Conforme se verifica, o recorrente invoca manifesto erro na apreciação da prova, apontando à sentença recorrida o vício do artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP, o qual constitui, como é sabido, um vício da própria decisão – “erro notório da apreciação da prova”.

Questão diferente são os erros de julgamento ao nível da apreciação e valoração da prova, a que alude o artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do mesmo Código.

Com efeito, a decisão da matéria de facto pode ser atacada por uma de duas vias: ou através da arguição dos vícios previsto no dito artigo 410.º, n.º 2, do CPP, o que se tem designado de revista alargada, ou através do recurso amplo ou efectivo em matéria de facto, previsto no artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, mesmo Código.

No primeiro caso tais vícios constituem um defeito estrutural da própria decisão, tendo que resultar do respectivo texto e evidenciando-se da sua simples leitura, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, estando, por isso, vedado o recurso a elementos a ela estranhos para os fundamentar, designadamente a elementos probatórios produzidos em audiência e/ou constantes dos autos.

Já no segundo caso - impugnação ampla – impõem-se a convocação dos elementos probatórios constantes dos autos e produzidos em audiência, com o ónus, da parte do recorrente, de dar cumprimento ao disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP.

Mas o recorrente confunde as duas realidades.

Com efeito, o mesmo não apresenta quaisquer argumentos que suportem o vício enunciado no invocado artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP, para o que teria de limitar-se somente ao texto da sentença recorrida, ainda que conjugado com as regras da experiência comum.

Mas nada disso faz, nem tão pouco tal vício – de conhecimento oficioso - se detecta pela mera análise do teor da sentença, ainda que em conjugação com as ditas regras da experiência, pelo que tal pretensão não poderá proceder.

Pelo contrário, o recorrente aponta as provas produzidas em audiência que, a seu ver, levariam a decisão diversas da recorrida, designadamente quanto a esses pontos dos factos dados como provados, pelo que está em causa apenas a impugnação ampla da matéria de facto, nos termos do dito artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do mesmo Código.

Efectivamente, a decisão do Tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser modificada, além do mais, se a prova tiver sido impugnada pelo recorrente (al. c) do art. 431.º do CPP), sendo que, em tal situação, aquele deve especificar “os concretos pontos de factos que considera incorrectamente julgados” e as “concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida” (als. a) e b) do n.º 3 do dito art. 412.º do CPP).

E acrescenta o seu n.º 4 do mesmo artigo 412.º que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”  

Em tais situações, “o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa” (n.º 6 do art. 412.º).

Com efeito, o recurso de sentença não representa um novo julgamento, com a apreciação da generalidade dos factos e das provas, mas somente “uma reapreciação selectiva de decisões em aspectos concretos, invocados pelo recorrente”, sendo, por isso, um “remédio jurídico”.[1]

Ou seja, a modificação da matéria de facto por via da reapreciação da prova, em sede de recurso, depende sempre da indicação, pelo recorrente, dos concretos pontos de facto - ou de partes deles - que considera incorrectamente julgados e das concretas provas que impõem - relativamente a cada um desses factos ou partes -, uma solução diversa da que foi consagrada na sentença.

Mas impor é claramente diferente de admitir, permitir ou consentir.

Como já referiu o Tribunal Constitucional, “a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão.” (cfr. Acórdão n.º 198/2004, de 24-03-2004, DR-II, de 02-06-2004).

Consequentemente, a crítica à formação da convicção do Tribunal a quo, sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência comum (art. 127.º do CPP), não pode ter sucesso se se alicerçar apenas na diferente convicção do recorrente sobre a prova produzida. Neste enquadramento, o recorrente pretende fazer valer a sua própria opinião, analisando a prova consoante os seus interesses e considerando-a insuficiente para a sua condenação.

Ademais, importa referir que o Tribunal de 1.ª instância beneficia, nessa actividade probatória e subsequente exercício de ponderação, da oralidade e da imediação, o mesmo não sucedendo com o Tribunal da Relação.

Assim, a prova recolhida e ponderada nesse contexto apenas poderá ser reapreciada e alterada pelo Tribunal superior se for demonstrada a existência de provas que “impõem” uma decisão diversa da recorrida (citada alínea b) do n.º 3 do art. 412.º).

Efectivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto não pode constituir uma forma de subversão do princípio da livre apreciação da prova deferido ao Tribunal de 1.ª instância, pelo que quando a atribuição de credibilidade a um meio de prova que serviu para formar a convicção do julgador se basear na opção assente na oralidade e imediação, o Tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum e à normalidade das coisas.[2]

Na verdade, importa ter em conta o estabelecido na lei adjectiva penal quanto à valoração da prova, a qual, salvo disposição legal em sentido diferente, “é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente” (art. 127.º do CPP).

Essa liberdade significa que o julgador não está vinculado a “critérios legais de valoração probatória pré-estabelecidos”. Ou seja, “não vigora o princípio da tipicidade dos meios de prova ou da prova tarifada, antes o princípio da liberdade de prova”, sendo a livre apreciação da prova “uma condictio para bem julgar”. [3]  

E nesse exercício de apreciação da prova devem ser tidas em conta as ditas “regras da experiência”, além de critérios de lógica e de normalidade das coisas, tendo, necessariamente, por referência o padrão de conduta e de conhecimentos do homem médio.  

O que se impõe ao juiz de julgamento é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência comum.

Por sua vez, competindo ao recorrente fazer as especificações enunciadas nas referidas alíneas a) a c) do n.º 3 do artigo 412.º, o mesmo deve apontar a violação do processo seguido pelo julgador para a formação da sua convicção, designadamente que a tenha baseado em provas nulas ou proibidas, que não foram produzidas as provas que invoca na fundamentação, que houve preterição de prova plena ou que não houve liberdade de formação da convicção.

No caso sub judice, o recorrente nada disso faz ou as alterações que sugere não têm qualquer relevância para o objecto do processo, designadamente para o enquadramento jurídico-penal.

Na verdade, relativamente ao local de passagem dos ofendidos, o Tribunal deu como provado que se tratava de uma “estrada de terra batida no exterior da propriedade do arguido” (facto 1)).

Saber se essa estrada ou caminho é particular não releva, sabendo-se que não se tratava de propriedade do arguido, além de que nem sequer este invoca que relativamente ao mesmo tivesse qualquer indicação ou ordem do seu proprietário para nele não permitir a passagem de terceiros, designadamente dos ofendidos. Nem tão pouco resulta dos elementos invocados que a proprietária do terreno onde tal estrada ou caminho se situa – alegadamente a empresa “A...” – tivesse ali proibido a passagem de terceiros, designadamente murando o terreno e colocando portões a impedir a circulação, no exercício das amplas faculdades que o direito de propriedade lhe consentia (art. 1305.º do C. Civil).

Nem das suas próprias declarações e dos depoimentos das testemunhas KK (colaborador da dita “A...”) e HH (mulher do recorrente), dos quais são transcritos excertos, se estrai algo em contrário de que acabou de dizer-se (pág. 5 a 7 da motivação).

Assim, mantém-se inalterada a redacção do ponto 1) dos factos dados como provados.

Relativamente ao tipo de arma, foi dado como provado no ponto 3) que o disparo foi efectuado “com arma de características não concretamente apuradas”, sendo que foi dado como não provado que “o disparo referido em 3) foi realizado com arma de fogo” (vide factos não provados).

É verdade que no ponto 5) dos factos dados como provados se manteve a referência a “arma de fogo”, mas tal dever-se manifestamente a lapso da Exm.ª Juíza, a qual se esqueceu de alterar a redacção do mesmo em conformidade com o que fez constar do ponto 3), o qual é agora susceptível de correcção nos termos do artigo 380.º, n.ºs 1, alínea b), e 2, do CPP.

Tendo presente tal circunstância, o que até resulta clarificado da respectiva fundamentação da convicção, impõe-se rectificar a redacção desse ponto 5), passando a constar, em vez de “…após o disparo da arma de fogo…”, a expressão “…após o disparo da referida arma…”, pois que este facto surge na sequência e com referência ao facto 3).

Por sua vez, o respectivo facto dado como não provado passa a ter a seguinte redacção: “- O disparo referido em 3) e 5) foi realizado com arma de fogo.”

Fica, pois, sanada a contradição invocada pelo recorrente entre tais pontos da matéria de facto dada como provada.

No que se refere à pretensa alteração de tais factos, por forma a deles passar a constar que foi efectuado “um barulho com um dispositivo sonoro de características não concretamente apuradas”, as provas indicadas não impõem decisão diversa da recorrida, sendo que a Exm.ª Juíza formou a sua convicção a tal respeito também nas próprias declarações do arguido, o qual negou ter efectuado disparo com arma de fogo, “alegando que se tratava de uma pistola de alarme, razão pela qual não foi possível ter a certeza das concretas características da dita arma” (pág. 5 da sentença, acima transcrita).

O próprio arguido reconheceu que deu “um tiro”, conforme excerto transcrito na resposta do Ministério Público (pág. 11), o que implica, pela lógica das coisas, o disparo de uma arma, seja ela de que tipo for, além de que tal resulta também dos depoimentos dos ofendidos CC e GG, igualmente transcritos excertos pela Exm.ª Magistrada do Ministério Público na resposta, os quais falam num “disparo”, explicando até o segundo que “foi um clarão enorme, típico de arma de fogo”, não tendo dúvida de que era “uma arma” (págs. 12 e 23).     

Assim, afastado que foi tratar-se de arma de fogo, o recorrente não apresentou elementos de prova que imponham decisão diversa da recorrida, pelo que, ressalvada a referida rectificação de lapso, não se atende a pretensa alteração de tais factos.

Quanto às consequências nos ofendidos de tais actos do arguido, pretende o recorrente que se dê como não provado o ponto 6) da matéria de facto dada como provada e que seja alterada a redacção do ponto 5), passando deste a constar:

“5) Ao ouvirem as afirmações proferidas pelo arguido e após um barulho provocado por dispositivo sonoro de características não concretamente apuradas, os ofendidos abandonaram o local.” (págs. 11 e 12 da motivação).

Sucede que não indica provas que imponham decisão diversa na que foi consagrada na sentença a tal respeito, além de que os próprios ofendidos CC e GG, ouvidos em audiência, referiram terem ficado com receio e medo, designadamente de levarem um tiro, tendo abandonado imediatamente o local, esclarecendo que tal sentimento e reacção foi comum a todos, conforme excertos transcritos pela Exm.ª Procuradora na resposta (págs. 10 a 12).

Ainda que não tenham sido ouvidos em audiência todos os ofendidos, atento o relato daqueles dois, que se referiram à reacção de todos, e tendo presentes as regras da experiência comum e normalidade das coisas, que presidiram à apreciação da prova por parte da Exm.ª Juíza (art. 127.º do CPP), não há qualquer fundamento para alterar a matéria de facto nos termos pretendidos pelo recorrente, permanecendo, por isso, tais pontos inalterados.

No que concerne ao barulho emitido pelos ofendidos e à saúde do filho do arguido, refere o recorrente que aqueles se encontravam a efectuar barulho manifestamente excessivo junto à sua moradia, pois que o local dos factos é no seguimento de uma subida íngreme, sendo que o seu filho encontrava-se com problemas de saúde aos nível dos pulmões, tendo o susto provocado pelos ofendidos afectado a sua saúde, fazendo transcrição de excertos das suas declarações e dos depoimentos das testemunhas / ofendidos CC e GG, bem como da testemunha HH (sua mulher), pugnando pelo aditamento à matéria de facto dada como provada dos factos seguintes:

No modo de tempo e lugar identificado nos pontos 2 a 5, os ofendidos causavam elevada poluição sonora, com o ruído das suas motas e gritos de incentivo.”

À data dos factos o filho menor do arguido assustou-se e começou a chorar, com a agravante de que encontrava-se com problemas de saúde a nível dos pulmões.” (págs. 13 a 18 da motivação).

Relativamente ao barulho, além da expressão “elevada poluição sonora” se conclusivo, já resulta dos factos dados como provados a existência de motas a circular (facto 1)), o que, como é da experiência comum, produz barulho, tendo sido isso que levou o arguido a proceder dessa maneira, por ter o filho a dormir e com o barulho das motas os cães poderiam começar a latir e acordavam o filho (facto 2)). 

Ou seja, o que alegadamente teria resultado das suas declarações e do depoimento da sua mulher HH já contém, naquilo que tem corroboração nas demais provas, consagração nos factos dados como provados, sendo que relativamente à situação de saúde do filho menor o Tribunal a quo avaliou as provas produzidas e concluiu que “nenhuma prova se fez deste facto, não se podendo o tribunal bastar com a mera palavra do arguido e esposa”, não sendo agora invocados elementos probatórios que, a tal respeito, imponham solução diversa.

Assim, não se atende o pretenso aditamento de tais factos aos dados como provados na sentença.

Na verdade, ao longo da sua motivação o recorrente limita-se, quanto a tais factos, praticamente a discordar da valoração dos meios probatórios levada a cabo pela Exm.ª Juíza, sugerindo que esta deveria ter valorado essencialmente as provas por ele indicadas, especialmente as suas declarações e o depoimento da sua esposa, em detrimento das enunciadas na motivação da sentença. No fundo, aponta a sua própria convicção em contraposição à convicção do Tribunal recorrido, ou seja, dirigem um ataque à “fase final” da formação da convicção, o que não poderia ter viabilidade, como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004 (acima mencionado).

Ora, vista a motivação da sentença, percebe-se que foram enunciados e conjugados todos os elementos de prova produzidos, fazendo-se referência, por síntese, às declarações do arguido (que admitiu boa parte dos factos, ainda que de forma desculpabilizante), além de se mencionarem os depoimentos testemunhais e a prova documental, tendo o Tribunal a quo apreciado a prova de modo racional, objectivo e motivado, com respeito pelas regras legais atinentes, tudo caldeado pelos benefícios resultantes da oralidade e da imediação, não competindo a este Tribunal ad quem censurar a decisão recorrida com base na convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida, sob pena de se postergar o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no citado artigo 127.º do CPP.

Por isso, não havendo fundamento para a alteração e aditamento preconizados para a matéria de facto, pois que não se descortina a violação dos comandos legais atinentes à valoração da prova, impõem-se concluir pela improcedência desta parte do recurso.


*

b) Não punibilidade da conduta do arguido, em face da alteração peticionada para a matéria de facto e atento o disposto no artigo 154.º, n.º 3, alínea a), do Código Penal, com a sua consequente absolvição (conclusões 6. a 18.).

Nesta parte alega o recorrente, em síntese, que o crime de coacção pretende proteger a direito individual de liberdade, tendo a liberdade pessoal necessariamente de ser pautada pelos direitos, liberdades e garantias de terceiros, não sendo o comportamento por si exercido causa adequada a causar prejuízo à liberdade de determinação dos ofendidos, sendo, ao invés, apto a motivá-los a respeitarem os direitos de terceiro, levando a matéria de facto dada como provada, com as alterações peticionadas, a concluir que a sua conduta não é punível, em face do disposto no artigo 154.º, n.º 3, alínea a), do Código Penal, pois que o comportamento dos ofendidos é susceptível de provocar poluição sonora, nos termos do artigo 80.º, n.º 1, do Código da Estrada, o que pretende salvaguardar o direito ao descanso e acarreta uma contra-ordenação leve, nos termos dos artigos 80.º, n.º 5, e 136.º, n.º 2, do mesmo Código, sendo, por outro lado, o descanso, a tranquilidade e o sono direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, que se inserem no direito à integridade física e no direito ao ambiente e qualidade de vida, como preceituado nos artigos 25.º, n.º 1, e 66.º da CRP, sendo ainda o direito ao repouso um direito de personalidade que beneficia da tutela do artigo 70.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil, devendo, em caso de colisão, os direitos ceder na medida do necessário, em face do disposto no artigo 335.º, n.º 1, do mesmo Código, concluindo que deve ser absolvido (págs. 18 a 25 da motivação).

Relativamente à integração jurídico-criminal dos factos apurados, escreveu-se na sentença recorrida o seguinte:

Do crime de Coacção Agravado.

Preceitua o art. 154.º, n.º 1, do Código Penal que “quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.

Nos termos da disposição legal supra transcrita, comete o crime de coacção quem exercer actos de violência ou de ameaça com mal importante (enquanto na versão originária só podia ser cometido por meio de violência, ameaça de violência, ameaça de queixa criminal ou de revelação de um facto atentório da honra e da consideração, ou ameaça com a prática de um crime), constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade. Resulta, assim, uma maior amplitude do tipo legal.

“Por violência deve entender-se não só o emprego da força física, mas também a pressão moral, ou intimação. E não se exige que a força física ou a intimação sejam irresistíveis; basta que tenham a potencialidade causal para compelir a pessoa contra quem se empregam à prática do acto ou à omissão ou a suportar a actividade” - Maia Gonçalves, Código Penal Português, 8.ª ed., p. 608.

Ameaçar com mal importante é anunciar a intenção de infligir a outrem um mal futuro com “acentuado relevo, um mal que a comunidade repele e censura pelo dano relevante que causa ou pode causar” (loc. cit.).

Por sua vez, “constranger é obrigar alguém a assumir uma conduta que não depende da sua vontade. É, portanto, violar a liberdade de autodeterminação” - Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, 2.º vol., 2.ª ed., p. 193.

Deste modo, o crime em apreço considera-se consumado “no momento em que alguém é violentado a fazer, a omitir ou a suportar o que não quer”. A consumação pressupõe, portanto, uma efectiva perda da liberdade de determinação da vítima, bem jurídico a que também se referem os arts. 70.º do Código Civil e 24.º da Constituição da República Portuguesa.

Evidentemente que, ao lado do preenchimento dos elementos objectivos supra descritos, exige-se a actuação a título de dolo, o qual deverá abranger todos aqueles elementos (art. 14.º do Código Penal).


*

Estabelece o artigo 155.º do Código Penal os casos em que há uma agravação do crime em análise.

A alínea a), do n.º 1, do mencionado preceito estatui que, “Quando os factos previstos nos artigos 153.º e 154.º forem realizados por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, no caso do artigo 153.º, e com pena de prisão de um a cinco anos, no caso do n.º 1 do artigo 154.º.”

Protege-se a segurança da comunidade face aos riscos da livre circulação de armas, visando o legislador evitar toda a actividade idónea a perturbar a convivência social e pacífica e garantir através da punição deste comportamento potencialmente perigoso, a defesa da ordem e segurança públicas contra o cometimento de crimes, em particular contra a vida e integridade física.


*

Analisado o tipo legal agora em causa, cumpre, e tendo em conta os seus elementos típicos, verificar se o mesmo se encontra ou não preenchido pela conduta imputada ao arguido.

Do acervo factual apurado, resulta que todos os elementos objectivos e subjectivos do crime pelo qual vem acusado se encontram preenchidos, nomeadamente a agravação.


*

Cumpre apreciar se existe alguma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.

Olhando para a matéria dada como provada facilmente se constata que não houve qualquer agressão por banda dos ofendidos que pudesse despoletar a reacção do arguido.

Tampouco estes criaram perigo actual que ameaçasse interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro (no caso, alegadamente a saúde do filho, pois nenhuma prova se fez deste facto, não se podendo o tribunal bastar com a mera palavra do arguido e esposa, nem se retira este perigo do facto de o filho do ofendido estar choroso e a tossir bastante).

Embora o arguido tivesse agido do modo descrito, segundo disse, para fazer cessar o barulho causado pelos ofendidos, nada na atitude dos ofendidos fundamentou a sua reacção que, por essa razão, nunca poderia ser lícita. Assim, temos que não age a coberto de qualquer causa de justificação prevista no artigo 31.º do Código Penal.

Sequer age em erro sobre a existência de uma causa de justificação, pois o arguido sabia que não podia agir como agiu, não se tendo provado que achava que agia a coberto que uma causa de exclusão da ilicitude ou culpa, nunca o mesmo tendo referido pensar estar legitimado a agir daquela forma.

Face ao exposto, conclui-se que o seu comportamento não se destinou a repelir uma agressão ilícita, uma vez que não se provou que tenha havido qualquer agressão por parte dos ofendidos, nem como se disse, estes causaram perigo actual que ameaçasse interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, não se configurando a conduta levada a acabo pelo arguido como comportamento defensivo.

Assim, concluímos que não agiu a coberto de qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.


*

Inexistem factos susceptíveis de integrarem causas de exclusão da ilicitude e da culpa, pelo que se conclui estarem preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime em causa.

Quanto ao número de crimes, não obstante ter-se apurado que no local estavam 6 pessoas, atento o facto de estar escuro em virtude de ser de noite, e a enervação resultante dos acontecimentos descritos nos factos, leva o tribunal a concluir que não houve certeza por banda do arguido de que se tratavam de 6 ofendidos, pelo que deverá ser condenado pela prática de um só crime.

Pelo exposto, deve o arguido ser condenado pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de coacção, previsto e punido pelo art. 154.º, n.º 1, do Código Penal, com a agravação prevista no n.º 3, do artigo 86.º da Lei das Armas, devendo ser absolvido da prática de mais 5 crimes, dos quais vinha acusado.”


*

Vejamos.

Nesta parte o recorrente não questiona o enquadramento jurídico da conduta no ilícito de coacção agravado, pugnando somente pela verificação de circunstâncias que conduzem à sua não punibilidade, nos termos do artigo 154.º, n.º 3, alínea a), do Código Penal.

Dispõe este preceito o seguinte:

3 - O facto não é punível:

a) Se a utilização do meio para atingir o fim visado não for censurável.”

Conforme já resulta do que foi vertido na sentença recorrida, o ilícito de coacção contempla o uso de violência ou a ameaça com um mal importante para levar – constranger - outra pessoa, contra a sua vontade, a uma acção ou omissão ou a suportar uma actividade. Por esta via protege-se o direito individual de liberdade de acção.

Assim, a finalidade do constrangimento é levar o constrangido a fazer uma coisa, a deixar de a fazer ou a suportar uma actividade, em violação da sua liberdade de agir e de querer. Na realidade, a coacção consubstancia-se no constrangimento de outrem por determinado meio e com vista a determinado fim.[4]

O referido preceito consagra uma causa de não punibilidade da conduta, que tem como pressuposto a não censurabilidade do meio usado para atingir o fim visado. Trata-se, na realidade, de uma norma impeditiva de criminalizações injustificadas, isto é, uma causa de justificação.

A mesma está para além das causas gerais de justificação – vg. legítima defesa, direito de necessidade ou acção directa.

Conforme refere Américo Taipa de Carvalho, o legislador pretendeu, por esta via, excluir da punição “uma multiplicidade de situações de coacção que quase são ‘conaturais’ à vida corrente e, portanto, quase se podem considerar como socialmente adequadas ou, pelo menos, como socialmente não inadequadas.”[5]

A questão da delimitação entre a coacção “ilícita” – como tal punida - e “lícita” – não punida – tem a ver com a dualidade meio - fim,[6] ao nível da sua ilicitude ou licitude / ilegitimidade ou legitimidade.

Neste contexto, o mesmo Autor enuncia as situações possíveis, dizendo que “sendo o fim ilegítimo, a coacção será ilícita, mesmo que o meio utilizado (a ameaça) seja em si lícito”, ao passo que “sendo o meio ilícito, a coacção será, em geral, ilícita, mesmo que o fim seja legítimo.”[7]   

Volvendo ao caso presente, resulta dos factos dados como provados que o fim visado pelo arguido era a retirada do local por parte dos ofendidos, que se encontravam próximos da sua residência, a circular de moto, originando barulho, desse modo perturbando o sossego do seu filho de 4 anos, que estava a dormir (facto 2)). Assim, poderá dizer-se que o fim visado se apresenta como legítimo, pois estava em causa o direito ao descanso e ao sossego, apesar de o arguido não dispor de poder ou legitimidade para impedir aqueles de ali estarem e circularem, na medida em que nem sequer se tratava de terreno de sua pertença, mas sim de uma estrada de terra batida no exterior da sua propriedade (facto 1)).

Mas o mesmo não poderá dizer-se do meio usado, o qual se tem por ilícito. Na verdade, o arguido, para obter tal desiderato, efectuou um disparo com uma arma de características não concretamente apuradas para o ar, tendo afirmado “toca a andar daqui para fora, o próximo já não é para o ar”, querendo com tal significar que dispararia contra o corpo dos ofendidos (facto 3)), tendo proferido essa expressão de modo sério, intimidatório, de forma exaltada e de molde a fazer crer que estava firmemente decidido a concretizar tais palavras (facto 4)), levando a que os visados ficassem com medo que ele cumprisse o que anunciara, sentindo-se perturbados na sua segurança, receando pela sua integridade física e pela sua vida, razão pela qual abandonaram o local (facto 5)).

Efectivamente, com tal acção e palavras, o arguido dirigiu uma ameaça de morte aos ofendidos caso estes não abandonassem o local, o que os levou a afastarem-se imediatamente. E se é certo que a conduta daqueles era, como se disse, apta a perturbar a tranquilidade, o sossego e o descanso da sua família, designadamente do filho menor, direitos com consagração legal, como o recorrente sustenta, a verdade é que o mesmo dispunha de outras formas de alcançar o fim visado, como seja recorrer às entidades policiais, não sendo justificação para tal acto a eventual demora das mesmas a chegarem ao local, como aquele alega na resposta ao Parecer.

Conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque, a referida causa de exclusão de punibilidade implica “não apenas a legitimidade do fim visado e do meio coactivo utilizado, mas também a proporcionalidade entre o fim visado pela coacção e o meio coactivo utilizado.”[8]

Essa proporcionalidade entre os meios e os fins somente é admitida pelo legislador no caso de o facto integrante da coacção “visar evitar a prática do suicídio ou a prática de facto ilícito típico”, causa de não punibilidade enunciada na alínea b) do mesmo n.º 3 do artigo 154.º do Código Penal. Mas tal não é o caso.

Efectivamente, a lei não legitima o recurso a actos criminalmente ilícitos para defender aqueles direitos de personalidade, designadamente recorrendo à “acção directa”, não se tratando também de um acto de legítima defesa (art. 32.º do C. Penal).

Usando a expressão corrente, nem sempre os fins justificam os meios. A própria razão de ser da punição da coacção tem subjacente a preocupação do legislador com a concretização do mal anunciado, este lesivo de bens jurídicos maiores.

No caso em análise não se mostra, pois, verificada a invocada causa de exclusão de punibilidade da conduta, sem prejuízo de as circunstâncias da acção poderem ser ponderadas, em favor do agente, na graduação da pena, atento o disposto no artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal.

Assim, inexistindo fundamento para aplicar o referido normativo, não pode o arguido ser absolvido do crime imputado, improcedendo igualmente este segmento do recurso.


*

c) Inaplicabilidade da agravante prevista no artigo 86.º, n.º 3, da Lei das Armas, sendo também os dias de multa fixados excessivos, com violação do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal, devendo ser reduzidos em conformidade (conclusões 19. a 23.).

O recorrente, partindo do pressuposto que procedeu a alteração por ele preconizada para a matéria de facto, refere, em síntese, que não resultou da prova produzida “qual o concreto dispositivo que efectuou o som em causa nos autos”, tendo o próprio Tribunal a quo vertido na sentença que não foi possível ter a certeza das concretas características da arma, mas, antagonicamente, considerou que era aplicável a agravante prevista no n.º 3 do artigo 86.º da Lei das Armas, segundo o qual as penas aplicáveis aos crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, não se podendo aceitar o enquadramento da “arma” em questão na Lei das Armas, pois que não foram apuradas as características do dispositivo usado, pelo que não deverá ser aplicada tal agravante, sendo que o Tribunal a quo, ao considerar que “o grau de ilicitude dos factos é elevado, atenta a sua gravidade”, violou o disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal, pois que o comportamento do arguido, atentas os motivos que o legaram a proceder desse modo, não é dotado de um grau de ilicitude elevado, pelo que, por tudo o alegado, “os dias de multa fixados encontram-se excessivos para os factos praticados, razão pela qual devem ser reduzidos em conformidade.” (págs. 25 a 27 da motivação).

Vejamos.

Quanto à alegada aplicação da agravante prevista no n.º 3 do artigo 86.º a Lei das Armas, não assiste razão ao recorrente. Com efeito, tal como resulta do dispositivo da sentença, o mesmo foi condenado “pela prática, em autoria material, de um crime de coacção agravada, previsto e punido pelos artigos 154.º, n.ºs 1 e 2, e 155.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal”, sendo que a agravação é a prevista nesse segundo preceito, o qual, com a epígrafe “Agravação”, prevê a “pena de prisão de 1 a 5 anos”.  

Tal enquadramento jurídico já constava da acusação (ref.ª 90674659) e foi com base nesses artigos do Código Penal que se fez a integração jurídico-penal dos factos e se estabeleceu a moldura penal aplicável, conforme consta explicado na fundamentação da sentença, na parte da “Fundamentação de Direito” (págs. 6 a 9, acima transcritas).  

É verdade que, no final dessa parte da sentença se aludiu a tal norma da Lei das Armas, nos seguintes termos:

“Pelo exposto, deve o arguido ser condenado pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de coacção, previsto e punido pelo art. 154.º, n.º 1, do Código Penal, com a agravação prevista no n.º 3, do artigo 86.º da Lei das Armas, devendo ser absolvido da prática de mais 5 crimes, dos quais vinha acusado.” (sublinhado nosso).

Mas tal singela referência à “agravação prevista no n.º 3, do artigo 86.º da Lei das Armas” resultou de manifesto lapso da Exm.ª Juíza,[9] na medida em que, além de tal normativo não ser indicado na acusação, em toda a fundamentação foi sempre referido o artigo 155.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, como sendo o fundamento da agravação, além de que foi com base nele que também se encontrou a moldura penal para a fixação da pena concreta (vide pág. 10 da sentença, infra transcrita).

Tratando-se de lapso, impõe-se a sua rectificação, passando a constar nessa parte da sentença (pág. 9), em vez da referência ao “n.º 3, do artigo 86.º da Lei das Armas”, a referência ao “artigo 155.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal (art. 380.º, n.ºs 1, al. b), e 2, do CPP).

Relativamente à medida pena, escreveu-se na sentença o seguinte:

IV - Escolha e Determinação da Medida da Pena.

Estando o comportamento dos arguidos devidamente enquadrado, importa agora graduar, dentro da medida abstracta da pena que a estes crimes compete, a pena concreta.

A determinação da medida da pena obedece a 3 fases, que consistem: na determinação da moldura penal (medida legal ou abstracta da pena) aplicável ao caso, na escolha da espécie de pena que efectivamente deve ser imposta, e na determinação da medida judicial ou concreta da pena (vide Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, p. 198).

A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” (artigo 71.º, n.º 1, Código Penal), sendo certo que não se pode ignorar que a medida da pena não pode, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa (art. 40.º, n.º 2, Código Penal) nem a medida da pena poderá descer a um nível inferior às exigências de prevenção evidenciadas no caso concreto.

Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração – entre o ponto óptimo e o ponto comunitariamente suportável da medida da tutela dos bens jurídicos -, podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena” (Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências do Crime, págs. 230 e 231).

Estando perante tipos legais que estatuem penas compósitas alternativas, cumpre escolher a natureza da pena a aplicar.

O crime de coacção agravado é punível com pena de prisão de 1 (um) a 5 (cinco) anos, nos termos do disposto no artigo 155.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.


*

Face ao exposto, a pena aplicável terá de se situar dentro da mencionada moldura. A primeira consideração a fazer na escolha da medida da pena deve ser a da sua finalidade. O artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal, dispõe que “a aplicação das penas (…) visa a protecção de bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade.”

A aplicação de uma pena visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (finalidades de prevenção geral e especial), não podendo a medida da pena ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa. Toda a pena tem de ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta, que fixará o seu limite máximo; a culpa representa o limite inultrapassável da actuação punitiva do Estado, em nome da dignidade essencial do indivíduo (“nulla poena sine culpa”).

As penas são medidas dissuasoras e socializadoras que pressupõem a imputabilidade e culpa do agente do crime.

A prevenção geral terá um perfil de dissuasor (na publicação – prevenção geral negativa ou de intimidação: toda a pena abstracta serve finalidades de prevenção geral de intimidação (ou negativa); a ameaça da pena, como tal, constitui um elemento dissuasor da prática do correspondente crime) e de estabilizador da confiança no sistema jurídico, de confirmação da validade e actualidade da norma incriminatória e consequente tutela confiança da comunidade na sua vigência, restabelecendo-se a paz jurídica que fora abalada pelo crime (na aplicação – prevenção geral positiva ou de integração).

A reintegração social ou prevenção especial será o resultado da execução da pena (prevenção especial positiva ou de integração e, excepcionalmente, prevenção especial negativa, de intimidação ou de segurança).

Dispõe o artigo 70.º do Código Penal que: “Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”

Da conjugação deste preceito com a norma constante do artigo 40.º, supra-referida, extrai-se que, quando a pena de multa seja suficiente para alcançar a protecção dos bens jurídicos postos em causa com a prática do crime e a reintegração do agente na sociedade, deve ser esta a pena a aplicar.

As necessidades de prevenção geral revelam-se bastante elevadas, sendo necessário reforçar a validade da norma violada na comunidade, uma vez que temos de evitar a proliferação deste tipo de crimes, atendendo ao alarme social que causam, mormente nos dias de hoje que o sentimento de insegurança da população aumenta diariamente e à necessidade de uma consciencialização da inadequação, da gravidade e perniciosidade desses comportamentos, atentos, também, os bens jurídicos pessoais em causa.

Acresce que, no presente caso, as necessidades de prevenção especial revelam-se médias, dado que o arguido não tem antecedentes criminais e está socialmente inserido, tendo confessado parte dos factos. No entanto, não revelou arrependimento.

Tendo em conta, por um lado, que o tipo legal de coacção agravada apenas prevê pena de prisão e, por outro, as prementes exigências de prevenção, entende o Tribunal que uma pena não privativa da liberdade é a única suficiente para acautelar os bens jurídicos violados, pelo que lhe será aplicada uma pena de prisão.


*

Para a determinação da concreta medida da pena o tribunal tem que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido.

Assim, no caso vertente, atender-se-á, a que (art. 71.º, n.º 2):

- O grau de ilicitude dos factos é elevado, atenta a sua gravidade.

- O modo de execução, sendo que os factos tiveram lugar de noite, em lugar ermo; e tendo em conta a natureza das ameaças levadas a cabo e com recurso a arma.

- As consequências do crime revestem-se de gravidade média, atendendo ao estado de espírito dos ofendidos, em consequência das condutas do arguido.

- O arguido agiu com dolo directo, revelando intenção de praticar os factos tendo consciência que os praticava, e que com eles causava medo aos ofendidos, querendo esse resultado.


*

Tudo ponderado, dentro dos limites balizados pela medida da culpa e tendo em conta a moldura abstracta actualmente prevista para o crime em questão, afigura-se adequado, às exigências de prevenção geral e especial, aplicar ao arguido uma pena de 1 (um) ano de prisão pela prática de um crime de coacção agravado, pelo qual vem acusado.

*

V - Da substituição da pena de prisão por pena não privativa da liberdade.

Importa, agora, ponderar a hipótese de substituição da pena de prisão aplicada ao arguido por pena não privativa da liberdade.

Estabelece o artigo 45.º, n.º 1, do Código Penal que “A pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, excepto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes. É correspondentemente aplicável o disposto no artigo 47.º”

O art. 58.º, n.º 1, do Código Penal, também prevê que “Se ao agente dever ser aplicada pena de prisão não superior a dois anos, o tribunal substitui-a por prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que concluir, nomeadamente em razão da idade do condenado, que se realizam, por este meio, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.”

Como refere Anabela Miranda Rodrigues,[10] o art. 70.º do Código Penal, consubstancia um critério de prevenção especial como aquele que deve estar na base da escolha da espécie de pena pelo juiz, sendo igualmente um critério de prevenção - agora geral positiva ou de integração - o único que poderá obstar à aplicação da pena de prisão.

Deste modo, o tribunal deverá optar por uma pena de cariz não detentivo sempre que razões de prevenção especial, ligadas à socialização do delinquente no sentido de evitar a reincidência, o aconselhem. Porém, quando a pena não detentiva possa ser entendida pela sociedade, no caso concreto, como uma injustificada indulgência e prova de fraqueza face ao crime, quaisquer razões que aconselhassem a aplicação da pena não detentiva cedem, devendo aplicar-se a prisão. Trata-se, portanto, de assegurar que o limite mínimo da prevenção geral positiva, no sentido da "defesa do ordenamento jurídico", não seja posto em causa.

No presente caso, consideramos que a execução da pena de prisão não é necessária para prevenir o cometimento de novos crimes.

Não obstante as fortes exigências de prevenção geral, no caso concreto o facto de o arguido não ter antecedentes criminais e de se encontrar socialmente inserido, entende-se ser de substituir por multa, a pena de prisão que lhe foi aplicada, por se afigurar favorável o juízo de prognose a levar a cabo, crendo-se deste modo lograr evitar que volte a delinquir.

Assim, ao abrigo do disposto no artigo 45.º, n.º 1, do Código Penal, substituo aquela pena de 1 ano de prisão por pena de multa, fixando, em consequência e ponderados os critérios determinadores da medida da pena acima descritos, os dias de multa em 300 (trezentos) dias, considerando ao mesmo tempo que o juízo de censura intrínseco à sua aplicação irá prevenir a prática de actos semelhantes desta natureza. Quanto ao quantitativo diário da multa a aplicar, deve atender-se à situação económica e financeira do arguido e aos seus encargos pessoais, conforme o disposto no artigo 47º, n.º 2, do Código Penal, tendo presente, por um lado, a dignificação da pena de multa enquanto medida punitiva e dissuasora, e por outro, que aquele quantitativo não deve exceder o montante de que o agente possa dispor, sem prescindir da satisfação das suas necessidades básicas.

Assim, ponderadas as condições sócio-económicas do arguido, fixa-se a taxa diária em € 10,00 (dez euros).”


*

Apreciando.

Nesta parte também o arguido recorre de direito, pelo que a lei impõe que sejam indicadas “as normas jurídicas violadas” e “o sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela deveria ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada” (als. a) e b) do n.º 2 do art. 412.º do CPP).

Neste contexto, não basta ao recorrente clamar que a sentença é injusta ou que a pena é excessiva, impondo-se, também, que justifique porquê, baseado, consoante o caso, nos factos apurados ou nos preceitos legais aplicáveis, bem como que indique qual, no seu entendimento, será a decisão justa ou a medida adequada da pena. É que, só assim, o Tribunal Superior estará em condições de apreciar e decidir o recurso, mantendo a decisão recorrida ou acolhendo a pretensão do recorrente, total ou parcialmente, revogando aquela na medida necessária.

Caso contrário, seria apreciar um recurso com base em conceitos e imprecisões, o que não se coaduna com um efectivo duplo grau de jurisdição.

No caso sub judice, o recorrente, não pondo em causa a pena principal de 1 ano de prisão, a qual, aliás, foi fixada no mínimo legal da respectiva moldura (art. 155.º, n.º 1, al. a), do C. Penal), insurge-se contra a medida da pena de substituição, fixada em 300 dias de multa, limitando-se a dizer que os dias fixados “encontram-se excessivos”, razão pela qual “devem ser reduzidos em conformidade”.

Ora, além de não apresentar argumentos que infirmem o que foi tido em conta na sentença para a graduação da pena, sendo certo que a principal foi fixada no mínimo legal, o recorrente também não indica, em lado algum, qual a medida concreta da pena multa de substituição que considera adequada e justa. Dizer-se que a pena é “excessiva”, como fez o recorrente, sem que contraponha sequer a pena tida por adequada ao caso – o seu quantum -, pugnando pela sua redução, com argumentos em conformidade, não satisfaz minimamente a exigência legal de, no recurso da matéria de direito, o recorrente indicar o sentido com que a norma deveria ter sido interpretada e aplicada (citada al. b) do n.º 2 do art. 412.º).

Tanto bastaria para que a sua abstracta pretensão não pudesse proceder.

Em todo o caso, sempre se dirá que sendo a pena até 1 ano de prisão aquela que permite a substituição por pena de multa (art. 45.º, n.º 1) e sendo a moldura para a multa de substituição de 10 a 360 dias (n.º 1 do art. 47.º do C. Penal), facilmente se conclui que a Exm.ª Juíza, tendo uma pena principal no limite máximo que admite a substituição (1 ano), fixou a pena de substituição abaixo do seu limite máximo admissível, pelo que de forma alguma se mostra a mesma desproporcionada, ao ponto de merecer a intervenção correctiva deste Tribunal.

 Na verdade, estando a actividade judicial de graduação da pena juridicamente vinculada aos respectivos comandos legais, o Tribunal de recurso apenas deverá intervir se, como refere Jorge de Figueiredo Dias, “tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada.”[11]

Assim, além de o recorrente não cumprir o estabelecido nas referidas normas processuais a respeito do recurso de direito, não se mostram violadas quaisquer preceitos legais, pelo que se impõe concluir também pela improcedência desta pretensão recursiva.


*

Recurso do Ministério Público:

Erro de qualificação jurídica dos factos dados como provados, sustentando o recorrente que o Tribunal a quo deveria ter condenado o arguido por seis crimes de coacção agravada, em concurso efectivo, por tantos serem os ofendidos, tendo a sentença incorrido numa insanável contradição entre a fundamentação e a decisão, vício previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, além de ter invocado, para assim decidir, o facto de o arguido não ter tido a certeza de que se tratava de seis vítimas, incorrendo no vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do mesmo Código.

A respeito do número de crimes cometidos, escreveu-se na sentença o seguinte:

“Quanto ao número de crimes, não obstante ter-se apurado que no local estavam 6 pessoas, atento o facto de estar escuro em virtude de ser de noite, e a enervação resultante dos acontecimentos descritos nos factos, leva o tribunal a concluir que não houve certeza por banda do arguido de que se tratavam de 6 ofendidos, pelo que deverá ser condenado pela prática de um só crime.”

Apreciando.

Como é bom de ver, a aplicação do direito deve ter somente por base os factos dados como provados, estando afastadas, nesta fase, considerações sobre elementos probatórios ou quaisquer conjecturas que não tenham neles suporte, ou seja, deverão ser apontados apenas os motivos “de direito, que fundamentam a decisão” (n.º 2 do art. 374.º do CPP).

Conforme se verifica, não foi isso que o Tribunal a quo fez ao fundamentar a razão de considerar que o arguido deveria ser condenado por um só crime, na medida em que considerou estar “escuro” em razão de ser de noite, pois que sendo esta - a noite - uma evidência, na medida em que eram 23:40 horas (facto 1)), a escuridão pode não ocorrer se existir luz artificial, o que não está esclarecido nos factos, nem tão pouco daí resulta que a eventual “enervação” tivesse impedido o arguido de perceber o número de pessoas que estavam no local ou não ter a certeza de que se tratava de seis ofendidos.

Do mesmo passo, sendo o recurso do Ministério Público apenas de direito, não pode convocar-se, como o mesmo faz, o vício do erro notório na apreciação da prova a que se reporta o artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP, pois que esse vício, tendo que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, é referente à apreciação da prova e não à aplicação do direito, sendo que é invocado, para a sua afirmação, o teor das declarações do arguido em audiência (págs. 6 e 7 da motivação), o que, como se disse, não é admissível.

Efectivamente, trata-se, segundo a alegação, de uma situação de erro no enquadramento jurídico-penal dos factos dados como provados, não tendo a conclusão a que chegou o Tribunal a quo respaldo nessa factualidade, o que poderá representar uma contradição entre a decisão de facto e a decisão de direito, ou seja, um erro in judicando.   

E efectivamente assim é.

Com efeito, é sabido que o regime da continuação criminosa, designadamente tratando-se da realização plúrima do mesmo tipo de crime, não tem aplicação quando se trata de “crimes praticados contra bens eminentemente pessoais” (n.ºs 2 e 3 do art. 30.º do C. Penal).

Ou seja, tratando-se de crimes “contra as pessoas”, como é o caso da coacção, especificamente contra a “liberdade pessoal” (Livro II - Titulo I – Capítulo IV do C. Penal), o agente comete tantos crimes quantas as pessoas coagidas, mesmo que a violência ou a ameaça com mal importante seja dirigida às várias pessoas nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar.

Neste caso resultou provado que, no dia, hora e local indicados, encontravam-se os seis ofendidos a circular, de moto, numa estrada de terra batida no exterior da propriedade do arguido (facto 1)), os quais “foram abordados” pelo arguido, que “lhes pediu para se retirarem” (facto 2)), sendo que, estando “todos os ofendidos reunidos”, o arguido proferiu as referidas palavras e efectuou o disparo, querendo com isso tal significar que dispararia contra o “corpo dos ofendidos” (facto 3)), mais constando dessa factualidade que ao “ouvirem” as afirmações proferidas e após tal disparo, “os ofendidos ficaram” com medo, sentindo-se “perturbados”, razão pela qual “abandonaram” o local (facto 5)), sabendo o arguido que a sua conduta e afirmações eram adequadas a fazer os “ofendidos” recear, como efectivamente sucedeu, pela sua vida e integridade física, agindo o mesmo com a intenção de constranger “os visados” (facto 7)).

Perante tais factos, resulta manifesto que o arguido actuou relativamente aos seis ofendidos, tendo todos eles reagido, abandonando o local, em função da sua conduta, pelo que, mediante os factos apurados, não há nenhuma razão para considerar verificado um só crime, tendo, pelo contrário, o arguido incorrido na prática, em concurso efectivo, de seis crimes de coacção agravada, previstos e punidos pelos artigos 154.º, n.ºs 1 e 2, e 155.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal, procedendo, por isso, a pretensão recursiva do Ministério Público.


*

Relativamente à pena a aplicar, recupera-se a fundamentação vertida na sentença a respeito da sua graduação, sendo de ter em conta a moldura penal entre 1 e 5 anos para cada um dos crimes (art. 154.º, n.º 1, al. a), do C. Penal).

Com relevo, importa ter presente o disposto no n.º 1 do artigo 40.° do Código Penal, segundo o qual a “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.” E acrescenta o seu n.º 2 que “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.”

Tal normativo evidencia as finalidades das penas e aponta como seu limite máximo a “medida da culpa” do agente.

E importa também ter presente o n.º 1 do artigo 71.º do mesmo Código, o qual refere que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.”

Assim, os dois principais vectores a considerar para a determinação da pena concreta, seja a principal ou a acessória, são a culpa do agente e as exigências de prevenção (geral e especial).

Como ensina Jorge de Figueiredo Dias, “Através do requisito de que sejam levadas em conta as exigências da prevenção, dá-se lugar à necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena. Através do requisito de que seja tomada em consideração a culpa do agente, dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime - ligada ao mandamento incondicional de respeito pela eminente dignidade da pessoa do agente - limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção.”[12]

Deste modo, a medida da pena tem de ser aferida pela necessidade de tutela dos bens jurídicos no caso concreto, mas não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa. Dentro dessa bitola, e tendo presente o princípio da proibição da dupla valoração (“…não fazendo parte do tipo de crime…”), importa considerar as circunstâncias que deponham a favor e contra o agente, nomeadamente as enunciadas no n.º 2 do referido artigo 71.º, como sejam os factores relativos à execução dos factos (alíneas a) a c)); os factores relativos à personalidade do agente (alíneas d) e f)) e os factores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto (alínea e)).

Voltando ao caso sub judice, na sentença ponderaram-se tais circunstâncias e optou-se pela fixação da pena, relativamente ao crime que se considerou ter o arguido praticado, em 1 ano de prisão, ou seja, no seu limite mínimo. Tendo presente o contexto em que ocorreram os factos, designadamente os motivos que levaram o arguido a agir dessa maneira (o fim visado), ainda que os meios utilizados se revelem desproporcionais e cesuráveis, por razões de coerência, considera-se não ser de aplicar agora pena parcelar, por cada um dos restantes cinco crimes, superior à estabelecida pelo Tribunal a quo, a qual não foi posta em causa em recurso, pelo que se decide aplicar por cada um dos cinco crimes de ameaça agravada a pena de 1 (um) ano de prisão.


*

Segundo o artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade ao agente.”

É jurisprudência pacífica que o concurso de penas supõe inexoravelmente que os respectivos crimes tenham sido praticados antes do trânsito em julgado de qualquer das decisões condenatórias.

Conforme escreve Jorge de Figueiredo Dias, “Tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade - unitária - do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta.”[13]  

Relativamente à pena única aplicável, a mesma tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e como limite mínimo a mais elevada dessas penas (n.º 2 do mesmo art. 77.º).

Assim, no caso em análise a moldura do cúmulo varia entre 1 ano (a pena mais elevada) e seis anos de prisão (a soma de todas elas).

Tendo presentes tais comandos legais e ponderadas todas as circunstâncias atinentes ao caso, especificamente a gravidade dos factos, sendo certo que, apesar de vários ofendidos, se tratou de uma única conduta levada a cabo nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar para com todos eles, bem como os motivos de o arguido ter agido dessa maneira, como acima enunciado, consideramos que a pena deve quedar-se próximo do mínimo da respectiva moldura. E o mesmo vale se considerada a personalidade do agente, na medida em que o arguido se encontra social, profissional e familiarmente integrado, não possuindo antecedentes criminais, tendo-se tratado de um acto ocasional num percurso vivencial plenamente normativo. Assim, julga-se adequado fixar a pena única em 2 (dois) anos de prisão.   


*

Tal pena única, atenta a sua duração, não é susceptível de substituição por multa, como antes ocorreu, sendo que para a sua substituição por trabalho a favor da comunidade sempre seria necessário o prévio consentimento do arguido (arts. 45.º, n.º 1, e 58.º, n.ºs 1 e 5, do C. Penal).

Contudo, dispõe o n.º 1 do artigo 50.º do Código Penal que “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada as finalidades da punição.”

Como daqui resulta, não basta que a pena aplicada seja igual ou inferior a cinco anos, antes se impondo, para se poder determinar a suspensão da sua execução, a conclusão de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada as finalidades da punição. E para chegar a essa conclusão tem de atender-se à personalidade do arguido, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste. De todos esses elementos deve ressaltar um juízo de prognose favorável ao arguido, que leve o tribunal a optar pela não execução da pena de prisão. Importa ainda considerar que mesmo a efectiva reintegração social do agente não pode relegar, para plano secundário, a prevenção geral e especial positiva, como finalidade também principal das penas (art. 40.º do C. Penal).  

No caso em análise, sendo a pena única aplicada inferior a cinco anos e não tendo o arguido passado criminal, além de que se encontra plenamente integrado em termos familiares, profissionais e também socialmente, tudo indicando que se tratou de um episódio isolado na sua vida, mostram-se reunidas condições para a suspensão da execução daquela pena, sendo certo que, atenta a natureza dos factos, tal suspensão não porá em causa as necessidades de prevenção geral, designadamente ao nível da confiança dos cidadãos no sistema de justiça penal, com base na protecção dos bens jurídicos (art. 40.º, n.º 1, do C. Penal).

Assim, determina-se a suspensão da execução da pena, pelo mesmo período de 2 anos, o qual se considera adequado, em conformidade com o disposto no n.º 5 do mesmo artigo 50.º do Código Penal.

 Atenta tal integração social do arguido, não se considera necessário a subordinação da suspensão a deveres ou regras de conduta ou mesmo a acompanhamento em regime de prova (n.º 2 desse preceito), sendo certo que, caso cometa algum crime no período da suspensão, poderá ser a mesma revogada e determinado o cumprimento da pena (art. 56.º, n.ºs 1, al. b), e 2, do C. Penal).


*

São devidas custas pelo arguido no caso de decaimento total no recurso, com taxa de justiça a fixar entre 3 e 6 UC, não havendo lugar às mesmas apenas em caso de procedência, mesmo que apenas parcial (arts. 513.º, n.º 1, do CPP e 8.º, n.º 9, do RCP e tabela III anexa).    

III

Pelo exposto, ressalvadas as rectificações resultantes de lapsos manifestos, acima enunciadas, decide-se:

a) Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA.

b) Condenar o recorrente nas respectivas custas, com taxa de justiça de 4 (quatro) UC.

c) Julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e em consequência:

- Revogar a sentença recorrida na parte em que absolveu o arguido AA da prática, em autoria material e concurso efectivo, de cinco crimes de coacção agravada, previstos e punidos pelos artigos 154.º, n.ºs 1 e 2, e 155.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal.  

- Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e concurso efectivo, de cinco crimes de coacção agravada, previstos e punidos pelos artigos 154.º, n.ºs 1 e 2, e 155.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal, na pena individual de 1 (um) ano de prisão.

- Condenar o arguido AA, em cúmulo jurídico das seis penas parcelares, na pena única de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos.

Sem custas o recurso do Ministério Público.


*

Notifique.

*
Porto, 13-03-2024.
Raúl Cordeiro
Paula Pires
Cláudia Rodrigues
_______________
[1] Assim, Fernando Gama Lobo, Código de Processo Penal Anotado, 3.ª Edição, Almedina, págs. 865 e 866.
[2] Assim também o Acórdão da Relação de Coimbra de 27-10-2010 – Proc. 1224/04, in www.dgsi.pt.
[3] Veja-se Rosa Vieira Neves, A Livre Apreciação da Prova e a Obrigação de Fundamentação da Convicção (na decisão penal), Coimbra Editora, págs. 121, 122 e 125.
[4] Assim, Manuel Leal-Henriques e Manuel Simas Santos, Código Penal Anotado, 1996, 2.º Volume, págs. 192 e 194.
[5] Cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora 1999, págs. 362 e 363.
[6] Assim também o Ac. da RC de 05-02-2014 – Proc. n.º 65/12.2GAPCV.C1, in www.dgsi.pt, invocado pela Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta no seu Parecer.
[7] Cfr. obra citada, pág. 363.
[8] In Comentário do Código Penal, 2.ª Edição actualizada, UCE, pág. 478.
[9] Foi mais um lapso além dos acima já mencionados, que certamente levarão à adopção de mais cuidado no futuro, incluindo a sempre necessária revisão de textos.
[10] "Critério de escolha das penas de substituição no Código Penal Português", Separata do B.F.D.C. - "Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia", 1984, p. 3 e ss.
[11] Cfr. “Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime” (Reimpressão), Coimbra Editora, pág. 197.
[12] In Obra citada, pág. 215.
[13] In Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2005, pág. 291.