AMNISTIA
PERDÃO
LEI APLICÁVEL
DIREITOS FUNDAMENTAIS
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
JOVEM
CONSTITUCIONALIDADE
Sumário

I – Desde há muito que a jurisprudência dos Tribunais Superiores vem sustentado que, como providências de excepção, as leis de amnistia devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações ou restrições que nelas não venham expressas, não admitindo, por isso, interpretação extensiva, restritiva ou analógica.
II – O princípio constitucional da igualdade impõe que tenha igual tratamento o que é efectivamente igual e tratamento diferenciado o que é realmente diferente, mas o mesmo não tem uma amplitude absoluta e ilimitada, isto no sentido de que não podem existir normas que abranjam somente certos grupos de cidadãos.
III – O Tribunal Constitucional tem vindo a pronunciar-se sobre o âmbito do princípio da igualdade nesse sentido, sustentando que a Constituição não veda a adopção de medidas que estabeleçam distinções, somente proibindo aquelas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objectiva e racional, sublinhando, frequentemente, que igualdade não é igualitarismo.
IV – A idade como factor de diferenciação, quer positiva, quer negativa, está constantemente presente nos mais variados aspectos da regulação da vida em sociedade.
V – A ideia subjacente à publicação da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, assinalando o evento histórico que constitui a realização das Jornadas Mundiais da Juventude em Portugal, é “apagar” infracções penais de menor gravidade e reduzir o tempo de prisão para os mais jovens condenados, num sinal de clemência da sociedade, esperando que os mesmos aproveitem tal gesto para reflectir no mal cometido através do crime e que não voltem a delinquir.
VI – Sendo a amnistia e o perdão uma medida de excepção, o órgão legiferante goza de uma certa discricionariedade, nada exigindo que seja destinada a todo e qualquer cidadão e que abranja a multiplicidade dos crimes, sendo-lhe permitido limitar o seu campo de aplicação.
VII – O disposto no artigo 2.º, n.º 1, dessa Lei n.º 38-A/2023, ao limitar a sua aplicação a pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, não viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, o que somente ocorreria se, estando o recorrente dentro dessa faixa etária, fosse recusada a aplicação da amnistia ou perdão em virtude de alguma das situações enunciadas no n.º 2 do mesmo artigo 13.º da Lei Fundamental.

Texto Integral

Proc. n.º 1578/21.0T9LSB.P1


I

Acordam, em conferência, os Juízes da 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

Nos presentes autos de Processo Comum Singular n.º 1578/21.0T9LSB, do Juízo Local Criminal de Matosinhos – Juiz 1, foi proferida sentença, em 18-10-2023, com o seguinte dispositivo:

“Nos termos e com os fundamentos expostos o Tribunal decide:

1. Condenar o arguido AA pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à razão diária de €8 (oito euros), no valor global de €960 (novecentos e sessenta euros).

2. Condenar o arguido AA no pagamento das custas, fixando a taxa de justiça em 2 UC, e nos encargos do processo (cf. artigos 513.º, n.º 1, e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).

3. Manter o arguido sujeito ao TIR já prestado nos autos, até à extinção da pena ora aplicada.” (ref.ª 452914666).


*

O arguido AA interpôs recurso de tal decisão condenatória, tendo apresentado a respectiva motivação, com conclusões, as quais se sintetizam nas seguintes questões:

a) Erro de julgamento da matéria de facto, nos termos do artigo 412.º, n.ºs 2 e 3, do CPP, dizendo o recorrente que os factos dados como provados sob os pontos 2. e 3. deveriam ter sido dados como não provados, pois que os mesmos não têm sustentação na prova documental junta aos autos e na produzida na audiência, invocando incongruências entre as declarações da assistente e da testemunha BB e haver coerência entre as declarações dele próprio e da sua companheira CC, as quais o Tribunal deveria ter valorado em detrimento do referido por aqueles, pelo que, em consequência, deverá ser absolvido (conclusões 1. a 34.). 

b) Perdão da pena aplicada, pugnando o recorrente pela aplicação do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, e 3.º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 38-A/2023 de 02-08 (conclusões 35. a 46.) – (ref.ª 37313512).


*

Admitido tal recurso, a Exm.ª Magistrada do Ministério Público apresentou resposta, dizendo, em síntese, que não assiste qualquer razão ao recorrente, pois que na sentença recorrida foi devidamente apreciada a prova e decidida a matéria de facto, não impondo as provas que ele indica uma decisão diversa, além de não ser aplicável ao caso o perdão estabelecido pela Lei n.º 38-A/2023, pelo que o recurso deverá ser julgado improcedente (ref.ª 37587384).

*

Recebidos os autos neste Tribunal, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no qual, em síntese, invocou o acerto da sentença recorrida, a qual diz mostrar-se bem estruturada e isenta de reparos, além de subscrever o teor da resposta apresentada em 1.ª Instância, dizendo ainda que não há lugar à aplicação da Lei da Amnistia ao caso dos autos, atenta a idade do arguido, não sendo violado o princípio da igualdade, conforme decisões desta Relação, que refere, têm afirmado, concluindo que recurso deve ser julgado improcedente, mantendo-se a sentença nos seus precisos termos (ref.ª 17730442).

*

Foi proferido despacho liminar e colhidos os vistos, com decisão em conferência.

II

As conclusões formuladas, que se sintetizaram, resultado da motivação apresentada, delimitam o objecto do recurso (art. 412.º, n.º 1, do CPP), sem prejuízo de apreciação de questões de conhecimento oficioso que pudessem suscitar-se, como é o caso dos vícios indicados no n.º 2 do artigo 410.º do mesmo Código, mesmo que o recurso verse apenas sobre a matéria de direito (cfr. Acórdão do STJ de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/95, de 19-10-1995, in DR I, de 28-12-1995).

Assim, não havendo outras de conhecimento oficioso, passa a apreciar-se, sucessivamente, das questões colocadas pelo recorrente à apreciação deste Tribunal, para o que importa ter presentes os factos dados como provados e não provados pelo Tribunal recorrido, que se transcrevem:

Factos Provados.

Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos:

1. No dia 7 de setembro de 2020, na rua ..., em ..., Matosinhos, o arguido desentendeu-se com DD por causa de um documento que esta tinha consigo e que queria recuperar.

2. Na sequência de tal, o arguido agarrou com força a mão esquerda da assistente, torcendo-a para trás das suas costas, provocando-lhe dores, edemas e escoriações na mão.

3. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de molestar fisicamente a assistente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.

4. O arguido não tem antecedentes criminais.

5. O arguido reside com a sua companheira em casa desta, aufere em média €600 a €700 por mês, a sua companheira está reformada, recebendo o valor de €1000 mensais. Tem o 11.º ano de escolaridade.


*

Factos não provados.

Com relevo para a boa decisão da causa não resultou provado que para além do descrito no ponto 2. dos factos provados o arguido apertou o pescoço da assistente.”


*

E importa também ter presente a motivação da convicção do Tribunal a quo, a qual é a seguinte:

Indicação, valoração e análise crítica da prova:

A convicção do Tribunal relativamente aos factos considerados provados fundou-se na apreciação crítica da prova produzida de harmonia com o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal, o qual impõe uma valoração de acordo com critérios lógicos e objetivos que determinem uma convicção racional, objetivável e motivável e com recurso às regras de experiência de vida e da normalidade.

§ 0. Indicação da prova.

O Tribunal baseou a sua convicção a partir da valoração do seguinte acervo probatório:

» Declarações do arguido e da assistente, nos termos que infra se detalhará.

» Depoimento das testemunhas BB e CC.

» Foi valorada a prova documental, concretamente a documentação clínica de folhas 31 e o certificado do registo criminal junto aos autos com a referência eletrónica 36806310.

» Por fim, para além da prova direta dos factos, considerou-se, ainda, a prova indireta relativamente a parte da factualidade objeto de julgamento e que infra será expressamente mencionada. Sobre a prova indireta, entende Euclides Dâmaso Simões[1] que o uso da mesma implica dois momentos de análise: um primeiro requisito de ordem material exigirá que os indícios estejam completamente provados por prova direta, os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e sendo vários devem estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência; posteriormente, um juízo de inferência que seja razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado, respeitando a lógica da experiência e da vida (dos factos-base há de derivar o elemento que se pretende provar, existindo entre ambos um nexo preciso, direto, segundo as regras da experiência).

§ 1. Motivação dos factos provados.

Tendo sido da valoração crítica, conjugada e ponderada da globalidade do supra mencionado acervo probatório que o Tribunal logrou formar firme convicção da veracidade sobre os factos julgados, cumpre, agora, analisar criticamente, a prova produzida em detalhe nos seus aspetos essenciais, quer quanto à factualidade que resultou provada, quer também quanto aos factos não provados.

Vejamos, por ora, a factualidade provada.

Quanto ao vertido no ponto 1. dos factos, tal emergiu amplamente demonstrado pelas declarações do arguido, que confirmou a referida factualidade.

No que concerne à atuação do arguido, este declarou que no dia em causa tinha acompanhado a sua companheira, CC, à referida morada, por ter sido acordado este dia para serem entregues a esta o recheio de uma habitação ali existente, bem como uma viatura. Que nessas circunstâncias conheceu a assistente, que ali estava como advogada em representação de terceiros. Uma vez que a sua companheira não iria levar nesse dia o recheio da casa, mas tão só o veículo, entenderam que a assistente não deveria levar a declaração assinada em como tinha recebido tudo, pelo que, perante a recusa daquela em devolver o documento, tentou tirar-lho da mão, mas nunca lhe tocou por qualquer forma no corpo.

A assistente declarou que veio a Matosinhos no exercício da sua atividade profissional, para fazer a entrega em nome de uma cliente do recheio da casa e de um veículo à companheira do arguido. Que, contrariamente ao acordado, ali a senhora disse que não tinha meios para levar os bens móveis do interior da habitação, mas tão só o veiculo automóvel, pelo que já na via pública teve que elaborar uma outra declaração que mencionasse que tinha entregue apenas aquele bem. Embora sempre com manifestações de discordância do arguido, a senhora assinou o novo documento, mas quando lho entregou, o arguido tirou-lho da mão e rasgou-o, após o que tentou tirar-lhe a chave do veículo que tinha na sua mão. Como ofereceu resistência, o arguido agarrou-a com muita força pela mão para lhe tirar a chave, tendo feito uma torção do seu braço para trás, levando a que a assistente torcesse o corpo e apertasse o pescoço com o próprio braço.

Manuel dos Prazeres explicou que veio a acompanhar a assistente com o objetivo de após esta proceder à entrega da viatura em que veio desde Coimbra a levar de volta. Referiu que quando a assistente estava na via pública para fazer a entrega da viatura aquela entregou um documento para assinar, mas o arguido, que já estava exaltado, agarrou-o e rasgou-o tendo logo após tentado tirar as chaves das mãos da assistente, para o que a agarrou pela mão e torceu-a de forma a envolver o braço desta pelo próprio pescoço. Acrescentou que percebeu o sofrimento que a assistente sentiu ao ser agarrada daquela forma e que de imediato começado a chorar.

Contrariamente ao declarado pela assistente e por BB, a testemunha CC, companheira do arguido, referiu que este se desentendeu com a assistente por esta não querer devolver a declaração que a testemunha havia assinado, uma vez que o que ali estava dito não correspondia à realidade, pois que nesse dia não tinha meios para fazer o transporte do recheio da casa, mas tão só o veículo. Acrescentou que a assistente se recusou a devolver o documento, motivo pelo qual tentaram tirar-lho. Admitiu que nessa altura, ao tentar tirar o documento das mãos da assistente, o arguido possa ter tocado no corpo desta.

No confronto das versões (opostas) de arguido e assistente, o tribunal não teve dúvidas da veracidade do declarado pela segunda. Desde logo, foi evidente o comprometimento da testemunha CC para com a versão do seu companheiro, que se tornou evidente quando admitiu que aquele podia ter tocado no corpo da assistente ao tentar tirar-lhe o documento. Por contraposição, a forma serena, objetiva, circunstanciada e cadenciada com que a assistente descreveu o desenrolar dos factos, não deixou dúvidas de que o arguido atuou nos termos dados como provados no ponto 2. É certo que entre o declarado pela assistente e pela testemunha BB se verificaram algumas disparidades quanto ao desenrolar da atuação do arguido, contudo, tal ficou a dever-se notoriamente ao que cada um mais reteve na sua memória, sendo nos pontos essenciais foram coerentes entre si, o que veio a reforçar a credibilidade de ambos. Conjugadamente, no que concerne às lesões causadas pela conduta do arguido, ainda foi valorado o teor do relatório do registo clínico de consulta de folhas 31.

Quanto à factualidade vertida no ponto 3. dos factos provados, concretamente que o arguido quis atuar do modo aí descrito, é o que deflui, com clareza, em conjugação com as características de personalidade do mesmo e de harmonia com a experiência comum projetada na sua atuação objetiva. Tais regras de experiência comum, e tendo em conta os padrões de entendimento e comportamento do homem médio, projetadas no contexto fático provado e as presunções naturais que delas emergem, não deixam margem para dúvidas de que a intenção real do arguido foram as exatas intenções apuradas. Que o arguido atuou sabendo que a sua conduta era proibida por lei, tal afere-se igualmente pela consideração das suas condutas objetivas praticadas e apuradas, tanto mais que nos autos não consta qualquer elemento que permita colocar em causa o arguido como pessoa de inteligência e determinação de vontade média que, necessariamente, estava na posse das suas faculdades mentais e, por isso, sabia do caráter ilícito da sua conduta e era capaz de se determinar de acordo com o juízo de licitude ou ilicitude que faz.

No que respeita à inexistência de antecedentes criminais do arguido tal resultou da análise do certificado do registo criminal junto aos autos.

Relativamente às condições económico-financeiras do arguido, o Tribunal atendeu as declarações prestadas por este, que a esse propósito, que se afiguraram credíveis e sinceras, sem que, em contrário, qualquer outra prova se haja produzido.

No que à matéria não provada tange, ficou a decisão do tribunal a dever à circunstância de não ter sido produzida prova suficiente sobre a mesma que permitisse ao Tribunal concluir com segurança pela sua verificação, ou ter sido produzida prova em sentido contrário, nos termos que já decorrem da fundamentação dos factos provados.

Uma nota final para referir que, relativamente à factualidade provada que não constava da acusação, não foi dado cumprimento ao disposto no artigo 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, por ter decorrido da defesa do arguido, concretamente das suas declarações (cf. artigo 358.º, n.º 2, do mesmo diploma).”


*

Apreciando.

a) Erro de julgamento da matéria de facto, nos termos do artigo 412.º, n.ºs 2 e 3, do CPP, dizendo o recorrente que os factos dados como provados sob os pontos 2 e 3 deveriam ter sido dados como não provados, pois que os mesmos não têm sustentação na prova documental junta aos autos e na produzida na audiência, invocando incongruências entre as declarações da assistente e da testemunha BB e haver coerência entre as declarações dele próprio e da sua companheira CC, as quais o Tribunal deveria ter valorado em detrimento do referido por aqueles, pelo que, em consequência, deverá ser absolvido (conclusões 1. a 34.). 

Como é sabido, o Tribunal da Relação conhece de facto e de direito (art. 428.º do CPP).

A decisão do Tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser modificada, além do mais, se a prova tiver sido impugnada pelo recorrente (al. c) do art. 431.º do CPP), sendo que, em tal situação, aquele deve especificar “os concretos pontos de factos que considera incorrectamente julgados” e as “concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida” (als. a) e b) do n.º 3 do art. 412.º do CPP).

E acrescenta o n.º 4 do mesmo artigo 412.º que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”  

Em tais situações, “o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa” (n.º 6 do art. 412.º).

Com efeito, o recurso de sentença não representa um novo julgamento, com a apreciação de todos os factos e da generalidade das provas, mas somente “uma reapreciação selectiva de decisões em aspectos concretos, invocados pelo recorrente”, sendo, por isso, um “remédio jurídico”.[2]

Ou seja, a modificação da matéria de facto por via da reapreciação da prova, em sede de recurso, depende sempre da indicação, pelo recorrente, dos concretos pontos de facto - ou de partes deles - que considera incorrectamente julgados e das concretas provas que impõem - relativamente a cada um desses factos ou partes -, uma solução diversa da que foi consagrada na sentença.

Mas impor é claramente diferente de admitir, permitir ou consentir.

Como já referiu o Tribunal Constitucional, “a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão.” (cfr. Acórdão n.º 198/2004, de 24-03-2004, DR-II, de 02-06-2004).

Consequentemente, a crítica à formação da convicção do Tribunal a quo, sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência comum (art. 127.º do CPP), não pode ter sucesso se se alicerçar apenas no diferente entendimento do recorrente sobre a prova produzida. Neste enquadramento, o recorrente pretende fazer valer a sua própria opinião, analisando a prova consoante os seus interesses e considerando-a insuficiente para a sua condenação.

Ademais, importa referir que o Tribunal de 1.ª instância beneficia, nessa actividade probatória e subsequente exercício de ponderação, da oralidade e da imediação, o mesmo não sucedendo com o Tribunal da Relação.

Assim, a prova recolhida e ponderada nesse contexto apenas poderá ser alterada pelo Tribunal superior se for demonstrada a existência de provas que “impõem” uma decisão diversa da recorrida (citada alínea b) do n.º 3 do art. 412.º).

Efectivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto não pode constituir uma forma de subversão do princípio da livre apreciação da prova deferido ao Tribunal de 1.ª instância, pelo que quando a atribuição de credibilidade a um meio de prova que serviu para formar a convicção do julgador se basear na opção assente na oralidade e imediação, o Tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum e à normalidade das coisas.[3]

Na verdade, importa ter em conta o estabelecido na lei adjectiva penal quanto à valoração da prova, a qual, salvo disposição legal em sentido diferente, “é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente” (art. 127.º do CPP).

Essa liberdade significa que o julgador não está vinculado a “critérios legais de valoração probatória pré-estabelecidos”. Ou seja, “não vigora o princípio da tipicidade dos meios de prova ou da prova tarifada, antes o princípio da liberdade de prova”, sendo a livre apreciação da prova “uma condictio para bem julgar”. [4]  

E nesse exercício de apreciação da prova devem ser tidas em conta as ditas “regras da experiência”, além de critérios de lógica e de normalidade das coisas, tendo, necessariamente, por referência o padrão de conduta e de conhecimentos do homem médio.  

O que se impõe ao juiz de julgamento é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência comum.

No caso sub judice o recorrente insurge-se contra a valoração da prova feita pelo Tribunal a quo, sustentando que o mesmo deveria ter dado prevalência às suas próprias declarações e ao depoimento da testemunha CC, sua companheira, em detrimento das declarações da assistente e do depoimento da testemunha BB, tanto mais que, segundo ele, entre estes existem contradições em vários aspectos, daí que aqueles pontos da matéria de facto deveriam ter sido dados como não provados, com a sua consequente absolvição, invocando erro de julgamento nos termos do artigo 412.º, n.ºs 2 e 3, do CPP. O mesmo transcreve excertos de tais declarações e depoimentos, sendo que relativamente à assistente não especifica o local / momento da gravação em que tais excertos constam, limitando-se a indicar “xx:xx” (págs. 2 a 13 da motivação).

Ou seja, o recorrente não cumpriu integralmente essa exigência legal que sobre si incidia, ao pretender impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, pois que, tendo as provas sido gravadas, a especificação das declarações ou depoimentos considerados relevantes tem de ser feita por referência às “concretas passagens/excertos” que, no entendimento do recorrente, impunham decisão diversa (cfr. Acórdão do STJ n.º 3/2012, in DR I, de 18-04-2012). 

Em todo o caso, os elementos de prova que indica, a cuja transcrição parcial das suas declarações e de tal depoimento testemunhal procedeu, claramente não impõem uma decisão diversa da que foi consagrada na sentença. Poderão permitir ou consentir essa diferente decisão, mas isso não basta para alterar a matéria de facto fixada.

Pela leitura da motivação e conclusões ressalta uma posição de manifesta discordância quanto à valoração e análise crítica da prova efetuada pelo Tribunal recorrido, o que não permite sustentar a pretensão de sindicar a livre apreciação da prova, tal como vem consagrada no artigo 127.º do CPP.

Com efeito, em lado algum o recorrente aponta a violação de qualquer dos passos para a formação da convicção do julgador, designadamente que a tenha baseado em provas nulas ou proibidas, que não foram produzidas as provas invocas na fundamentação, que houve preterição de prova plena ou que não houve liberdade de formação da convicção.

No fundo, o recorrente pretende fazer vingar a sua versão dos factos sustentada exclusivamente numa interpretação e valoração subjectiva da prova produzida em audiência, a sua, sobrepondo-a àquela que está subjacente à decisão recorrida.  Só que esta não é, como se disse, a finalidade e âmbito dos recursos em matéria de facto.

Efectivamente, o modo como o recorrente “ataca” a decisão de facto do Tribunal a quo quanto à formação da convicção, nunca poderia ter viabilidade. Na verdade, o mesmo limita-se a discordar da valoração dos meios probatórios levada a cabo pela Exm.ª Juíza, sugerindo que este deveria ter valorado essencialmente as provas por eles indicadas, especialmente as suas declarações e o depoimento da testemunha CC, sua companheira, em detrimento das enunciadas na motivação da sentença, particularmente as declarações da assistente e o depoimento da testemunha BB. No fundo, apontam a sua própria convicção em contraposição à convicção do Tribunal recorrido, ou seja, dirigem um ataque à “fase final” da formação da convicção, o que não poderia ter viabilidade, como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004 (acima mencionado).

Ora, vista a motivação da sentença, percebe-se que foram enunciados e conjugados todos os elementos de prova produzidos, fazendo-se referência, por síntese, às declarações do arguido e da assistente, bem como aos depoimentos das testemunhas BB e CC, além da prova documental junta aos autos, justificando também a valoração da prova indirecta para afirmar a verificação dos elementos subjectivos do tipo incriminador. Ademais, efectuou-se a indicação probatória de forma individualizada relativamente aos pontos da matéria de facto dada como provada, particularmente os impugnados pelo recorrente, apontando-se os elementos em que o Tribunal a quo fundamentou a sua convicção, com menção e análise crítica daqueles que levaram a concluir que o arguido actuou dessa maneira, clarificando que no confronto de duas versões – opostas - de arguido e assistente, não teve dúvidas da veracidade do declarado por esta, explicando o porquê, designadamente a “forma serena, objectiva, circunstanciada e cadenciada com que a assistente descreveu o desenrolar dos factos”, sendo que não deixou de levar em conta o facto de entre o declarado pela assistente e pela testemunha BB se verificarem “algumas disparidades” quanto ao desenrolar da actuação do arguido, dizendo que tal ficou a dever-se “ao que cada um mais reteve na sua memória, sendo que nos pontos essenciais foram coerentes entre si, o que veio a reforçar a credibilidade de ambos”, levando também em conta, quanto às lesões causadas, o teor do relatório do registo cínico de consulta de folhas 31. (pág. 5 da sentença, acima também transcrita).    

Verifica-se, pois, que o Tribunal a quo apreciou a prova de modo racional, objectivo e motivado, com respeito pelas regras legais atinentes, tudo caldeado pelos benefícios resultantes da oralidade e da imediação, não competindo a este Tribunal ad quem censurar a decisão recorrida com base na convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida, sob pena de se postergar o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no citado artigo 127.º do CPP.

É verdade que o recorrente aponta algumas discrepâncias entre o declarado pela assistente e o referido pela testemunha BB. Mas isso é perfeitamente natural, como referiu a Exm.ª Juíza, sendo certo que relativamente ao essencial do ocorrido esses relatos são perfeitamente compatíveis. Ademais, a existência de discrepâncias nos relatos entre pessoas que presenciaram uma ocorrência é comum, na medida em que nem todos os pormenores são retidos na memória de cada um, sendo relevante que não existam disparidades relativamente ao essencial do ocorrido.

O recorrente aponta essas pequenas divergências para daí extrair a conclusão de falta de credibilidade da assistente e daquela testemunha quando ao que relataram a respeito dos factos que integram o ilícito criminal (o agarrar com força a mão esquerda da assistente, torcendo-a para trás das suas costas – ponto 2.).

Mas assim não é, não podendo, sequer, afirmar-se a clara existência de tais discrepâncias em algumas das situações que aponta, sendo mais a incerteza relativamente a alguns aspectos. Com efeito, relativamente à retirada do documento, a assistente e a testemunha BB são unânimes a afirmar que o arguido o retirou da mão de outrem, sendo que aquela não tinha a certeza se o retirou da mão dela ou da testemunha CC e este, dizendo que o puxou da mão da assistente, não soube especificar se o retirou da mão esquerda ou da direita (transcrições a págs. 4, 5 e 7 da motivação). 

Tendo em conta a forma rápida como tal ocorreu e o ambiente de alteração existente, como resulta dos relatos feitos, é perfeitamente natural que tais aspectos não tenham ficado plenamente retidos na memória, sendo certo que se trata de factos sem importância relevante para o objecto do processo, nem tão pouco daí se pode extrair a falta de credibilidade dos relatos no que é o essencial do corrido.

Relativamente ao apertar o pescoço, tal facto não foi dado como provado pelo Tribunal a quo pelas razões que explicou (acima transcritas), mas de forma alguma se podendo daí extrapolar para a incoerência e falta de credibilidade da assistente relativamente à materialidade constante do ponto 2., como o recorrente pretende, mas sem qualquer sustentação válida. Importa também referir que as declarações anteriormente prestadas pela assistente ou por testemunhas, não tendo sido reproduzidas em audiência, com observância dos procedimentos legais, não podem ser levadas em conta para formar a convicção do Tribunal, atento o disposto no artigo 355.º do CPP, sendo, por isso, irrelevante a invocação de eventuais divergência entre o então mencionado e o relatado em audiência de julgamento, como faz o recorrente (págs. 5 a 8 da motivação).

Quanto à deslocação ao Centro de Saúde, a singela transcrição da resposta da assistente (“Fui com o Senhor BB”) feita pelo recorrente, também não permite extrapolar para a falta de credibilidade das declarações daquela. Com efeito, a testemunha BB confirmou que foi igualmente ao Centro de Saúde, tendo a assistente ido ao mesmo médico que ele. É verdade que disse que não foi junto com a assistente, mas o referido por esta, sem melhor esclarecimento, tanto pode significar que foi juntamente com o Sr. BB, acompanhando-se mutuamente, como significar que ambos foram ao Centro de Saúde, ainda que em momentos distintos. Trata-se de uma questão absolutamente lateral ao objecto do processo, sendo certo que não está em causa o facto de a assistente ter sido observada e que apresentava as lesões constantes do documento de fls. 31, o que o recorrente não contesta (págs. 8 e 9 da motivação).

Como já referido, as declarações do recorrente e o depoimento da testemunha CC poderiam consentir ou permitir diferente decisão da matéria de facto, mas claramente que não a impõe. Perante posições não coincidentes, o Tribunal a quo deu acolhimento a uma delas, mas fundamentou a razão de assim ter feito, pelo que tal opção, assente nos ditos benefícios da oralidade e da imediação e não atentando contra as regras da experiência comum, não é susceptível de ser censurada por este Tribunal.

Diga-se, ainda, que não se detecta qualquer situação de dúvida razoável no julgador que pudesse fazer actuar o princípio in dubio pro reo, corolário da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, da CRP).

Por isso, não havendo fundamento para a alteração preconizada para a matéria de facto, pois que não se descortina a violação dos comandos legais atinentes à valoração da prova, impõem-se concluir pela improcedência desta parte do recurso, não podendo absorver-se o recorrente da prática do crime imputado, como pretende.


*

b) Perdão da pena aplicada, pugnando o recorrente pela aplicação do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, e 3.º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 38-A/2023 de 02-08 (conclusões 35. a 46.).

Nesta parte sustenta o recorrente, em síntese, que a pena que lhe foi aplicada deverá ser perdoada, por aplicação do disposto nos artigos 2.º, n.º 1, e 3.º, n.º 2, alínea a), da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08, uma vez que, apesar de ter 60 anos de idade à data da prática dos factos, a primeira das referidas normas é inconstitucional, por violação do disposto no artigo 13.º, n.º 1, da CRP, na parte em que limita a sua aplicação ao arguido ou condenado que tenha entre 16 e 30 anos (págs. 13 a 19 da motivação).

Vejamos.

Relativamente ao recurso de direito, como é o caso, a lei impõe que sejam indicadas, além do mais, “as normas jurídicas violadas” e “o sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela deveria ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada” (als. a) e b) do n.º 2 do art. 412.º do CPP).

Os recursos constituem um meio de impugnação das decisões judiciais, cuja finalidade consiste na eliminação dos erros, defeitos ou vícios nelas contidos, através da sua análise por outro órgão jurisdicional, representando, assim, um instrumento processual de consagração prática dos princípios constitucionais de acesso ao direito e de garantia do duplo grau de jurisdição (arts. 20.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da CRP).

Mas a decisão de interpor recurso, não sendo o mesmo obrigatório, é em si mesma uma opção responsabilizante, pois que o recorrente - no caso do arguido através do seu Defensor -, tem o ónus de apresentar a motivação, ou seja, invocar as concretas razões da sua discordância relativamente à decisão recorrida, bem como de condensar estas nas respectivas conclusões, enunciando as questões que pretende ver reapreciadas, aí resumindo “as razões do pedido” (n.º 1 do citado art. 412.º).

A dita Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, veio estabelecer “um perdão de penas e uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.” (art. 1.º).

Relativamente ao seu âmbito de aplicação, estabeleceu-se que “Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de Junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º.” (n.º 1 do art. 2.º).

No seu artigo 3.º, n.º 1, refere-se que “Sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos.”

E acrescenta o n.º 2 que “São ainda perdoadas:

a) As penas de multa até 120 dias a título principal ou em substituição de penas de prisão.”

O artigo 4.º estabelece a amnistia das infracções penais “cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou 120 dias de multa.”

Por sua vez, no artigo 7.º enunciam-se os tipos de crimes que não beneficiam do perdão e da amnistia previstos nessa Lei.

O crime de ofensa à integridade física pelo qual o recorrente foi condenado não está excluído da aplicação de tal diploma, podendo, por isso, os seus agentes vir a beneficiar do referido perdão, desde que verificadas as demais condições de aplicação da dita Lei n.º 38-A/2023.

Desde logo, é relevante a medida da pena, a data da prática dos factos e, depois, a idade do agente nessa mesma data.

A pena aplicada está abrangida pelo n.º 2, alínea a), do artigo 3.º.

Os factos dos presentes autos foram praticados, como se referiu, em 07-09-2020, pelo que manifestamente o ilícito está temporalmente abrangido pelo referido n.º 1 do artigo 2.º.

Mas já não o seu agente, pois que o arguido AA Mais, ora recorrente, nasceu em ../../1960, pelo que à data da prática dos factos tinha 59 anos de idade.

A respeito de uma questão em tudo idêntica à presente, apenas com a diferença de ali estar em causa a aplicação de perdão a pena de prisão, o ora Relator proferiu, em 27-11-2023, decisão sumária no Processo n.º 24/21.4PEPRT-B.P1, a qual se encontra publicada em www.dgsi.pt.

Nessa decisão escreveu-se o seguinte (no que agora releva):

“O texto da lei é inequívoco a tal respeito, sendo que desde há muito que a jurisprudência dos Tribunais Superiores vem sustentado que, como providências de excepção, as leis de amnistia devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações ou restrições que nelas não venham expressas, não admitindo, por isso, interpretação extensiva, restritiva ou analógica.[5]

(…)

Apreciando a questão recursiva nessa vertente, importa ter presente, com relevo para o caso, o invocado n.º 1 do artigo 13.º da CRP, o qual estabelece que “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.”

Por sua vez, o artigo 18.º da Lei Fundamental estabelece no seu n.º 1 que “Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.”

E no seu n.º 2 dispõe que “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.”

  Finalmente, dispõe o artigo 204.º da mesma Lei Fundamental que “Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.”

Dúvidas não há, por isso, que eventuais normas legais que atentem contra preceitos ou princípios constitucionais não podem ser aplicadas pelos tribunais, sendo que tais preceitos, se respeitantes aos direitos, liberdades e garantias, são directamente aplicáveis.

Contudo, o referido princípio constitucional da igualdade não tem uma amplitude absoluta e ilimitada, isto no sentido de que não podem existir normas que abranjam somente certos grupos de cidadãos.

Efectivamente, a delimitação, pela negativa, dessa mesma amplitude encontra-se desenhada no n.º 2 do mesmo artigo 13.º ao estabelecer que “Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.”

Trata-se, como resulta do seu teor, de uma norma de enunciação taxativa e não exemplificativa, pois que refere especificamente quais os aspectos que não podem ser considerados para a discriminação relativa entre pessoas.

Efectivamente, nessa norma não estão previstos, nem são admitidos, outros aspectos que podem distinguir as pessoas, como seja a idade.

A idade é, na realidade, um factor levado em conta em vários domínios das sociedades actuais, distinguindo o legislador, por essa via, grupos específicos de cidadãos, como seja, por exemplo, no acesso gratuito ou a menor custo a cuidados de saúde e a transportes públicos, bem como na atribuição de prestações e benefícios sociais e ainda em programas de tratamento e vacinação ou atendimento prioritário em serviços públicos, sendo também a idade um factor condicionante no acesso e candidatura a certas profissões e cargos públicos electivos.

A idade como factor de diferenciação, quer positiva, quer negativa, está constantemente presente nos mais variados aspecto da regulação da vida em sociedade.

O que a Lei Fundamental na verdade impõe, ao estabelecer o princípio da igualdade, é que tenha igual tratamento o que é efectivamente igual e tratamento diferenciado o que é realmente diferente. É que só assim obtém efectiva concretização o princípio da igualdade.

O Tribunal Constitucional tem vindo a pronunciar-se sobre o âmbito do princípio da igualdade nesse sentido, sustentando que a constituição não veda a adopção de medidas que estabeleçam distinções, somente proibindo aquelas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objectiva e racional, sublinhando, frequentemente, que igualdade não é, porém, igualitarismo.[6]

Como é sabido e resulta do seu artigo 1.º (acima transcrito), a referida Lei n.º 38-A/2023 foi elaborada no contexto da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, constando da respectiva Proposta de Lei n.º 97/XV/1.ª, apresentada na Assembleia da República pela Senhora Ministra da Justiça, a sua exposição de motivos, que ajuda a perceber o seu alcance, dela constando o seguinte:

«A Jornada Mundial da Juventude (JMJ) é um evento marcante a nível mundial, instituído pelo Papa João Paulo II, em 20 de dezembro de 1985, que congrega católicos de todo o mundo.

Com enfoque na vertente cultural, na presença e na unidade entre inúmeras nações e culturas diferentes, a JMJ tem como principais protagonistas os jovens.

Considerando a realização em Portugal da JMJ em agosto de 2023, que conta com a presença de Sua Santidade o Papa Francisco, cujo testemunho de vida e de pontificado está fortemente marcado pela exortação da reinserção social das pessoas em conflito com a lei penal, tomando a experiência pretérita de concessão de perdão e amnistia aquando da visita a Portugal do representante máximo da Igreja Católica Apostólica Romana justifica-se adotar medidas de clemência focadas na faixa etária dos destinatários centrais do evento.

Uma vez que a JMJ abarca jovens até aos 30 anos, propõe-se um regime de perdão de penas e de amnistia que tenha como principais protagonistas os jovens. Especificamente, jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos, idade limite das JMJ. Assim, tal como em leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios, e porque o âmbito da JMJ é circunscrito, justifica-se moldar as medidas de clemência a adotar à realidade humana a que a mesma se destina. Nestes termos, a presente lei estabelece um perdão de um ano de prisão a todas as penas de prisão até oito anos, excluindo a criminalidade muito grave do seu âmbito de aplicação. (…).».

Verifica-se, assim, que a justificação para a adopção de medidas de clemência destinadas a pessoas até aos 30 anos de idade tem a ver com a faixa etária dos destinatários centrais desse evento, ainda que outros, de diferentes idades, pudessem nelas participar.

Essa opção encontra-se, pois, fundamentada de forma razoável, objectiva e racional […].

E como também resulta da transcrita exposição de motivos, nem sequer se tratou de uma novidade na limitação da aplicação da amnistia e perdão de penas aos “jovens”, pois que já em anteriores leis de amnistia isso mesmo tinha ocorrido, tendo-se, então, estabelecido um regime especial de clemência aplicável a “delinquentes com menos de 21 anos de idade, à data da prática do crime, ou com 70 ou mais anos”, conforme disposto no artigo 10.º da Lei n.º 15/94, de 11 de Maio, e no artigo 3.º da Lei n.º 29/99, de 12 de Maio.

E não se tem conhecimento que alguma dessas normas haja sido declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo Tribunal Constitucional.

Importa também referir que, no nosso ordenamento jurídico, os jovens imputáveis são beneficiários de um regime penal especial, que foi instituído pelo Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro, dando-se concretização ao enunciado no artigo 9.º do Código Penal, sendo considerado jovem para tal efeito “o agente que, à data da prática do crime, tiver completado 16 anos de idade sem ter ainda atingido os 21 anos.” (art. 1.º, n.º 2).

Conforme resulta do preâmbulo deste diploma, esse regime tem subjacente a ideia de que “o jovem imputável é merecedor de um tratamento penal especializado”, tendo-se instituído “um direito mais reeducador do que sancionador” (§§ 2. e 4.).

Neste contexto, a ideia subjacente à publicação da Lei n.º 38-A/2023, além de assinalar o evento histórico que constitui a realização das JMJ em Portugal, é reduzir o tempo de prisão para os mais jovens condenados, num sinal de clemência da sociedade, esperando que os mesmos aproveitem tal gesto para reflectir no mal cometido através do crime e que não voltem a delinquir.

As pessoas que podem beneficiar da amnistia e perdão encontram-se ainda numa fase de formação da personalidade e de desenvolvimento do carácter, podendo manifestar indecisão e vulnerabilidade na opção pro direito quando confrontados na dialéctica entre o comportamento lícito e o ilícito, residindo também em tal medida de clemência uma preocupação de ressocialização dos jovens, no caso entre os 16 e os 30 anos de idade.[7]

Tal como afirmou o STJ no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2023, de 15-12-2022 (in DR I Série N.º 23, de 01-02-2023), pronunciando-se sobre a Lei n.º 9/2020, de 10-04 (que estabeleceu o “Regime excepcional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19”), […], “Qualquer medida de amnistia, entendida em sentido amplo, pode remeter, necessariamente, para uma certa derrogação do princípio da igualdade (ao menos num seu entendimento não complexivo, que abranja ou integre já essas excepções, aliás clássicas), uma vez que há sempre um grupo limitado de delitos que deixa de ser punido, ou um conjunto de penas que deixam de ser cumpridas, mantendo-se os demais.” (pág. 38).

E na verdade, sendo a amnistia e perdão, uma medida de excepção, o órgão legiferante goza de uma certa discricionariedade, nada exigindo que seja destinada a todo e qualquer cidadão e que abranja a multiplicidade dos crimes, sendo-lhe permitido limitar o seu campo de aplicação.

Ademais, importa ter presente, […], que a amnistia e o perdão não constituem um direito dos cidadãos, representando, sim, uma medida de clemência, por natureza excepcional e de âmbito limitado.

A violação do princípio da igualdade somente ocorreria se, estando o recorrente dentro da faixa etária estabelecida pela norma, fosse recusada a aplicação da amnistia ou perdão em virtude de alguma das situações enunciadas no n.º 2 do artigo 13.º da CRP. Mas tal não é manifestamente o caso.

Em conclusão, não se mostram violados, no caso concreto, os preceitos e princípio constitucional invocados pelo recorrente, nem quaisquer outros, pois que se considera que o n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, não enferma de inconstitucionalidade na parte em que imita o âmbito da sua aplicação a pessoas que tenham entre 16 e 30 anos à data da prática do facto ilícito.”

Reproduzindo-se aqui tal fundamentação, porque plenamente aplicável ao caso, tanto basta para concluir pela sem razão do recorrente, sendo que em idêntico sentido se decidiu nos Acórdãos desta Relação de 19-12-2023 – Proc. 1415/21.6JAPRT-F.P1, e de 05-01-2024 – Proc. 30/21.9SFPRT-B.P1, disponíveis em www.dgsi.pt.

O que agora acaba de dizer-se leva a concluir que o recorrente, atenta a sua idade à data da prática dos factos, não pode beneficiar do perdão de pena estabelecido na referida alínea a) do n.º 2 do artigo 3.º da Lei n.º 38-A/2023, na medida em que não se acolhem os argumentos pelo mesmo aduzidos para o efeito, incluindo o que terá sido vertido, a tal respeito, na sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Leiria no Processo n.º 29/23.0PAMGR (que o mesmo transcreveu).  

Impõe-se, assim, a improcedência também desta questão recursiva.


*

São devidas custas pelo arguido no caso de “decaimento total” no recurso, com taxa de justiça a fixar entre 3 e 6 UC, não havendo lugar às mesmas apenas em caso de procedência, mesmo que apenas parcial (arts. 513.º, n.º 1, do CPP e 8.º, n.º 9, do RCP e tabela III anexa).

III

Pelo exposto, decide-se:

a) Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, mantendo-se a sentença recorrida.

b) Condenar o recorrente nas respectivas custas, com taxa de justiça de 4,5 (quatro e meia) UC.


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Notifique.

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Porto, 13-03-2024.
Raul Cordeiro
Maria dos Prazeres Silva
Carla Oliveira
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[1] In Prova Indiciária, Revista Julgar, n.º 2, 2007, Pág. 205.
[2] Assim, Fernando Gama Lobo, Código de Processo Penal Anotado, 3.ª Edição, Almedina, págs. 865 e 866.
[3] Assim também o Acórdão da Relação de Coimbra de 27-10-2010 – Proc. 1224/04, in www.dgsi.pt.
[4] Veja-se Rosa Vieira Neves, A Livre Apreciação da Prova e a Obrigação de Fundamentação da Convicção (na decisão penal), Coimbra Editora, págs. 121, 122 e 125.
[5] Vejam-se, designadamente, os Acs. do STJ de 11-06-1987, TJ n.º 31, pág. 30; de 16-01-1990, BMJ 393.º, pág. 262; de 21-07-1987 – Proc. 039119, in www.dgsi.pt, bem como os Acs. da RP de 22-02-1995 – Proc. 9410809, e de 29-03-2000 – Proc. 0040247, e ainda os Acs. do STA de 17-02-1999 – Proc. 023675, e de 08-06-1995 – Proc. 037923, todos estes disponíveis in www.dgsi.pt.
[6] Neste sentido podem ver-se, entre outros, os Acs. do TC n.ºs 39/1988, 437/2006, 546/2011, 362/2016 e 379/2021, in www.dgsi.pt.
[7] O início nos 16 anos tem a ver, como é evidente, com o facto de os menores de 16 anos serem penalmente imputáveis (art. 19.º do C. Penal).