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Sumário

Texto Integral

Proc. nº 1708/22.5T9PVZ.P1

Recurso Penal

Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos – Juiz 3

(Manuel Henrique Ramos Soares; Carla Oliveira)


Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.

I. Relatório

No âmbito do processo comum que, sob o nº 1708/22.5T9PVZ, corre termos pelo Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos, foi deduzida acusação pública contra o arguido AA, para julgamento em processo comum com intervenção do tribunal singular, pelos factos dela constantes, suscetíveis de configurar a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86.º, n.º 1, d), da Lei n.º 5/2006, de 23/2, com referência ao disposto nos artigos 2.º, n.º 1, ap) e 3.º, n.º 2, do mesmo diploma legal.

Na sequência de abertura de instrução requerida pelo arguido foi proferida decisão instrutória de não pronúncia.

Inconformado com a referida decisão instrutória, dela interpôs recurso o Ministério Público, restrito a matéria de direito, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem:

«1. Nos termos do disposto no art.º 2.º, n° 2, b) do DL n° 118/2011, de 15 de setembro, (Lei Orgânica da Autoridade Tributária Aduaneira), a AT tem como função exercer a ação de inspeção tributária e aduaneira, garantir a aplicação das normas a que se encontrem sujeitas as mercadorias introduzidas no território da União Europeia e efetuar os controlos relativos à entrada, saída e circulação das mercadorias no território nacional, prevenindo, investigando e combatendo a fraude e evasão fiscais e aduaneira e os tráficos ilícitos, no âmbito das suas atribuições.

2. Estas funções estão de acordo com o disposto no art.º 25° e 27° do Código Aduaneiro Comunitário Modernizado.

3. Assim, a AT tinha legitimidade para abrir a encomenda postal, expedida da China, na Alfândega ... e, ao verificar que continha dois objetos suspeitos de serem soqueiras, solicitou à PSP o competente exame acabando por apreender tais artigos, como o podia e era obrigado a fazer, por força do disposto nos artigos 242°, n° 1, a) do CPP, art.º 248 e art.º 249° do CPP, art.º 37°, n° 1, a) da Portaria 320-A/2011, de 30 de Dezembro e arts. 63° e art.º 86°, n° 1, d) da Lei das Armas.

4. A encomenda postal foi aberta de acordo com os regulamentos aduaneiros e postais, no âmbito da fiscalização aduaneira e não no âmbito de uma investigação criminal, razão pela qual não era necessária do JIC, não sendo proibida a prova assim obtida.

5. O MM.º Juiz a quo, ao decidir o oposto, violou o disposto nos arts. 126°, n° 3 e 179°. n° 1 do CPP.

6. No caso em apreço, a abertura de uma encomenda postal que continha mercadoria importada da China, não violou o sigilo da correspondência, previsto no art.º 34°, n° 1 n° 4 da CRP, por não ofender de forma de forma grave o direito à reserva da intimidade da vida privada do arguido.

7. Caso se entenda que esta importação de bens merece tutela constitucional, por ser enviada pelo correio, é manifestamente proporcional violar este direito, para salvaguardar outros interesses constitucionalmente protegidos, como é o caso do direito à segurança, consagrado no art.º 27° da CRP, pois cabe ao Estado assegurar os direitos e liberdades fundamentais (art.º 9.º, b) da CRP), desde logo garantir a não entrada em território nacional de armas proibidas que fazem perigar a paz e a própria vida e saúde dos cidadãos.

8. Os acórdãos invocados na douta decisão recorrida não se reportam a casos de abertura de encomendas postais por parte das autoridades aduaneiras no âmbito da fiscalização da entrada de mercadorias vindas do exterior da Comunidade Europeia.

9. Mantém-se, assim, válido o Parecer do Conselho Consultivo da PGR de 10/05/1995, que foi acolhido no acórdão do STJ de 06/06/2002, relatado por Simas Santos.

10. Razão pela qual, ao decidir ser nula a apreensão efetuada, por ser prova proibida e. consequentemente, dando como não indiciados os factos típicos do crime de detenção de arma proibida, o douto despacho de não pronúncia, violou o disposto nos arts. 2.º, n° 2, b) do DL n° 118/2011, de 15 de setembro, art.º 4.º, n.° 14 do Código Aduaneiro Comunitário, art.º 37° do RGIT, art.º 249° do CPP e arts. 126°, n° 3 e 179°, n° 1 do CPP e art.º 34.° n°s n° 1, e 4 da CRP, bem como o art.º 86°, n° 1, d) da Lei n° 5/2006, de 23 de fevereiro e art.º 307°, n° 1 do CPP.

Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso, proferindo-se despacho de pronúncia de acordo com os factos e crime que lhe é imputado na acusação pública.

Fazendo-se a costumada Justiça!»


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O recurso foi admitido para subir nos próprios autos, de imediato e com efeito devolutivo, não tendo sido apresentada resposta pelo arguido.

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A Sra. Procuradora-Geral Adjunta, neste Tribunal, emitiu parecer no sentido do provimento do recurso, reiterando os fundamentos já aduzidos pelo Ministério Público/recorrente na motivação do recurso e concluindo nos seguintes termos (segue transcrição):

«Fundamenta o MºPº este seu entendimento, em síntese, na circunstância de se considerar que a apreensão da encomenda foi efetuada legalmente, ao abrigo do Código Comunitário Aduaneiro Modernizado, e do Regime Jurídico Aplicável à Prestação de Serviços Postais.

Faz-se notar que este controle aduaneiro, legítimo e legalmente enquadrado, com vistoria e apreensão não foi realizado no âmbito de uma investigação criminal ou inquérito pendente. É o oposto, precisamente.

Porque foi vistoriado pela Alfandega, é que se descobriu a existência de objeto proibido pela nossa legislação, proveniente da República Popular da China. Não faria sentido, pois, aplicar a norma invocada que é relativa à apreensão de correspondência, no âmbito de um inquérito.

Aliás, se assim é, e os objetos não podiam ser apreendidos, porque a encomenda foi aberta pela Alfândega, no âmbito das suas competências, tratando-se de arma proibida, que destino a dar-lhes com o arquivamento do processo?

As alegações na motivação recursiva são plenamente sustentadas pelos argumentos de facto e de direito que nessa peça são apresentados.

Somos de parecer, pois, que este recurso interposto pela Senhora Magistrada do Ministério Público merece integral provimento, nos termos e com os fundamentos invocados no seu, aliás, bem elaborado recurso e que, por isso, o seu recurso deve proceder».


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Cumprido o disposto no art.º 417.º, nº 2, do Código do Processo Penal, foi apresentada resposta pelo arguido, pugnando pela manutenção da decisão instrutória recorrida.

Procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.


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II - Fundamentação

É pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (artigos 412.º, n.º 1 e 417.º, n.º 3, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente, como sucede com os vícios a que alude o art.º 410.º, n.º 2 ou o art.º 379.º, n.º 1, do CPP (cf., por todos, os acórdãos do STJ de 11/4/2007 e de 11/7/2019, disponíveis em www.dgsi.pt).

O presente recurso versa apenas matéria de direito e limita-se à questão de determinar se é nula, constituindo prova proibida, a apreensão que deu origem aos autos, como decidiu o tribunal a quo na decisão instrutória recorrida, ou se, pelo contrário, é válida, devendo, por isso, o arguido ser pronunciado pela prática do crime de detenção de arma proibida que lhe foi imputado na acusação, como defende o recorrente.


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Delimitado o thema decidendum, importa reproduzir o teor do despacho de não pronúncia, objeto do presente recurso, proferido pelo Exmo. Sr. Juiz do Tribunal de Instrução Criminal de Matosinhos, na sequência do debate instrutório realizado em 20/11/2023:

«Deduzida acusação pública contra o arguido AA, pelos factos constantes de fls. 48 e seg. e imputando-se àquele a prática, em autoria material, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea d), do Regime Jurídico das Armas e suas Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, com referência aos artigos 2.º, n.º 1, alínea ap), e 3º, n.º 2, alínea e), do mesmo diploma legal, veio aquele requerer a abertura de instrução, alegando, em essência, a nulidade da apreensão da encomenda, por não ter sido precedida de despacho de juiz que a autorizasse ou ordenasse, concluindo que se trata de prova proibida. Argumenta, ainda, que a acusação é nula porque não descreve a forma sob a qual o crime foi praticado, ou seja, se na forma consumada ou tentada.

Defende, sem mais, que o arguido não praticou o crime de que vem acusado.

Concluiu pugnando pela sua não pronúncia.


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Declarada aberta a instrução, pelo arguido foi ainda, no âmbito da mesma, invocada a nulidade da acusação, nos termos do art.º 283.º, nº3, al. b), do C.P.P., alegando, em suma, que, para existir crime, a posse dos objetos em causa teria de ser não justificada, circunstância que não está narrada na acusação, pelo que a mesma também por esta via é nula.

Procedeu-se, a final, ao competente debate instrutório, o qual viria a decorrer com observância estrita das formalidades legais.


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O Tribunal é competente.

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Da nulidade da acusação

Uma vez que no requerimento de abertura de instrução é alegada a nulidade da acusação, por não descrever a forma sob a qual o crime foi praticado, tendo ainda o arguido invocado, no âmbito da instrução, a nulidade daquela por não estar nela narrado que a posse dos objetos em causa não era justificada, impõe-se analisar tais questões.

Estabelece o artigo 283.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal que, no que respeita aos factos, a acusação tem que conter, sob pena de nulidade, “[a] narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.”

E a al. d) do mesmo nº 3 estabelece que a acusação deverá conter, sob pena de nulidade, a indicação das disposições legais aplicáveis.

Percorrida a acusação, constata-se estarem descritos os elementos objetivos e subjetivo do tipo de crime imputado, e bem assim as disposições legais correspondentes, daquela se retirando estar em causa a prática do crime na forma consumada, pois que nenhuma alusão há a factos relativos a eventual tentativa, nem às normas correspondentes a esta, nenhuma imposição legal existindo de que se use a fórmula “na forma consumada” ou qualquer outra semelhante.

Por outro lado, decorre da Lei nº 5/2006, de 23/02, que os objetos em causa (boxers) são armas da classe A, por isso sendo proibidos a sua venda, aquisição, cedência, detenção, uso e porte (art.º 4.º, nº1), não estando a prática do crime dependente da falta de justificação para a sua posse.

Tal referência, aliás, destina-se apenas às “outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse”, conforme se retira da al. d) do nº1 do art.º 86.º do citado diploma.

Face ao exposto, conclui-se que a acusação não enferma das nulidades em apreço.


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Não há outras nulidades ou outras questões prévias que cumpra conhecer.

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Os indícios:

Nos termos do disposto pelo artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a instrução visa comprovar judicialmente a decisão de acusar ou de arquivar o inquérito, com a formulação de um juízo de probabilidade para legitimar a sujeição do arguido a julgamento.

Assim, se até ao encerramento da instrução forem recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação, em julgamento, de uma pena ou uma medida de segurança, o juiz profere despacho de pronúncia, caso contrário, profere despacho de não pronúncia – cf. artigo 308.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.

Segundo dispõe o artigo 283.º, n.º 2 do Código de Processo Penal “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.

Embora existam divergências na doutrina e jurisprudência quanto a saber quando é que os indícios são suficientes, diremos que, com a posição maioritária, entendemos ser necessário que dos indícios resulte uma forte ou séria possibilidade de condenação em julgamento.

Nesta linha de orientação se posiciona o Professor Figueiredo Dias (“Direito Processual Penal”, I, 1984, pág. 133) que se pronuncia nos seguintes termos: “os indícios só serão suficientes e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando seja mais provável do que a absolvição”.

Assim também o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-10-2005, publicado em www.dgsi.pt/jstj, onde pode ler-se que “aquela «possibilidade razoável» de condenação é uma possibilidade mais razoável, mais positiva do que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é (mais) provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido ou os indícios são os suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição”.

No mesmo sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-9-11, publicado no mesmo local, decidiu que “a suficiência dos indícios (…) pressupõe a formação de uma verdadeira convicção de probabilidade: Indícios suficientes são assim, «os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que (o arguido) virá a ser condenado. Eles constituem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é imputado”.


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Factos indiciados

Com relevo para a decisão instrutória, considera-se indiciado o seguinte facto (não se pronunciando o Tribunal sobre o que constitui matéria conclusiva ou inócua para tal decisão):

1. Em 25 de Outubro de 2022, a Delegação Aduaneira das Encomendas Postais da Alfândega ... elaborou auto de apreensão de duas soqueiras (Boxers), acondicionadas no objeto postal com o nº de origem ... e o nº local ..., após terem sido, em 24 de Março de 2022, submetidas a exame pericial pela PSP, que constatou tratarem-se de dois instrumentos metálicos, cada um com o comprimento total de 11 cm e 6,5 cm de largura, destinados a serem empunhados e a ampliar o efeito resultante de uma agressão.


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Factos não indiciados:

Com interesse para a decisão instrutória, consideram-se não indiciados os seguintes factos (não se pronunciando o Tribunal sobre o que constitui matéria conclusiva ou inócua para tal decisão).

a) Em data não concretamente apurada mas antes de 19 de Maio de 2021, e de forma também não apurada, o arguido encomendou da China as duas soqueiras (Boxers) supra descritas em 1., indicando como morada de entrega a sua residência àquela data, sita na Rua ..., nº ..., r/c, Póvoa de Varzim.

b) O arguido encomendou da China as mencionadas soqueiras (Boxer), conhecia as suas características, designadamente que eram suscetíveis de serem utilizadas como armas letais de agressão, e sabia que a sua importação, detenção e guarda era proibida e punida por lei.

c) Agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta violava preceitos legais.


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Motivação

A convicção do Tribunal sobre os factos resultou da consideração conjugada, à luz das regras da experiência e da lei aplicável, dos elementos recolhidos em sede de inquérito, nos termos a seguir descritos.

Os factos dados como indicados[1] resultam da consideração do auto de fls. 16 e seg. e relatório de fls. 5.

Quanto aos factos não indiciados, concluiu-se pela não valoração do meio de obtenção de prova adotado (apreensão), por violação dos pressupostos estabelecidos pelo legislador para a realização de apreensão de encomenda.

Por conseguinte, impõe-se abordar o fundamento jurídico que impede a valoração da prova obtida nos autos e o regime legal da apreensão da correspondência.

A problemática das proibições de prova no âmbito do direito processual penal situa-se, por um lado, na necessidade do Estado assegurar um processo penal efetivo, capaz de perseguir e punir os criminosos, e, de outro lado, no dever de assegurar um processo penal justo, apresentando assim as proibições de prova uma dimensão de proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos. Como refere Figueiredo Dias «o processo penal é um dos lugares por excelência em que tem de encontrar-se a solução do conflito entre as exigências comunitárias e a liberdade de realização da personalidade individual» (cf. Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1974, pág. 59).

Esta matéria encontra assento jurídico-constitucional, prescrevendo o artigo 32.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa que “São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.” Portanto, apesar da realização da justiça constituir um valor de elevada importância, a mesma não pode comportar um intolerável sacrifício dos direitos fundamentais dos cidadãos.

Ora, no âmbito probatório penal vigora o princípio da legalidade dos meios de prova, determinando o artigo 125.º do Código de Processo Penal que “São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei.”

Desta enunciação, feita pela negativa, é possível extrair que existem meios de prova que se caracterizam pela capacidade de oferecer ao julgador resultados probatórios diretamente utilizáveis em sede de decisão, e meios de obtenção de prova, formas e procedimentos que permitem adquirir coisas materiais, vestígios ou declarações dotadas de capacidade probatória.

Por outro lado, também se extrai que o Código de Processo Penal não enumera ou discrimina quais são as provas proibidas, mas aponta limites à produção de provas e à sua valoração.

Concretizando o disposto no artigo 32.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa, prescreve o artigo 126.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, com a epígrafe métodos proibidos de prova, que ressalvados os casos previstos na lei, são nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respetivo titular.

Como explica Pedro Soares de Albergaria (cf. Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo II – Artigos 124.º a 190.º, 3º edição, Edições Almedina, 2021, pág. 59), no predito preceito o legislador ordinário dá corpo ao programa constitucional em matéria de provas relativamente proibidas, “assim tachando os métodos pelas quais aquelas sejam obtidas, fora dos casos previstos na lei ou sem o consentimento do visado, com intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.”

A norma em causa tutela a reserva da vida privada, na sua dimensão material, constitucionalmente protegida pelo artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, e na sua dimensão formal (domicílio, correspondência e comunicações), protegida pelo artigo 34.º da Lei Fundamental, que estabelece a proibição de toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal.

As proibições de prova estão, como se consegue alcançar, diretamente ligadas à salvaguarda dos direitos fundamentais e representam uma barreira ao apuramento dos factos, traduzindo-se, portanto, em limites à descoberta da verdade. Assim, a violação dos direitos fundamentais elencados no artigo 32.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa e, bem assim, no artigo 126.º, n.ºs 1, 2 e 3, do Código de Processo Penal, pode gerar uma proibição de prova.

No entanto, tanto a Constituição, no n.º 4 do artigo 34.º, como o Código de Processo Penal, no n.º 3 do artigo 126.º, admitem uma restrição aos direitos fundamentais aí consagrados, desde que seja observado o princípio da proporcionalidade e salvaguardado o seu núcleo essencial (cf. artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa).

Assim sendo, as provas obtidas em conformidade com o previsto na lei em matéria de processo criminal (cf. artigo 126.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, parte inicial, e artigo 34.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, parte final) ficam fora das proibições, configurando métodos de prova permitidos e regulamentados. Por outras palavras, respeitando a investigação criminal as regras processuais penais que permitem o recurso aos meios de obtenção de prova restritivos desses direitos fundamentais, não há qualquer proibição de prova. Já na situação de inobservância das regras processuais estabelecidas para a ingerência nesses direitos, está-se perante uma nulidade absoluta, uma prova proibida.

No que respeita à correspondência, concretamente à sua apreensão, dispõe o artigo 179.º do Código de Processo Penal que “1 - Sob pena de nulidade, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão, mesmo nas estações de correios e de telecomunicações, de cartas, encomendas, valores, telegramas ou qualquer outra correspondência, quando tiver fundadas razões para crer que: a) A correspondência foi expedida pelo suspeito ou lhe é dirigida, mesmo que sob nome diverso ou através de pessoa diversa; b) Está em causa crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos; e c) A diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.” O n.º 3 deste preceito explica que se o juiz que tiver autorizado ou ordenado a diligência é a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida, sendo que se a considerar relevante para a prova, fá-la juntar ao processo; caso contrário, restitui-a a quem de direito, não podendo ela ser utilizada como meio de prova, e fica ligado por dever de segredo relativamente àquilo de que tiver tomado conhecimento e não tiver interesse para a prova.

Nas palavras de João Conde Correia (cf. ob. cit., pág. 653-654) “A apreensão de correspondência é a primeira forma especial de apreensão incluída no CPP, justificando-se as suas especificidades adjetivas sobretudo pela necessidade de tutelar o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada, constitucionalmente protegidos (art. 34.º/1 e 4 CRP). Para além de significar uma clara restrição ao direito de propriedade sobre a própria correspondência apreendida (art.º 62.º CRP), há aqui também uma agressão significativa àquele direito, que justifica a imposição de exigências processuais suplementares: a legitimidade da diligência depende de prévia autorização judicial, está limitada à correspondência recebida ou remetida pelo suspeito (art.º 1.º/e), deverá revelar grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova e só é admissível se estiver em causa crime punível com pena de prisão superior a três anos (n.º 1). A norma é, pois, muito mais restritiva do que o regime geral (…) na medida em que a intervenção estadual carece de razões justificativas adicionais, sob pena de se poder tornar abusiva (art. 32.º/8 CRP). Só é admitida em casos muito limitados.”

Assim, ao abrigo do disposto no artigo 179.º do Código de Processo Penal, é admissível uma restrição ao direito fundamental de sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada, núcleo de reserva de intimidade da vida privada protegido pelo artigo 34.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa, pois que o legislador constituinte entendeu que os valores jurídico-constitucionais prosseguidos no âmbito do processo penal o justificam.

Porém, tal restrição, como exige a norma citada, só é admissível com a intervenção do juiz, a qual deve assegurar um justo equilíbrio entre as finalidades visadas pelo processo penal e os direitos fundamentais por este afetados, legitimando as ingerências restritivas nos direitos fundamentais dos cidadãos.

A este respeito destaca-se o decidido pelo Tribunal Constitucional no âmbito do Acórdão n.º 7/87: «a intervenção do juiz (...) justifica-se "para salvaguardar a liberdade e a segurança dos cidadãos no decurso do processo-crime e para garantir que a prova canalizada para o processo foi obtida com respeito pelos direitos fundamentais”».

A propósito desta linha de pensamento coesa, mantida ao longo dos tempos pelo Tribunal Constitucional, explica-se no Acórdão n.º 687/2021 que “a exigência de intervenção judicial no inquérito, em relação a atos que configurem intervenções restritivas na esfera dos direitos fundamentais, define-se, desde os momentos iniciais da jurisprudência constitucional, como pilar incontornável da arquitetura sistémica que se foi construindo para o processo penal português.”

Importa não perder de vista que a intervenção do juiz no plano de atos que determinem a compressão dos direitos fundamentais é uma exigência constitucional (cfr. artigo 32.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa). Como aponta o último Acórdão mencionado, “O juiz tem, nos termos da CRP, uma competência exclusiva e não delegável de garantia de direitos fundamentais no âmbito do processo criminal (à luz do artigo 32.º, n.º 4, do CPP), pelo que a lei apenas pode dispensar a sua intervenção em casos excecionais devidamente delimitados e justificados. Por outras palavras, tal dispensa é constitucionalmente admissível apenas em situações pontuais e definidas com rigor, em que não constitua um meio excessivo para prosseguir interesses particularmente relevantes de investigação criminal. Será o caso, por exemplo, de atuações preventivas ou cautelares, em que haja particular urgência ou perigo na demora no que toca à conservação de elementos probatórios, e desde que se assegure uma posterior validação judicial da atuação das autoridades competentes.”

É, portanto, inequívoco que no caso do artigo 179.º do Código de Processo Penal a falta de intervenção do juiz determina a nulidade da apreensão.

Revertendo estas considerações para o caso dos autos, mediante uma análise conjugada da prova documental carreada para os autos, verifica-se que o objeto ... foi sujeito a um controlo aduaneiro em 24-05-2021 (cf. fls. 7), como dá nota o auto de notícia a fls. 14, descrevendo que “No âmbito da fiscalização aduaneira de rotina” se procedeu “à verificação do objeto postal com o número de origem ...”.

Mais explica o auto de notícia que, após essa verificação, existindo “a suspeita que poderia conter armas” e “dada a natureza da mercadoria foi comunicado aos A..., S.A. que o desalfandegamento do objeto postal (…) estava dependente do cumprimento das condições e apresentação dos documentos necessários para dar continuidade ao processo.”

Sendo que, “tratando-se de um objeto postal que se encontrava no Armazém de Depósito Temporário autorizado da empresa A..., S.A. notificaram o destinatário através do documento denominado aviso para desalfandegamento (AD), da necessidade de autorização da PSP para importação do referido objeto.”

Contudo, uma vez que “o destinatário não apresentou autorização de importação, nem prova de existência de qualquer contacto com a PSP, nomeadamente no sentido da marcação de uma peritagem, foram feitas as diligências com a PSP no sentido de ser a mesma peritada”.

Tendo sido o objeto, posteriormente, submetido a exame pericial (cf. fls. 5), que deu origem ao relatório n.º ..., datado de 24-03-2022. No mesmo consta, entre outros aspetos, o seguinte: “N.º Local/encomenda: ...”; “Material de fabrico: metal”; “Dimensões: largura 6,5 cm/ comprimento 11 cm”; “Outras características: de cor cinzenta”.

Após o recebimento dos resultados do exame pericial, foi o objeto apreendido pela Delegação Aduaneira das Encomendas Postais da Alfândega ..., cfr. auto de apreensão de fls. 16 a 17.

No auto de apreensão de fls. 16 a 17. pode ler-se, entre o demais, o seguinte: “Procederam à apreensão da mercadoria/documentos discriminados no campo 2, nos termos do disposto no artigo 37º do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, conjugado com o artigo 178.º do Código de Processo Penal (CPP).”

Deste modo, constata-se que a encomenda em questão foi, num primeiro momento, verificada no âmbito de uma fiscalização aduaneira de rotina, tendo aí surgido uma suspeita relativamente à mesma, de que poderia conter armas. Refira-se que, da prova documental constante dos autos não consta qualquer explicação ou descrição de como foi feita essa verificação. Ou seja, não se sabe como é que a autoridade aduaneira verificou a encomenda, se recorrendo à sua abertura ou utilizando outros métodos de verificação que não implicassem a abertura da encomenda.

Num segundo momento, verifica-se que foi o destinatário da encomenda notificado para apresentar uma autorização para importação do objeto, o que não foi apresentado.

Constata-se, ainda, que após essa comunicação o objeto foi sujeito a uma peritagem, sendo que o teor do relatório de peritagem dá conta das características dos objetos examinados. Deste modo, depreende-se que a encomenda foi aberta com vista ao exame dos objetos nela contidos. Chega-se a esta conclusão pelo facto de no relatório constarem as dimensões, material e cor dos objetos, características que só podem ser obtidas mediante uma observação direta dos mesmos.

Ademais, verifica-se que a apreensão efetuada pela Delegação Aduaneira das Encomendas Postais da Alfândega ... foi efetuada após o recebimento do resultado do exame pericial, ou seja, após a abertura da encomenda.

Assim, analisada a prova documental junta aos autos constata-se que a apreensão da encomenda não foi precedida de despacho judicial que a autorizasse ou ordenasse. Por outro lado, verifica-se que a encomenda foi aberta e que foi adquirido o conhecimento do seu conteúdo sem a existência de prévio despacho judicial.

Como se pode ler na fundamentação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18-05-2006 (disponível em www.dgsi.pt), e que trata de assunto similar ao analisado no presente caso:

“Pergunta-se então se, não podendo as autoridades aduaneiras apreender correspondência sem autorização prévia do juiz, não se está a facilitar o cometimento de ilegalidades fiscais e criminais por essa via, cada vez mais usada como meio de remessa de pequenas mercadorias num mundo globalizado, com espaços económicos muito alargados?

A resposta é a de que as autoridades aduaneiras podem exercer fiscalização sobre toda a correspondência que envolve o transporte de mercadoria, mas tal fiscalização não passa pela apreensão nem pela abertura não autorizada das embalagens, mas pela faculdade de só emitir o despacho alfandegário quando houver a certeza de que a declaração da mercadoria corresponde ao real conteúdo da correspondência, o que pode ser concretizado pelo pedido de documentação adicional ou pelo pedido de desembalagem ao interessado. É o que resulta, por exemplo, dos art.ºs 37.º e 46.º do Código Aduaneiro Comunitário – Regulamento (CEE) n.º 2913/92 do Conselho.

Essa faculdade de retenção da mercadoria até ao seu despacho alfandegário não pode confundir-se com a apreensão e muito menos com a violação de correspondência, pois aquela, ao contrário destas, não confere a faculdade de quebrar o direito ao sigilo da vida privada e, portanto, não interfere com as normas constitucionais ou de processo penal indicadas.

O mesmo se passa com o visionamento de correspondência através de técnicas que não envolvem a abertura da correspondência e que só permitem uma conferência sumária do interior da mesma, pois tais técnicas afiguram-se proporcionais e adequadas aos fins visados (conferir a mercadoria com a declaração alfandegária) e não dão azo a uma violação do referido direito constitucional.

A suspeita pelas autoridades aduaneiras de que se está perante uma atividade criminal tem de dar lugar aos procedimentos a que se reporta o Código de Processo Criminal, como é óbvio” (sublinhados e negritos nossos).

Como é bom de ver, o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça vai no sentido de que a atividade de fiscalização aduaneira, e normas aplicáveis, não pode subverter os procedimentos estabelecidos na lei de processo penal para a apreensão de encomendas.

E é neste sentido que se tem pronunciado a jurisprudência recente em casos idênticos ao destes autos.

Assim, decidiu-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 07-06-2017 (disponível em www.dgsi.pt), o seguinte:

“I – O n.º 1 do art. 252.º do CPP refere-se aos casos já prevenidos no artigo 179.º do mesmo diploma, em que existe prévia ordem ou autorização judicial para proceder à apreensão, devendo nesse caso a correspondência ser levada intacta ao juiz, seguindo-se o procedimento do n.º 3 desse normativo (o juiz toma conhecimento do conteúdo da correspondência e fá-la juntar ao processo se for relevante para a prova).

II – Quando não exista qualquer intervenção prévia da autoridade judicial competente para ordenar a apreensão, regem os n.ºs 2 e 3 do artigo 252º, nos seguintes parâmetros:

- a autoridade policial deve informar o juiz, o qual pode autorizar a abertura imediata da correspondência; ou

- a autoridade policial pode ordenar a suspensão da remessa da correspondência e se, no prazo de 48 horas, a ordem não for convalidada pelo juiz, a correspondência é remitida ao destinatário.

III – É, pois, clara a lei no sentido de não poder ocorrer apreensão de correspondência sem prévia intervenção do juiz, apenas sendo legalmente permitida a medida cautelar de suspensão da sua remessa.

IV – A apreensão realizada à revelia das citadas disposições legais é, por força do disposto no artigo 179.º, n.º 1 do CPP, nula; sendo este vício atinente a meio de prova, não segue o regime do artigo 122.º do mesmo Código, mas antes o prescrito nos arts. 125.º e 126.º, n.º 3, ainda do mesmo corpo de normas” (sublinhado e negrito nosso).

No mesmo sentido decidiu-se no recente Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 27-09-2022 (disponível em www.dgsi.pt), que:

“A “encomenda postal” em análise nos presentes autos, estando fechada, constituía correspondência.

Com efeito, e como bem assinala Manuel da Costa Andrade (in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Coimbra Editora, 1999, Tomo I, pág. 758), “é precisamente este facto - estar fechada - que define a fronteira da tutela penal do sigilo de correspondência e dos escritos, em geral”.

Ou seja, a correspondência é, por definição, fechada.

Enquanto fechada, a correspondência é sigilosa por natureza, e, logicamente, goza da proteção constitucional que o artigo 34º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa concede ao “sigilo da correspondência”.

Como tal, está dependente de autorização do Juiz de Instrução Criminal, “sob pena de nulidade”, a apreensão, mesmo nas “estações de correios”, de “encomendas” (ou de qualquer outra correspondência).

É, pois, clara a lei no sentido de não poder ocorrer apreensão de correspondência sem prévia intervenção do juiz, apenas sendo legalmente permitida a medida cautelar de suspensão da sua remessa. A apreensão realizada à revelia das citadas disposições legais é, por força do disposto no artigo 179º, nº 1, do CPP, nula.

Essa nulidade, atinente a meio de prova, não segue o regime do artigo 122º do C. P. Penal, mas, isso sim, o preceituado nos artigos 125º e 126º, nº 3, do mesmo diploma legal (trata-se de prova nula, não podendo ser utilizada no presente processo)” (sublinhado e negrito nosso).

Apesar da jurisprudência citada, não ignoramos que existem posições em sentido contrário, como é exemplo João Conde Correia (in ob. cit., pág. 666) que entende que “O sigilo da correspondência (…) não abrange as cartas, os pacotes e encomendas que, ao abrigo dos preceitos aduaneiros devam ser apresentados à fiscalização alfandegária para efeitos de eventual aplicação dos correspondentes tributos. As autoridades aduaneiras podem e devem, no âmbito das suas competências próprias (v.g. art. 139.º do CAU, aditado pelo Regulamento (UE) n.º 952/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho) verificar todas as mercadorias que lhes sejam apresentadas, para comprovar se aquilo que foi declarado corresponde realmente àquilo que foi enviado.”

E, ainda, o Parecer do Conselho Consultivo da PGR P000151995 (disponível em www.dgsi.pt), que conclui, entre o demais, o seguinte:

“O sigilo da correspondência estatuído nos nºs 1 e 4 do artigo 34º da Constituição da República não abrange os pacotes e encomendas postais, contendo mercadorias, que devam ser apresentados a fiscalização alfandegária;

Consequentemente, a fiscalização, pelas autoridades aduaneiras, dos "objetos de correspondência postal e das encomendas postais" conduzidos à alfândega, para assegurar o cumprimento da legislação aduaneira e demais disposições aplicáveis às mercadorias sob fiscalização aduaneira, nos termos previstos nos Regulamentos (CEE) nº 2913/92, de 12 de Outubro, do Conselho das Comunidades Europeias (Código Aduaneiro (Comunitário), e 3665/93, de 21 de Dezembro, da Comissão das Comunidades Europeias, diretamente aplicáveis na ordem interna, é compatível com o sigilo da correspondência previsto nos nºs 1 e 4 do artigo 34º da Constituição da República;”

Entendemos, contudo, não acolher os preditos argumentos. Em primeiro lugar, porque a verificação de encomendas pelas autoridades aduaneiras não tem que implicar necessariamente a violação do sigilo da correspondência. Tal como aponta o Acórdão do STJ supra citado, a conferência da correspondência pode recorrer a técnicas de visionamento ou inspeção que não implicam a abertura da correspondência, sendo as mesmas adequadas e proporcionais aos fins inspetivos da alfândega, sem que sejam violados os direitos fundamentais dos cidadãos.

Depois, porque tais entendimentos subvertem por completo o fundamento jurídico das proibições de prova, ou seja, a garantia de que a atividade investigatória não pode ser feita com um intolerável sacrifício dos direitos dos cidadãos. De resto, é a própria Constituição que, prevendo a restrição de direitos fundamentais, dita que tal só pode ser feito em respeito da lei em matéria de processo criminal.

Ademais, repare-se que, no caso em apreço, a autoridade aduaneira procedeu à apreensão da encomenda com base no disposto nos artigos 37.º do Regime Geral das Infrações Tributárias e 178.º do Código de Processo Penal. Ou seja, a referida autoridade prevaleceu-se de uma medida cautelar, nos termos do RGIT, praticando um ato que, de acordo com o normativo referido, se encontra previsto para casos urgentes ou de perigo de demora. Porém, atentando ao acervo documental supra referido e descrito, constata-se que tal ato foi praticado em 25-10-2022 (cf. fls. 16), ou seja, decorrido mais de um ano desde o controlo aduaneiro de rotina realizado em 24-05-2021 (cf. fls. 7) e no qual surgiu a “suspeita que poderia conter armas”. Desde modo, não se compreende como é realizado o enquadramento do ato de apreensão numa medida cautelar de urgência, uma vez que o período temporal decorrido não aponta para a existência de uma necessidade urgente, para além de que a encomenda já tinha sido aberta no âmbito do exame pericial realizado pela PSP (cf. fls. 5).

Acresce que a predita norma do RGIT remete para o disposto no artigo 249.º do Código de Processo Penal, o qual prevê providências cautelares quanto aos meios de prova, a levar a cabo pelos órgãos de polícia criminal, sendo que este preceito prevê a possibilidade de se proceder a apreensões no decurso de revistas ou buscas ou em caso de urgência ou perigo na demora, bem como adotar as medidas cautelares necessárias à conservação da integridade dos animais e à conservação ou manutenção das coisas e dos objetos apreendidos. No caso dos autos, não estando a autoridade perante uma revista ou busca, a apreensão só poderia ter lugar em caso de urgência ou perigo na demora, o que não se verifica pelo argumento já aduzido. E, mesmo que se verificasse uma situação de urgência ou perigo na demora, sempre teria a autoridade aduaneira que obedecer ao regime estatuído no 178.º do Código de Processo Penal, ou seja, teria a apreensão que ser validada pela autoridade judiciária, no prazo máximo de setenta e duas horas. Porém, a apreensão realizada nos presentes autos não se enquadra no regime geral das apreensões previsto no artigo 178.º do Código de Processo Penal, cabendo sim no regime especial do artigo 179.º desse diploma, uma vez que está em causa uma encomenda.

Aliás, refira-se que a norma do Regime Jurídico das Infrações Fiscais Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 376-A/89, de 25 de Outubro (respeitante à parte em que este diploma se encontra ainda em vigor), invocada no Parecer do Conselho Consultivo da PGR P000151995, apesar de estabelecer uma competência para a fiscalização de mercadorias remete, igualmente, para os “termos” e “limites fixados no Código de Processo Penal” (cfr. artigo 49.º do referido diploma).

Em suma, são as próprias normas aduaneiras que remetem para a aplicação das regras do processo penal, pelo que, estabelecendo a lei processual penal procedimentos específicos para a obtenção da prova, os quais se encontram harmonizados com as diretrizes constitucionais, qualquer desvio aos mesmos gera uma nulidade da prova obtida, que, contendendo com os direitos fundamentais constitucionalmente protegidos, determina a proibição da sua valoração.

Face ao exposto, aderindo à jurisprudência supra citada, entendemos que é nula, constituindo prova proibida, a apreensão que deu origem aos presentes autos, por violação do disposto no artigo 34.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa e dos artigos 126.º, n.º 3 e 179.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na medida em que a apreensão da encomenda não foi autorizada ou ordenada por despacho de juiz, nem foi um juiz a tomar primeiro conhecimento da mesma.

Como tal, quedaram por indiciar os factos como tal descritos.


*

Enquadramento jurídico-penal dos factos

O Ministério Público imputa ao arguido a prática de um crime de detenção de arma proibida, p.e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, com referência aos artigos 2.º, n.º 1, alínea ap) e 3º, n.º 2, alínea e), do mesmo diploma.

Prescreve o artigo 86.º n.º 1, alínea d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro que:

“1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, exportar, importar, transferir, guardar, reparar, desativar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou transferência, usar ou trouxer consigo: (…)

d) Arma branca dissimulada sob a forma de outro objeto, faca de abertura automática ou ponta e mola, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, cardsharp ou cartão com lâmina dissimulada, estrela de lançar ou equiparada, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, as armas brancas constantes na alínea ab) do n.º 2 do artigo 3.º, aerossóis de defesa não constantes da alínea a) do n.º 7 do artigo 3.º, armas lançadoras de gases, bastão, bastão extensível, bastão elétrico, armas elétricas não constantes da alínea b) do n.º 7 do artigo 3.º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, artigos de pirotecnia, exceto os fogos-de-artifício das categorias F1, F2, F3, T1 ou P1 previstas nos artigos 6.º e 7.º do Decreto-Lei n.º 135/2015, de 28 de julho, e bem assim as munições de armas de fogo constantes nas alíneas q) e r) do n.º 2 do artigo 3.º, é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias;”

Por seu turno, estabelece o artigo 2.º, n.º 1, alínea ap) do mesmo diploma que “Para efeitos do disposto na presente lei e sua regulamentação, entende-se por: 1 - Tipos de armas: (…) ap) «Boxer» o instrumento metálico ou de outro material duro destinado a ser empunhado e a ampliar o efeito resultante de uma agressão;”. Ditando o artigo 3º, n.º 2, alínea e), do referido diploma que “2 - São armas, munições e acessórios da classe A: e) As facas de abertura automática ou ponta e mola, estiletes, facas de borboleta, facas de arremesso, estrelas de lançar ou equiparadas, cardsharps e boxers (…)”

O bem jurídico protegido pela citada incriminação legal é a segurança da comunidade face aos riscos da circulação e detenção de armas de defesa sem o controlo adequado do Estado (neste sentido, Paula Ribeiro Faria, in Comentário Conimbricense do Código Penal, pág. 891).

Uma vez que a realização do tipo legal em análise não exige a lesão, mas a simples colocação em perigo do bem jurídico tutelado, estamos em face de um crime de perigo.

Trata-se, ainda, de um crime de perigo abstrato, pois o perigo não integra o tipo, constituindo apenas o motivo da proibição. Significa isto que a lei estabelece uma presunção inilidível de perigo, independentemente de a conduta do agente o ter efetivamente criado.

Por outro lado, configura um crime de realização permanente, cujo preenchimento se mantém enquanto durar a forma de atuação.

Quanto ao tipo objetivo, o mesmo é preenchido por qualquer uma das condutas descritas no tipo legal.

No que se reporta ao elemento subjetivo do tipo, é necessário o dolo do agente em relação a todos os elementos do tipo objetivo do ilícito. Exige-se o dolo em qualquer uma das suas modalidades, previstas no art.º 14.º do C. Penal.

No caso em apreço, inexistem factos indiciados que permitam imputar ao arguido conduta que preencha os elementos objetivos ou subjetivo do tipo em análise, pelo que se impõe, obviamente, a sua não pronúncia.


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Decisão

Pelo exposto, decide-se não pronunciar o arguido AA pela prática do crime de detenção de arma proibida, p.e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, com referência aos artigos 2.º, n.º 1, alínea ap) e 3º, n.º 2, alínea e), do mesmo diploma legal, por que vem acusado.

Sem custas.

Notifique e registe.


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Oportunamente, arquivem-se os autos.»

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Validade da prova e verificação de indícios da prática do crime de detenção de arma proibida – apreciação do mérito do recurso.

Estabelece o art.º 308.º, n.º 1 do Código Processo Penal que “Se, até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.

No presente caso, considerou o tribunal a quo não estar indiciada a prática do crime de detenção de arma proibida imputado ao arguido, por constituir prova nula e proibida a apreensão da encomenda que deu origem ao presente processo criminal.

Divergindo deste entendimento, sustenta o Ministério Público, no recurso, que a encomenda postal foi aberta de acordo com os regulamentos aduaneiros e postais, no âmbito da fiscalização aduaneira e não no âmbito de uma investigação criminal, razão pela qual não era necessária autorização ou intervenção do juiz de instrução criminal (JIC), não sendo proibida a prova assim obtida. 

Como é observado no despacho recorrido, a prova documental constante dos autos permite concluir pela ocorrência do seguinte conjunto de factos:

O objeto ... foi sujeito a um controlo aduaneiro em 24/5/2021 (cf. fls. 7), como dá nota o auto de notícia a fls. 12/15, descrevendo que “No âmbito da fiscalização aduaneira de rotina” procedeu-se “à verificação do objeto postal com o número de origem ... […], procedente China, tendo existido a suspeita que poderia conter armas sujeitas a controlo da Polícia de Segurança Pública (PSP), nos termos previstos na Lei n.º 5/2006, de 23 fevereiro (RJAM) na sua redação atual”.

Mais explica o auto de notícia que, após essa verificação, existindo “a suspeita que poderia conter armas” e “dada a natureza da mercadoria foi comunicado aos A..., S.A. que o desalfandegamento do objeto postal (…) estava dependente do cumprimento das condições e apresentação dos documentos necessários para dar continuidade ao processo.”

Sendo que, “tratando-se de um objeto postal que se encontrava no Armazém de Depósito Temporário autorizado da empresa A..., S.A. notificaram o destinatário através do documento denominado aviso para desalfandegamento (AD), da necessidade de autorização da PSP para importação do referido objeto.”

Contudo, uma vez que “o destinatário não apresentou autorização de importação, nem prova de existência de qualquer contacto com a PSP, nomeadamente no sentido da marcação de uma peritagem, foram feitas as diligências com a PSP no sentido de ser a mesma peritada, por forma a dar destino às mercadorias nos termos do RJAM”.

A mercadoria foi submetida a exame pericial (cf. fls. 5), resultando do teor do respetivo relatório n.º ..., datado de 24/3/2022, que os objetos metálicos em causa tratavam-se de duas “soqueiras”/”boxers” metálicas, com 6,5cm de largura por 11 cm de comprimento, de cor cinzenta, configurando armas da classe A, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2.º, n.º 1, ap) e 3.º, n.º 2, e), do Regime Jurídico das Armas e Munições (RJAM).

Após o recebimento dos resultados do exame pericial, foram os mencionados objetos (“boxers”) apreendidos pela Delegação Aduaneira das Encomendas Postais da Alfândega ... (cf. auto de apreensão de fls. 16/17).

Todos os elementos documentais constantes dos autos permitem concluir que o destinatário da encomenda proveniente da China e verificada pela AT era o arguido AA, o qual, contactado, não apresentou autorização de importação.

Para além disso, não há dúvida, como assinala o tribunal a quo no despacho recorrido, que a abertura da encomenda, o exame/peritagem dos objetos nela contidos e a sua subsequente apreensão não foi precedida de despacho judicial que a autorizasse ou ordenasse.

É certo que o legislador equipara uma encomenda postal a correspondência, para efeito da respetiva apreensão, estabelecendo no n.º 1 do artigo 179.º do Código de Processo Penal que, sob pena de nulidade, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão, mesmo nas estações de correios e de telecomunicações, de cartas, encomendas, valores, telegramas ou qualquer outra correspondência, quando tiver fundadas razões para crer que: a) A correspondência foi expedida pelo suspeito ou lhe é dirigida, mesmo que sob nome diverso ou através de pessoa diversa; b) Está em causa crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos; e c) A diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.

Por sua vez, o n.º 3 do referido preceito legal estipula que «O juiz que tiver autorizado ou ordenado a diligência é a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida. Se a considerar relevante para a prova, fá-la juntar ao processo; caso contrário, restitui-a a quem de direito, não podendo ela ser utilizada como meio de prova […]».

Contudo, e como bem observa o Ministério Público/recorrente, este preceito legal regula apenas a apreensão de correspondência a efetivar no âmbito do processo penal, e não o controlo aduaneiro de mercadorias introduzidas no território da União Europeia.

Nos termos do disposto no artigo 2.º, n° 1, do DL n° 118/2011, de 15 de setembro (Lei Orgânica da Autoridade Tributária Aduaneira), a Autoridade Tributária (AT) tem por missão administrar os impostos, direitos aduaneiros e demais tributos que lhe sejam atribuídos, bem como exercer o controlo da fronteira externa da União Europeia e do território aduaneiro nacional, para fins fiscais, económicos e de proteção da sociedade, de acordo com as políticas definidas pelo Governo e o Direito da União Europeia, competindo-lhe, designadamente, exercer a ação de inspeção tributária e aduaneira, garantir a aplicação das normas a que se encontrem sujeitas as mercadorias introduzidas no território da União Europeia e efetuar os controlos relativos à entrada, saída e circulação das mercadorias no território nacional, prevenindo, investigando e combatendo a fraude e evasão fiscais e aduaneiras e os tráficos ilícitos, no âmbito das suas atribuições (cf. o respetivo n.º 2, alínea b).

Por outro lado, de acordo com o artigo 4.º, n° 3 do Código Aduaneiro Comunitário Modernizado (CACM), que substituiu o Código Aduaneiro Comunitário, aprovado através do Regulamento n° 2913/92 do Conselho, de 12 de outubro de 1992 e alterado pelo Regulamento CEE 648/2005. de 13 de abril, e Regulamento 450/2008, de 23 de abril, e Regulamento (UE) n° 528/2013, em vigor desde 19/06/2013, os controlos aduaneiros configuram «os atos específicos executados pelas autoridades aduaneiras a fim de garantirem a correta aplicação da legislação aduaneira e de outra legislação que regule a entrada, a saída, o trânsito, a transferência, a armazenagem e a utilização para fins especiais de mercadorias que circulem entre o território aduaneiro da Comunidade e outros territórios, bem como a presença e a circulação no território aduaneiro de mercadorias não comunitárias e de mercadorias sujeitas ao regime de destino especial».

E, de acordo com o artigo 25°, n° 1 do referido código, «As autoridades aduaneiras podem realizar todos os controlos aduaneiros que considerem necessários. Os controlos aduaneiros podem, designadamente, consistir na verificação das mercadorias, na recolha de amostras, no controlo dos dados da declaração e da existência e autenticidade dos documentos, na verificação da contabilidade dos operadores económicos e de outros registos, na inspeção dos meios de transporte, das bagagens e de outras mercadorias transportadas por pessoas ou em pessoas e na realização de inquéritos oficiais e outros atos similares».

Estabelece, por seu turno, o artigo 27.º do citado CACM que, «depois de concederem a autorização de saída das mercadorias e a fim de se certificarem da exatidão dos elementos da declaração sumária ou da declaração aduaneira, as autoridades aduaneiras podem proceder ao controlo de quaisquer documentos e dados relativos às operações no que respeita às mercadorias em causa ou às operações comerciais anteriores ou posteriores relativas a essas mercadorias. As referidas autoridades podem igualmente proceder à verificação das mercadorias e/ou à recolha de amostras, se tal for ainda possível». Esses controlos podem ser efetuados «nas instalações do detentor das mercadorias ou do seu representante, ou de qualquer pessoa direta ou indiretamente envolvida profissionalmente nas referidas operações, ou nas instalações de qualquer outra pessoa que, pela sua qualidade profissional, esteja na posse dos referidos documentos e dados».

Assim, a abertura da encomenda postal, proveniente da China e que tinha por destinatário o arguido, foi efetuada no âmbito das competências da AT para fiscalizar na Alfândega as mercadorias vindas do exterior da União Europeia.

Aliás, como observa o recorrente, o “site” dos A... esclarece que as encomendas passam por um controlo aduaneiro físico ou documental e, ainda, que o desalfandegamento pode ficar suspenso por suspeita de importação de objetos proibidos. E informa o que não pode ser enviado pelo correio, designadamente armas.

Na verdade, o Regime Jurídico Aplicável à Prestação de Serviços Postais (Lei n° 17/2012, de 26 de abril) garante a inviolabilidade e o sigilo dos envios postais, que incluem encomendas, com os limites e exceções previstos na lei penal e demais legislação aplicável (cf. os respetivos artigos 5.º, n.º 1, c) e 7.º, n.º 1, a)).

Concordamos, assim, com o recorrente, quando assinala que a abertura da encomenda postal foi efetuada pela AT no âmbito das suas competências de fiscalização aduaneira, antes de se saber que a encomenda continha objetos classificados como armas proibidas e de o arguido estar a ser investigado, razão pela qual não se exigia prévia autorização do JIC para a abertura da encomenda e subsequente apreensão.

Apoiou-se o Exmo. Sr. Juiz de Instrução Criminal no acórdão proferido em 18/5/2006 pelo STJ, com o seguinte sumário [2]: «I - Dos arts. 26.º, n.º 1, 18.º, n.º 2, 32.º, n.º 8, e 34.º da CRP, bem como 126.º, n.º 3, e 179.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, resulta que a proteção do direito à reserva da vida privada é especialmente salvaguardada quando está em jogo correspondência, sendo que se precisa de que por tal se consideram não só as cartas, como ainda encomendas, valores, telegramas ou qualquer outra forma similar de comunicação entre pessoas. II - A violação da correspondência só pode ser feita por ordem do juiz e este é a primeira pessoa que toma conhecimento do conteúdo da mesma.
III - Pode admitir-se que numa situação em que haja urgência ou perigo na demora, os órgãos de polícia criminal possam efetuar apreensões de correspondência, mas tal ato fica sujeito a validação no prazo máximo de 72h pela “autoridade judiciária” (art. 178.°, n.°s 4 e 5), isto é, pelo juiz e não o MP, já que há reserva de competência daquele (art. 179.°).

IV - Fora dessas situações, estamos perante a nulidade de um meio de prova».

 Contudo, e como justamente observa o Ministério Público/recorrente, nos presentes autos a abertura da encomenda não teve como fito a “atividade investigatória”, diversamente do que ocorreu na situação analisada no mencionado acórdão do STJ (tal como nos restantes, igualmente invocados no despacho recorrido), já que neste estava em causa a abertura da encomenda efetuada pelas autoridades aduaneiras a pedido da polícia judiciária, no âmbito de uma investigação em curso num inquérito criminal.

Ora, como se decidiu no acórdão do STJ de 6/6/2002, relatado pelo Conselheiro Simas Santos [3], a propósito de uma situação com contornos idênticos aos do caso que agora nos ocupa [4], «As encomendas postais provindas do exterior podem ser abertas de acordo com os regulamentos aduaneiros e postais sem precedência de ordem judicial e sem presidência do Juiz, não sendo proibida a utilização das provas assim obtidas».

De facto, proclama o artigo 34.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa que «o domicílio e o sigilo de correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis». Contudo, o n.º 4 do mesmo preceito constitucional estabelece que «É proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência e nas telecomunicações, salvo os casos previstos na lei em matéria de processo criminal».

A fiscalização atrás referida insere-se uma competência própria das autoridades aduaneiras como órgãos de polícia fiscal, não carecendo, como tal, de intervenção das autoridades judiciárias.

A referida fiscalização aduaneira implica, necessariamente, a abertura da correspondência postal e das encomendas postais conduzidas à alfândega, cabendo essa tarefa aos funcionários dos A... na presença das autoridades aduaneiras que presidem a tal diligência.

Por isso, não viola o sigilo de correspondência, visto tratar-se de ato não proibido por lei, a abertura de qualquer embrulho contido na correspondência ou encomenda nas condições já referidas.

Do mesmo modo pronunciou-se o Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, no parecer de 10 de maio de 1995 (invocado no acórdão do STJ de 6/6/2002 e igualmente citado pelo recorrente), cujas conclusões destacamos:

«1. O sigilo da “correspondência postal” consiste na proibição de leitura de qualquer correspondência, mesmo que não encerrada em invólucro fechado, e da mera abertura da correspondência fechada, bem assim na proibição de revelação a terceiros do conteúdo de qualquer mensagem ou informação de que se tomou conhecimento, devida ou indevidamente, das relações entre remetentes e destinatários e das direções de uns e outros (artigo 13° do Decreto-Lei n° 188/81, de 2 de Julho);

2. O sigilo da correspondência estatuído nos n°s 1 e 4 do artigo 34° da Constituição da República não abrange os pacotes e encomendas postais, contendo mercadorias, que devam ser apresentados a fiscalização alfandegária;

3. Consequentemente, a fiscalização, pelas autoridades aduaneiras, dos “objetos de correspondência postal e das encomendas postais” conduzidos à alfândega, para assegurar o cumprimento da legislação aduaneira e demais disposições aplicáveis às mercadorias sob fiscalização aduaneira, nos termos previstos nos Regulamentos (CEE) n° 2913/92, de 12 de Outubro, do Conselho das Comunidades Europeias (Código Aduaneiro (Comunitário), e 3665/93, de 21 de Dezembro, da Comissão das Comunidades Europeias, diretamente aplicáveis na ordem interna, é compatível com o sigilo da correspondência previsto nos n°s 1 e 4 do artigo 34° da Constituição da República;

4. A fiscalização referida na conclusão anterior insere-se numa competência própria das autoridades aduaneiras, como órgãos de polícia fiscal, não carecendo, como tal, de intervenção das autoridades judiciárias;

5. A referida fiscalização aduaneira implica, necessariamente, a abertura da correspondência postal e das encomendas postais conduzidas à alfândega, cabendo essa abertura aos funcionários dos A... na presença das autoridades aduaneiras, que presidem a tal diligência;

6. Não viola o sigilo de correspondência, visto se tratar de ato não proibido por lei, a abertura de qualquer embrulho contido na correspondência ou encomenda referidas nas conclusões anteriores;

7. A apreensão do conteúdo desse embrulho ou de qualquer outro objeto contido nas referidas correspondências ou encomendas postais, quando haja suspeita de crime, visando comprovar essa suspeita, insere-se no campo da investigação criminal, entra no domínio do processo penal, passando, por isso, a estar sujeita à disciplina definida no Código de Processo Penal (artigos 178°, 248°, 249° e 252°);

8. A abertura e a apreensão do conteúdo do embrulho, referidas nas conclusões anteriores, não são regidas pelo artigo 179° do Código de Processo Penal visto não se tratar de “correspondência” sujeita a sigilo;

9. Para a abertura do referido embrulho e exame e apreensão do seu conteúdo é competente a autoridade aduaneira que proceder à fiscalização dos referidos “objetos de correspondência postal e encomendas postais” (artigos 49° do Regulamento aprovado pelo Decreto-Lei n° 376-A/89, e 249° do Código de Processo Penal).»

 Concluiu-se, desta forma, que tendo a encomenda postal sido aberta de acordo com os regulamentos aduaneiros e postais, no âmbito de fiscalização aduaneira, prévia a qualquer investigação criminal, não era necessária a autorização do JIC, não sendo proibida a prova assim obtida.

Sendo inegável que as normas de controlo aduaneiro permitem expressamente a fiscalização das encomendas, materializada na respetiva abertura na alfândega, só seria possível chegar à conclusão do tribunal a quo declarando em concreto a inconstitucionalidade de tais normas.

Além disso, a tese interpretativa defendida pelo tribunal a quo configura uma impossibilidade jurídica – uma vez que a existência de despacho prévio do juiz, por aplicação do 179.º, n.º 1 do CPP, pressuporia uma suspeita e prévia abertura de inquérito, o que, naturalmente, não ocorrerá, por regra, numa fiscalização de rotina pela alfândega – e impediria, em grande medida, a ação da fiscalização das autoridades aduaneiras, permitindo a entrada no espaço comunitário de produtos proibidos, o que é justamente aquilo que o legislador pretende prevenir.

Além disso, não há uma expectativa legítima de reserva da vida privada numa situação de importação de produtos por via postal, pois o respetivo destinatário sabe que a encomenda pode ser fiscalizada na alfândega. E, para ser fiscalizada, pode ser aberta, nos termos legais.

E todo o caso, como observa o recorrente, é manifestamente proporcional restringir o direito à reserva da vida privada para salvaguardar outros interesses constitucionalmente protegidos, como é o caso do direito à segurança, consagrado no art.º 27° da CRP, pois cabe ao Estado assegurar os direitos e liberdades fundamentais (art.º 9.º, b) da CRP), desde logo garantir a não entrada em território nacional de armas proibidas que fazem perigar a paz e a própria vida e saúde dos cidadãos.

Assim, resta assinalar que, verificando-se que a encomenda continha duas soqueiras/boxers, competia naturalmente aos agentes da AT, junto da Alfândega ..., proceder à apreensão dos referidos objetos (cf. o art.º 249.º do CPP).

É de notar que o prazo de 72 horas para validação da apreensão pela autoridade judiciária, referido no art.º 178.º, n.º 5 do CPP, é um prazo de mera ordenação processual e a sua ultrapassagem não tem qualquer reflexo sobre a validade da apreensão levada a cabo. A omissão não constitui sequer irregularidade para os efeitos do disposto no art.º 123º do CPP, na medida em que não afeta o valor do ato de apreensão.

Por outro lado, a exigência de "validação pela autoridade judiciária" não passa necessariamente pela prolação de uma decisão expressa e autónoma acerca da validade da apreensão, admitindo-se a sua validação tácita sempre que houver no processo elementos que demonstrem, de forma inequívoca, que o Ministério Público fiscalizou a legalidade das apreensões efetuadas pelos órgãos de polícia criminal e considerou-as válidas, caso em que se deve considerar cumprido o disposto no n.º 5 do art.º 178º do CPP.

Com efeito, e como é salientado no acórdão deste TRP, de 6/2/2013 [5], mesmo que o Ministério Público não tenha validado expressamente uma apreensão, podemos afirmar que fiscalizou a sua legalidade e considerou de forma tácita, mas inequívoca, que essa apreensão havia sido válida se, ao deduzir acusação, a incluiu nos meios de prova que indicou, o que sucedeu no presente caso.

Consequentemente, e configurando inequivocamente os objetos apreendidos “armas proibidas”, nos moldes definidos pelos artigos 2.º, n.º 1, ap) e 3.º, n.º 2, e), do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, julga-se procedente o recurso, revogando-se o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro, no qual o arguido seja pronunciado pelos factos constantes da acusação pública, suscetíveis de configurar a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, d), do mencionado diploma legal.


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III – Dispositivo

Pelo exposto, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro, no qual o arguido seja pronunciado pelos factos constantes da acusação pública, suscetíveis de configurar a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, d), do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro.

Sem custas.

Notifique.


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(Elaborado e revisto pela relatora – art.º 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente).

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Porto, 13 de março de 2024.
Liliana de Páris Dias
Manuel Soares
Carla Oliveira
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[1] Presume-se que se pretendesse escrever “indiciados”.
[2] Acórdão relatado pelo Conselheiro Santos Carvalho e disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[3] Igualmente disponível para consulta em www.dgsi.pt.
[4] Tratou-se da apreensão de encomendas postais expedidas do Brasil, contendo cocaína.
[5] Relatado pela Desembargadora Eduarda Lobo e disponível para consulta em www.dgsi.pt.