CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
ARGUIDO
MEDIDAS DE COACÇÃO
AGRAVAÇÃO
DETENÇÃO FORA DE FLAGRANTE DELITO
PRESSUPOSTOS
MEIOS ELECTRÓNICOS
CONTROLO À DISTÂNCIA
Sumário

I – Não estando em causa qualquer das situações previstas no artigo 261º, nº 1, do Código de Processo Penal, mas apenas a imposição ao arguido de medidas de coacção mais gravosas que o TIR, que já prestara, e tendo a detenção sido ordenada e justificada por autoridade judiciária competente para o efeito, o Ministério Público, não carecia o JIC de especificar a factualidade indiciária já conhecida daquele para validar a sua detenção.
II – Mesmo que se entendesse que, ainda assim, o JIC deveria comunicar ao arguido, de novo, a factualidade indiciada, tendo sido esta omitida, a apreciação de eventual nulidade ou irregularidade processual daí decorrente e atinente à detenção estaria dependente da arguição atempada perante a entidade competente, ou seja, antes de terminar o acto no âmbito do qual foi estabelecida a respectiva validade, nos termos e por força do disposto no artigo 120º, nºs. 1, 2 e 3, al. a), do Código de Processo Penal, o que não tendo acontecido, e caso se considerasse existir uma tal nulidade, esta há muito que se encontraria sanada, o que implicaria a impossibilidade da sua apreciação e eventual decretação.
III – Estando em causa prática de violência doméstica ocorrida no domicílio comum da vítima e agressor, em contexto de reiteração perpetuada no tempo, sem qualquer elemento que inculque uma alteração do percurso de vida assumido mesmo depois de o visado ser constituído arguido, ouvido pelo Ministério Público e submetido a TIR, antes se verificando que a gravidade e intensidade dos comportamentos se vem acentuando, não se vislumbra que outra ou outras medidas poderiam acautelar o perigo de continuação da actividade criminosa caso ambos permanecessem na habitação, justificando-se, por isso, a imposição das medidas de afastamento da residência onde ocorreram os factos e das suas imediações, num raio de quinhentos metros, a proibição de contactos, por qualquer meio, com a ofendida e a proibição de permanência e frequência dos locais onde a ofendida esteja ou se desloque e, bem assim, de se aproximar da mesma, devendo manter uma distância de salvaguarda de quinhentos metros, todas fiscalizadas por meios electrónicos de controlo à distância, único meio de facultar real protecção à vítima.
IV – Na ponderação do direito à habitação do arguido e do direito à integridade física, vida e sossego da vítima, tem que prevalecer este último.

Texto Integral

RECURSO PENAL n.º 460/23.1GAVCD-A.P1


Secção Criminal

Conferência

[Urgente/Violência Doméstica

Relatora

Maria Deolinda Dionísio

Adjuntos

Maria dos Prazeres Silva

Rodrigues da Cunha


Comarca: Porto

Tribunal: Matosinhos/Juízo de Instrução Criminal-J4

Processo: Inquérito (Actos Jurisdicionais) n.º 460/23.1GAVCD

Arguido/Recorrente

AA

Acordam os Juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:


I - RELATÓRIO

a) No âmbito do inquérito supra referenciado, então a correr termos pela 4ª Secção do DIAP Regional de Matosinhos, da Procuradoria da República da Comarca do Porto, após o interrogatório judicial a que alude o art. 141°, do Cód. Proc. Penal, levado a efeito no dia 26/09/2023, foram aplicadas ao arguido AA, com os demais sinais dos autos, para além do TIR já prestado, as medidas de coacção de:

Ä Afastamento da residência onde ocorreram os factos e das suas imediações, num raio de 500 (quinhentos) metros;

Ä Proibição de contactos, por qualquer meio, com a ofendida BB; e

Ä Proibição de permanência e frequência dos locais onde a mencionada ofendida esteja ou se desloque e bem assim de se aproximar da mesma, devendo manter uma distância de salvaguarda de 500 (quinhentos) metros,

Todas fiscalizadas por meios electrónicos de controlo à distância, com fundamento na existência de fortes indícios da prática de 1 (um) crime de violência doméstica agravado, previsto e punível pelo art. 152º [e não 151º, como por manifesto lapso de escrita se escreveu a fls. 6 do despacho e por esta via se rectifica ao abrigo do disposto no art. 380º, n.ºs 1, al. b) e 2, do Cód. Proc. Penal], n.ºs 1, al. a) e 2, do Cód. Penal, e do perigo de continuação da actividade criminosa.

b) Inconformado o arguido AA interpôs recurso cuja motivação finaliza com as seguintes conclusões[1]: (transcrição)

I. O presente recurso vem interposto do despacho constante no Auto de Interrogatório do Arguido, datado de 26 de Setembro de 2023, com a referência 452119963,em que o Juiz de Instrução Criminal (J1C) decidiu agravar as medidas de coação anteriormente aplicadas nos autos, aplicando, além do habitual TIR, as medidas aqui impugnadas: "Proibição de o arguido permanecer e frequentar a residência onde ocorrerem os factos e as suas imediações, num raio de 500 (quinhentos) metros, para o que se concede o prazo de uma semana atenta a informação de que a vítima se encontra por ora em casa da filha de ambos; Proibição de o arguido contactar com a ofendida, por qualquer meio; Proibição de o arguido permanecer ou frequentar os locais onde a ofendida esteja ou se desloque, e bem assim de se aproximar da mesma, mantendo desta uma distância de salvaguarda de 500 (quinhentos) metros".

II. Foi ainda determinado que tais medidas estão sujeitas a fiscalização através de meios electrónicos de controlo à distância.

III. Nestes termos, empenharemos a tarefa de demonstrar aos Venerandos Juízes Desembargadores que a decisão proferida pelo Tribunal a quo no despacho recorrido, deverá ser revogada pois, na nossa humilde opinião, o mesmo encontra-se ferido de nulidade no que tange à detenção do Arguido e ao próprio agravamento das medidas de coação que lhe foram impostas.

IV. Sem prescindir, e caso V. Exas. não reconheçam nem vislumbrem qualquer nulidade no despacho aqui recorrido, evidencia-se desde já que, as medidas de coação aplicadas ao arguido violam o artigo 193º do CPP, pois não são adequadas, proporcionais e necessárias atendendo à factualidade concreta dos presentes autos.

V. No que tange à detenção do Arguido, aqui Recorrente, o JIC considerou a sua detenção efetuada no pretérito dia 26 de Setembro de 2023 legal fundamentando a mesma à luz do disposto no artigo 257º n.º 1 b) do CPP.

VI. Inexistiam fundamentos para que o Recorrente fosse detido nos termos em que efetivamente o foi, tanto assim é que, o JIC não enuncia os factos indiciários que justifiquem a mencionada detenção.

VII. A detenção do Arguido nos moldes como foi levada a cabo viola as seguintes disposições legais: 257.º n.º 1 b); 204º; 194º n.º 6 e 118.º todos do CPP e do artigo 32º da CRP.

VIII. In casu, não se verificavam nenhuma das situações estatuídas no artigo 204º do CPP pelo que o Arguido não deveria ser detido fora do flagrante delito.

IX. Face ao circunstancialismo dos autos, inexiste qualquer perigo de fuga por parte do Recorrente - este é pensionista, encontra-se plenamente identificado nos autos e é bastante colaborativo com a justiça;

X. Inexiste também perigo de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas - o Recorrente não tem antecedentes criminais e faz uma vida independente da aqui Ofendida, residindo os mesmos em imóveis diferentes, com economias separadas e, neste momento, encontra-se em curso o processo de divorcio de ambos.

XI. Não olvidando que o Arguido, aqui Recorrente, foi detido quando se apresentava voluntariamente no Posto Tem tonal da GNR de Vila do Conde para presentar declarações na qualidade de Ofendido no âmbito do processo n.º 315/23.OGAPVZ, atendendo à agressão por si sofrida e perpetrada no seio familiar, tendo a aqui Ofendida participado na mesma.

XII. Face ao exposto, quanto à detenção do Recorrente, e analisando objetivamente o despacho recorrido, o mesmo não fundamenta a sua decisão, pois não aplica qualquer alínea do artigo 204º do CPP à detenção efetuada, requerendo a V. Exas. que reconheçam a nulidade da mesma, nos termos do artigo 196º do CPP.

XIII. Não obstante e no que concerne ao agravamento das medidas de coação impostas ao Arguido e aplicadas nestes autos, inexistem circunstâncias supervenientes que as sustentem, pelo menos, estas não estão objetivamente consignadas no despacho recorrido, incorrendo o mesmo numa nulidade insanável.

XIV. Analisando, ainda que sucintamente como as conclusões assim o exigem, as concretas medidas ora aplicadas ao Arguido, sempre se evidencie que, no que tange à medida de proibição de contactos, esta já é aplicada de forma livre e consciente atendendo que o Recorrente tem receio de ser novamente vítima de mais episódios de violência por parte da sua esposa, filha e genro, como o que deu origem ao processo n.° 315/23.OGAPVZ.

XV. Atendendo à existência do mencionado processo-crime, o JIC não poderia ignorar que os testemunhos da filha e do gemo prestados nos autos supra deveriam ser desvalorizados, atendendo ao seu estatuto de arguidos no âmbito do processo n.º 315/23.OGAPVZ, e, portanto, as suas declarações não poderão suster o agravamento das medidas de coação aqui impostas.

XVI. As medidas de coação não são adiantamentos ou antecipações de sentenças-condenatórias, têm apenas um caracter cautelar e devem apenas ser aplicadas de forma bastante restrita, na esteira e no respeito dos direitos liberdades e garantias fundamentais do Arguido, a este propósito vide Ac. Tribunal da Relação de Lisboa datado de 15 de Setembro de 2016.

XVII. Face à tensão familiar aqui descrita, que não deve ser estranha à investigação criminal, aliada ao facto de os intervenientes processuais levarem vidas separadas e independentes, não legitima o abandono da residência imposto ao Recorrente, nem tão pouco, a aplicação "pulseira eletrónica".

XVIII. Nesta senda, o agravamento das medidas de coação aqui aplicadas violou o disposto nos artigos 191º, 193º e 194º do CPP, motivo pelo qual o despacho recorrido está ferido de nulidade por violação das alíneas a) e d) do artigo 194º n.º 6 do CPP ex vi 118º do CPP, devendo por isso ser revogado.

XIX. Do ponto de vista substantivo, as medidas de coação aqui impostas violam o principio da proporcionalidade, necessidade e adequação visto que inexistem factos supervenientes que justifiquem a sua aplicabilidade ao aqui Arguido.

XX. Concretamente, o abandono da habitação no prazo de uma semana - tendo presente que Recorrente e Ofendida vivem vidas autónomas e independentes - não é mais do que uma violação reiterada dos direitos constitucionais do Arguido como sejam o de defesa - direito ao recurso - e o de habitação.

XXI. Com os seus parcos rendimentos e atendendo que é o mesmo que suporta integralmente as despesas com a casa morada de família, o Recorrente não tem meios de subsistência para garantir o arrendamento de outro espaço para residir, enquanto a Ofendida reside com a filha de ambos por vontade própria, inexistindo qualquer perigo de continuação criminosa.

XXII. Neste prisma, inexistem fundamentos para a aplicação de um meio de controlo à distância, face à colaboração que o Recorrente sempre demonstrou com a justiça, estando o mesmo plenamente inserido na sociedade e focado no seu dia-a-dia, marcado pelo trabalho.

XXIII. Os Tribunais Superiores já foram chamados a intervir em situações similares à dos autos, decidindo que o abandono da casa morada de família constitui uma medida desproporcional face à situação económica precária do Arguido. A este propósito veja-se a decisão ponderada e real do Ac. Do Venerando Tribunal de Relação de Coimbra datado de 2 de Junho de 2009: "Resta a proximidade física, na medida em que o arguido e vítima são casados entre si e comungam a habitação, o que naturalmente, proporciona o encontro entre ambos. Bastará essa circunstância para tornar a medida decretada adequada necessária e proporcionada? Cremos que não. Como bem aponta o Sr. Procurador-Geral Adjunto, a imposição de afastamento da habitação constitui uma medida bastante gravosa, pois posterga um direito fundamental - direito à habitação - e pode afetar profundamente a socialização do arguido, designadamente, acolher-se noutro local ou familiares/amigos que o recebam."

XXIV. Ainda no mesmo seguimento, o Acórdão datado de 19 de Novembro de 2008, a propósito de um recurso da decisão condenatória (fase muito mais avançada da que estamos neste momento), o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra decidiu o seguinte: "3.2. Quanto à pena acessória de afastamento do arguido da residência do casal, não podemos deixar de ser sensíveis aos apelos do recorrente. A aplicação da pena acessória de afastamento da residência da vítima depende da ponderação das circunstâncias concretas de cada caso. Ora, o casal sempre viveu na mesma casa e não há factos donde se retire que o arguido possa, com maior ou menor dificuldade, acolher-se noutra. (...) Ao ponderar a aplicação da referida pena acessória o tribunal deveria ter curado em saber das possibilidades do arguido em se acolher debaixo doutro tecto, sabido que o direito a uma habitação também é um direito constitucional. Temos assim por excessivo forçar o arguido a sair de sua casa sem que se ponderasse se tinha capacidade para se acolher. O casal sempre viveu debaixo do mesmo tecto e dos elementos constantes dos autos parece até que os familiares mais próximos (as filhas) se encontram com ele incompatibilizados."

c) Admitido o recurso, por despacho datado de 13/10/2023, respondeu o Ministério Público sufragando, sem alinhar conclusões, a sua improcedência e manutenção do decidido.

d) O M.mo JIC determinou os actos que deviam instruir o apenso de recurso, sustentou tabelarmente o decidido e ordenou a subida dos autos a este Tribunal ad quem.

e) Nesta instância, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer no sentido do recurso não merecer provimento, louvando-se nos fundamentos da resposta aludida que reforçou ainda com pertinente argumentação a propósito da adequação, proporcionalidade e necessidade das medidas de coacção impostas.

f) Cumprido o disposto no art. 417º n.º 2, do Cód. Proc. Penal, nada mais foi aduzido.

g) Realizado exame preliminar, no âmbito do qual foi formulado e acatado convite de rectificação das conclusões, como resulta do já anteriormente exposto, e colhidos os vistos legais, vieram os autos à conferência que decorreu com observância do formalismo legal, nada obstando à decisão.


**

II - FUNDAMENTAÇÃO


1. Sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, são apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar [v., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Tomo III, 2ª ed., pág. 335 e Ac. do STJ de 19/6/1996, BMJ n.º 458, pág. 98].

Assim, no caso sub iudicio, as questões suscitadas são as seguintes:

i) Nulidade da detenção

ii) Desproporcionalidade e desadequação das medidas de coacção


***

2. O teor do despacho recorrido, no que ao caso interessa, é o seguinte: (transcrição)

«(…)

A detenção foi legal, porque efectuada nos termos do disposto no artigo 257º, 1, alínea b), do Código de Processo Penal não se mostrando ultrapassado o prazo previsto na alínea a), do n.º 1, do artigo 254º e o n.º 1, do artigo 141º, ambos do Código de Processo Penal, pelo que a julgo válida.


*

Com base na prova até ao momento recolhida nos autos resultam fortemente indiciados todos os factos comunicados ao arguido, os quais aqui se dão por integralmente reproduzidos, mais se indiciando que:

- o arguido não tem antecedentes criminais;

- que trabalha na área da construção civil, auferindo um vencimento mensal que se cifra entre os 700,00€ (setecentos euros) e os 800,00€ (oitocentos euros);

- reside com a ofendida em casa pertencente a ambos, sendo que neste momento a última aquela se encontra em casa da filha de ambos;

- despende cerca de 160,00€ (cento e sessenta euros) por mês em crédito à habitação;

- tem o 4.º ano de escolaridade.


*

O tribunal baseou a sua convicção na análise conjugada, à luz das regras da experiência, da prova constante dos autos, designadamente da que foi comunicada ao arguido, supra transcrita e que se dá por integralmente reproduzida; onde avulta o auto de notícia de fls. 4 e seguintes; autos de inquirição de fls. 40; 56 e 59; certidão de fls. 52 e aditamento de fls. 56.

Por outro lado, não constam do processo quaisquer elementos probatórios que contrariem os fortes indícios que resultam da prova acima elencada.

A ausência de antecedentes criminais do arguido resulta do Certificado de Registo Criminal de fls. 36.

No que concerne às condições pessoais do arguido, o tribunal levou em conta as declarações do mesmo, as quais se mostraram objectivas e, por isso, credíveis.


*

A factualidade fortemente indiciada integra a previsão típica objetiva e subjetiva de um crime de violência doméstica, na sua forma agravada, tendo como vítima a mulher do arguido, crime este previsto e punido pelo artigo 152º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, do Código Penal, compreendendo, ainda, as penas acessórias previstas nos números 4, 5 e 6 do mesmo dispositivo legal.

*

Feita a qualificação jurídica dos factos indiciados, cumpre determinar se ao arguido deve ou não ser aplicada alguma medida de coacção mais gravosa que o TIR e, na afirmativa, qual ou quais.

*

O artigo 204º, do Código de Processo Penal, determina que nenhuma medida de coacção pode ser aplicada se em concreto não se verificar: a) fuga ou perigo de fuga; b) perigo de perturbação do inquérito ou da instrução do processo; ou c) perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa.

O perigo de fuga tem por base o risco do arguido se subtrair ao exercício da acção penal, mediante a existência de certas circunstâncias, que, de modo consistente, possam favorecer a fuga ou potenciar a mesma.

O perigo de perturbação do inquérito ou da instrução reporta-se às fontes probatórias que já se encontram nos autos ou que possam vir a ser obtidas e consiste no risco sério e actual de ocultação ou alteração das mesmas por parte do arguido. Para o efeito, torna-se necessário identificar não só a situação mas também a prova relativamente à qual se possa sustentar que o arguido poderá comprometer o decurso normal da investigação, perturbando o processo formativo da prova.

O perigo de continuação da actividade criminosa decorrerá de um juízo de prognose de perigosidade social do arguido, a efectuar a partir de circunstâncias anteriores ou contemporâneas à conduta que se encontra indiciada e sempre relacionada com esta.

O perigo de perturbação grave da ordem e tranquilidade públicas encontra-se particularmente relacionado com o direito à liberdade e à segurança dos cidadãos que possam ser potenciais vítimas da conduta criminosa indiciada.

A existência de um ou mais perigos ou exigências cautelares, sendo condição necessária, não é condição suficiente para a aplicação, em concreto, de uma medida de coacção (cf. artigo 191º, n.º 1, 1.ª parte, do Código de Processo Penal). A aplicação das referidas medidas deve obedecer aos princípios vigentes nesta sede, a saber: o princípio da legalidade (artigo 191º, do Código de Processo Penal), e os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade (artigo 193º, do Código de Processo Penal).

O princípio da legalidade, previsto no artigo 191º, n.º 1, do Código de Processo Penal, determina que apenas podem ser aplicadas as medidas de coacção que se encontrem previstas na lei.

Verificado estes pressupostos, importa aferir da proporcionalidade (em sentido amplo) da medida de coacção. Em primeiro lugar, nos termos do artigo 193º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a medida deve ser necessária, isto é, devem existir, em concreto, as necessidades cautelares que a lei impõe como requisito para a aplicação daquela específica medida de coacção. Depois, a medida de coacção deverá adequada, ou seja, a medida deve ser apta a fazer face às exigências cautelares que se impõe no caso concreto. Finalmente, a medida de coacção deve ser estritamente proporcional. Por outras palavras, a medida de coacção é proporcional quando, perante a gravidade dos factos que são concretamente imputados ao arguido, e considerando a sanção que eventualmente lhe poderá ser aplicada, aquela medida não se mostra excessiva - artigos 193º, n.º 1 in fine e 192º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal.

No caso dos autos há que ponderar a forte indiciação da prática de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 151º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Código Penal; a circunstância do arguido residir com a vítima; o facto de o arguido, mesmo perante os militares da GNR persistir na prática de factos da mesma natureza dos indiciados e ainda o contexto dos últimos factos indiciados, envolvendo terceiros.

Todas as circunstâncias enunciadas evidenciam a existência, em concreto, de forte perigo de continuação da actividade criminosa, impondo-se, por isso, a aplicação de medida de coacção mais gravosa do que o TIR.

Ora, face ao que exposto, e atenta a natureza e gravidade dos factos em presença, o carácter muito recente de manifestações de violência por parte do arguido, a circunstância de não se ter coibido de praticar parte dos factos perante os militares da GNR e bem assim as necessidades de protecção da vítima, atento o risco envolvido, afigura-se que as medidas adequadas, por serem as únicas previsivelmente eficazes, mas ainda respeitadoras dos critérios de necessidade e de proporcionalidade, são as seguintes:

- Proibição de o arguido permanecer e frequentar a residência onde ocorrerem os factos e as suas imediações, num raio de 500 (quinhentos) metros, para o que se concede o prazo de uma semana atenta a informação de que a vítima se encontra por ora em casa da filha de ambos;

- Proibição de o arguido contactar com a ofendida, por qualquer meio;

- Proibição de o arguido permanecer ou frequentar os locais onde a ofendida esteja ou se desloque, e bem assim de se aproximar da mesma, mantendo desta uma distância de salvaguarda de 500 (quinhentos) metros; medidas que devem ser fiscalizadas através de meios técnicos de controlo à distância.


*

Deste modo, ao abrigo do disposto nos artigos 191º, 193º, 194º, 196º, 200º, n.º 1, alíneas a) e d) e 204º, alínea c), todos do Código de Processo Penal, e 31º, n.º 1, alíneas c) e d), da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, determino que o arguido AA aguarde os ulteriores termos do processo sujeito, além do TIR já prestado, às seguintes medidas de coacção:

- Proibição de o arguido permanecer e frequentar a residência onde ocorrerem os factos e as suas imediações, num raio de 500 (quinhentos) metros, para o que se concede o prazo de uma semana atenta a informação de que a vítima se encontra por ora em casa da filha de ambos;

- Proibição de o arguido contactar com a ofendida, por qualquer meio;

- Proibição de o arguido permanecer ou frequentar os locais onde a ofendida esteja ou se desloque, e bem assim de se aproximar da mesma, mantendo desta uma distância de salvaguarda de 500 (quinhentos) metros;

medidas que devem ser fiscalizadas através de meios electrónicos de controlo à distância. Mais se determina, ao abrigo do disposto no artigo 35º, nº 1, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, que o cumprimento das medidas enunciadas seja fiscalizado através de meios técnicos de controlo à distância que deverão ser implementados logo que possível após contacto com a entidade competente, dado que tal se nos afigura imprescindível para a protecção dos direitos da vítima, tendo sido já colhido o consentimento expresso do arguido e faltando agora o da ofendida, que deverá ser colhido pela DGRSP.

Notifique.

(…).»


***

3. Os factos imputados e considerados indiciados são os seguintes: (transcrição nos exactos termos)

1. O arguido AA casou com a vítima BB em 28 de novembro de 1976.

2. Dessa união nasceram dois filhos já maiores de idade e o casal tem residência na Rua ..., n.º .... R/c esq., em ..., ....

3. Em data não concretamente apurada do mês de outubro de 2022 o arguido começou a ingerir bebidas alcoólicas em excesso. Desde essa altura e com uma frequência incerta, o arguido inicia discussões com a vítima, por motivos fúteis, acusando-a de ter amantes.

4. No 18 de abril de 2023, pelas 07h00, na sequência de uma discussão que mantiveram, por causa de dinheiro, o arguido apelidou a vítima: “puta” e de “vaca.”

5. No dia 18 de abril de 2023, pelas 17h30, no interior da residência do casal, deu-se uma discussão entre a vítima e o arguido, por motivos relacionados com dinheiro. Durante essa discussão o arguido dirigiu-se à vítima, apelidando-a de: “Sua vaca, sua filha da puta, andas com todos os homens, não eras virgem quando casaste comigo.”

6. Nas circunstâncias de tempo modo e lugar referidas em 3. a GNR foi chamada ao local.

7. Pelas 18h15, perante os militares da GNR e por a vítima lhe ter transmitido que iria jantar e pernoitar em casa da filha de ambos e dividir o dinheiro que tinham guardado o arguido, como foros de seriedade, disse: “Não tiras dinheiro nenhum, em mato-te, eu mato-te, já estou por tudo.”

8. No dia 28 de agosto de 2023, pelas 17h00, no interior da residência de ambos e durante uma discussão que mantiveram, o arguido apelidou a vítima de: “Puta” e de: “Vaca”, acusando-a de manter encontros amorosos pelo telemóvel, dizendo ainda, como foros de seriedade, que a iria matar.

9. Nas circunstâncias de tempo modo e lugar referidas em 8., a vítima ligou à filha do casal, que veio em seu auxílio.

10. Quando a filha do casal lá chegou, a vítima encontrava-se sentada no exterior da casa e o arguido trancado, no seu interior, negando-se a abrir a porta.

11. De seguida, e munido de uma outra chave, o marido da filha da vítima abriu a porta da residência, onde se encontrava o arguido, com uma motosserra na mão, desligada e ainda uma faca de cozinha.

12. O arguido tentava ligar a motosserra, ao mesmo tempo que dizia que iria: “Pôr fogo ao apartamento e que a sua filha era: “Tão puta quanto a mãe.”

13. O genro do arguido retirou-lhe a motosserra da mão.

14. A vítima vive com receio que o arguido atente contra a sua integridade física ou vida, num momento em que esteja descontrolado.

15. Quis o arguido com a sua conduta amedrontar e ofender o bom nome da vítima e dessa forma, quis não só importunar, atemorizar e inquietar a vítima, mas também afetar a sua liberdade de movimentos e de atuação.

16. Agiu indiferente à relação que mantinha com a vítima, enquanto sua mulher e mãe de seus filhos e ao dever de respeito que dessa relação para si nasceu, relação e dever de que estava bem ciente, querendo subordina-la às suas vontades.

17. Agiu livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.


***

4. Com interesse para a decisão importa ponderar o seguinte[2]:

> O inquérito supra referenciado foi instaurado com base em auto de notícia datado, de 18 de Abril de 2023, onde se referenciava uma intervenção de militares da GNR junto à residência do arguido AA e de sua mulher, aqui ofendida BB, aí chamados após a ocorrência de insultos daquele para com esta, na sequência de desavenças familiares onde também interveio uma filha do casal.

> Já na presença dos militares o arguido exaltou-se e proferiu insistentes ameaças de morte contra a ofendida razão porque foi detido e apresentado ao Ministério Público.

> Por despacho proferido a 19 de Abril de 2023, após interrogatório do arguido e audição da ofendida, o Ministério Público determinou a libertação do primeiro mediante Termo de identidade e Residência (TIR) por virtude da BB ter referido que se encontrava em casa de uma filha, em segurança, e que não pretendida regressar a casa nem que o arguido fosse proibido de consigo contactar.

> No dia 31 de Agosto de 2023, o OPC fez chegar aos autos um aditamento ao auto de notícia, dando conta que, no dia 28 de Agosto, uma patrulha da GNR fora chamada para uma ocorrência de violência doméstica em local que correspondia à residência do casal constituído pelo arguido AA e ofendida BB.

Nessa sequência, foram informados que aquele voltara a insultar a mulher e a proferir ameaças de morte contra ela, tendo-se ainda fechado em casa, deixando-a no exterior do prédio e recusando abrir a porta de casa, tendo a sua filha e genro aceder ao interior da casa, com recurso a uma chave que possuíam, vendo que o arguido se encontrava com uma motosserra na mão, a tentar ligá-la, conseguindo o genro tirar-lha da mão. Mais foram informados por um dos vizinhos presentes no local – CC – que o arguido dizia em voz alta que “ia chegar fogo ao apartamento”.

Apesar do nervosismo da vítima foi possível confirmar que esta fora insultada, não só nesse dia mas também em datas anteriores, e que o arguido, quando estava com a motosserra na mão, dizia “já cheira a gasolina, ponho tudo a arder”.

Mais acrescentaram que, no dia 15 de Agosto, o arguido já impedira a ofendida de entrar em casa só tendo conseguido resolver a situação depois de chamar um filho que entrou por uma janela e abriu a porta enquanto o pai dormia, dizendo a BB que lhe quisera dar uma segunda oportunidade mas que o arguido tinha vindo a piorar e recusava tratamento, tendo mesmo faltado a uma consulta de psiquiatria.

> Acompanhavam esse aditamento autos de inquirição das testemunhas DD e CC, filha e vizinho do casal constituído por arguido e ofendida, respectivamente.

> No dia 18 de Setembro de 2023, o Ministério Público proferiu despacho onde, após especificar a factualidade que considerava indiciada nos autos (correspondente à vertida no antecedente ponto 3 deste acórdão), e as provas que sustentavam tal entendimento, determinou a emissão de mandados de detenção contra o arguido nos termos e com os fundamentos seguintes:

“Da emissão de mandados de detenção, fora de flagrante delito:

Ao sobredito ilícito criminal – violência doméstica - é aplicável uma moldura penal abstrata que pode atingir os 5 (cinco) anos de prisão.

A detenção fora de flagrante delito, para uma das finalidades previstas no artigo 254.º do CPP, é, assim, admissível, por mandado do Ministério Público, desde que, para o crime indiciado, seja admissível, em termos abstratos, a aplicação da medida de coação de prisão preventiva, nos termos do artigo 202.º do mesmo normativo, e se confirme a verificação de uma das situações previstas nas alíneas do n.º 1 do citado artigo 257.º do CPP.

Nos termos do disposto no artigo 202.º, n.º 1, al. b) do CPP, é admissível a aplicação da medida de coação de prisão preventiva quando houver fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda a criminalidade violenta, nos termos do artigo 1.º, n.º 1, al. j), do CPP, na qual se integra o crime de violência doméstica.

Para além disso, no regime jurídico de prevenção das vítimas de violência doméstica, aprovado pela Lei nº 112/2009, de 16/9, prevê-se expressamente no n.º 2 do artigo 30.º que “para além do previsto no nº1 do artigo 257º do Código de Processo Penal, a detenção fora de flagrante delito pelo crime previsto no número anterior pode ser efectuada por mandado do juiz ou do Ministério Público, se houver perigo de continuação da actividade criminosa ou se tal se mostrar imprescindível à proteção da vítima”, situação que se aplica no presente momento aos autos.

Senão vejamos.

Descendo ao caso concreto, verifica-se que a vítima viveu momentos de absoluto terror com arguido e ainda vive com este.

O seu comportamento demonstra um sério e concreto perigo para a vida da vítima.

Assim sendo, considerando todo o exposto é imprescindível que o arguido seja detido fora de flagrante delito, e, após, apresentado, no prazo legal, para sujeição a primeiro interrogatório judicial de arguido detido.

Importa, por isso, e também em cumprimento do determinado na Diretiva da Procuradoria Geral da República n.º 1/2021, designadamente ponto I.– C), proceder à detenção do arguido, para apresentação a primeiro interrogatório judicial e aplicação de medida de coação, necessariamente mais gravosa do que o Termo de Identidade e Residência, e que, após interrogatório, se repute necessária, adequada e proporcional, em conformidade com o disposto nos artigos 141.º, n.º 1, 254.º, n.º 1, al. a), 257.º, n.º 1, alíneas b) e c), com referência ao art.º 204.º, al. c) do CPP e art.º 30.º, n.º 2 da Lei n.º 112/2009, de 16.09.

Face ao exposto, nos termos dos artigos 141.º, n.º 1, 254.º, n.º 1, al. a) e 257.º, n.º 1, alíneas b) e c), com referência ao art.º 204.º, al. c), todos do Código de Processo Penal e ainda do art.º 30.º, n.º 2 da Lei n.º 112/2009, de 16.09, determino a detenção fora de flagrante delito de: AA.

Face ao exposto, passe os competentes mandados, com observância das formalidades legais previstas no art.º 258.º, n.º 1, do CPP.

Vindo os mandados cumpridos, apresente os autos, juntamente com o detido, ao Mmo. Juiz com funções de instrução criminal, a fim do arguido ser sujeito a medida de coação mais gravosa do que o termo de identidade e residência, por motivos que oportunamente indicarei”.

> A detenção foi concretizada pelo OPC respectivo a 26 de Setembro de 2023, data em que o mesmo foi apresentado e sujeito ao 1º interrogatório judicial.


***

4.1 Da nulidade da detenção

Sufraga o arguido AA que a sua detenção se mostra ferida de nulidade porquanto o M.mo JIC não enuncia os factos indiciários que a justifiquem, tendo violado o disposto nos arts. 257º, n.º 1, al. b), 204º, 194º, n.º 6 e 118º, do Cód. Proc. Penal. 

Vejamos, pois, antes de mais, o quadro legal invocado.

A detenção pode ser realizada fora de flagrante delito mediante mandado do juiz ou, nos casos em que for admissível prisão preventiva, do Ministério Público quando, entre o mais, se verificar, em concreto, fuga ou perigo de fuga, perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas, tudo como decorre da previsão das disposições conjugadas dos arts. 257º, n.º 1, al. b) e 204º, als. a) a c), do Cód. Proc. Penal.

Por seu turno, o art. 194º, n.º 6, do mesmo diploma legal, é alheio à questão da detenção, antes se reportando à obrigatoriedade de fundamentação do despacho que aplicar qualquer medida de coacção, com especificação dos moldes e âmbito desse dever, cominando com a nulidade a omissão de qualquer deles.

É consabido que a detenção, de harmonia com a previsão do art. 254º, n.º 1, é efectuada:

a) Para, no prazo máximo de quarenta e oito horas, o detido ser apresentado a julgamento sob forma sumária ou ser presente ao juiz competente para primeiro interrogatório judicial ou para aplicação ou execução de uma medida de coacção; ou

b) Para assegurar a presença imediata ou, não sendo possível, no mais curto prazo, mas sem nunca exceder vinte e quatro horas, do detido perante a autoridade judiciária em acto processual.

E, a concretização da detenção, encontra tutela no art. 258º, do Cód. Proc. Penal que dispõe o seguinte:

“1 - Os mandados de detenção são passados em triplicado e contêm, sob pena de nulidade:

a) A data da emissão e a assinatura da autoridade judiciária ou de polícia criminal competentes;

b) A identificação da pessoa a deter; e

c) A indicação do facto que motivou a detenção e das circunstâncias que legalmente a fundamentam.

2 - Em caso de urgência e de perigo na demora é admissível a requisição da detenção por qualquer meio de telecomunicação, seguindo-se-lhe imediatamente confirmação por mandado, nos termos do número anterior.

3 - Ao detido é exibido o mandado de detenção e entregue uma das cópias. No caso do número anterior, é-lhe exibida a ordem de detenção donde conste a requisição, a indicação da autoridade judiciária ou de polícia criminal que a fez e os demais requisitos referidos no n.º 1 e entregue a respectiva cópia”.

Consequentemente, a nulidade opera no âmbito deste preceito legal escapando à disciplina do invocado art. 194º, n.º 6, sendo certo que a invocação do recorrente apenas poderia encontrar suporte na previsão do n.º 1, al. c), do art. 258º (omissão da indicação do facto que motivou a detenção e das circunstâncias que legalmente a fundamentam).

Ora, consoante se apura dos trâmites processuais anteriormente descritos o arguido foi detido para primeiro interrogatório judicial e aplicação de medidas de coacção para além do TIR a que já se mostrava sujeito, mediante mandado de detenção emitido pelo Ministério Público, no âmbito do qual lhe foram comunicadas as razões de facto e de direito que serviam de sustento à detenção.

Consequentemente, não estando em causa qualquer das situações previstas no art. 261º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, tanto assim que o tribunal a quo agravou o estatuto processual do arguido impondo-lhe medidas de coacção mais gravosas que o TIR que já prestara, e tendo a detenção sido ordenada e justificada por autoridade judiciária competente para o efeito (MP), não carecia o M.mo JIC de especificar a factualidade indiciária já conhecida do arguido para validar a detenção deste.

Mas ainda que assim não fosse, o também invocado art. 118.º, do Cód. Proc. Penal, submete as patologias processuais ao princípio da legalidade, consagrando nos seus n.ºs 1 e 2, que “… a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei” e que “nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular”.

Assim, in casu, nunca estaríamos no domínio de qualquer nulidade insuprível já que, além de não integrar o elenco das hipóteses previstas no art. 119º, do Cód. Proc. Penal, inexiste qualquer outro preceito que lhe atribua tal natureza.
Consequentemente, a apreciação de eventual nulidade ou irregularidade processual atinente à detenção estaria dependente da arguição atempada, perante a entidade competente, ou seja antes de terminar o acto no âmbito do qual foi estabelecida a respectiva validade, nos termos e por força do disposto no art. 120º, n.ºs 1, 2 e 3, al. a), do Cód. Proc. Penal, o que não aconteceu.
Neste conspecto, ainda que existisse a nulidade invocada - e reafirma-se não é esse o caso -, há muito que se encontraria sanada, circunstância que sempre obstaria ao seu conhecimento e declaração seja pelo tribunal a quo seja por este tribunal ad quem.


***

4.2 Das medidas de coacção

Argumenta o arguido AA, aqui recorrente, que as medidas de coacção que lhe foram aplicadas são desnecessárias inexistindo não só quaisquer circunstâncias supervenientes que as justifiquem, como qualquer dos perigos estatuídos no art. 204º, do Cód. Proc. Penal.

Para tanto, chama à colação desavenças familiares com algumas das testemunhas inquiridas (filha e genro), contra quem terá instaurado processo criminal, a sua colaboração com a justiça e bem assim o seu direito a ter uma habitação.

Vejamos.

As medidas de coacção, enquanto meios processuais de limitação/privação da liberdade, actividade e direitos pessoais, têm por função acautelar a eficácia do procedimento penal, quer no que respeita ao seu desenvolvimento, quer quanto à execução das decisões condenatórias[3].

Por outro lado, sendo a regra fundamental a da liberdade, constitucionalmente e legalmente tutelada – arts. 27º, da Const. Rep. Portuguesa e 191º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal[4] - a aplicação das medidas de coacção só é admissível nos estritos termos previamente estatuídos na lei.

Nesta conformidade, foram não só submetidas ao princípio da legalidade – apenas podem ser impostas as medidas de coacção previstas na lei –, mas também aos da necessidade, da adequação e da proporcionalidade [v. arts. 191.º e 193.º, do Cód. Proc. Penal].

Consequentemente, as medidas de coacção a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.

Vejamos o caso concreto.


***

4.2.1 Da aplicação das medidas de afastamento e proibição de contactos

É consabido que, qualquer medida de coacção, com excepção do termo de identidade e residência, apenas pode ser aplicada se em concreto ocorrer alguma das seguintes hipóteses:

i) Fuga ou perigo de fuga;

ii) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou

iii) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e tranquilidade públicas – v. art. 204º, als. a), b) e c).

Quer isto dizer que, se na presente hipótese, não se verificasse qualquer destes perigos, como afirma o recorrente, nem sequer se colocaria a questão da aplicação de qualquer outra medida de coacção por ser apenas admissível o TIR já prestado.

Todavia, não é esse o caso já que o perigo de continuação da actividade criminosa, único invocado pelo tribunal a quo, é real e está bem documentado no aditamento ao auto de notícia e meios de prova que o acompanhavam, aí se dando conta da reiteração de insultos e ameaças à vida da ofendida e aos bens patrimoniais de ambos em período temporal posterior ao da imposição do TIR.

Ora, de harmonia com a previsão do art. 200º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, “se houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos, o juiz pode impor ao arguido, cumulativa ou separadamente, as obrigações de:

a) Não permanecer, ou não permanecer sem autorização, na área de uma determinada povoação, freguesia ou concelho ou na residência onde o crime tenha sido cometido ou onde habitem os ofendidos, seus familiares ou outras pessoas sobre as quais possam ser cometidos novos crimes;

(…)

d) Não contactar, por qualquer meio, com determinadas pessoas ou não frequentar certos lugares ou certos meios

(…)”.

A este propósito impõe-se ainda considerar a Lei n.º 112/2009, de 16/09, que instituiu o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à protecção e assistência às suas vítimas, em cujo art. 31º foram consagradas medidas de coacção urgentes, cumuláveis com as do Código de Processo Penal, entre as quais as de:

c) Não permanecer nem se aproximar da residência onde o crime tenha sido cometido, onde habite a vítima ou que seja casa de morada da família, impondo ao arguido a obrigação de a abandonar;

d) Não contactar com a vítima, com determinadas pessoas ou frequentar certos lugares ou certos meios, bem como não contactar, aproximar-se ou visitar animais de companhia da vítima ou da família;

Finalmente, por força do disposto no art. 193º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, as medidas de coacção a aplicar em concreto devem ser necessárias, adequadas e proporcionais às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas [princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade já anteriormente referenciados].

Deve notar-se que o princípio da proporcionalidade não impõe a antecipação da concreta pena que, previsivelmente, virá a ser aplicada no julgamento, em caso de condenação, tendo antes, a simetria, que ser aferida por referência à globalidade dos elementos objectivos disponíveis, entre os quais a gravidade da conduta indiciada e a personalidade do agente expressa nos factos.

Ora, o aqui recorrente estriba a sua pretensão em factos que não resultam dos autos nem foram submetidos à apreciação do tribunal a quo e em matéria irrelevante nesta sede como seja a sua conduta processual, a sua inserção social e ausência de antecedentes criminais já que, como é óbvio, nenhuma dessas circunstâncias obviou à reiteração dos actos desviantes.

Quanto ao mais limitou-se o recorrente a considerações jurídicas genéricas sobre o assunto nada adiantando que possa ser considerado para contestar o decidido.

Com efeito, estando em causa prática criminosa ocorrida no domicílio comum da vítima e agressor, em contexto de reiteração perpetuada no tempo sem qualquer elemento que inculque uma alteração do percurso de vida assumido mesmo depois de constituído arguido, ouvido pelo Ministério Público e submetido a TIR, antes se verificando que a gravidade e intensidade dos comportamentos se vem acentuando, não se vislumbra que outra ou outras medidas poderiam acautelar o perigo de continuação da actividade criminosa caso ambos permanecessem na habitação, justificando-se também, por isso, a imposição da fiscalização das medidas de coacção por meios técnicos de controlo à distância, único meio de facultar real protecção – v. art. 35º, n.º 1, da Lei n.º 112/2009, de 16/09, que instituiu o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à protecção e assistência a suas vítimas.

A gravidade e natureza da infracção em causa e a personalidade do arguido, espelhada nos factos, justificam cabalmente a opção do tribunal a quo, sendo certo que o recorrente nunca indicou qualquer facto concreto susceptível de a contrariar.

Mais acresce que, na ponderação do direito à habitação do aqui recorrente e do direito à integridade física, vida e sossego da vítima tem que prevalecer este último, como, aliás, resulta do já citado art. 31º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 112/2009.

Neste conspecto, é inegável que as medidas impostas são as necessárias e adequadas a realizar os objectivos que com elas se pretendem atingir, sendo forçosa a conclusão de que o âmbito do TIR e das medidas coactivas menos gravosas previstas na lei não se mostra adequado ou suficiente ao afastamento do perigo em causa, tendo que improceder a pretensão formulada pelo aqui recorrente.

Em consequência e pelas razões apontadas, no contexto enunciado, único susceptível de apreciação, nenhuma censura merecem as medidas de coacção aplicadas, sendo proporcionais à gravidade da infracção, necessárias à prevenção do concreto perigo verificado e adequadas à personalidade evidenciada nos actos perpetrados e condições pessoais tanto do arguido/recorrente como da vítima.


*

Mercê de ter decaído, o arguido AA deverá suportar as inerentes custas, tendo-se como adequado, em virtude do correspondente labor exigido, fixar em três UC a taxa de justiça - cfr. arts. 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal, e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III a este Anexa.

***

III - DISPOSITIVO


Em face do exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto negar provimento ao recurso do arguido AA e manter nos precisos termos a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente com 3 (três) UC de taxa de justiça - art. 513º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal.

Notifique.


*
[Elaborado e revisto pela relatora – art. 94º, n.º 2, do CPP[5]]
Porto, 13 de Março de 2024
Maria Deolinda Dionísio
Maria dos Prazeres Silva
José António Rodrigues da Cunha
_________________
[1] Versão final, apresentada na sequência do convite previsto no art. 417º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal.
[2] Uma vez que o recurso subiu em separado e o respectivo apenso físico e electrónico não se mostrava instruído com as peças necessárias à decisão, já que nem sequer havia qualquer informação sobre as razões e circunstâncias da detenção do arguido para interrogatório judicial, socorreu-se este tribunal ad quem da plataforma Citius para aceder ao processo principal e obter os elementos em falta, a fim de obviar a outras delongas.
[3] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. II, pág. 254.
[4] Consagrou-se no n.º 1 deste preceito: “A liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coacção e de garantia patrimonial previstas na lei”.
[5] O texto do presente acórdão não observa as regras do acordo ortográfico – excepto nas transcrições que mantêm a grafia do original – por opção pessoal da relatora.