PROCESSO PENAL
PEDIDO CIVIL
PRINCÍPIO DA ADESÃO
FUNDAMENTOS
EXCEPÇÕES
Sumário

I – O princípio da adesão da ação civil à ação penal consagrado no artigo 71º do Código de Processo Penal determina que o pedido de indemnização civil que apresente como fonte da obrigação de indemnização a responsabilidade civil decorrente da prática de um crime deve ser deduzido no processo penal.
II – Esta regra assenta em três fundamentos, a saber, no princípio da economia processual, na uniformização de julgados e na maior probabilidade de celeridade e eficácia do reconhecimento do direito de indemnização do lesado, por confronto ao ritualismo do processo civil.
III – A coexistência das duas ações, por força da identidade da realidade histórica apreciada, não tem virtualidade para provocar a fusão dos seus objetos, que se mantêm autónomos, nem para obstar, ou sequer questionar, as finalidades do processo penal, com particular destaque, dentro delas, a descoberta da verdade material e o restabelecimento da paz jurídica comunitária e do arguido, que exigem, como seu pressuposto essencial, que o tempo de duração do processo seja tolerável, razoável, suficiente para a sua necessária maturação e cognição.
IV – E isto porque o decurso do tempo dificulta a prova relativa à representação da verdade histórica do objeto do processo, mina a confiança da comunidade no seu próprio sistema de justiça e prolonga a submissão do arguido a um estatuto desgastante e estigmatizante.
V – Esta conceção da razoabilidade do tempo do processo penal determinou exceções à regra do princípio da adesão, entre as quais. e com fundamento nas referidas finalidades do processo penal, permite que o juiz, oficiosamente ou a requerimento, remeta as partes para os tribunais civis quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil foram suscetíveis de retardarem intoleravelmente o processo penal.
VI – Esta decisão não depende da livre resolução do tribunal, caso em que seria irrecorrível, uma vez que traduz uma solução excecional em relação ao princípio/regra da adesão e terá de encontrar conforto nos referidos princípios do processo penal.

Texto Integral

Processo n.º 3140/18.6T9VNG-A.P1
Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia

Acórdão deliberado em Conferência na 2º secção criminal do Tribunal da Relação do Porto

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I. A assistente AA veio interpor recurso da decisão proferida no processo comum singular n.º 3140/18.6T9VNG no Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia, que em 13-7-2023, remeteu as partes para os tribunais civis em relação às questões de natureza estritamente civil.
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I.1. Decisão recorrida
«I. Requerimentos de 13.06.2023, 21.06.2023 e de 22.06.2023
Com interesse à presente decisão resulta dos autos o seguinte:
1. Em 14.09.2020, a assistente AA deduziu pedido de indemnização civil, no valor de 1.034.485,00€.
2. Em 07.10.2020, no despacho de recebimento da acusação foi admitido o pedido de indemnização civil e foi agendada audiência de julgamento para 02.06.2021.
3. A... Companhia de Seguros, SA apresentou contestação, na qual veio requerer:
- a remessa para os meios comuns,
- avaliação do dano corporal a realizar pelo INML,
- a realização de perícia relativa à dinâmica do sinistro (indicando assessor técnico)
4. Em 16.05.2021, foi admitida a contestação.
5. Por despacho 01.06.2021, não se determinou a remessa para os tribunais civis, porquanto um atraso, mesmo de alguns meses, não pode considerar-se intolerável. Foi admitida a realização das perícias requeridas. Foi dada sem efeito a audiência de julgamento agendada e foi agendada audiência de julgamento para 09.12.2021.
6. Por despacho de 07.12.2021, foi dada sem efeito a data agendada para a realização da audiência de julgamento, porquanto as perícias ainda não tinham sido realizadas. Foi agendada audiência de julgamento para 09.12.2021. A fim de evitar novos adiamentos, foi determinado que logo que as perícias fossem juntas aos autos, se conclua a fim de ser agendada a realização da audiência de julgamento.
7. Apenas em 30.03.2023 ficou concluída a perícia relativa à dinâmica do acidente.
8. Em 11.04.2023 (antes de decorrido o prazo de reclamação) foi agendada audiência de julgamento para 17.10.2023.
9. Em 13.06.2023, a assistente/demandante civil veio arguir a nulidade da perícia relativa à dinâmica do acidente, porquanto a demandante indica como assessor técnico (tal como decorre do despacho de 19.10.2021: Informe a entidade responsável pela realização da perícia à dinâmica do acidente, devendo o assessor ser notificado das datas agendadas para a realização das diligencias respeitantes à perícia solicitada), não tendo a entidade responsável pela realização da perícia cumprido tal decisão, em violação do disposto no artigo 155.º do Código de Processo Penal, o que determina a repetição dos atos inerentes à ordenada perícia, com afetação do ulterior tramitado, com evidência para o relatório em contraditório.
Subsidiariamente, requer a realização de nova perícia dizendo, designadamente, que a perícia assentou na análise de capacetes que não são os do sinistro aqui em apreço e a incompatibilidade das conclusões do relatório com as lesões sofridas.
Termina defendendo a alteração dos pressupostos de facto da perícia relativa à dinâmica do acidente, nos pontos evidenciados, também omisso em relação a factos e questões essenciais, eivado de contradições que se estigmatizaram nos antecedentes, sendo ostensivos graves erros e contradições no juízo pericial, a legitimar que sejam postas em causa as inerentes conclusões e a própria capacidade técnica do perito que elaborou a perícia e o relatório, tudo a legitimar e justificar a realização de uma nova perícia, que sob a égide do disposto no artigo 158º, nº 1, al. b), do CPP se requer, a realizar pelo Sr. Eng. BB, ou pela Sra. Eng.ª CC, com domicílio na Praça ..., ... ....
10. Em 21.06.2023, a A... Companhia de Seguros defendeu a manutenção do relatório e requer, atenta a complexidade da matéria em causa, a remessa para os meios comuns.
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Cumpre decidir.
A falta de notificação do consultor técnico (designado antes da realização da perícia) nos termos determinados no despacho de 19.10.2021 (designadamente, para a realização da análise computacional subjacente à reconstituição do acidente) colide com o direito da apresentante do consultor (que pode/deve propor a efetivação de determinadas diligências e formular observações e objeções, que ficam a constar do auto – artigo 155.º, nº 2, do Código de Processo Penal). A inexistência de tal notificação configura a nulidade prevista na alínea d) do n.º 2 do art. 120.º, do CPP – insuficiência do inquérito, por omissão de uma importante diligência.
A nulidade foi tempestivamente arguida, pelo que cumpre julga-la procedente e determinar a repetição dos atos, com notificação do consultor indicado para estar presente nas diligências respeitantes à perícia solicitada, repetindo-se estas e elaborando-se novo relatório (podendo/devendo o consultor técnico atuar em conformidade com o disposto no artigo 155.º, nº 2, do Código de Processo Penal).
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Todavia, não podemos deixar de ter em atenção o protelamento do julgamento penal por causa do pedido de indemnização civil. Com efeito, em 07.10.2020, foi proferido despacho de recebimento da acusação, a audiência de julgamento teve de ser dada sem efeito por duas vezes por questões relativas ao pedido de indemnização civil (a reconstituição do acidente foi requerida pela demandada civil) e apenas em 30.03.2023 (ou seja, mais de dois anos depois) ficou concluída a perícia relativa à dinâmica do acidente.
Esta perícia foi determinada por despacho de 07.12.2021 e apenas um ano e três meses depois ficou concluída.
Não se trata, pois, de um atraso de meses, mas de um atraso de anos por causa do pedido de indemnização civil.
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Nos termos do disposto no art.º 82.º, n.º 3 do Código do Processo Penal, o Tribunal pode remeter as partes para os tribunais cíveis quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil inviabilizarem uma decisão rigorosa ou forem suscetíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal.
E desde já diremos que esta é a situação que se verifica nos presentes autos.
A assistente e demandante civil requer que lhe seja atribuída uma indemnização por danos no valor de 1.034.485,00€. Por causa das diligências requeridas no âmbito do pedido de indemnização civil a audiência de julgamento já foi adiada duas vezes e seria novamente, uma vez que atento o lapso de tempo que foi necessário à realização da primeira perícia (1 ano e 3 meses) não seria a mesma compatível com a data agendada, em novembro deste ano. Acresce que perante a causa de pedir e o pedido formulados pela demandante, são várias as circunstâncias a concluir pelo envio das partes para o tribunal civil.
Acresce, ainda, que a não contestação do pedido civil deduzido em processo penal não acarreta qualquer consequência para o arguido, isto é, o arguido/demandado pode contestar o pedido e requerer os meios de prova que tiver por pertinentes, mas também pode não o fazer, sem que daí resulta a confissão da factualidade que lhe é imputada pelo demandante; a falta de contestação não tem, pois, efeito cominatório.
O retardamento intolerável do processo penal, como critério da decisão de reenvio das partes para os meios comuns, pode resultar de o atraso provocado pelo processamento conjunto da ação civil pôr em causa a efetividade da pretensão punitiva do Estado, nomeadamente por comprometer a produção de provas essenciais em tempo útil; pode igualmente resultar de o atraso comprometer significativamente o dever de o Estado assegurar, no processo penal, os direitos fundamentais das pessoas, nomeadamente do arguido, máxime o seu direito a ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa; por último, pode o atraso colocar em crise a última das finalidades primárias do processo penal, apontadas: o restabelecimento da paz jurídica comunitária ou paz social, particularmente relevante em crimes especialmente graves, designadamente quando se trate de crimes contra as pessoas – Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 22-10-2019(processo nº 416/13.2GBTMR-A.E1, disponível em www.dgsi.pt).
Os factos reportam-se a 07.06.2018. O prazo de prescrição é de 5 anos (artigo 137.º, nº 1 e artigo 118.º, nº 1, alínea c), do Código Penal). O protelar do julgamento pode acarretar, inclusive a prescrição do procedimento criminal (cfr. artigo 121.º, nº 3, do Código Penal e artigo 120.º, nº 1, alínea b), do Código Penal - estando o processo pendente após a notificação da acusação há mais de 3 anos).
Pelo exposto, ao abrigo do art.º 82.º, n.º 3 do Código do Processo Penal, para apreciação do pedido de indemnização civil formulado pela demandante AA, a fls. 477 e seguintes, remeto as partes para os meios civis.
Notifique.»
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I.2. Recurso da ASSISTENTE/DEMANDANTE CIVIL AA:
CONCLUSÕES:
1. Recorre-se do douto despacho com a referência 450344711, que, ao abrigo do disposto no artigo 82º, nº 3 do Código do Processo Penal (CPP), remeteu as partes para os meios civis, para apreciação do pedido de indemnização formulado pela ora recorrente.
2. A nossa lei processual civil consagra o chamado princípio da adesão obrigatória, previsto no artigo 71.º CPP, nos termos do qual o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei, que só comporta as exceções a previstas no artigo 72.º CPP e no nº 3 do artigo 82.º do mesmo código
3. Tal princípio radica em três pilares essenciais: na economia processual (organizando-se um só processo); uniformização de julgados; e celeridade e eficácia no reconhecimento dos direitos dos lesados à indemnização.
4. A exceção do nº 3 , do artigo 82º do CPP só ocorre quando esteja em causa o dever de o Estado assegurar, no processo penal, os direitos fundamentais das pessoas, nomeadamente do arguido, máxime o seu direito a ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa; ou colidir com a finalidade primária do processo penal do restabelecimento da paz jurídica comunitária ou paz social, particularmente relevante em crimes especialmente graves, o que in casu não se verifica.
5. Não ocorrendo circunstância que possa protelar intoleravelmente (nº 3 º do artigo 82.º CPP), isto é, de modo insuportável, inaceitável, inadmissível o andamento do processo criminal.
6. O Ministério Público, titular da ação penal, não o vislumbrou, sequer o promoveu.
7. Ao invés o próprio tribunal a quo decidiu inversamente, por douto despacho já transitado, com a referência 425454938, notificado às partes em 01.06.2021, onde se concluiu que não existir um retardamento excessivo da marcha do processo, pelo que se indeferiu o requerimento da Demandada nesse sentido, ordenando-se a realização das requeridas perícias.
8. Ali pontuam os argumentos, que se mantém válidos e atuais, louvados na suspensão dos prazos motivada pela situação pandémica, o facto considerado de a realização das perícias (ao tempo ainda não realizadas) atenta a sua relevância para a questão penal e civil, o facto de arguida não estar privada da liberdade, doutamente se considerando não ser o atraso, determinado pela sua realização intolerável e acabar por ser compensado pela desnecessidade de instauração de um novo processo.
9. Pelo que não pode ser agora que as perícias relativas à avaliação do dano corporal se encontram já realizadas e que só foi colocada em causa e perícia relativa à dinâmica do acidente, declarada nula, no primeiro segmento do despacho em crise, que, contraditoriamente, se pode considerar verificada a exceção prevista no artigo 82º, nº 3 do CPP., tendo ainda presente a essencialidade de tal meio de prova para o julgamento da questão penal.
10. Nada legitima que se comprometa um julgamento rigoroso e célere de toda a causa, na vertente penal da arguida e da responsabilidade civil transferida para a seguradora demandada, como o julgamento conjunto de toda a matéria permitirá lograr, de forma integrada, uma decisão harmoniosa, como a lei preconiza..
11. Ao invés o reenvio das partes para os tribunais civis, acarretaria para as vítimas, cujos direitos o processo penal pretende assegurar, e demais intervenientes um prejuízo acrescido, com desperdício de tempo e de meios já investidos neste processo, aumento de custos e sobretudo potencial risco de contradição de julgados.
12. Sem prescindir, mesmo que assim se não entenda, a repetição da perícia, nunca imporia que o julgamento já marcado se não possa realizar, apenas impondo a continuação da audiência para conhecer da matéria relativa ao pedido cível.
13. Donde se conclui que a douta decisão recorrida violou, por erro de interpretação e aplicação, o disposto nos artigos 72º e 82º, nº 3 do CPP, a impor revogação.
Com o que se fará
JUSTIÇA

I.3.Resposta da DEMANDADA CIVIL A... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. (sem formulação de conclusões).
«O Tribunal “a quo” remeteu as partes para os meios comuns, quanto à questão da apreciação do pedido de indemnização civil.
Ora, é deste mesmo despacho que a demandante civil vem recorrer, mas na nossa muito modesta opinião, sem qualquer razão ou fundamento.
E, isto, por vários motivos ou razões:
- Em primeiro lugar, porque o Tribunal não está vinculado ao princípio da adesão, face às exceções consagradas no artigo 72º do Código de Processo Penal.
- Em segundo lugar porque o demandante pode deduzir o pedido em separado, sem perda de garantias processuais.
- Em terceiro lugar, a remessa ordenada do processo para os meios comuns, nada afeta a economia processual, celeridade processual ou uniformização de julgados, ao contrário do que a recorrente quer fazer crer!
Na verdade, o que sabemos é que, estamos na presença de um processo complexo, com exames periciais em curso que não são compagináveis, com a decisão do processo penal, que se pretende célere.
Acresce que, o demandante civil mantém nos tribunais civis todas as garantias de defesa, podendo aí requerer todos os meios de prova, nomeadamente exames periciais para melhor defesa do seu direito, dada a complexidade do acidente em causa.
Isto é, o Tribunal pode oficiosamente ou a requerimento, remeter as partes para os tribunais civis quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil inviabilizem uma decisão rigorosa ou forem suscetíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal nos termos do disposto no artigo 82º, nº 3 do Código de Processo Penal.
Assim, é nossa convicção que, o douto despacho aqui em apreço não merece qualquer reparo ou censura, tendo o Tribunal recorrido feito uma correta interpretação e aplicação da Lei, nomeadamente, do disposto nos artigos 72º e 82º do Código de Processo Penal, quanto à questão do reenvio das partes para os meios comuns.
Aliás, quanto à questão do reenvio, cfr., entre outros;
- Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 19/05/2022, nos autos do Proc. 66/18.7SRLSB-A-L1-9, e - Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, em 25/01/2016, nos autos do Proc. 193/11.1GAVPA–A-G1.
Entendimento, esse, com o qual concordamos na sua totalidade e que, por isso, aqui, subscrevemos.
Termos em que o recurso interposto pela demandante civil/recorrente deverá improceder na sua totalidade, mantendo-se o despacho proferido, assim se fazendo,
A sã e já acostumada
JUSTIÇA!

I.4. O Ministério Público em Primeira Instância não apresentou resposta e nesta Relação o Sr. Procurador Geral Adjunto entendeu ser questão meramente civil.
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II. Objeto do recurso.
A única questão que se coloca é a da verificação, no caso concreto, dos fundamentos do mecanismo de reenvio para os tribunais civis da apreciação do pedido de indemnização civil aderente ao processo penal.
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CUMPRE APRECIAR E DECIDIR
O princípio da adesão da ação civil à ação penal consagrado no artigo 71º do Código de Processo Penal determina que o pedido de indemnização civil que apresente como fonte da obrigação de indemnização a responsabilidade civil decorrente da prática de um crime deve ser deduzido no processo penal.
Esta regra assenta em três fundamentos.
O primeiro reside no princípio da economia processual: num único processo e pelo mesmo julgador se apreciará a responsabilidade criminal e civil do facto, único, gerador do dano (não dependendo a apreciação da segunda da procedência da primeira – artigo 377º, nº1, do Código de Processo Penal).
O segundo visa a uniformização de julgados: permite uma única apreciação da representação da realidade histórica submetida a julgamento.
O terceiro pode reconduzir-se à maior probabilidade de celeridade e eficácia do reconhecimento do direito de indemnização do lesado (por confronto ao ritualismo do processo civil – prazos, preclusões e ónus de alegação e de prova).

Note-se, porém, que a coexistência das duas ações (por força da identidade da realidade histórica apreciada) não tem virtualidade para provocar a fusão dos seus objetos (que se mantêm autónomos) nem para obstar (ou sequer questionar) as finalidades do processo penal (com particular destaque, dentro delas, a descoberta da verdade material e o restabelecimento da paz jurídica comunitária e do arguido) que exigem, como seu pressuposto essencial, que o tempo de duração do processo seja tolerável, razoável, suficiente para a sua necessária maturação e cognição. Dito de outra forma: o decurso do tempo dificulta a prova relativa à representação da verdade histórica do objeto do processo, mina a confiança da comunidade no seu próprio sistema de justiça e prolonga a submissão do arguido a um estatuto desgastante e estigmatizante.
Esta conceção (da razoabilidade do tempo do processo penal) determinou exceções à regra do princípio da adesão.
Uma primeira foi consagrada no artigo 72º, nº1, alínea a), do Código de Processo Penal, que afastou a obrigatoriedade de adesão da ação civil, permitindo a sua dedução em separado, quando o processo penal não tiver conduzido à acusação dentro de 8 meses a contar da notícia do crime ou estiver sem andamento durante esse lapso de tempo. Compreensivelmente, esta exceção, destinada a proteger o interesse do lesado na apreciação célere e eficaz do seu direito de indemnização, constitui uma faculdade só pelo mesmo exercível.
A segunda, com fundamento nas referidas finalidades do processo penal, permite que o juiz, oficiosamente ou a requerimento, remeta as partes para os tribunais civis quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil foram suscetíveis de retardarem intoleravelmente o processo penal – artigo 82º, nº3, do Código de Processo Penal (– foi esta a razão invocada no despacho sob recurso).
Esta decisão não depende da livre resolução do tribunal (caso em que seria irrecorrível, como defende Henriques Gaspar, CPP Comentado, 2012, pág.255) uma vez que traduz uma solução excecional em relação ao princípio (regra) da adesão e terá de encontrar conforto nos referidos princípios do processo penal.

No caso em apreço, o Tribunal a quo fundamentou a sua decisão na suscetibilidade de o pedido de indemnização civil, com a repetição da perícia, atrasar de forma intolerável o andamento do processo penal.
Verifica-se, assim, que a única questão que obsta ao início do julgamento criminal está relacionada com o pedido de indemnização civil, a respetiva perícia realizada nesse âmbito e a agora invocada e declarada NULIDADE DA PERÍCIA realizada com a consequente repetição.

Quando o legislador, no artigo 82.° nº3, do CPP, prevê a possibilidade de reenvio das partes civis para os tribunais civis com fundamento na suscetibilidade de o pedido de indemnização civil gerar incidentes que retardem intoleravelmente o andamento do processo penal, não está a limitar esta possibilidade de reenvio às situações em que este atraso possa ser imputável a qualquer uma das partes, exigindo apenas que esse atraso esteja relacionado com as questões do pedido de indemnização civil.

O juiz só poderá remeter as partes de pedido cível enxertado no processo penal para os tribunais cíveis, nos termos previstos no artigo 82.º, § 3.º CPP, se razões poderosas do julgamento da causa cível o impuserem ou verificando-se circunstância que possa retardar intoleravelmente o julgamento da causa penal.
Na ponderação a efetuar o juiz não poderá deixar de equacionar os prejuízos que de tal remessa poderão advir para as vítimas do crime, nomeadamente o desperdício de tempo e de meios já investidos no processo penal, o aumento de custos e o potencial risco de contradição de julgados.” Cfr. Decisão Sumária de 17-11-2021; TR Évora; Relator MOREIRA DAS NEVES In https://jurisprudencia.pt/acordao/203900/
– negrito e sublinhado nossos.

Equacionemos, pois, as circunstâncias do caso concreto.
Não podemos olvidar que os presentes autos estiveram suspensos por circunstância relacionada com a situação pandémica (facto considerado no despacho que indeferiu a remessa das partes para os meios comuns requerida pela aqui Recorrida Companhia de Seguros A...).

A perícia declarada nula e a ter que ser repetida, nos termos da parte inicial do despacho recorrido, é relativa à DINÂMICA DO ACIDENTE (a perícia quanto ao dano corporal encontra-se já realizada e junta aos autos principais em 30-11-2022 com a referência 34036736).
Tal perícia não releva apenas para efeitos de reparação civil do dano (cfr. artigo 2º, nº2, do Decreto-Lei nº 352/2007, de 23 de Outubro).
De salientar, novamente, o facto de a realização da perícia relativa à DINÂMICA DO ACIDENTE, ter suma relevância para a questão penal e civil (facto também invocado no já aludido despacho que indeferiu a requerida remessa para os meios comuns) a que acresce o facto de a arguida não estar privada da liberdade.
Também não se encontram perto de se extinguir os prazos de prescrição (cfr. art. 122º do CPP).

Todos estes factos nos levam à conclusão não ser o atraso, determinado pela realização da perícia à dinâmica do acidente e agora repetição, intolerável e acabar por ser compensado pela desnecessidade de instauração de um novo processo.

Julgamos, pelo exposto, poder dizer que as questões, que a Recorrente considera encontrarem-se ainda por responder e razão pela qual a PERÍCIA À DINÂMICA DO ACIDENTE foi ordenada, são determinantes para apreciar também a ilicitude dos atos praticados pela arguida, o grau da sua culpa, a medida da pena.

Apesar de no que concerne à prova pericial já produzida, poder a mesma ser objeto de invocação no processo civil – artigo 421º, nº1, do Código de Processo Civil -, entendemos que, no caso concreto, remeter as partes para os meios civis seria equacionar um real desperdício de meios.
Quanto ao tempo decorrido desde a prática dos factos e o claro retardamento que ocorrerá ainda, por repetição da perícia à dinâmica do acidente, atenta a sua importância para a parte criminal dos presentes autos não configura, por isso, um retardamento que atinge o limite de intolerabilidade por comprometimento das supras referidas finalidades próprias (a descoberta da verdade material através da sua representação histórica e o restabelecimento da paz jurídica da arguida e da comunidade) Cfr. neste sentido – apesar de confirmar decisão que remeteu para os meios comuns estando em causa perícia referente à avaliação do dano corporal em processo civil,- Ac. TR Porto, de 31-1-2018; Relator João Pedro Nunes Maldonado In https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/-/12C3020566CDB0A38025823A0054B6F1
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Sendo certo que todo o ritualismo do processo civil colocará as vítimas em situação muito mais penosa pela demora que enfrentarão.

Ou seja, a conclusão da existência de retardamento na decisão a proferir não sustenta suficientemente – neste caso concreto - a opção pela exceção que a remessa das partes para os tribunais civis deve constituir.
Desde logo, porque a lei exige que o atraso no processo penal seja intolerável, isto é, insuportável, inadmissível, inaceitável. E um atraso, mesmo que de mais um ano (tempo máximo que poderá levar a repetição da perícia), não estando a arguida privada de liberdade, de modo nenhum se pode considerar intolerável, tanto mais quanto tal atraso acaba por ser compensado com a desnecessidade de se intentar um novo processo e a perícia poder ser de grande importância para a parte criminal do presente processo.
Sendo certo que nada impede que a audiência de julgamento se inicie, oportunamente, e a sua finalização seja agendada para quando o relatório referente à perícia sobre a DINÂMICA DO ACIDENTE se encontrar junto aos autos.
Assim, no confronto entre as vantagens e desvantagens decorrentes da decisão recorrida, não há dúvida de que estas superam aquelas, tanto mais quanto a demandante/assistente, como se percebe e é natural, valoriza a circunstância de resolver definitivamente e num único processo a questão que envolve o falecimento da DD, certamente, emocionalmente penosa.
Não há, pois, razão preponderante no caso concreto, para remeter para o tribunal civil a discussão do pedido civil formulado no processo criminal, devendo o julgamento a realizar proceder também à apreciação do pedido civil.
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III. – DECISÃO:
Pelo exposto, concede-se provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida e determina-se que o julgamento a realizar no processo principal abranja a apreciação do pedido de indemnização civil formulado nos autos.
Sem custas.
Notifique.
Informe, desde já, o processo principal.

Porto, 13 de Março de 2024
Paula Pires
Carla Oliveira
Raúl Cordeiro