COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
TRIBUNAL CÍVEL
UNIÃO DE FACTO
NACIONALIDADE
Sumário

- Deverá entender-se que o nº 3, do art.º 3º, da LEI DA NACIONALIDADE, em sede de atribuição de competência material para a propositura de específica acção com vista à obtenção do reconhecimento judicial de situação de união de facto, consubstancia para todos os efeitos, uma lei especial;
- A LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO (maxime a alínea g), do nº 1, do art.º 122º) não é aquela que releva em sede de aferição da competência material para a propositura de acção, para efeitos de aquisição da nacionalidade portuguesa por cidadão estrangeiro.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
           
I. Relatório

F e C intentaram acção declarativa, que segue os termos do processo comum, contra ESTADO PORTUGUÊS, representado pelo Ministério Público.

Para tanto, alegaram os autores:

1.º
Os Autores mantêm entre si a condição de conviventes de facto, análoga à dos cônjuges desde Maio de 2001.
2.º
Os Autores iniciaram a sua união de facto na República de Angola, país de naturalidade e de nacionalidade de ambos, cfr. Documento n.º 1 e n.º 2.
3.º
Os Autores residiram na Rua …, município de Viana, província de Luanda, República de Angola até o final do ano de 2018.
4.º
Os Autores têm 4 (quatro) filhos em comum, cfr. Documentos n.º 3, 4, 5 e 6.
5.º
Os Autores nunca formalizaram a sua união de facto ao longo desses 21 anos.
6.º
Tal facto, nunca impediu os Autores de nutrirem uma relação familiar, social, afetiva e sexual, e por este motivo, as decisões dos Autores, sempre foram e são tomadas em acordo, no supremo interesse da família.
7.º
Neste sentido, no final do ano de 2018 e por força da situação vivida na República de Angola (país de residência e de morada de família naquela altura), tomaram uma decisão conjunta, e de acordo com o supremo interesse da família.
8.º
Os Autores decidiram mudar a sua residência para Portugal (país de residência e de morada de família atualmente) e nesta ocasião, mais precisamente, no dia 26 de Setembro de 2018 compraram, em conjunto (bem-comum dos Autores) a moradia sita na Praceta … Corroios, República de Portugal, que é a morada de família, cfr. Documento n.º 7.
9.º
Tal decisão decorreu do facto do Autor trabalhar de forma rotativa (28 dias offshore e os restantes a descansar) em regime offshore de rotação e a Autora e os filhos menores de ambos serem titulares de nacionalidade portuguesa, ao qual acresce o facto de este país oferecer melhor condições de segurança e por isso mesmo, foi escolhido como nova morada de família.
10.º
Uma vez que os Autores sempre enxergaram a sua relação como sendo uma relação conjugal, essa mudança não ia alterar a rotina do casal, cfr. Documento n.º 8, 9 e 10.
11.º
Mesmo migrando para um novo país, a relação dos Autores não iria mudar em termos práticos, uma vez que o Autor sempre que saísse do offshore, se deslocaria para junto da família em Portugal, por um período de 28 dias.
12.º
Prova disso é que o Autor, detentor apenas de nacionalidade angolana, se encontra legalizado em território português, ao abrigo do artigo 10.º da Diretiva 2004/38/CE, sendo portador de “cartão de residência de membro da família de um cidadão da União”, título que lhe foi concedido ao abrigo da união de facto com a Autora., cfr. Documento n.º 11.
13.º
Os Autores são sempre vistos no seu dia-a-dia, eventos sociais e nas mais diversas ocasiões, como sendo “marido” e “mulher”, quer em território português, quer em território angolano.
14.º.
Os Autores partilham refeições e contribuem ambos para o sustento do lar e educação dos filhos, partilhando a relação afetuosa e marital publicamente, como provam as fotografias datadas que ora se juntam, cfr. Documento n.º 12, 13, 14, 15 e 16.
15.º
Os Autores são titulares de contas conjuntas e encaram o património do casal como sendo bem comum, cfr. Documento n.º 17.
16.º
Os Autores falam a língua portuguesa, por ser a língua nativa de ambos, não havendo assim qualquer dificuldade de comunicação,
17.º
O Autor não possui antecedentes de regularização anterior em território nacional.
18.º
Os Autores não têm nenhum impedimento à atribuição de direitos ou benefícios, em vida ou por morte, fundados na união de facto, nomeadamente:
19.º
São ambos de idade superior a 18 anos à data do reconhecimento da união de facto;
20.º
Nenhum dos Autores sofre Demência notória;
21.º
Nenhum dos Autores tem um casamento não dissolvido;
22.º
Os Autores não têm qualquer tipo de parentesco na linha recta ou no 2.º grau da linha colateral ou afinidade na linha recta;
23.º
Nenhum dos Autores tem condenação anterior de uma das pessoas como autor ou cúmplice por homicídio doloso ainda que não consumado contra o cônjuge do outro.

Peticionaram os autores: Termos em que deve a presente ação ser julgada procedente Por provada e com o reconhecimento da união de facto nos termos e para os fins da Lei n.º 7/2001 e da Lei n.º 37/81., em consequência ser reconhecido judicialmente a situação de união de facto exigido pelo artigo 3.º, n.º 3, da Lei n.º 37/81 e pelo artigo 14.º, n.º 2, do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, Decreto-Lei nº 237-A/2006.

Por sentença de 24/05/2023, foi decidido:

Pelo exposto, declara-se a incompetência material deste Tribunal para conhecer da ação, nos termos do artigo 96.º e ss. do Código de Processo Civil, assim se absolvendo o réu da instância.

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Inconformado, o Ministério Público, em representação do Estado, interpôs recurso de apelação para esta Relação e formulou nas suas alegações as seguintes conclusões:

1- O presente recurso incide sobre o despacho proferido em 24/05/2023, através do qual o Tribunal a quo se declarou incompetente em razão da matéria para conhecer da presente acção declarativa de simples apreciação positiva de reconhecimento de união de facto entre os Autores C e F, este último de nacionalidade angolana, por entender que o Tribunal materialmente competente para tramitar o presente processo é o Tribunal de Família e Menores, ao abrigo do disposto no artigo 122º, n.º2, al. g) da Lei n.º 62/2013 (LOSJ).
2- Todavia, não lhe assiste razão.
3- No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/06/2021, em que é relator o Ex.mo Senhor Juiz Conselheiro João Cura Mariano, disponível em www.dgsi.pt, decidiu-se que são os tribunais civis os materialmente competentes para o julgamento das acções de reconhecimento judicial de situação de união de facto entre duas pessoas com vista à aquisição de nacionalidade portuguesa por parte do cidadão estrangeiro.
4- Concorda-se, na íntegra, com o decidido no mencionado Acórdão do S.T.J. e com os fundamentos aí invocados.
5- No mencionado Acórdão decidiu o S.T.J. que a competência material para o julgamento das acções de reconhecimento judicial da união de facto, com vista à aquisição da nacionalidade portuguesa é dos tribunais cíveis, e não dos tribunais de família e menores, face à atribuição de competência específica constante do artigo 3º, n.º 3 da Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17/04 (Lei da Nacionalidade).
6- Ao atribuir-se especificamente, na Lei da Nacionalidade, a competência material aos tribunais cíveis para conhecer este tipo de acções, norma esta que se manteve com a entrada em vigor da Lei Orgânica do Sistema Judiciário, impõe-se concluir que a norma constante do art.º 3.º nº 3 da Lei da Nacionalidade é norma especial relativamente às regras gerais de distribuição de competência dos tribunais judiciais.
7- Dessa forma, não pode considerar-se que tal norma da Lei da Nacionalidade, tenha sido tacitamente revogada pela regra geral do art.º 122 n.º 1 al g) constante da LOSJ, já que a norma especial prevalece sobre a norma geral.
8- Ao considerar-se materialmente incompetente, em razão da matéria, para conhecer da presente acção, o despacho de que ora se recorre padece de erro de julgamento, por parte do Tribunal a quo, no que concerne à norma aplicável no presente caso, uma vez que não aplicou o artigo 3º, n.º3 da Lei da Nacionalidade, norma essa especial face à norma constante do artigo 122º, n.º1, al. g) da LOSJ, tendo sido feita, pelo Tribunal a quo, uma errada interpretação e aplicação desta última norma.
9- O Tribunal a quo violou as normas ínsitas nos artigos 3º, n.º 3 da Lei da Nacionalidade, e 122º, n.º1, al. g) da Lei de Organização do Sistema Judiciário.
10- O douto despacho de que ora se recorre não deverá ser mantido, devendo ser revogado, ordenando-se o prosseguimento dos presentes autos.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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II. Objecto e delimitação do recurso

Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a incorrecta fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito aplicável). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara na 1ª instância), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece, sob pena de indeferimento do recurso.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, é a seguinte a questão a resolver por este Tribunal: aferir a competência material dos Juízos Cíveis para o reconhecimento de união de facto.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:
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III. Os factos

Considerando que a questão a decidir se afigura meramente processual, quanto aos factos a tomar em conta na decisão deste recurso são os já mencionados no relatório constante de supra.
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IV. O mérito do recurso

Da competência material dos Juízos Cíveis para o reconhecimento de união de facto

A questão a apreciar no presente recurso, como resulta do confronto do conteúdo da decisão recorrida com as conclusões das alegações, é a de saber, se à luz da actual Lei de Organização Judiciária (L 62/2013 de 26/8, dita LOSJ), o tribunal materialmente competente para o julgamento das ações de apreciação positiva de reconhecimento de uma situação de facto com vista à aquisição da nacionalidade portuguesa é dos tribunais cíveis ou dos tribunais de família.
A questão tem dividido a jurisprudência: parte dela, entendendo que essa competência pertence aos tribunais cíveis, na medida em que essa atribuição decorre do art.º 3º/3 da Lei da Nacionalidade, norma essa que se tem de entender como especial, e, que, por isso, há de ter-se como prevalecente sobre a geral da al g) do nº 1 do art.º122º da LOSJ, radicando este entendimento no Ac STJ 17/6/2021, em cujo sumário se refere que, «Face à atribuição específica de competência constante do art.º3º/3 da Lei da Nacionalidade, os tribunais de família e menores não são competentes para julgar as acções de reconhecimento judicial da situação de união de facto, com vista à obtenção da nacionalidade portuguesa»; outra parte da jurisprudência, sustenta a competência material dos tribunais de família, excluindo que a norma atrás referida constitua uma norma especial, e evidenciando que para efeitos da aquisição da nacionalidade o casamento e a união de facto estão equiparados em termos de efeitos, devendo considerar-se que a acção em causa nos autos se constitui, sociologicamente e por imposição constitucional do principio da igualdade, como uma das «outras acções relativas ao estado civil das pessoas e família», a que se reporta a referida al g) do nº 1 do art.º122º da LOSJ, entendendo-se que essa designação abarca as condições ou qualidades pessoais que têm como fonte as relações jurídicas familiares, onde se devem incluir as que resultam da união de facto.
Pela nossa parte, entendemos que se deverá entender que o nº 3, do art.º 3º, da LEI DA NACIONALIDADE consubstancia – em sede de atribuição de competência material para a propositura de especifica acção – para todos os efeitos, uma lei especial.
A LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO (maxime a alínea g),do nº 1, do art.º 122º ) não é aquela que releva em sede de aferição da competência material para a propositura de acção com vista à obtenção do reconhecimento judicial de situação de união de facto – para efeitos de aquisição da nacionalidade portuguesa por cidadão estrangeiro, o que acabou de se referir, justifica-se também porque o legislador, no âmbito da LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO , enquanto Lei geral, não manifestou a sua intenção revogatória de uma forma inequívoca ( cfr. art.º 7º, nº 3, do CC ).
Revemo-nos integralmente nas considerações expendidas no Acórdão desta Relação e Secção (6ª), datado de 27-04-2023, que infra transcreveremos, em parte:

Isto dito, pacifico é para nós que a LEI N.º 62/2013, DE 26 DE AGOSTO não veio revogar o nº 3, do art.º 3, da LEI DA NACIONALIDADE [ introduzido pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de Abril ], não o tendo feito de forma expressa ou sequer tácita e, outrossim, não decorre igualmente da LEI N.º 62/2013, DE 26 DE AGOSTO que foi “ intenção inequívoca” do legislador revogar a lei especial que consubstancia em rigor [em sede de competência para as acções de reconhecimento de situação de união de facto por período superior a três anos ] o nº 3, do art.º 3, da LEI DA NACIONALIDADE.
Assim sendo, e como assim o considerou/decidiu o STJ no Ac. de 17/6/2022, acima parcialmente transcrito, o artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade mantém-se vigente e aplicável, definindo uma competência específica dos tribunais, em razão da matéria, para o julgamento das ações de reconhecimento das situações de união de facto, com duração superior a três anos, como requisito de aquisição da nacionalidade portuguesa, por declaração, passando a constituir uma exceção às novas regras gerais da distribuição de competências dos tribunais judiciais entretanto aprovadas”.
Em suma, mantendo-se o artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade vigente e aplicável ao caso sub judice e, em razão do principio de que a lei especial derroga a lei geral (lex specialis derrogat legi generali), temos como boas e concludentes as razões que amparam a decisão do Ac. do STJ acima referido, sendo o mesmo portanto de seguir.
Ao acabado de expor, acresce que não obstante o disposto nos art.ºs 60, nº1 e art.º 65, ambos do Código de Processo Civil - e acima transcritos – , certo é que prima facie a atribuição de competência específica para o julgamento de determinadas ações no âmbito do art.º 3º, nº 3, da Lei da Nacionalidade, não contraria também uma lei superior, posto que este último dispositivo foi inserido na Lei da Nacionalidade em razão igualmente de uma Lei Orgânica – a nº 2/2006, de 17 de Abril - , Lei que tem portanto um valor reforçado [cfr. art.º 112º , nº3, da CRP], tratando-se portanto de um acto legislativo da reserva absoluta de competência do Parlamento aprovada por maioria absoluta dos deputados efetivos.
Consequentemente, afastada se mostra o critério hermenêutico da Hierarquia, e segundo o qual uma lei superior derroga lei inferior. (…)  (cfr. Ac. proferido no âmbito do proc.10313/22.5T8LSB, versão integral em www.dgsi.pt).
Pelas razões expostas, deverá proceder a presente apelação.
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V. Decisão                                                          

Pelo exposto, acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, e na sequência dos fundamentos supra explanados, em conceder provimento à apelação e, consequentemente, revogar a decisão recorrida, devendo os autos prosseguir a respectiva tramitação legal.
Sem custas.
Registe e notifique.

TRL, 18-04-2024
João Brasão.
António Santos.
Adeodato Brotas.