RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
VIOLAÇÃO
SEQUESTRO
CÚMULO JURÍDICO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PROCEDÊNCIA PARCIAL
Sumário


I - Os maus-tratos, físicos e psíquicos, exemplificativamente elencados no n.º 1 do art. 152.º do CP, em contexto de relação de namoro, relação conjugal ou relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação e mesmo após cessar essa relação, correspondem à prática de crimes de ofensa à integridade física simples (art. 143.º do CP), de sequestro simples (art. 158.º, n.º 1, do CP), de ameaça (art. 153.º do CP), de coação (art. 154.º do CP), de coação sexual (art. 163.º, n.º 1, do CP), e de difamação e injúrias, simples ou qualificadas (arts. 180.º, 181.º, 183.º e 184.º do CP).
II - O STJ, pelo menos maioritariamente, vem afastando uma interpretação e aplicação formal do segmento final do n.º 1 do art. 152.º do CP, no sentido de considerar que se a punição do crime concorrente for superior a 5 anos de prisão, existirá um concurso aparente de crimes, sendo o crime de violência doméstica afastado em resultado da regra da subsidiariedade.
III - Por esta interpretação poder levar a uma injustiça material intolerável em benefício do arguido, levando a que este fosse apenas punido pelo crime mais grave, como o de ofensa à integridade física grave, violação, sequestro qualificado e homicídio, mas esquecendo completamente a punição de todos os restantes atos integradores do n.º 1 do art.152.º do CP, que até podem ter durado anos, o STJ vem permitindo a cisão desta unidade normativa sempre que o crime mais grave assuma autonomia relativamente aos maus-tratos e, assim, estabelecer uma relação de concurso efetivo com o crime de violência doméstica.
IV - No caso concreto, a privação da liberdade da assistente foi tratada pelo tribunal a quo como sequestro simples, pelo que integra o tipo-de-ilícito do art. 152.º, n.º 1, do CP, na vertente dos maus-tratos, onde se incluem as «privações da liberdade», pelo que não pode esta conduta do arguido ser individual e atomisticamente perseguida como tipo autónomo, mas antes valorada globalmente no crime de violência doméstica praticado pelo ora recorrente sobre a ex-namorada.
V - Pelo exposto, impõe-se revogar a decisão recorrida na parte em que condenou o arguido pela prática de um crime de sequestro, p. e p. pelo art. 158.º, n.º 1, do CP, e absolvê-lo da sua prática.

Texto Integral



Proc. n.º 72/23.0JAPDL.S1


Recurso penal


*


Acordam, em Conferência, na 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I - Relatório


1. Nos presentes autos, que correm termos no Juízo Central Cível e Criminal de ... – Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, sob acusação do Ministério Público, a que a assistente AA aderiu, foi submetido a julgamento, em processo comum com intervenção do Tribunal Coletivo, o arguido BB, devidamente identificado nos autos, imputando-se-lhe a prática, na forma consumada e em concurso efetivo, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º1, alínea b) do Código Penal, um crime de violação, agravado, previsto e punido pelo art.164.º, n.º 2, alínea a) do Código Penal e um crime de sequestro, agravado, previsto e punido pelo art.158.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), do Código Penal.


2. Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Coletivo, por acórdão proferido a 8 de novembro de 2023, decidiu julgar a acusação parcialmente procedente, por provada e, em consequência, condenar o arguido BB:


- pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art.152.º, n.º1, alínea b), Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão;


- pela prática de um crime de violação agravado, previsto e punido pelo art.164.º, n.º2, alínea a), Código Penal, na pena de 5 anos de prisão; e


- pela prática de um crime de sequestro, previsto e punido pelo art.158.º, n.º1, Código Penal, na pena de 2 anos de prisão; e,


- operando o cúmulo jurídico, condenar o mesmo arguido na pena única de 7 anos e 6 meses de prisão.


Mais foi ainda condenado na pena acessória de proibição de contacto com a vítima AA pelo período de 5 anos (artigo 152º, nº4 do Código Penal).


3. O arguido BB, inconformado com o acórdão dele interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, concluindo a sua motivação do modo seguinte (transcrição):


1º) O presente recurso tem por objecto os segmentos do douto acórdão relativos à condenação do arguido pelo crime de violação agravado e respetiva medida concreta da pena e, ainda, pela pelo crime de sequestro p. e p. pelos Art.°s 164º nº 2 e 158º nº 1 ambos do CP., e apenas quanto a questões de direito.


2º) O Tribunal não pode apreciar valorativamente sem examinar e relevar todas as circunstâncias que envolvem o caso concreto. Nomeadamente o terem Assistente e arguido mantido uma relação em tudo idêntica à dos cônjuges, ou ter a Assistente hábitos de consumo, muitas vezes excessivo, de álcool e, sobretudo quando isso acontecia, ser agressiva e conflituosa. Bem ainda como conhecer o espaço em que terão ocorrido os factos por lá ter estado várias vezes na companhia do arguido, e de lá se ter feito acompanhar por este voluntariamente. E não se diga isso para desculpar o arguido da sua conduta, mas apenas para avaliá-la na sua justa concretude.


3º) Neste caso concreto, o Tribunal não deveria ter considerado a existência de Violação agravada, mas tão só violação na tipificação simples do nº 1 do art.º 164º, porquanto a alegada violência em que se respaldou o douto acórdão, para a convicção da sua agravação, não constitui uma exceção ao comportamento infelizmente transversal daquela concreta relação entre a Assistente e arguido, sendo manifesta a inexistência de dolo relativamente à agravação constante do nº 2 do art.º 164º do CP.


4º) E o douto acórdão sob recurso não só não apreciou e relevou estes concretos factos para efeitos de condenação pelo nº 1 do art.º 164º do CP. como também o não fez para efeitos de fixação de uma pena mais próxima dos valores mínimos, atenta a enorme amplitude punitiva deste crime, consabidamente resultante da extrema gravidade de algumas ações e suas consequências para as vítimas.


5º) Já que, nos termos do artigo 40.º do CP, que dispõe sobre as finalidades das penas, a aplicação de penas (...) visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, devendo a sua determinação ser feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, de acordo com o disposto no artigo 71.º, do mesmo diploma.


6º) Pelo que, neste caso concreto, tudo ponderado, a pena aplicada ao arguido deveria ter sido fixada em torno dos três anos de prisão.


Quanto ao crime de sequestro,


7º) refira-se desde logo que, A necessidade de fundamentar todas as decisões judiciais é uma das exigências do processo equitativo, desde logo consagrado no artigo 6.º, § 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e deve permitir ao destinatário da decisão e ao público em geral apreender o raciocínio que conduziu o juiz a proferir tal sentença.


8º) A obrigação de motivar reveste uma importância peculiar quando se trate de apreciar uma pretensão na base de uma disposição de sentido ambíguo, caso em que é exigível uma motivação adequada e proporcional à complexidade da hipótese, devendo apresentar as características fundamentais da 'correcção', no sentido da sua aderência aos elementos probatórios adquiridos, do 'completamento', no sentido da sua extensão a todos os elementos relevantes para a formação dos juízos sectoriais conducentes ao juízo decisório e, dizemos nós - sobretudo, da 'lógica', no sentido da sua conformidade aos cânones que presidem às formas do raciocínio e que a este confiram a natureza de acto de demonstração da realidade e das regras da experiência comum. Uma motivação deficiente ou inexata deve ser equiparada à falta de motivação.


9º) As condutas que conlevam da tipicidade das condutas engolfadas nos crimes de violação, ofensas à integridade física, violência doméstica e sequestro, assumem-se como um dos exemplos de relacionamento instrumental entre diversos tipos individualizados de crime, ou seja, em que «um (ou vários) ilícitos singulares surgem, perante o ilícito principal, unicamente como meio de o realizar e, nesta realização, esgotam o seu alcance e os seus efeitos.


10º) Nos casos em que um crime se apresenta como meio da realização típica de outro crime, a solução passa por reconhecer que existe concurso aparente e prevalece o crime dominante: o crime-fim.


11º) Pelo que a perspetiva que deve nortear a convicção do Tribunal encontra-se na vontade que, em concreto, animou o agente do crime, i.e. no desígnio criminoso. E, no presente caso é manifesto, com a ressalva do devido respeito, que não existe crime de sequestro.


12º) A acusação, alicerçada embora (como em todos os demais factos positivos) nas declarações da ofendida, imputava ao arguido um desmultiplicado em dois factos absolutamente essenciais: o facto 53º que refere "uma vez que a Assistente pretendia sair daquele local com os seus pertences arguido declarou à AA agora não sais daqui" e o 61º que o reitera... "depois, uma vez que a Assistente pretendia sair daquele local "sabia ainda o arguido que ao impedir a assistente de sair da sobredita garagem, e obrigando que a mesma permanecesse naquele local não lhe facultando os seus pertences e trancando as portas de acesso à saída, estava a privar da sua liberdade de movimentos, agindo contra a sua vontade".


13º) Porém, conforme B. (factos não provados) do acórdão ora sob recurso, foi dado como facto não provado que "Depois, uma vez que a assistente pretendia sair daquele local com os seu pertences, o arguido dirigiu-se ao portão da garagem e fechou-o com o respectivo cadeado"


14º) Ora, conforme resulta manifesto da acusação, nomeadamente dos seus quesitos nº 53 e 61º, eram os factos constantes destes dois quesitos, se tivessem sido dados como provados, que suportavam a acusação de sequestro.


15º) Acontece, porém, que esses factos não foram dados como provados. Ou seja, não ficou provado que o arguido se tivesse dirigido ao portão da garagem fechando-o com o cadeado e impedindo a Assistente de sair daquele local com os seu pertences.


16º) Nem estes nem outros factos, que pudessem então, em substituição destes, fundamentar a condenação pelo crime de sequestro, ficaram provados. Nem de resto foi provocada (e bem, porque não aconteceu) nenhuma alteração não substancial de factos nos termos do art.° 358º do CP. que os pudessem integrar sem violação do princípio da vinculação temática.


Cite-se o douto acórdão sob recurso


17º) "No presente caso resultou provado que, após a prática do crime de violação o arguido disse à Assistente que não saia da garagem, tendo ficado com o seu telemóvel e com as suas chaves, pelo que ficaram ambos ali a dormir, sendo que só na madrugada seguinte é que aquele lhe disse para ela ir trabalhar."


18º) É impressionante como o douto acórdão sob recurso trata a Assistente como um autêntico autómato, incapaz de vontade própria e de se opor apenas a uma vontade que contraria a sua e sem recurso a nenhum meio adequado e com aptidão para privá-la da sua liberdade e locomoção, e se baste com isso para condenar por um crime tão grave como o de sequestro.


19º) Se tivesse ficado provado o único facto dado como não provado (que a Assistente teria ficado impedida de sair da garagem por o arguido tê-la fechado com um cadeado), ou alternativamente se tivesse surgido da audiência de julgamento uma qualquer circunstância que, sob pena de risco grave, impedisse a assistente de abandonar a garagem, por exemplo, que o arguido lá tivesse (e dele fizesse uso) de um cão feroz que, solto, impedisse a Assistente de sair da garagem, então sim, nesse caso, o sequestro seria uma sua necessária decorrência.


20º) Porém, nada disso aconteceu. E por não ter o arguido trancado a garagem (provado ficou que, contrariamente ao que disse a Assistente, nem podia) fica por perceber que processo circunstancial impediu com efetividade que a Assistente, uma mulher madura, vivida, independente e, portanto, senhora de uma vontade própria muito expressiva em todos os aspetos da sua vida, se bastasse com um "não sais daqui", como causa adequada de um crime de sequestro.


21º) Logo, a condenação por esse crime não tem qualquer sustentação probatória no elenco dos factos provados nem, como óbvia decorrência, se compreende onde assenta o nexo de causalidade adequada, para além de que, essa condenação, contraria as mais elementares regras da experiência comum. Por exemplo o que impedia a Assistente de se ir embora da garagem enquanto o arguido dormia? Não estava amarrada, a porta estava aberta (e não trancada com cadeado) não existiam cães a impedir que se fosse embora, o arguido estava a dormir, não era um sitio ermo, ou qualquer outra circunstancia que tornasse perigoso ou arriscado a assistente ir-se embora...


22º) Por último, não pode deixar de referir-se que essa condenação do arguido pelo crime de sequestro não só acaba branqueando uma mentira da Assistente, como premeia de forma indiscriminada e injusta aquela falsa imputação de que se encontrava trancada com cadeado no portão.


23º) Verifica-se, assim, insuficiência manifesta de factos que sustentem a condenação do arguido pelo crime de sequestro p. e p. no art.° n° 158 n° 1 do CP., pelo qual deverá ser absolvido.


24º) Reconsiderando-se, em conformidade com todo o ante exposto, o cúmulo jurídico efetuado pelo acórdão recorrido.


Foram assim violados de per si ou conjugadamente, entre outros, o artigo 6.º, § 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; o art.°374 nº 2 do CPP e 40º; 71º e 164º n° 1 do CP,


Termos em que, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de V.as Ex.as deverá o presente recurso ser aceite alterando-se o douto acórdão em conformidade, nomeadamente:


a) convolando o crime de violação agravada p. e p. no art.164º nº 2 em violação simples p. no nº 1, e,


b) E aceitando respeitosamente a decisão que V.as Ex.as vierem a tomar sobre a requerida convolação, fixar uma pena concreta mais próxima dos três anos;


c) E por total ausência de factos suscetíveis de integrar o tipo objectivo e subjectivo, seja o arguido absolvido do crime de sequestro em que foi condenado p. e p. no Art.º 158º nº 1, assim fazendo V.as Ex.as, JUSTIÇA.


4. O Ministério Público no Tribunal Judicial da Comarca dos Açores respondeu ao recurso interposto pelo arguido, concluindo (transcrição):


1. A prova feita em Tribunal foi devidamente ponderada pelo Tribunal recorrido, que aplicou corretamente ao caso a lei aplicável, e encontrou o sancionamento devido, termos em que nenhuma censura merece o douto acórdão.


2. E por esse motivo, não padece de falta de fundamentação ou de erro de julgamento. O que verdadeiramente o recorrente não aceita é apreciação da prova, levada a efeito pelo Tribunal. Claramente, a questão nada tem a ver com o vício do artigo 410.º do Código do Processo Penal, mas com a impugnação da matéria de facto nos termos do artigo 412.º, n.º 3 do Código do Processo Penal.


3. Salvo o devido respeito por opinião diversa, o recorrente, carece inteiramente de razão. Na verdade, da análise atenta e cuidadosa não só do texto do douto Acórdão, mas também de toda a prova produzida, não vemos, salvo melhor opinião que se verifiquem alguma ou algumas das hipóteses previstas no artigo 410.º do Código de Processo Penal.


4. Como é jurisprudência corrente dos nossos Tribunais Superiores, o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum. Se a decisão sobre a matéria de facto do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.


5. O recorrente limita-se a expor o seu julgamento dos factos, divergente daquele que foi feito pelo Tribunal, e tendo, como se verificou, este formado a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquela que formulou o recorrente.


6. Entendemos, portanto, que os factos se devem ter por corretamente fixados, pois a força probatória das declarações das testemunhas, foram apreciadas livremente pelo Tribunal, e julgadas sobre a livre apreciação das provas, de modo a chegar a decisão que lhe pereceu justa.


7. No caso vertente por tudo que já apontamos supra este vício não se verifica, consequentemente deve ser improcedente a alegação deste vício, pois o recorrente apenas limita-se a dar a sua versão dos factos, privilegiando certas partes dos depoimentos das testemunhas, por vezes dando-lhe um outro sentido possível.


8. Por fim cumpre ainda dizer que no caso em apreço o douto acórdão recorrido, ao contrário do que defende o recorrente, (só podia haver condenação se o arguido confessasse, como não confessou é a palavra dele – arguido – contra a dela – assistente, baseado o recorrente a sua defesa no suposto problema de alcoolismo da assistente... in dubio pro reo... não pode haver condenação), não se baseou apenas depoimento da assistente, mas também no depoimento do


recorrente e da testemunha CC, para além da prova documental.


9. Da sua análise podemos concluir que nele se seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova. Conforme facilmente se percebe, as explicações adiantadas pelo arguido em nada convencem, até porque carecem de qualquer lógica, sendo que as da assistente, pelo contrário, porquanto relatadas de forma cronológica e coerente, mostram-se corroboradas por outros elementos de prova, sendo de destacar os relatórios médicos e a perícia médico-legal (donde constam todas as lesões sofridas pela assistente) e as mensagens enviadas pelo arguido no dia seguinte, onde aquele lhe dá instruções sobre como agir (“diz que bateste com a perna na porta do carro), pede perdão (perdoa amor, passeime quando começaste a gritar comigo”) e explica o que fez (não gritasses não te tinha tocado, só dei uma chapada, só dei um pontapé no cu).


10. A fundamentação no sentido da valoração das provas e da razão lógica da condenação do arguido/recorrente. Não constituindo, portanto, uma decisão ilógica, arbitrária, contraditória ou materialmente violadora das regras da experiência comum.


11. Na verdade, aquilo que o Recorrente faz é expor o seu julgamento dos factos, divergente daquele que foi feito pelo Tribunal.


12. E, tendo, como se verificou, formado a sua convicção com provas não proibidas por lei e seguindo todo um processo lógico e de acordo com as regras da experiência comum, prevalece a convicção do tribunal sobre aquela que formula o Recorrente.


13. Quanto ao crime de violação as circunstâncias atenuativas que o recorrente invoca, a saber “assistente tem hábitos de consumo de álcool e que é agressiva e conflituosa”, para que o alegado crime seja simples e não agravado, são de pequena relevância, para não dizer nenhuma, face à gravidade dos factos criminosos cometidos, muito intensa a culpa do arguido e muito elevado o grau de ilicitude dos factos, os seus antecedentes criminais e a sua atitude de indiferença e desprezo pelo valor das normas jurídicas violadas, os bens jurídicos fundamentais por elas protegidos.


14. Face à matéria de facto provada, e como salienta o acórdão recorrido impõe-se concluir que o arguido, na ocasião descrita, constrangeu a ofendida, por meio de violência – dado que usou da sua superioridade física arguido retirou as calças, a camisola e a roupa interior que a assistente trajava, e após declarou-lhe “agora já te podes ir embora”. agarrou-lhe os braços, desferiu-lhe uma chapada e deu-lhe um pontapé no cú –, a praticar consigo relações sexuais –, preenchendo a tipicidade objetiva do crime de violação na pessoa da assistente, sua ex-namorada.


15. E preencheu igualmente a tipicidade subjetiva, uma vez que o arguido, ora recorrente agiu o arguido com a finalidade de satisfazer os seus instintos sexuais por meio de violência física e psicológica, colocando em causa a sua liberdade sexual, o que representou e conseguiu. O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.


16. O arguido quis, consciente e deliberadamente, “apanhar” a vítima indefesa, (segundo as sua palavras estava embriagada, pois não estava em condições psíquicas de dar qualquer consentimento), lhe montou uma cilada, levando a assistente para a garagem, dizendo-se que queria conversar. Chegados à aludida garagem, no seu interior, arguido e assistente iniciaram uma discussão, tendo nessa altura assistente declarado que queria ir embora, o arguido agarrou


com as suas mãos nos braços impedindo-a de sair do interior da garagem, com violência, deu-lhe uma bofetada, o arguido retirou as calças, a camisola e a roupa interior que a assistente trajava, e após declarou-lhe “agora já te podes ir embora” e, em o desespero assistente abandona a garagem nua, contudo o arguido agarrou-a e levou para dentro onde após efetivou o crime de violação.


17. Cumpre ainda dizer o seguinte, ao contrário do que defende o recorrente, mas que devia saber, a inexistência de qualquer reação ou resistência de uma vítima de violência sexual radica no facto de esta a sentir a agressão como uma ofensa à sua integridade física, ou mesmo à sua vida, pelo que adota um comportamento orientado para a sua preservação, podendo optar por diferentes estratégias de sobrevivência.


18. No caso concreto, ao despir a assistente contra a sua vontade, ter evitado que ela abandonasse a garagem, mesmo nua, depois a ter agredido fisicamente, de a ter empurrado para cima da cama e ter mantido relações sexuais, é utilizada a violência adequada a impedir a resistência da ofendida, assim impondo o agressor a sua vontade para a sujeitar e obrigar a sofrer um coito vaginal.


19. Pelo que o enquadramento jurídico-penal dos factos dados como assentes a decisão recorrida é límpida e cristalina quando estabelece que aqueles factos integram os elementos típicos do crime de violação, agravado.


Consequentemente, deve, pois, ser indeferida a pretensão do recorrente.


20. Quanto ao crime de sequestro, perante o quadro fáctico apurado, a argumentação do recorrente é, com todo o respeito, injustificada e gratuita.


Após ter despido e ter mantido relações sexuais contra a sua vontade da assistente e de lhe ter dito “não sais daqui”, assim a impedindo, como queria, de se movimentar e de fugir da garagem, não é uma conduta bagatelar, irrelevante e insignificante para o direito, é uma conduta grave, e com relevância penal.


21. No concreto caso não temos dúvidas que o fechar das portas, e principalmente depois de ter despido e ter mantido relações sexuais contra a sua vontade da a assistente e de lhe ter dito “não sais daqui” constitui indiscutivelmente privação da liberdade.


22. Pelo que deve ser indeferido a pretensão do recorrente


23. Quanto à medida da pena o Ministério Público entende que a pena única de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão, se mostra justa e adequada, em nada excessiva atentos os circunstancialismos apontados no douto acórdão, a gravidade dos ilícitos da culpa e as necessidades de prevenção geral e especial.


Isto é,


24. Nenhuma censura merece a determinação da medida da pena, sendo pena aplicada ao arguido ora recorrente adequada à sua culpa, à sua conduta anterior e posterior aos factos, às exigências de prevenção geral e especial e não pecam por excesso, bem como são acertadas face às condições pessoais e potencial de inserção social do arguido.


25. Em concreto, Como se provou, o arguido agiu sempre de forma livre e conscientemente, sabendo que não podia atuar daquela forma, agiu do modo descrito alheio aos seus deveres, sabendo que estava obrigado a respeitar a ofendida, sua esposa, atuando assim com dolo direto.


26. O arguido sabia que tais condutas eram (e são) proibidas por lei, ao que foi indiferente, conformando a sua vontade com a verificação de tais resultados.


27. Assente também está o grau de ilicitude dos factos que se nos afigura elevado, tendo em conta as circunstâncias em que o recorrente além do crime de violência doméstica atacou sexualmente a sua ex-namorada, a premeditação quanto ao trato sexual final, sua preparação e atuação na calada da noite e ainda se tivermos em conta os bens jurídicos em causa e as consequências, naturalmente não patrimoniais advenientes para a lesada.


28. Importa considerar, ainda, as exigências de prevenção destes tipos de crimes, sendo elevadas as de prevenção geral, face aos interesses que se pretendem acautelar com a proteção dos bens jurídicos em causa e principalmente considerando a enorme frequência com que este tipo de crime de violência domestica são praticados, a natureza dos bens jurídicos protegidos pelos ilícitos em causa e o alarme e o sentimento de insegurança que este tipo de condutas causam na população e que exigem a reposição da confiança na validade e eficácia das normas violadas.


29. Por outro lado, a violência sexual é fortemente censurada pela comunidade que considera repugnante o comportamento do agente que atenta contra a liberdade e autodeterminação sexual, nomeadamente os crimes de violação, porque “repercute falta de ressonância ética do agente com respeito ao valor fundamental da pessoa, da sua liberdade sexual, basilar a uma sã convivência pacífica, severamente punido na generalidade das legislações (…)” Ac. do STJ, de 4/7/2011, pº 1243/10.4paalm.l1.S1.


30. Pelo que, no caso em apreço, pena mostra-se, assim, ajustada não merecendo qualquer censura.


31. Concluindo, devem improcederem, assim, a totalidade da pretensão da recorrente.


6. Também a assistente AA respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela sua total improcedência, apresentando para o efeito as seguintes conclusões (transcrição):


A – O douto acórdão recorrido é irrepreensível e não enferma de qualquer falta de fundamentação ou de erro na apreciação da prova ou deficiente interpretação ou aplicação do Direito.


B – Com o devido respeito, não assiste razão ao arguido, ora recorrente, porquanto o Tribunal valorou devidamente a prova produzida, pois formou a sua convicção sobre a factualidade provada e não provada com base na análise crítica e ponderada de todos os meios de prova produzidos na audiência de discussão e julgamento, valorados na sua globalidade à luz das regras de experiência comum (artigo 127º do Código de Processo Penal).


C - Foram valoradas pelo Tribunal as declarações prestadas pelo arguido e pela assistente (em sede de memória futura), devidamente conjugadas com os depoimentos das testemunhas e a prova documental constante dos autos (mensagens telefónicas trocadas entre arguido e assistente, o relatório médico da consulta realizada à assistente a 16/01/2023, os fotogramas das lesões apresentadas pela assistente, a informação do P............ de ..., o auto de diligência e fotogramas, o auto de busca e apreensão e fotogramas, o relatório médico de 19/01/2023, e o relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito penal).


D) - A assistente explicou, em declarações para memória futura, de forma pormenorizada e detalhada todos os acontecimentos relatados na acusação. Em contrapartida, ao arguido baseou a sua defesa na teoria absurda de que a assistente abusava do consumo de bebidas alcoólicas e de que era conflituosa e doente e, por isso, é que discutia com ela, admitindo que lhe chamava de “puta” e “doente de merda”.


E) - Quanto ao dia em que a assistente foi violada e sequestrada pelo arguido, o recorrente limitou-se a afirmar que tiveram relações sexuais porque a assistente quis e que foi ela que se pôs de joelhos e bateu com a cabeça quando foi este que a projectou para o solo, obrigando-a a ficar de joelhos, lhe tirou a roupa e obrigou-a a ir para o exterior da garagem totalmente nua.


F) Admitiu, o arguido, que empurrou a assistente, agarrou-a pelos braços e que lhe deu um pontapé no rabo porque tinha de se defender, sem explicar porquê.


G) - Enviou diversas mensagens de texto à assistente nos dias subsequentes à prática da violação e sequestro, contendo as seguintes instruções: “diz que bateste com a perna na porta do carro”, “perdoa amor, passei-me quando começaste a gritar comigo”, “não gritasses não te tinha tocado, só dei uma chapada, só dei um pontapé no cu”.


H) Não merece qualquer reparo a condenação do arguido pela prática do crime de violação agravado, p. e p. pelo artigo 164º nº 2 do Código Penal.


I) - A defesa do arguido alegou que a assistente abusava do consumo de bebidas alcoólicas, desde o início ao fim da sessão de julgamento, tentando dessa forma obter uma desculpa inadmissível para toda a violência física e psicológica que perpetrou sobre a assistente. Até hoje a assistente recebe tratamento psicológico no Centro de Saúde de ..., devido aos factos praticados pelo arguido e pelos quais este foi condenado.


J) - Quanto ao argumento do recorrente de que deve ser absolvido do crime de sequestro porque o portão da garagem não estava fechado com um cadeado não pode o mesmo proceder.


L) - Dadas as deploráveis condições psicológicas em que a assistente se encontrava, no momento da prática dos factos, não foi percecionado por esta que o portão da garagem não estava fechado com cadeado, até porque o arguido esteve sempre do lado dela a controlar-lhe os movimentos, não lhe dando qualquer hipótese de se abeirar do portão, pelo que, convencida de que não conseguia sair da garagem limitou-se a acatar a ordem que o arguido lhe deu: “não sais daqui”, com pavor de sofrer mais ofensas físicas e psíquicas.


M) - Assim sendo, e pelas razões supra expostas, não merece qualquer reparo o douto acórdão no que se refere à condenação do arguido pela prática do crime de sequestro p. e p. pelo artigo 158º nº 1 do Código Penal.


N) - Face ao supra exposto, o douto acórdão recorrido não merece qualquer censura e deve ser integralmente mantido.


7. O Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto, neste Supremo Tribunal emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá ser julgado não provido e improcedente, sendo de manter os termos da decisão recorrida.


8. Notificada deste parecer, nos termos e para efeitos do n.º 2 do art.417.º do Código de Processo Penal, o recorrente nada disse.


9. Colhidos os vistos, cumpre decidir.


Fundamentação


10. A matéria de facto apurada e respetiva convicção constante do acórdão recorrido é a seguinte (transcrição):


A) Factos provados:


1. O arguido BB e a vítima/assistente AA iniciaram uma relação de namoro em data não concretamente apurada do mês de maio de 2022, a qual terminou no dia 19 de dezembro de 2022.


2. Durante o período em que mantiveram a relação amorosa nunca coabitaram, sendo que por vezes o arguido pernoitava na residência da assistente, sita na Rua ..., em ....


3. Desde o seu início até ao seu término, a relação entre arguido e assistente sempre foi muito conturbada, pautada por vários episódios de violência perpetrados pelo arguido contra a assistente e comportamentos persecutórios daquele para com aquela.


4. Com efeito, sempre que o casal discutia, o que acontecia com periodicidade semanal, o arguido dirigia à assistente as seguintes expressões “puta”, “puta nojenta”, “doente de merda”.


5. Mais, durante essas discussões, com a mesma periocidade, o arguido solicitava o telemóvel da assistente para ver quem lhe havia ligado ou enviado mensagens.


6. Em data não concretamente apurada do mês de julho de 2022, por volta das 20:30 horas, o arguido, sabendo que a assistente se encontrava num jantar com amigos nascidos no ano de 1982, ligou para o telemóvel da mesma tendo-lhe perguntado se iria demorar muito, pois já está a achar muita demora.


7. Nessa data organizava-se na ilha de ... uma festa denominada Color Fest, tendo a assistente declarado ao arguido que pretendia ir a tal evento com os amigos, ao que este responde que nesse caso a iria buscar.


8. Uma vez chegado ao pé da assistente, o arguido decidiu ir com a mesma até ao aludido evento, o qual teve lugar no ..., em ....


9. Já no referido espaço, o arguido insinuou que a assistente estava a olhar para outros homens, razão que espoletou uma discussão entre o casal e que levou a assistente a sugerir que fossem embora da festa.


10. Já no exterior do recinto, o arguido disse à assistente para a mesma vir para a residência daquela, tendo aquela se negado e declarado que iria para sua residência.


11. Ato contínuo, o arguido disse à assistente: não, vens para a minha que vamos conversar, e agarrou com a sua mão no abraço daquela e conduziu-a até à sua residência sita da Rua ..., em ....


12. Chegados à aludida residência, o arguido conduziu a assistente até ao seu quarto e ordenou que a mesma se deitasse na cama daquele, tendo esta dito que não o faria e que iria embora para a sua residência.


13. Nisto, o arguido insinuou que a assistente não iria para casa, mas sim de volta para o Color Fest e, ato contínuo, desferiu-lhe duas pancadas de mão aberta no rosto da assistente, que lhe causaram dores.


14. Nesse momento, a assistente pediu para ir embora da casa do arguido, tendo este assentido.


15. Em data não concretamente apurada, mas compreendida entre os últimos dias de julho e os primeiros dias de agosto de 2022, o arguido efetuou vários telefonemas para o telemóvel da assistente.


16.Uma vez que a assistente não atendeu tais chamadas, o arguido dirigiu-se à sua residência e introduziu-se no interior da residência daquela.


17. Já no seu interior, o arguido surpreendeu a assistente na sala da sua residência, gerando-se uma discussão entre ambos pelo facto de aquele ali ter entrado sem consentimento.


18. Perguntado pela assistente ao arguido como ali havia entrado, este respondeu isso não interessa, eu quando quiser entrar na tua casa entro de qualquer maneira.


19. De seguida, uma vez que a assistente ameaçou chamar a irmã, o arguido acabou por sair daquela residência.


20. No dia 19 de agosto de 2022, o arguido dirigiu-se ao local de trabalho da assistente, o estabelecimento comercial “L.........”, sito na Rua ..., em ..., e iniciou uma discussão com a mesma por esta não responder às mensagens e aos telefonemas que aquele enviava e efetuava para o telemóvel daquela.


21. No decorrer dessa discussão, o arguido, levantando o braço no ar, dirigiu-lhe à assistente a seguinte expressão tu devias era levar.


22. Uns dias após, ainda durante o mês de agosto de 2022, o arguido dirigiu-se à residência da assistente e bateu à sua porta, declarando àquela que queria entrar para estar com ela.


23. Uma vez que a assistente lhe negou a entrada, o arguido desferiu um número não concretamente apurado de pontapés na porta da entrada da residência daquela.


24.A certa altura, tendo surgido no local a mãe da assistente, o arguido acabou por abandonar o local.


25. Em data não concretamente apurada do mês de setembro ou outubro de 2022, durante o período da noite, na residência da assistente, o arguido encontrava-se com aquela na cama do seu quarto.


26.A certa altura, o arguido disse à assistente que queria ter relações sexuais com aquela, tendo esta se negado, declarando estar cansada,


27.Logo após, a assistente dirigiu-se a outro quarto daquela residência e deitou-se na cama ali existente.


28.A seguir, o arguido surgiu no sobredito quarto e perguntou à assistente se estava a fazer pouco da cara dele, porque não queria ter relações sexuais com ele.


29.Nesse instante, a assistente levantou-se da cama, momento em que o arguido, fez um gesto com a sua cabeça na direção da cabeça assistente, simulando que lhe iria desferir uma pancada, vulgo, cabeçada.


30. Imediatamente a seguir, o arguido, com as suas duas mãos abertas desferiu uma pancada com as mesmas, em simultâneo, na zona dos ouvidos da assistente, causando-lhe dores.


31.Tendo a assistente começado a chorar, o arguido, declarou que se iria embora, levando consigo a chave do portão e do veículo automóvel propriedade daquela.


32.Uma vez que a assistente foi atrás do arguido para o impedir de levar o seu veículo, o arguido abeirou-se da mesma e, imprimindo força com a sua mão contra o seu ombro esquerdo, projetou-a para o solo, logrando afastar-se daquele local com o veículo de AA.


33. No dia 19 de dezembro de 2022, o arguido deslocou-se ao sobredito local de trabalho da assistente, a L........., onde a mesma se encontrava e, imprimindo força com as suas mãos empurrou a mesma e, de seguida, com um dedo da mão enfiou-a no interior do ouvido de AA, causando-lhe dores.


34. Na sobredita data, a relação entre arguido e assistente terminou.


35. No dia 31 de dezembro de 2022, no período da noite, o arguido dirigiu-se à residência da assistente, tocando várias vezes à campainha daquela, não tendo AA, todavia, aberto a porta.


36. No dia 1 de janeiro de 2023, durante a tarde, o arguido voltou a dirigir-se à residência da assistente com o intuito de falar com esta, no entanto, sem sucesso.


37. Entre os dias 2 e 11 de janeiro de 2023, encontrando-se a assistente em ... com a sua mãe, o arguido, ciente dessa informação, ligou para o telemóvel daquela sugerindo que a mesma “estava com outros homens”, que “estava em discotecas”, que havia ido a ... “para abortar”.


38. No dia 13 de janeiro de 2023, por volta das 22:00 horas, o arguido dirigiu-se à residência da assistente para a convidar a dar uma volta porque precisava de conversar com ela, tendo esta assentido.


39. Assim, arguido e assistente deslocaram-se, no veículo automóvel daquele, até ao seu local de trabalho, uma garagem sita no Lugar ..., em ....


40. Chegados à aludida garagem, no seu interior, arguido e assistente iniciaram uma discussão, tendo nessa altura AA declarado que queria ir embora.


41. Subsequentemente, o arguido agarrou com as suas mãos nos braços impedindo-a de sair do interior da garagem.


42. Ato contínuo, o arguido desferiu uma pancada de mão aberta na direção do rosto da assistente, que apenas a atingiu na zona ocular, porque esta se conseguiu desviar a tempo.


43. Depois, com as suas mãos, imprimido força, o arguido empurrou o corpo da assistente contra a parede, causando-lhe dores.


44. Logo após, o arguido ordenou à assistente que se pusesse de joelhos no chão, tendo esta se negado.


45. Então, o arguido agarrou com a sua mão a zona da nuca da assistente, imprimindo força, e projetou-a contra o solo, tendo esta ficado na posição pretendida por aquele.


46. A seguir, o arguido ordenou à assistente que se despisse, tendo esta dito que não.


47. Face à negação da assistente, o arguido retirou as calças, a camisola e a roupa interior que a assistente trajava, e após declarou-lhe “agora já te podes ir embora”.


48. De seguida, tendo a assistente se dirigido, nua, para o exterior da aludida garagem, o arguido chamou o seu nome e ordenou que ela voltasse a entrar.


49. Assim, o arguido dirigiu-se à assistente e agarrou com a sua mão no braço daquela e conduziu-a para o interior da garagem, para uma divisão daquela garagem que continha uma cama, apesar de esta manifestar que não o queria.


50. Após, o arguido projetou a assistente para a sobredita cama, na supramencionada divisão da garagem, despiu-se e deitou-se sobre a mesma, imobilizando-a.


51. De seguida, o arguido colocou o seu pénis ereto dentro da vagina da assistente, e friccionou-o no seu interior um número não concretamente apurado de vezes, não obstante os vários pedidos da assistente para que o mesmo parasse com a sua atuação.


52. Poucos minutos após, o arguido saiu de cima do corpo da assistente, tendo esta lhe pedido que a deixasse ir embora, ao qual o arguido respondeu que se quisesse ir embora, iria nua.


53. Depois, uma vez que a assistente pretendia sair daquele local com os seus pertences, o arguido declarou a AA “agora não sais daqui”.


54. De seguida, o arguido apoderou-se do telemóvel e chaves da assistente, negando-lhe o acesso a tais objetos.


55.Assim, arguido e assistente acabaram por dormir na aludida divisão da garagem.


56. No dia 14 de janeiro de 2023, pelas 06:30 horas, o arguido disse à assistente que deveria ir trabalhar, porque se não as pessoas iriam dar por falta dela, e que aquilo não era para contar à polícia.


57. Ao longo desse dia 14 de janeiro de 2023, o arguido enviou do seu telemóvel várias mensagens para o telemóvel da assistente com o seguinte teor:


− “dis ke bateste com a perna na porta do carro” “se ela perguntar alguma coisa”


− “dis ke bebestw um pocadinho ke foste fazer xixi a rua e casjiste por sima de madeiras e ferros ke tem lafo da garagem”


− “me perdua amor eu me passei cando começaste gritar comigo”


− “e amo de mais” “não parti teu corpo”


− “não gritases eu não tenha tucado”


− “porá mas eu so pegei em ti e jogei para cama”


− “eu nem te bati so dei uma xapada de resto foi so agarar”


− “so te dei um pontapé no cu”


58. O arguido sabia que ao agir da forma descrita molestava a integridade física da assistente, bem como feria a sua honra, dignidade e liberdade pessoal, ao mesmo tempo que lhe causava vergonha, medo, insegurança e inquietação.


59. Mais, o arguido sabia que devia respeito e consideração à assistente, uma vez que era sua namorada e, mais tarde, ex-namorada.


60. De igual modo, sabia o arguido que ao manter relações sexuais com a assistente nos termos descritos, a estava a privar na sua liberdade sexual, agindo contra a vontade e consentimento desta.


61. Sabia, ainda, o arguido que ao impedir a assistente de sair da sobredita garagem e obrigando que mesma permanecesse naquele local, não lhe facultando os seus pertences, a estava a privar da sua liberdade de movimentos, agindo contra a sua vontade.


62. Não obstante, o arguido quis e agiu da forma descrita.


63. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.


Das condições socioeconómicas do arguido:


64. À data da aplicação da atual medida de coação de prisão preventiva, BB, de 44 anos de idade, residia na freguesia de ... – ..., onde integrava o núcleo de origem, constituído pela progenitora de 83 anos de idade. Na mesma habitação reside também uma irmã, e três sobrinhos do arguido, dois já adultos e um menor.


65. O arguido é o elemento mais novo de uma fratria de dez elementos, sendo que o progenitor faleceu há mais de quatro décadas por patologia do foro oncológico.


66. O arguido integrou o Sistema de Ensino em idade própria, estando habilitado com o 4ºano de escolaridade tendo abandonado os estudos com treze anos de idade, tendo adquirido muito poucos conhecimentos de leitura e escrita.


67. Na esfera laboral, BB não sabe precisar há quanto tempo está desempregado, não se considerando sequer nessa condição (desemprego), referindo executar algumas tarefas em trabalho de manutenção de viaturas de terceiros, em regime precário, utilizando uma garagem/oficina para concretizar essas atividades. Não está inscrito na Agência de Emprego, referindo subsistir dos rendimentos auferidos pela progenitora, a par com as quantias monetárias que vai auferindo pela realização dos trabalhos de mecânica atrás referidos.


68. BB tem três filhos de um anterior relacionamento, os quais integram o agregado da progenitora, em Portugal Continental. Questionado sobre o relacionamento com a mãe dos filhos, o arguido referiu não se recordar da causa da separação. Ainda na esfera amorosa, apurou-se que BB manteve uma relação durante cerca de um ano com DD, em meados de 2015/2016, e por presumíveis desajustes comportamentais, deu origem ao processo 191/16.9..., em que BB foi constituído arguido pelo presumível crime de ofensa à integridade física simples, no entanto, o processo foi extinto por desistência da queixa por parte de DD, no ano de 2018.


69. Em 2017, o arguido iniciou relação amorosa com EE, (vítima identificada no processo 96/21.1...) tendo, posteriormente, o ex-casal, coabitado durante dois anos, não havendo filhos deste relacionamento. Apurou-se que a relação embora descrita pelo probando como gratificante, era caraterizada por terceiros como desajustada, existindo tentativas de controlo e ciúmes, mesmo após término do relacionamento. Tais comportamentos terão estado na origem do processo 96/21.1..., com condenação em pena de prisão de um ano e seis meses, por um crime de violência doméstica, suspensa na sua execução com regime de prova, pelo período de dois anos. A medida encontra-se com acompanhamento desta Equipa de Reinserção Social, em que o regime de prova determina a frequência de programa específico para agressores de violência doméstica. Foi também condenado na pena acessória de proibição de contactos com a vítima EE, bem como de permanecer na sua residência e local de trabalho, pelo período de 2 (dois) anos, e também na pena acessória de proibição de uso e porte de armas, pelo período de 2 (dois) anos.


70.No presente, o arguido encontra-se em medida de coação preventiva à ordem dos presentes autos, e como tal, no âmbito do processo já transitado em julgado, e anteriormente especificado, o arguido tem recebido em contexto prisional o Técnico de Reinserção Social, e beneficiado de acompanhamento psicoterapêutico individualizado. E


71. Em contexto prisional, não se encontra integrado em nenhum programa terapêutico, não tem qualquer ocupação, e tem recebido visitas mensais de uma irmã e de uma sobrinha.


72. O arguido descreve-se como um individuo com algumas dificuldades de autocontrolo, referindo que perante situações geradoras de tensão, não consegue gerir, adequadamente os impulsos, podendo por vezes ser desadequado a nível verbal. Referiu também que poucas semanas antes da emergência dos presentes autos, sentiu necessidade de solicitar acompanhamento psicológico na Unidade de Saúde de Ilha de ....


73. No decorrer da entrevista, não aparentou apresentar qualquer empatia pela presumível vítima, responsabilizando-a pelos desentendimentos conjugais, desvalorizando as presumíveis ações, e descrevendo AA, como uma pessoa desequilibrada e com problemática do foro aditivo (etílico).


74. AA encontra-se com acompanhamento do Pólo Local de Prevenção e Combate à Violência Doméstica- ... apresentando, segundo se apurou, muito medo do arguido, ex-companheiro, e muito ansiosa com a aproximação do desfecho judicial, e com a possibilidade de o arguido voltar a meio livre. Por outro lado, BB mostra-se algo ansioso com a possibilidade de ser condenado, no entanto, uma vez que não se revê no estatuto de arguido, refere que perante um eventual cenário de condenação, sentir-se-á injustiçado. Muito autocentrado, denota-se sérias dificuldades em se colocar no ponto de vista do Outro, e de antecipar as consequências da sua conduta ao longo do seu trajeto de vida.


75. O arguido já foi condenado:


i. Por sentença transitada em julgado a 16/12/2022, na pena 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa com regime de prova, pela prática de um crime de violência doméstica a 01/06/2021.


B) Factos Não Provados


Com interesse para a boa decisão da causa, não se provou que:


a) Depois, uma vez que a assistente pretendia sair daquele local com os seus pertences, o arguido dirigiu-se ao portão da garagem e fechou-o com o respetivo cadeado.


C) Motivação


O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada e não provada com base na análise crítica e ponderada de todos os meios de prova produzidos na audiência de discussão e julgamento, valorados na sua globalidade à luz das regras de experiência comum (artigo 127º do Código de Processo Penal).


Foram assim valoradas as declarações prestadas pelo arguido e pela assistente (em sede de memória futura), devidamente conjugadas com os depoimentos das testemunhas FF e GG (mãe e irmã da assistente), CC (técnica do Gabinete de Apoio à Vítima), HH (psicóloga no Centro de Saúde de ...), II (amigo comum do arguido e da assistente), JJ (amigo do arguido), KK (ex-namorado da assistente), LL (sobrinha do arguido e ex-amiga da assistente), MM (amigo do arguido) e NN (amigo do arguido).


Quanto à prova documental o Tribunal teve em consideração o auto de visionamento de telemóvel com as mensagens telefónicas trocadas entre arguido e assistente (fls. 68-88), o relatório médico da consulta realizada à assistente a 16/01/2023 (fls. 103-104), os fotogramas das lesões apresentadas pela assistente (fls. 105-108), a informação do P............ de ... (fls. 112-113), o auto de diligência e fotogramas (fls. 117-122), o auto de busca e apreensão e fotogramas (fls. 134-143) e o relatório médico de 19/01/2023 (fls. 266-267).


Por fim, e quanto à prova pericial, o Tribunal analisou o relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito penal (fls. 324-328).


Concretizando, e quanto ao primeiro grupo de factos (1º a 5º), as declarações prestadas pela assistente, conjugadas com o depoimento da testemunha II (arrolada pelo arguido) e ainda com as declarações pelo próprio arguido, não nos deixam quaisquer dúvidas em como a relação nunca foi pacífica. A assistente descreveu, de forma clara e precisa, e sem transparecer qualquer sentimento de vingança ou de aproveitamento, o quão conturbado era o relacionamento, o que foi confirmado pelo amigo comum do ex-casal, II, o qual nos disse que se afastou de ambos porque iam desabafar consigo os problemas do relacionamento e, para não se chatear com nenhum, o afastamento foi a solução, sendo que sabe que a AA “bebe muito” e que o seu amigo é “homem de dar chapadas”, que “ferve em pouco água”, que “é ciumento” e que chegou a ver marcas no corpo da AA enquanto namoravam (tal como nos disseram FF e GG, que começaram a reparar que aquela, após julho de 2022, começou a exibir marcas no corpo, o que nunca acontecera antes). Aliás, o próprio arguido confessou parcialmente estes factos, explicando o quanto amava a AA e que as discussões surgiam sempre devido ao problema de alcoolismo da assistente. No entanto, e apesar da declaração de amor, confessou que lhe chamou, por mais do que uma vez, de puta (porque lhe enervava quando ela bebia), bem como de doente (tendo justificado que a mesma era efetivamente doente epilética).


Quanto ao episódio do Colorfest (factos 6º a 14º), o Tribunal atendeu, uma vez mais, às declarações genuínas e espontâneas da assistente, conjugadas com as declarações do arguido, o qual, recorrendo novamente a autojustificações, sem demonstrando o mínimo de arrependimento, esclareceu que bateu na AA “porque ela me deu primeiro”.


No que diz respeito aos factos 15º a 21º, e pese o arguido apenas tenha dito que entrou na residência por ter as chaves, a assistente relatou os acontecimentos de forma genuína, sendo que a insistência nas comunicações móveis, por parte do arguido, foi um comportamento que se manteve em toda a relação, tendo aquele admitido que no dia 19 de agosto se dirigiu à lanchonete porque a AA não estava a atender as suas chamadas.


O episódio a que se referem os factos 22º a 24º foram-nos relatados pela assistente e pela sua mãe FF, a qual nos explicou, num depoimento preciso e claro, que a sua filha lhe ligou porque o arguido estava a bater à porta, sendo que quando lá chegou a sua filha estava escondida no quintal do vizinho (tal como nos disse a assistente) e que mandou o arguido embora (o que foi confirmado por este).


Pese embora o arguido apresente uma versão diferente dos factos 25º a 32º, a verdade é que confirma parte das declarações da assistente: admite que estiveram juntos nessa noite, que queria ter relações sexuais e que ela negou e que a AA foi dormir para outro quarto. Contudo, a forma genuína e espontânea como a assistente prestou as suas declarações, conjugado com o padrão de violência já apontado ao arguido, afastou quaisquer dúvidas quanto à credibilidade de AA, pelo que se deram os factos como provados da forma supra elencada.


Sabemos que foi no dia 19 de dezembro de 2022 que FF proibiu o arguido de entrar na lanchonete (factos 33º e 34º), pois, conforme aquela nos disse, nesse dia foram-na buscar a casa para ir acudir à sua filha já que o arguido se encontrava no estabelecimento a discutir com aquela, sendo que também o arguido nos disse que a mãe da AA o proibiu, nessa data, de voltar a entrar na lanchonete. Quanto ao fim do relacionamento, a assistente foi bem clara nas suas declarações, pese embora o arguido negue o fim da relação (sendo certo que acaba por dizer que a AA não mais falou com ele a partir dessa data).


Quanto ao facto 35º, o arguido negou, dizendo que estava a trabalhar numa discoteca (o que não foi confirmado por qualquer testemunha), mas a realidade é que FF estava em casa da sua filha, foi à janela e viu o arguido sentando no banco do largo sito à frente da casa.


Já quanto ao facto 36º diz não se recordar, mas a assistente, em declarações corroboradas pela sua mãe, confirmou-o.


Também confirmado pela assistente foi o facto 37º, tendo explicado as conversas que mantinha com o arguido, e pela sua mãe FF, a qual nos explicou que foi a ... realizar uma cirurgia e que a sua filha a veio acompanhar. Já o arguido disse-nos que ligava à AA a dizer que ia mudar (sendo que, se quer mudar, é porque algo não está bem) e que tinha entendido que a mesma tinha ido a ... fazer um aborto (é certo que LL nos disse que a AA lhe disse que tinha ido a ... fazer um aborto, mas também se mostrou claro que esta testemunha demonstrou grande animosidade para com a assistente e a realidade é também que, na data apontada e atualmente, não se realizam abortos médicos na ilha de ...).


Relativamente ao último episódio (factos 38º a 57º) a assistente e o arguido apresentaram versões contraditórias, pese embora este último tenha corroborado alguns pormenores adiantados pela assistente. Disse-nos o arguido que levou a assistente para a sua garagem e que já estava bastante embriagada (o que vai contra as mensagens trocadas, de onde resulta que o objetivo era conversarem), sendo que as relações sexuais que mantiveram foram porque ela quis. Contudo, sendo as relações sexuais por mútuo consentimento (realçando-se que, de qualquer forma, e de acordo com a versão do arguido, a assistente não estava em condições psíquicas de dar qualquer consentimento), qual o motivo pelo qual ela saiu nua para a rua e ele teve de a ir buscar (conforme o arguido nos disse)? Sendo a versão do arguido a verdadeira ficamos também sem perceber o motivo pelo qual teve de agarrar a assistente pelos braços, de a empurrar e ainda de lhe dar um pontapé no rabo, conforme admitiu! Disse-nos o arguido que fez isto porque a assistente se pôs de joelhos a bater com a cabeça no chão, mas, sendo isso realmente verdade, dar-lhe um pontapé no rabo e empurrá-la em que ajuda?


Conforme facilmente se percebe, as explicações adiantadas pelo arguido em nada convencem, até porque carecem de qualquer lógica, sendo que as da assistente, pelo contrário, porquanto relatadas de forma cronológica e coerente, mostram-se corroboradas por outros elementos de prova, sendo de destacar os relatórios médicos e a perícia médico-legal (donde constam todas as lesões sofridas pela assistente) e as mensagens enviadas pelo arguido no dia seguinte, onde aquele lhe dá instruções sobre como agir (“diz que bateste com a perna na porta do carro), pede perdão (perdoa amor, passei-me quando começaste a gritar comigo”) e explica o que fez (não gritasses não te tinha tocado, só dei uma chapada, só dei um pontapé no cu).


Lendo ainda todas as mensagens que foram trocadas entre o arguido e assistente percebemos ainda que não vinga a tese do arguido de que a assistente se encontra a mentir. Resulta de tais mensagens que foi no desespero que a assistente se deslocou ao centro de saúde, pois até já tinha dificuldade em respirar, o que fez apenas dois dias depois do acontecimento (sendo que, durante esses dois dias, foram inúmeras as mensagens do arguido). Conforme nos disse HH, psicóloga do centro de saúde, foi só após de a receber no seu gabinete no centro de saúde, e depois de a acalmar (porquanto estava com ataques de pânico), que aquela relatou que estava com muito medo do arguido (que estava na sala de espera), tendo-a reencaminhado para o atendimento no polo de violência doméstica e foi aí, perante CC, que contou o que havia acontecido (sendo que mesmo aí o arguido andava atrás da assistente, conforme nos disse CC e conforme resulta da própria mensagem que lhe mandou: não te vi a sair da segurança social).


É certo que a defesa do arguido se baseou no suposto problema de alcoolismo da arguida (pese embora HH tenha dito que aquela não cheirava a álcool nem aparentava estar embriagada), mas, mesmo sendo verdade que a assistente padeça de tal, em nada coloca os factos em causa, nem a sua credibilidade. Repare-se que aquela já havia tido três ou quatro relações (supostamente terminadas por causa do problema do álcool) e nunca nenhum problema aconteceu (confirmado pelo ex-namorado KK), não havendo qualquer notícia de que a mesma se atirasse contra as paredes e chão (como nos disse o arguido).


Não podemos ainda deixar de questionar o motivo pelo qual a assistente se viria a expor com esta situação num meio tão pequeno como é a Ilha de ...? Não foi para ganhar dinheiro (nem pedido de indemnização civil deduziu), nem por ser uma alcoólica (com 40 anos e várias relações nunca aconteceu nada semelhante). Expôs-se porque as lesões que lhe foram infligidas pelo arguido obrigaram a tratamento médico (e mesmo assim esteve dois dias em casa a sofrer) e, após entrar no Centro de Saúde, percebeu que tinha de contar o que aconteceu, sendo que até hoje recebe tratamento psicológico (conforme nos disse HH).


Em face do exposto, quem atua como o arguido atuou, sem qualquer interferência de elemento perturbador da capacidade intelectual e volitiva, não pode deixar de querer atuar como o descrito, de ter consciência da proibição da sua conduta e de conformar-se com as consequências legais das mesmas. Aliás, nas suas próprias declarações, o arguido não demonstrou qualquer tipo de arrependimento pelos factos praticados, nem empatia para com a vítima, antes tentando responsabilizá-la pelo sucedido, apodando-a de alcoólica durante toda a audiência de julgamento.


Quanto à situação pessoal e económica do arguido o Tribunal analisou o relatório social e teve em consideração o depoimento das suas testemunhas, dos quais, no entanto, resulta que aquele nunca teve um trabalho certo e é impulsivo e agressivo quando contrariado.


Por fim, atendeu-se aos certificados de registo criminal juntos aos autos.


Quanto ao facto não provado, e atenta a diligência realizada pela Polícia Judiciária, bem como o depoimento das testemunhas NN e II, resulta que a garagem só dá para fechar por cadeado por fora e não por dentro. Diga-se que tal em nada abala as declarações da assistente, tanto mais se tivermos em consideração o contexto em que se encontrava, nua e dominada por um homem com força física superior, sendo totalmente compreensível que não se tivesse apercebido de que a porta da garagem apenas estava encostada.


*


11. Objeto do recurso


O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação (art.412.º, n.º1 do Código de Processo Penal). São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso.1


Como bem esclarecem Simas Santos e Leal-Henriques, « Se o recorrente não retoma nas conclusões, as questões que suscitou na motivação, o tribunal superior, como vem entendendo o STJ, só conhece das questões resumidas nas conclusões, por aplicação do disposto no art.684.º, n.º3 do CPC. [art.635.º, n.º 4 do Novo C.P.C.]» (in Código de Processo Penal anotado, 2.ª edição, Vol. II, pág. 801).


Face às conclusões da motivação do recorrente BB as questões a decidir são as seguintes:


- Se o crime de violação não deve ser agravado pelo n.º 2 do art.164.º do Código Penal;


- Se deve ser absolvido do crime de sequestro, p. e p. pelo art.158.º, n.º1 do Código Penal; e


- Se deve ser reduzida a medida concreta da pena que lhe foi aplicada pelo crime de violação e reconsiderado o cúmulo jurídico.


12. Do crime de violação agravado.


O arguido BB defende que o Tribunal a quo não deveria ter considerado a existência de violação agravada, mas tão só violação na tipificação simples do n.º 1 do art.164.º do Código Penal, porquanto “a alegada violência” em que se respaldou o douto acórdão, para a convicção da sua agravação, não constitui uma exceção ao comportamento infelizmente transversal daquela concreta relação entre a assistente e arguido, sendo manifesta a inexistência de dolo relativamente à agravação constante do nº 2 do art.164.º do Código Penal


(conclusões 2.ª e 3.ª da motivação do recurso).


Vejamos se assim é.


O art.164.º do Código Penal, tinha a seguinte redação, à data da prática dos factos:


«1 - Quem constranger outra pessoa a:


a) Praticar consigo ou com outrem cópula, coito anal ou coito oral; ou


b) Praticar atos de introdução vaginal, anal ou oral de partes do corpo ou objetos;


é punido com pena de prisão de um a seis anos.


2 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa:


a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou


b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos;


é punido com pena de prisão de três a dez anos.


3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior, empregue para a prática dos atos referidos nas respetivas alíneas a) e b) contra a vontade cognoscível da vítima.».2


O bem jurídico protegido no crime de violação é a liberdade sexual de outra pessoa, como resulta da Secção I «Crimes contra a liberdade sexual», do Capítulo V «Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual», do Título I «Dos crimes contra as pessoas», da Parte Especial, do Código Penal.


A liberdade sexual protegida prende-se, no caso dos adultos, com a liberdade de se relacionar sexualmente ou não e com quem.


A vítima do crime de violação pode ser do sexo feminino ou masculino, isto é, independentemente do género, e tanto pode ser maior ou menor de idade e ter uma posição passiva (sofrer) como ativa (praticar, consigo ou com outrem).


O que se criminaliza no n.º 2 do art.164.º do Código Penal é o relacionamento sexual, através de atos de cópula, coito anal, coito oral e introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou de objetos, sendo utilizado como meio típico de constrangimento a violência, ameaça grave, ou ato que coloque a vítima inconsciente ou na impossibilidade de resistir.


Enquanto a violação tipificada no n.º1 é um crime de execução livre, podendo ser cometido por qualquer meio não compreendido no n.º2, a violação tipificada neste último número é um crime de execução vinculada.


Face às várias alterações legislativas vem sendo discutido se a «violência» adequada a constranger a vítima à prática de ato sexual é apenas a violência física, isto é, aquela em que é usada força física contra a vítima ou no conceito cabem também formas de violência psíquica, e, ainda, se a violência se basta com o dissentimento da vítima.3


Para o caso concreto, basta dar como firme que no conceito de «violência» inclui-se a violência física, o uso da força física sobre o corpo da vítima, destinada a vencer a sua resistência (vis absoluta ou vis compulsiva).


Não tendo a violência de ser grave, tem em todo o caso de ser idónea, segundo as circunstâncias do caso, a vencer a resistência oferecida ou esperada da vítima.


A «ameaça grave» é uma forma de violência psíquica, traduzida no propósito de causar um mal, com algum relevo, à vítima ou a terceiro.


O ato que coloca a vítima inconsciente ou na impossibilidade de resistir tem de ser realizado


de forma preordenada para a prática do ato sexual, ou seja, «depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir».


Entre os atos sexuais que a vítima é constrangida a sofrer ou a praticar, interessa para o presente caso considerar a “cópula”, que consiste no ato pelo qual a vagina é penetrada pelo pénis, haja ou não emissio seminis (acórdão do S.T.J. de fixação de jurisprudência n.º5/2003).


O tipo subjetivo de ilícito admite qualquer das suas formas contempladas no art.14.º do Código Penal, ou seja, direto, necessário ou eventual, mas o agente deve representar a oposição da vontade da vítima.


Retomando o caso concreto.


O acórdão recorrido condenou o arguido pela prática de um crime de violação agravada, p. e p. pelo art.164.º, n.º2, alínea a) do Código Penal, com a seguinte fundamentação:


“Dispõe o artigo 164º, nº2, alínea a) do Código Penal que quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral, é punido com pena de prisão de três a dez anos.


O tipo de crime de violação inscreve-se no capítulo dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual e na secção respeitante aos crimes contra a liberdade sexual. Esta referência sistemática releva para compreender não só o bem jurídico protegido pela incriminação, como também para compreender os elementos e a construção do tipo de crime, sendo o conteúdo da ação a prática de ato sexual de relevo, de entre eles o coito anal e o coito oral.


Ora, atenta a factualidade assente, é inequívoco o preenchimento dos elementos objetivo e subjetivo (com dolo direto – artigo 14º, nº 1 do Código Penal) típicos do ilícito criminal em questão, sendo a violência inequívoca (factos 41º e seguintes), previsto e punido pelo artigo 164º, nº2, alínea a) do Código Penal.


Inexiste qualquer causa de exclusão de ilicitude e/ou da culpa, nem falta qualquer condição de punibilidade, pelo que se impõe a condenação do arguido em conformidade com o exposto.”.


Se bem entendemos o recorrente, defende o mesmo que os factos por si praticados sobre a assistente, na noite de 13 de janeiro de 2023, serão inidóneos a integrar qualquer dos meios de ação descritos no n.º2 do art.164.º do Código Penal - integrando apenas a tipificação da violação simples do n.º1 do art.164.º do Código Penal -, porquanto o arguido e a assistente mantiveram uma relação em tudo idêntica à dos cônjuges, a assistente consumia álcool e sobretudo quando o fazia em excesso era agressiva e conflituosa, e a assistente conhecia o espaço em que terão ocorrido os factos por lá ter estado várias vezes na companhia do arguido e para lá se deslocou voluntariamente com o arguido.


É inequívoco, da leitura do acórdão recorrido, que o Tribunal a quo, aquando do enquadramento jurídico penal da conduta do arguido no crime de violação, p. e p. pelo n.º2 do art.164.º do Código Penal, não realçou estas circunstâncias.


Porém, este Supremo Tribunal entende que não teria de o fazer, por diversas razões.


Em primeiro lugar, o arguido e a assistente AA não mantiveram, entre maio e 19 de dezembro de 2022, uma relação em tudo idêntica à dos cônjuges, mas sim uma relação de namoro, sem coabitação, pernoitando o arguido, por vezes, na residência da assistente (pontos n.ºs 1 e 2).


Em segundo lugar, não consta em lado algum dos factos provados do acórdão recorrido, que a assistente AA era agressiva e conflituosa, designadamente quando consumia álcool. O que consta provado é que a relação entre o arguido e a assistente - que terminou a 19 de dezembro de 2022 por iniciativa da assistente - foi sempre muito conturbada, pautada por vários episódios de violência perpetrados pelo arguido contra a assistente e comportamentos persecutórios daquele para com esta, e que quando discutiam o arguido lhe dirigia expressões injuriosas (pontos n.ºs 3, 4 e 5).


Em terceiro lugar, está dado como provado que no dia 13 de janeiro de 2023, foi o arguido quem se dirigiu à casa da assistente AA para a convidar a dar uma volta porque precisava de conversar com ela, o que ela aceitou, tendo então o arguido a levado para uma garagem, que era o local de trabalho dele. Ou seja, a assistente acompanhou o arguido a dar uma volta e acabou numa garagem sujeita pelo arguido a mais um episódio de ofensas à sua integridade física e psíquica, sendo absolutamente irrelevante para o preenchimento do crime de violação se ela conhecia ou não esse local.


O que o Supremo Tribunal de Justiça tem como inequívoco é que o arguido, na garagem em causa, usou de força física idónea, suficiente, para coagir, constranger, a assistente a suportar a introdução do pénis ereto do arguido dentro da vagina desta, não obstante os vários pedidos que a assistente lhe fez para que parasse com a sua atuação.


Numa primeira resolução, o arguido quis impor, e impôs, à assistente AA uma relação de poder, de domínio sobre ela, agarrando-a primeiro pelos braços, para a impedir de sair da garagem como ela havia manifestado essa vontade; em seguida dirigiu-lhe uma pancada com a mão aberta na direção do rosto, vindo a atingi-la na zona ocular; depois empurrou-a contra a parede, causando-lhe dores e ordenou-lhe que se pusesse de joelhos e como esta não o quisesse fazer projetou-a contra o solo, tendo ficado na posição por ele pretendida. Na continuação de “coisificação” da assistente, de humilhação e manutenção da relação de poder sobre ela, quando a assistente não obedece à ordem para se despir, é o arguido que lhe retira a roupa e quando lhe diz que assim podia ir embora e a assistente se dirige, nua, para o exterior da garagem, ordenou-lhe que voltasse (pontos n.ºs 40 a 48 dos factos provados).


Amaciada a vontade” da assistente - como bem refere o Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto, neste Supremo Tribunal -, o arguido decide agarrar a assistente pelo braço e levá-la para uma divisão da garagem, onde, nua, a projeta para a cama aí existente, deita-se sobre a vítima e, imobilizando-a, sujeitou-a a cópula, apesar dos vários pedidos que a assistente lhe dirigiu.


A violação consumada da assistente, inserida num sentido social de ilicitude típica a que o arguido até aí a não sujeitara, foi manifestamente realizada sob força física e expressamente contrária à vontade da assistente.


Tendo o arguido constrangido a assistente a sofrer cópula, por meio de violência física, e sabendo que “…ao manter relações sexuais com a assistente nos termos descritos, a estava a privar na sua liberdade sexual, agindo contra a vontade e consentimento desta” (ponto n.º 60 dos factos provados), sufragamos a decisão recorrida quando deu como preenchidos todos os elementos do tipo objetivo e subjetivo do crime de violação, p. e p. pelo n.º2 do art.164.º do Código Penal.


Improcede, deste modo, a primeira questão.


13. Do crime de sequestro


O recorrente entende que deve ser absolvido do crime de sequestro, p. e p. pelo art.158.º, n.º1 do Código Penal, essencialmente, por três motivos: (i) nos casos em que um crime se apresenta como meio da realização típica de outro crime, a solução passa por reconhecer que existe concurso aparente e prevalece o crime dominante, o crime-fim, pelo que deve atender-se ao desígnio que animou o agente do crime; (ii) o acórdão recorrido trata a assistente como um autómato, incapaz de vontade própria e de se opor à vontade do arguido, quando ela é uma mulher madura, vivida, independente , que não se basta com um “não sais daqui”; (iii) tendo sido dado como não provado que “Depois, uma vez que a assistente pretendia sair daquele local com os seus pertences, o arguido dirigiu-se ao portão da garagem e fechou-o com o respetivo cadeado”, nada impedia a assistente de se ir embora enquanto o arguido dormia, pelo que existe insuficiência de factos que sustentem a condenação pelo crime de sequestro.


Vejamos.


13.1. Por razões de ordem lógica, importa em primeiro lugar decidir se, como entendeu o acórdão recorrido, a conduta do arguido preencheu todos os elementos típicos do crime de sequestro.


O acórdão recorrido consignou a propósito deste ilícito-típico, na fundamentação de direito (transcrição):


“Sob a epígrafe “Sequestro” dispõe o artigo 158º, nº1 do Código Penal que quem detiver, prender, mantiver presa ou detida outra pessoa ou de qualquer forma a privar da liberdade é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.


O tipo objetivo deste crime consiste na privação absoluta da liberdade de movimentação de outra pessoa, protegendo-se, assim, a liberdade ambulatória ou de locomoção.


Qualquer pessoa pode ser vítima do crime de sequestro, incluindo bebés, menores, incapazes, pessoas que se encontrem temporariamente sem os sentidos ou pessoas incapazes de se movimentarem pelos seus próprios meios, uma vez que a liberdade de hétero-locomoção destas pessoas está protegida pela incriminação (Paulo Pinto Albuquerque, Comentário ao Código Penal, UCE, Lisboa, 2008, pág. 424).


O crime de sequestro é um crime de execução livre, admitindo qualquer forma adequada de privar a liberdade. Estão, pois, incluídas a ameaça e a violência física e psíquica, bem como o ardil, a fraude e a astúcia.


Tratando-se de um crime de resultado aplica-se a teoria da adequação do resultado à conduta.


Ao testar esta adequação, o Tribunal deve ter em conta as características psíquicas e físicas da vítima, com vista a determinar se se o meio utilizado para limitar a liberdade da vítima era idóneo para esse efeito.


O crime consuma-se com o início da privação da liberdade e o flagrante delito mantém-se enquanto se mantiver a privação da liberdade. A privação da liberdade pode durar apenas alguns minutos, desde que seja suficientemente intensa para não poder ser socialmente adequada (Paulo Pinto Albuquerque, obra citada, pág. 425).


Para o preenchimento do tipo subjetivo é necessário que exista dolo, em qualquer das suas modalidades.


No presente caso, resultou provado que, após a prática do crime de violação, o arguido disse à assistente que não saia da garagem, tendo ficado com o seu telemóvel e com as suas chaves, pelo que ficaram ambos ali a dormir, sendo que só na madrugada seguinte é que aquele lhe disse para ela ir trabalhar.


Resulta, assim, que, em consequência da conduta do arguido, ficou a ofendida privada da sua liberdade de locomoção, porquanto, após ter sido violada, foi forçada a ficar na garagem do arguido, tendo aquele a proibido de sair.


Como se disse supra, qualquer pessoa pode ser vítima de sequestro e o crime de sequestro é um crime de execução livre, sendo que o modo de execução usado pelo arguido (descrito supra) foi a forma adequada de privar AA da sua liberdade de locomoção/hetero-locomoção.


Nem se diga que a mesma poderia ter fugido, por a porta não estar fechada, tanto mais que aquele esteve sempre perto dela e a mesma encontrava-se numa situação extremamente fragilizada, tendo acabado de ser violada.


Mas será este sequestro agravado, conforme acusou o Ministério Público?


Dispõe o artigo 158º, nº2, alínea b) do Código Penal que a pena deste crime é agravada se for precedida ou acompanhada de ofensa à integridade física grave, tortura ou outro tratamento cruel, degradante ou desumano. Não foi esse aqui o caso: é certo que para a violação o arguido recorreu à violência, mas já não para o sequestro, tendo o seu ascendente sobre aquela sido suficiente para a mesma se sentir obrigada a permanecer na garagem.


Assim, será assim o arguido condenado pela prática de um crime de sequestro, mas na sua forma simples.”


Concordamos genericamente com esta fundamentação.


Se não vejamos.


Sob a epígrafe “Sequestro” dispõe o artigo 158º, nº1 do Código Penal que quem detiver, prender, mantiver presa ou detida outra pessoa ou de qualquer forma a privar da liberdade é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.


O tipo objetivo deste crime consiste na privação absoluta da liberdade de movimentação de outra pessoa, protegendo-se, assim, a liberdade ambulatória ou de locomoção.


Qualquer pessoa pode ser vítima do crime de sequestro, incluindo bebés, menores, incapazes, pessoas que se encontrem temporariamente sem os sentidos ou pessoas incapazes de se movimentarem pelos seus próprios meios, uma vez que a liberdade de hétero-locomoção destas pessoas está protegida pela incriminação.4


O crime de sequestro é um crime de execução livre, admitindo qualquer forma adequada de privar a liberdade. Estão, pois, incluídas a ameaça e a violência física e psíquica, bem como o ardil, a fraude e a astúcia.


Tratando-se de um crime de resultado aplica-se a teoria da adequação do resultado à conduta. Ao testar esta adequação, o Tribunal deve ter em conta as características psíquicas e físicas da vítima, com vista a determinar se o meio utilizado para limitar a liberdade da vítima era idóneo para esse efeito.


O crime consuma-se com o início da privação da liberdade e o flagrante delito mantém-se enquanto se mantiver a privação da liberdade. A privação da liberdade pode durar apenas alguns minutos, desde que seja suficientemente intensa para não poder ser socialmente adequada.5


Para o preenchimento do tipo subjetivo é necessário que exista dolo, em qualquer das suas modalidades.


No caso, realçamos apenas, relativamente ao acórdão recorrido, que a privação de liberdade de locomoção não se iniciou apenas após a violação da assistente AA.


Na realidade, a privação da liberdade de locomoção, de movimentação, da assistente começou quando esta declarou ao arguido que queria ir embora (ponto n.º 40) e o arguido a agarrou nos braços, impedindo-a de sair do interior da garagem (ponto n.º41).


Esta privação de liberdade de locomoção é reafirmada, inequivocamente, pelo arguido, quando, depois de despir a assistente e de lhe declarar que “agora já te podes ir embora”, ao ver que a assistente se dirige para o exterior da garagem, ordena-lhe que volte a entrar e, agarrando-a no braço, leva-a para o quarto, onde a viola.


Nestas circunstâncias de domínio e poder completo sobre a assistente, físico e psicológico, em que até sujeitou a assistente a uma violação, não tem sentido defender, como faz o arguido, que a assistente nunca esteve privada de liberdade de locomoção, designadamente, após ter sido violada, porquanto não se provou que o portão da garagem tinha sido fechado a cadeado pelo arguido.


Perante a agressividade do arguido descrita nos factos provados e a oposição expressa afirmada pelo mesmo à assistente de que não a deixava sair da garagem, entendemos que as ordens proferidas pelo arguido foram um meio idóneo a limitar a liberdade de locomoção da assistente. É evidente, face ao caso concreto, que a desobediência da assistente às expressas ordens do arguido a faria correr um sério risco relativamente à sua integridade física.


Longe está, assim, poder concluir-se que nada impedia a assistente de se ir embora enquanto o arguido dormia.


Consequentemente, não merece censura, a decisão recorrida quando considera que o arguido com a sua descrita conduta preencheu todos os elementos do tipo objetivo e subjetivo do crime de sequestro.


13.2. A questão seguinte a decidir a este respeito, é saber se o crime de sequestro simples, p. e p. pelo art.158.º, n.º 1, do Código Penal, pelo qual o ora recorrente foi condenado, está, ou não, em concurso aparente com outro crime.


Vejamos, em termos muito sucintos, o que se entende por concurso aparente.


A problemática do concurso de crimes tem como princípio de solução o art.30.º do Código Penal, ao estabelecer que «O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.».


Traduzindo o pensamento de Eduardo Correia, o critério determinante do concurso é o que resulta da consideração dos tipos legais violados. E “efetivamente” violados, o que aponta decisivamente para a consagração de um critério teleológico referido ao bem jurídico.


Há concurso real quando o agente pratica vários atos que preenchem autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime (pluralidade de ações), e concurso ideal quando através de uma mesma ação se violam várias normas penais, ou a mesma norma, repetidas vezes (unidade de ação).


O critério teleológico que a lei acolhe no tratamento do concurso de crimes, condensado na referência a crimes «efetivamente cometidos», é adequado a delimitar os casos de concurso efetivo (pluralidade de crimes através de uma mesma ação ou de várias ações) das situações em que, não obstante a pluralidade de tipos de crime eventualmente preenchidos, não existe efetivo concurso de crimes (os casos de concurso aparente e de crime continuado).


Ao lado das espécies de concurso próprio (ideal ou real) há, com efeito, casos em que as leis penais concorrem só na aparência, excluindo uma as outras. A ideia fundamental comum a este grupo de situações é a de que o conteúdo do injusto de uma ação pode determinar-se exaustivamente apenas por uma das leis penais que podem entrar em consideração - concurso impróprio, aparente ou unidade de lei.


A determinação dos casos de concurso aparente faz-se, de acordo com as definições maioritárias, segunda regras de especialidade, subsidiariedade ou consunção.


A subsidiariedade como categoria do concurso aparente, significa “que certas normas penais intervêm só de forma auxiliar ou subsidiária, quando o facto não seja punido por uma outra norma mais grave”.6


A generalidade da jurisprudência, perante a redação do art.30.º, n.º1 do Código Penal, entende que o critério operativo de distinção entre categorias, que permite determinar se em casos de pluralidade de ações ou pluralidade de tipos realizados existe, efetivamente, unidade ou pluralidade de crimes, ou seja, concurso legal ou aparente ou real ou ideal, reverte ao bem jurídico e à concreta definição que esteja subjacente relativamente a cada tipo de crime.7


Não se desconhece que Figueiredo Dias abandonou, entretanto, os critérios baseados na unidade ou pluralidade de tipos de crimes violados e o da unidade e pluralidade de ações praticadas pelo agente, como critério possível de distinção entre unidade e pluralidade de crimes, avançando com uma nova perspetiva, do ponto de vista dogmático: é a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica, existente no comportamento global do agente submetido à cognição do tribunal, que decide em definitivo da unidade ou pluralidade de factos puníveis e, nesta aceção, de crimes.


Neste sentido, consigna que “…decisiva é, pois, a análise do significado do comportamento global que lhe empresta um sentido material (social) de ilicitude, terá então de reconhecer-se, de um ponto de vista teleológico e de valoração normativa "a partir da consequência", a existência de dois grupos de casos: (a) o caso (“normal”) em que os crimes em concurso são na verdade recondutíveis a uma pluralidade de sentidos sociais autónomos dos ilícitos-típicos cometidos e, deste ponto de vista, a uma pluralidade de factos puníveis - hipóteses que chamaremos de concurso efectivo (art.30.°-1), próprio ou puro; (b) e o caso em que, apesar do concurso de tipos legais efectivamente preenchidos pelo comportamento global, se deva ainda afirmar que aquele comportamento é dominado por um único sentido autónomo de ilicitude, que a ele corresponde uma predominante e fundamental unidade de sentido dos concretos ilícitos-típicos praticados - hipóteses que chamaremos de concurso aparente, impróprio ou impuro.”.8


Posto isto.


Embora o recorrente não seja claro quanto ao ilícito principal com o qual entende que o crime de sequestro estará em concurso aparente (conclusões 9.ª e 10.ª da motivação), esse crime só poderá ser o crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.152.º, n.º1, alínea b), do Código Penal, pelo qual o arguido foi condenado.


O art.152.º do Código Penal, sob a epígrafe « Violência doméstica», estabelece na parte com interesse para a decisão:


«1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:


a) (…);


b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;


(…)


é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.».


Não existe unanimidade na doutrina e jurisprudência sobre a identificação do(s) bem/bens jurídico(s) protegido(s) pelo crime de violência doméstica.


Ainda assim, cremos poder defender-se que o bem jurídico protegido no crime de violência doméstica é plural, complexo, abrangendo a integridade corporal, a saúde física e psíquica, em contexto de relação de namoro, relação conjugal ou relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação e mesmo após cessar essa relação.


No dizer de Nuno Brandão, “É o perigo para a saúde do objeto de ação alvo da conduta agressora que constitui motivo da criminalização, pretendendo-se deste modo oferecer uma tutela antecipada ao bem jurídico em apreço, própria dos crimes de perigo abstrato. E se a proteção da integridade corporal da vítima constitui um dos planos desta tutela, creio, no entanto, que o desvalor potencial fundamentalmente tomado em consideração para justificar esta específica modalidade de incriminação se prende com os sérios riscos para a integridade psíquica da vítima que podem advir da sujeição a maus-tratos físicos e/ou psíquicos, sobremaneira quando se prolonguem no tempo”.9


Sendo discutível se a dignidade humana faz parte do bem jurídico deste tipo penal, dada a amplitude deste conceito, dúvidas não há que a teologia do crime não é alheia a esta vertente, que emana dos artigos 25.º e 26.º da C.R.P...


Sendo a razão de ser da autonomização do crime de violência doméstica a busca de um bem jurídico suficientemente amplo e operativo, as condutas que integram o tipo-de-ilícito não devem ser individualmente consideradas, enquanto, eventualmente, integradoras de um tipo de crime, para serem atomisticamente perseguidas criminalmente mas, antes, devem ser valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento repetido ou isolado que signifique violência sobre o namorado, o cônjuge ou equiparado, mesmo após a cessação da relação .


Daqui se extraindo alguma jurisprudência que entre o crime de violência doméstica e os crimes de ofensa à integridade física simples, ameaça, injúria e difamação ou outros que o podem integrar, estabelece-se uma relação de concurso aparente, só se aplicando a pena estabelecida pelo artigo 152.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, deixando de ter relevância jurídico-penal autónoma os crimes que o podem integrar.


A unidade de ação típica não é excluída pela realização repetida de atos parciais, quer estes atos integrem, ou não, em si mesmos, outros tipos de crime.


Os maus-tratos, físicos e psíquicos, exemplificativamente elencados no n.º1 do art.152.º do Código Penal, em contexto de relação de namoro, relação conjugal ou relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação e mesmo após cessar essa relação, correspondem, pois, à prática de crimes de ofensa à integridade física simples (art.143.º do C.P.), de sequestro simples (art.158.º, n.º1 do C.P.), de ameaça (art.153.º do C.P.), de coação (art.154.º do C.P.), de coação sexual (art.163.º, n.º1 do C.P.), e de difamação e injúrias, simples ou qualificadas (artigos 180.º, 181.º, 183.º e 184.º do C.P.).


No sentido exposto, refere o S.T.J. no acórdão de 27-4-2018 (proc. n.º 131/17.8JAPRT.S1), que “…tem-se entendido que [no crime de violência doméstica] ocorre uma relação de concurso aparente de normas com outros tipos penais, designadamente as ofensas corporais simples (artigo 143.º, nº 1 do Código Penal), as injúrias (artigo 181.º), a difamação (artigo 180.º, nº 1), a coação (artigo 154.º), o sequestro simples (artigo 158.º, nº 1), a devassa da vida privada [artigo 192.º, nº 1. al. b)], as gravações e fotografias ilícitas [artigo 199.º, nº 2, al b)] – acórdão Tribunal da Relação de Évora de 8-01-2013 (dgsi) – as ameaças simples ou agravadas – Catarina Sá Gomes, “O crime de maus tratos físicos e psíquicos infligido ao cônjuge ou a convivente em condições análogas às do cônjuges, pág. 59, AAFDL, 2002.”.10


A prática mais ou menos constante e reiterada das condutas descritas no art.152.º do Código Penal, desde que cada uma dessas condutas não permita a sua autonomização por força da aplicação de uma «pena mais grave», dará origem a uma unicidade normativo-social, tipicamente imposta, pelo que o agente terá praticado um só crime, desde que esteja em causa uma só vítima.


O segmento final do n.º1 do art.152.º do Código Penal, ao estabelecer que os atos aí descritos são punidos com pena de prisão de 1 a 5 anos, «se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal», vem sendo justamente criticado, na doutrina e na jurisprudência.


O Supremo Tribunal, pelo menos maioritariamente, vem afastando uma interpretação e aplicação formal deste segmento da norma, no sentido de considerar que se a punição do crime concorrente for superior a 5 anos de prisão, existirá um concurso aparente de crimes, sendo o crime de violência doméstica afastado em resultado da regra da subsidiariedade.


Por esta interpretação poder levar a uma injustiça material intolerável em benefício do arguido, levando a que este fosse apenas punido pelo crime mais grave, como o de ofensa à integridade física grave, violação, sequestro qualificado e homicídio, mas esquecendo completamente a punição de todos os restantes atos integradores do n.º1 do art.152.º do Código Penal, que até podem ter durado anos, o S.T.J. vem permitindo a cisão desta unidade normativa sempre que o crime mais grave assuma autonomia relativamente aos maus-tratos e, assim, estabelecer uma relação de concurso efetivo com o crime de violência doméstica.11


Embora a problemática que advém da parte final do n.º1 do art.152.º do Código Penal, não faça parte da presente questão objeto de recurso, seguimos aqui também o entendimento jurisprudencial no sentido de que quando algum dos atos mais graves (violação ou sequestro qualificado, por exemplo), permita alguma autonomia face à concreta conduta do arguido olhada globalmente, relativamente aos maus-tratos unificados na violência doméstica, pelo diverso sentido social da ilicitude material e pluralidade de resoluções, o agente deve ser punido em concurso efetivo, pela incriminação respetiva mais grave e pela violência doméstica.


13.3. No caso concreto, a privação da liberdade da assistente na situação descrita nos pontos n.ºs 40 a 56 dos factos provados, foi tratada pelo Tribunal a quo como sequestro simples, pelo que integra o tipo-de-ilícito do art.152.º, n.º1 do Código Penal, na vertente dos maus-tratos, onde se incluem as «privações da liberdade».


Assim, não pode esta conduta do arguido ser individual e atomisticamente perseguida como tipo autónomo, mas antes valorada globalmente no crime de violência doméstica praticado pelo ora recorrente sobre a ex-namorada AA.


Pelo exposto, impõe-se revogar a decisão recorrida na parte em que condenou o arguido pela prática de um crime de sequestro, p. e p. pelo art.158.º, n.º1 do Código Penal, e absolvê-lo da sua prática.


14. Das penas aplicadas


Resta analisar a medida da pena parcelar aplicada ao arguido pelo crime de violação e reconfiguração do cúmulo jurídico das penas aplicadas.


O recorrente defende que, nos termos do disposto nos artigos 40.º e 71.º do Código Penal e 18.º, n.º2 e 27.º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa, deveria ter-lhe sido aplicada uma pena em torno dos 3 anos de prisão pela prática do crime de violação tipificado no n.º1 do art.164.º do Código Penal, argumentando que o Tribunal a quo não considerou as especificidades da relação, nomeadamente, a sua recíproca crispação, que resulta transversal a todos os depoimentos juntos aos autos.


Vejamos.


O critério da determinação da medida concreta da pena consta do art.71.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal.


Nos termos desta norma penal a medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo o tribunal a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor ou contra ele.


Não se esgotando o facto punível com a ação ilícita-típica, necessário se torna sempre que a conduta seja culposa, “isto é, que o facto possa ser pessoalmente censurado ao agente, por aquele se revelar expressão de uma atitude interna pessoal juridicamente desaprovada e pela qual ele tem por isso de responder perante as exigências do dever-ser sociocomunitário.”12


O juízo de censura, ou desaprovação, é suscetível de se revelar maior ou menor sendo, por natureza, graduável e dependendo sempre das circunstâncias concretas em que o agente desenvolveu a sua conduta, traduzindo igualmente um juízo de exigibilidade determinado pela vinculação de cada um a conformar-se pela atuação de acordo com as regras estipuladas pela ordem jurídica superando as proibições impostas.


O requisito de que sejam levadas em conta, na determinação da medida concreta da pena, as exigências de prevenção, remete para a realização in casu das finalidades da pena, que de acordo com o art.40.º, n.º1, do Código Penal, são a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.


O objetivo último das penas é a proteção, o mais eficaz possível, dos bens jurídicos fundamentais.


Esta proteção implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, servindo primordialmente para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva ou de integração).


A prevenção geral radica no significado que a “gravidade do facto” assume perante a comunidade, isto é, no significado que a violação de determinados bens jurídico-penais tem para a comunidade e visa satisfazer as exigências de proteção desses bens na medida do necessário para assegurar a estabilização das expectativas na validade do direito.


A reintegração do agente na sociedade está ligada à prevenção especial ou individual, isto é, à ideia de que a pena é um instrumento de atuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que no futuro, ele cometa novos crimes, que reincida.


É a prevenção geral positiva que fornece uma moldura de prevenção dentro de cujos limites podem e devem atuar considerações de prevenção especial.


As circunstâncias gerais enunciadas exemplificativamente no n.º2 do art.71.º do Código Penal, são, no ensinamento de Figueiredo Dias, elementos relevantes para a culpa e para a prevenção e, “ por isso, devem ser consideradas uno actu para efeitos do art.72.º-1; são numa palavra, fatores relevantes para a medida da pena por força do critério geral aplicável.”.


Para o mesmo autor, esses fatores podem dividir-se em “fatores relativos à execução do facto”, “fatores relativos à personalidade do agente” e “fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto”.


Como expende Maria João Antunes, podem ser agrupados nas alíneas a), b), c) e e), parte final, do n.º 2 do art.71.º, do Código Penal, os fatores relativos à execução do facto; nas alíneas d) e f), os fatores relativos à personalidade do agente; e na alínea e), os fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto. 13


Por respeito à eminente dignidade da pessoa a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa (art.40.º, n.º 2 do C.P.), designadamente por razões de prevenção.


Nas situações em que o agente praticou vários crimes, o concurso efetivo de crimes impõe que se tenham em consideração as regras da punição do concurso, estabelecidas no art.77.º do Código Penal.


Nos termos desta norma a pena conjunta é definida dentro de uma moldura cujo limite mínimo é a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e o limite máximo resulta da soma das penas efetivamente aplicadas, emergindo a medida da pena conjunta, não apenas dos factos individualmente considerados, numa visão atomística, mas da imagem global do facto imputado e da personalidade do agente.


Na busca da pena do concurso, explicita Figueiredo Dias, que “Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta”. E acrescenta que “de grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).”14


Por fim, importa não esquecer que quer na determinação da pena parcelar, quer na pena conjunta, se impõe atender aos “princípios da proporcionalidade, da adequação e proibição do excesso”, constitucionalmente consagrados no art.18.º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa.


Retomando o caso concreto.


A propósito da medida das penas parcelares e única, expendeu-se, em concreto, na decisão recorrida (transcrição):


Ora, no caso dos autos, consideramos que as razões de prevenção geral são elevadíssimas neste tipo de criminalidade, causando os ilícitos sexuais um considerável tremor social –tanto mais atendendo à grandeza do bem jurídico protegido, o que, aliado à notória frequência do crime de violência doméstica nesta comunidade, reclama um forte sentido coletivo de Justiça.


Quanto às exigências de prevenção especial, deverá ter-se presente, o elevadíssimo grau de ilicitude de todos os factos praticados, especialmente o de violação, com forte intromissão no corpo e bem-estar físico e psíquico da ofendida. O grau de culpa situa-se num patamar muito superior à média, atento o calculismo do arguido (que utilizou como desculpa conversar com a assistente para a atrair para a sua garagem), os concretos atos sexuais praticados, tudo envolto num intenso dolo direto. E mesmo após a consumação de tal crime, ainda a proibiu de sair da garagem e, no dia seguinte, dava-lhe instruções de como reagir. Não podemos ainda ignorar a total falta de empatia para com a vítima e que praticou o crime durante o período da suspensão de uma pena também pela prática de um crime de violência doméstica.”


Já no que respeita ao cúmulo jurídico, consignou, em concreto:


Nos termos do nº 2 da norma acima referida [art.77.º do Código Penal], a pena única deverá ter como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos três crimes, a saber, 9 anos e 6 meses de prisão. Já o limite mínimo das penas corresponderá à mais elevada das penas concretamente aplicadas a todos os crimes (5 anos de prisão).


Dentro desta moldura, há também que atender aos factos e à personalidade do agente, apreciados conjuntamente (artigo 77º, nº 1, parte final do Código Penal), pelo que, realizando uma análise genérica e consequencial de toda a factualidade, de modo a fazer corresponder a punição aos factos e às exigências pessoais e sociais que a sua prática suscitou, com o máximo rigor e acerto, e recorrendo ao que já se escreveu aquando das exigências de prevenção geral e especial, mas destacando ainda a total falta de empatia para com a vítima, demonstra-se adequada a fixação da pena única do concurso em 7 anos e 6 meses de prisão.


Relativamente ao crime de violação, ficou já definido que a conduta do arguido preenche a tipificação do n.º2 e não do n.º1 do art.164.º do Código Penal e, consequentemente, a moldura penal não é de 1 a 6 anos de prisão, mas de 3 a 10 anos de prisão.


Em termos sucintos, no que respeita aos «fatores relativos à execução do facto», consideramos elevado o grau de ilicitude dos factos no respeitante ao crime de violação por meio de violência, dado todo o contexto em que a violação ocorreu, com expressa e reiterada oposição da vítima à prática do ato sexual de cópula por parte do ex-namorado, com quem a assistente tinha já terminado a relação de namoro. As especificidades da “relação” entre o arguido e a assistente, como sendo de “recíproca crispação”, invocadas pelo recorrente, em nada relevam para a atenuação da responsabilidade criminal pela violação, tanto mais que a relação de namoro já terminara por decisão da assistente. No modo de execução da violação merece realce a prévia humilhação da vítima. A motivação que levou o arguido a sujeitar a assistente à prática de cópula foi, evidentemente, a satisfação dos seus instintos libidinosos. O grau de violação dos deveres impostos ao arguido, é intenso, tendo em conta que os factos foram cometidos depois de ambos terem tido uma relação de namoro e no local de trabalho do mesmo para onde a levou a pretexto de dar uma volta porque precisava de conversar com ela, assim traindo a sua confiança em acompanhar. As consequências da violação pelo arguido são graves pela forte intromissão que o ato representa no corpo e bem-estar físico e psíquico da ofendida. Por fim, agiu com dolo direto e intenso.


Nos “fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto», são de realçar, como bem anota a decisão recorrida, o cometimento dos crimes durante o período de suspensão de execução de uma pena pela prática de um crime de violência doméstica e a circunstância do arguido , após a prática dos factos em causa, dar instruções à assistente de como reagir, de modo a encobrir os seus atos criminosos. Os seus relacionamentos amorosos anteriores são caraterizados como desajustados. Não beneficia de confissão aberta ou arrependimento pela violação da vítima, circunstâncias através das quais o Tribunal poderia ser levado a considerar existir um juízo de prognose favorável ao comportamento futuro do arguido.


Nos “Fatores relativos à personalidade do agente”, que integram a alínea e), n.º2 do art.71.º do Código Penal, assume preponderância a não interiorização da gravidade da conduta por parte do arguido, não apresentando qualquer empatia para com a assistente. Apresenta dificuldades de auto controlo perante situações geradoras de tensão. Tem modestas habilitações literárias e fracos hábitos de trabalho.


Considerando o grau de perigosidade do arguido que resulta da globalidade dos factos provados, entendemos, tal como a decisão recorrida, que as razões de prevenção especial são muito elevadas.


Também as razões de prevenção geral são muito elevadas nos crimes de natureza sexual, particularmente nos crimes de violação, pelo alarme e forte repugnância que causa na sociedade.


Tendo em consideração as circunstâncias valoradas na determinação da pena aplicada pelo crime de violação, as finalidades da pena, os princípios que lhe presidem e a moldura penal mencionada no acórdão recorrido, não se encontra fundamento para discordar da pena parcelar de 5 anos de prisão aplicada ao arguido, por alegadamente excessiva, quando ela se situa pouco acima do seu limite mínimo (3 anos) e bem longe do seu limite máximo (10 anos).


O Supremo Tribunal de Justiça entende que a fixação de pena inferior à pena parcelar aplicada ao ora recorrente pela prática de um crime de violação não respeitaria o disposto nos artigos 18.º, n.º 2 da C.R.P. e 40.º e 71.º do Código Penal15.


Perante a absolvição do arguido da prática de um crime de sequestro, pelo qual fora condenado na pena de 2 anos de prisão, impõe-se reformular o cúmulo jurídico das penas fixadas no acórdão recorrido, tendo em consideração que o limite mínimo da pena é de 5 anos de prisão e o limite máximo é de 7 anos e 6 meses de prisão.


Observando o ilícito global que emerge da análise unificada dos factos, não se pode deixar de qualificar o mesmo, como sendo de grau elevado.


Assim:


- Estão em concurso um crime de violência doméstica e um crime de violação, tendo como vítima uma ex-namorada, praticados no mesmo tempo e local;


- Os crimes em causa, que atentam contra a saúde física e psíquica da vítima e a liberdade e autodeterminação sexual, integram, respetivamente o conceito de “criminalidade violenta” e “criminalidade especialmente violenta”, a que aludem as alíneas j) e l), do art.1.º do Código de Processo Penal, o que os afasta da pequena/média criminalidade.


- O arguido tem antecedentes criminais , tendo os crimes sido praticados durante o período de suspensão de execução de uma pena de prisão pela prática de um crime de violência doméstica.


A culpa global do arguido é acentuada, dado o contexto em que os factos ocorreram , em que demonstrou uma intensa vontade de os praticar.


Quanto à personalidade unitária do recorrente, anotamos um percurso de vida do arguido desestruturado, no que concerne às suas condições de vida laboral e amorosa ao longo do tempo, e às suas fracas condições socioeconómicas e laborais, a que acresce a falta de um adequado juízo critico acerca da ilicitude das suas condutas, uma vez que não interiorizou a elevada gravidade das suas condutas.


Pese embora se esteja ainda numa situação de pluriocasionalidade, entende-se, no acórdão recorrido, e bem, que são prementes as exigências de prevenção especial.


Estas exigências postulam efetivamente a aplicação de uma pena que possa ser interiorizada pelo arguido, como dissuasora da prática de novos crimes e para que sirva de aviso para que adapte o seu comportamento às normas socialmente vigente.


As exigências de prevenção geral de integração que se fazem sentir são também muito elevadas, como é bem avançado no acórdão recorrido.


Neste contexto, ponderando em conjunto a gravidade dos factos e a sua relacionação com a deficiente personalidade do recorrente que resulta daquele, entendemos que se mostra justa, por adequada às finalidades de prevenção, proporcional á culpa e à personalidade do arguido/recorrente, fixar a pena conjunta em 6 anos e 10 meses de prisão.


Procede, nestes termos, parcialmente, o recurso interposto pelo arguido.


III - Decisão


Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido BB e, revogando o acórdão recorrido na parte em que o condenou pela prática de um crime de sequestro, p. e p. pelo art.158.º, n.º1 do Código Penal, absolve-se o mesmo da sua prática e, reformulando o cúmulo jurídico das penas, condenar o mesmo arguido na pena conjunta de 6 (seis) anos e 10 (dez) meses de prisão.


Sem tributação (art. 513º, n.º 1 do C. P.P.).


*


(Certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.ºs 2 e 3 do C.P.P.).


*


Lisboa,


Orlando Gonçalves (Relator)


Agostinho Torres (1.º Adjunto)


Jorge dos Reis Bravo (2.º Adjunto)


Proc. n.º 72/23.0JAPDL.S1


Recurso penal


*


Acordam, em Conferência, na 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I - Relatório


1. Nos presentes autos, que correm termos no Juízo Central Cível e Criminal de ... – Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, sob acusação do Ministério Público, a que a assistente AA aderiu, foi submetido a julgamento, em processo comum com intervenção do Tribunal Coletivo, o arguido BB, devidamente identificado nos autos, imputando-se-lhe a prática, na forma consumada e em concurso efetivo, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º1, alínea b) do Código Penal, um crime de violação, agravado, previsto e punido pelo art.164.º, n.º 2, alínea a) do Código Penal e um crime de sequestro, agravado, previsto e punido pelo art.158.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), do Código Penal.


2. Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Coletivo, por acórdão proferido a 8 de novembro de 2023, decidiu julgar a acusação parcialmente procedente, por provada e, em consequência, condenar o arguido BB:


- pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art.152.º, n.º1, alínea b), Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão;


- pela prática de um crime de violação agravado, previsto e punido pelo art.164.º, n.º2, alínea a), Código Penal, na pena de 5 anos de prisão; e


- pela prática de um crime de sequestro, previsto e punido pelo art.158.º, n.º1, Código Penal, na pena de 2 anos de prisão; e,


- operando o cúmulo jurídico, condenar o mesmo arguido na pena única de 7 anos e 6 meses de prisão.


Mais foi ainda condenado na pena acessória de proibição de contacto com a vítima AA pelo período de 5 anos (artigo 152º, nº4 do Código Penal).


3. O arguido BB, inconformado com o acórdão dele interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, concluindo a sua motivação do modo seguinte (transcrição):


1º) O presente recurso tem por objecto os segmentos do douto acórdão relativos à condenação do arguido pelo crime de violação agravado e respetiva medida concreta da pena e, ainda, pela pelo crime de sequestro p. e p. pelos Art.°s 164º nº 2 e 158º nº 1 ambos do CP., e apenas quanto a questões de direito.


2º) O Tribunal não pode apreciar valorativamente sem examinar e relevar todas as circunstâncias que envolvem o caso concreto. Nomeadamente o terem Assistente e arguido mantido uma relação em tudo idêntica à dos cônjuges, ou ter a Assistente hábitos de consumo, muitas vezes excessivo, de álcool e, sobretudo quando isso acontecia, ser agressiva e conflituosa. Bem ainda como conhecer o espaço em que terão ocorrido os factos por lá ter estado várias vezes na companhia do arguido, e de lá se ter feito acompanhar por este voluntariamente. E não se diga isso para desculpar o arguido da sua conduta, mas apenas para avaliá-la na sua justa concretude.


3º) Neste caso concreto, o Tribunal não deveria ter considerado a existência de Violação agravada, mas tão só violação na tipificação simples do nº 1 do art.º 164º, porquanto a alegada violência em que se respaldou o douto acórdão, para a convicção da sua agravação, não constitui uma exceção ao comportamento infelizmente transversal daquela concreta relação entre a Assistente e arguido, sendo manifesta a inexistência de dolo relativamente à agravação constante do nº 2 do art.º 164º do CP.


4º) E o douto acórdão sob recurso não só não apreciou e relevou estes concretos factos para efeitos de condenação pelo nº 1 do art.º 164º do CP. como também o não fez para efeitos de fixação de uma pena mais próxima dos valores mínimos, atenta a enorme amplitude punitiva deste crime, consabidamente resultante da extrema gravidade de algumas ações e suas consequências para as vítimas.


5º) Já que, nos termos do artigo 40.º do CP, que dispõe sobre as finalidades das penas, a aplicação de penas (...) visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, devendo a sua determinação ser feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, de acordo com o disposto no artigo 71.º, do mesmo diploma.


6º) Pelo que, neste caso concreto, tudo ponderado, a pena aplicada ao arguido deveria ter sido fixada em torno dos três anos de prisão.


Quanto ao crime de sequestro,


7º) refira-se desde logo que, A necessidade de fundamentar todas as decisões judiciais é uma das exigências do processo equitativo, desde logo consagrado no artigo 6.º, § 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e deve permitir ao destinatário da decisão e ao público em geral apreender o raciocínio que conduziu o juiz a proferir tal sentença.


8º) A obrigação de motivar reveste uma importância peculiar quando se trate de apreciar uma pretensão na base de uma disposição de sentido ambíguo, caso em que é exigível uma motivação adequada e proporcional à complexidade da hipótese, devendo apresentar as características fundamentais da 'correcção', no sentido da sua aderência aos elementos probatórios adquiridos, do 'completamento', no sentido da sua extensão a todos os elementos relevantes para a formação dos juízos sectoriais conducentes ao juízo decisório e, dizemos nós - sobretudo, da 'lógica', no sentido da sua conformidade aos cânones que presidem às formas do raciocínio e que a este confiram a natureza de acto de demonstração da realidade e das regras da experiência comum. Uma motivação deficiente ou inexata deve ser equiparada à falta de motivação.


9º) As condutas que conlevam da tipicidade das condutas engolfadas nos crimes de violação, ofensas à integridade física, violência doméstica e sequestro, assumem-se como um dos exemplos de relacionamento instrumental entre diversos tipos individualizados de crime, ou seja, em que «um (ou vários) ilícitos singulares surgem, perante o ilícito principal, unicamente como meio de o realizar e, nesta realização, esgotam o seu alcance e os seus efeitos.


10º) Nos casos em que um crime se apresenta como meio da realização típica de outro crime, a solução passa por reconhecer que existe concurso aparente e prevalece o crime dominante: o crime-fim.


11º) Pelo que a perspetiva que deve nortear a convicção do Tribunal encontra-se na vontade que, em concreto, animou o agente do crime, i.e. no desígnio criminoso. E, no presente caso é manifesto, com a ressalva do devido respeito, que não existe crime de sequestro.


12º) A acusação, alicerçada embora (como em todos os demais factos positivos) nas declarações da ofendida, imputava ao arguido um desmultiplicado em dois factos absolutamente essenciais: o facto 53º que refere "uma vez que a Assistente pretendia sair daquele local com os seus pertences arguido declarou à AA agora não sais daqui" e o 61º que o reitera... "depois, uma vez que a Assistente pretendia sair daquele local "sabia ainda o arguido que ao impedir a assistente de sair da sobredita garagem, e obrigando que a mesma permanecesse naquele local não lhe facultando os seus pertences e trancando as portas de acesso à saída, estava a privar da sua liberdade de movimentos, agindo contra a sua vontade".


13º) Porém, conforme B. (factos não provados) do acórdão ora sob recurso, foi dado como facto não provado que "Depois, uma vez que a assistente pretendia sair daquele local com os seu pertences, o arguido dirigiu-se ao portão da garagem e fechou-o com o respectivo cadeado"


14º) Ora, conforme resulta manifesto da acusação, nomeadamente dos seus quesitos nº 53 e 61º, eram os factos constantes destes dois quesitos, se tivessem sido dados como provados, que suportavam a acusação de sequestro.


15º) Acontece, porém, que esses factos não foram dados como provados. Ou seja, não ficou provado que o arguido se tivesse dirigido ao portão da garagem fechando-o com o cadeado e impedindo a Assistente de sair daquele local com os seu pertences.


16º) Nem estes nem outros factos, que pudessem então, em substituição destes, fundamentar a condenação pelo crime de sequestro, ficaram provados. Nem de resto foi provocada (e bem, porque não aconteceu) nenhuma alteração não substancial de factos nos termos do art.° 358º do CP. que os pudessem integrar sem violação do princípio da vinculação temática.


Cite-se o douto acórdão sob recurso


17º) "No presente caso resultou provado que, após a prática do crime de violação o arguido disse à Assistente que não saia da garagem, tendo ficado com o seu telemóvel e com as suas chaves, pelo que ficaram ambos ali a dormir, sendo que só na madrugada seguinte é que aquele lhe disse para ela ir trabalhar."


18º) É impressionante como o douto acórdão sob recurso trata a Assistente como um autêntico autómato, incapaz de vontade própria e de se opor apenas a uma vontade que contraria a sua e sem recurso a nenhum meio adequado e com aptidão para privá-la da sua liberdade e locomoção, e se baste com isso para condenar por um crime tão grave como o de sequestro.


19º) Se tivesse ficado provado o único facto dado como não provado (que a Assistente teria ficado impedida de sair da garagem por o arguido tê-la fechado com um cadeado), ou alternativamente se tivesse surgido da audiência de julgamento uma qualquer circunstância que, sob pena de risco grave, impedisse a assistente de abandonar a garagem, por exemplo, que o arguido lá tivesse (e dele fizesse uso) de um cão feroz que, solto, impedisse a Assistente de sair da garagem, então sim, nesse caso, o sequestro seria uma sua necessária decorrência.


20º) Porém, nada disso aconteceu. E por não ter o arguido trancado a garagem (provado ficou que, contrariamente ao que disse a Assistente, nem podia) fica por perceber que processo circunstancial impediu com efetividade que a Assistente, uma mulher madura, vivida, independente e, portanto, senhora de uma vontade própria muito expressiva em todos os aspetos da sua vida, se bastasse com um "não sais daqui", como causa adequada de um crime de sequestro.


21º) Logo, a condenação por esse crime não tem qualquer sustentação probatória no elenco dos factos provados nem, como óbvia decorrência, se compreende onde assenta o nexo de causalidade adequada, para além de que, essa condenação, contraria as mais elementares regras da experiência comum. Por exemplo o que impedia a Assistente de se ir embora da garagem enquanto o arguido dormia? Não estava amarrada, a porta estava aberta (e não trancada com cadeado) não existiam cães a impedir que se fosse embora, o arguido estava a dormir, não era um sitio ermo, ou qualquer outra circunstancia que tornasse perigoso ou arriscado a assistente ir-se embora...


22º) Por último, não pode deixar de referir-se que essa condenação do arguido pelo crime de sequestro não só acaba branqueando uma mentira da Assistente, como premeia de forma indiscriminada e injusta aquela falsa imputação de que se encontrava trancada com cadeado no portão.


23º) Verifica-se, assim, insuficiência manifesta de factos que sustentem a condenação do arguido pelo crime de sequestro p. e p. no art.° n° 158 n° 1 do CP., pelo qual deverá ser absolvido.


24º) Reconsiderando-se, em conformidade com todo o ante exposto, o cúmulo jurídico efetuado pelo acórdão recorrido.


Foram assim violados de per si ou conjugadamente, entre outros, o artigo 6.º, § 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem; o art.°374 nº 2 do CPP e 40º; 71º e 164º n° 1 do CP,


Termos em que, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de V.as Ex.as deverá o presente recurso ser aceite alterando-se o douto acórdão em conformidade, nomeadamente:


a) convolando o crime de violação agravada p. e p. no art.164º nº 2 em violação simples p. no nº 1, e,


b) E aceitando respeitosamente a decisão que V.as Ex.as vierem a tomar sobre a requerida convolação, fixar uma pena concreta mais próxima dos três anos;


c) E por total ausência de factos suscetíveis de integrar o tipo objectivo e subjectivo, seja o arguido absolvido do crime de sequestro em que foi condenado p. e p. no Art.º 158º nº 1, assim fazendo V.as Ex.as, JUSTIÇA.


4. O Ministério Público no Tribunal Judicial da Comarca dos Açores respondeu ao recurso interposto pelo arguido, concluindo (transcrição):


1. A prova feita em Tribunal foi devidamente ponderada pelo Tribunal recorrido, que aplicou corretamente ao caso a lei aplicável, e encontrou o sancionamento devido, termos em que nenhuma censura merece o douto acórdão.


2. E por esse motivo, não padece de falta de fundamentação ou de erro de julgamento. O que verdadeiramente o recorrente não aceita é apreciação da prova, levada a efeito pelo Tribunal. Claramente, a questão nada tem a ver com o vício do artigo 410.º do Código do Processo Penal, mas com a impugnação da matéria de facto nos termos do artigo 412.º, n.º 3 do Código do Processo Penal.


3. Salvo o devido respeito por opinião diversa, o recorrente, carece inteiramente de razão. Na verdade, da análise atenta e cuidadosa não só do texto do douto Acórdão, mas também de toda a prova produzida, não vemos, salvo melhor opinião que se verifiquem alguma ou algumas das hipóteses previstas no artigo 410.º do Código de Processo Penal.


4. Como é jurisprudência corrente dos nossos Tribunais Superiores, o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum. Se a decisão sobre a matéria de facto do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.


5. O recorrente limita-se a expor o seu julgamento dos factos, divergente daquele que foi feito pelo Tribunal, e tendo, como se verificou, este formado a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquela que formulou o recorrente.


6. Entendemos, portanto, que os factos se devem ter por corretamente fixados, pois a força probatória das declarações das testemunhas, foram apreciadas livremente pelo Tribunal, e julgadas sobre a livre apreciação das provas, de modo a chegar a decisão que lhe pereceu justa.


7. No caso vertente por tudo que já apontamos supra este vício não se verifica, consequentemente deve ser improcedente a alegação deste vício, pois o recorrente apenas limita-se a dar a sua versão dos factos, privilegiando certas partes dos depoimentos das testemunhas, por vezes dando-lhe um outro sentido possível.


8. Por fim cumpre ainda dizer que no caso em apreço o douto acórdão recorrido, ao contrário do que defende o recorrente, (só podia haver condenação se o arguido confessasse, como não confessou é a palavra dele – arguido – contra a dela – assistente, baseado o recorrente a sua defesa no suposto problema de alcoolismo da assistente... in dubio pro reo... não pode haver condenação), não se baseou apenas depoimento da assistente, mas também no depoimento do


recorrente e da testemunha CC, para além da prova documental.


9. Da sua análise podemos concluir que nele se seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova. Conforme facilmente se percebe, as explicações adiantadas pelo arguido em nada convencem, até porque carecem de qualquer lógica, sendo que as da assistente, pelo contrário, porquanto relatadas de forma cronológica e coerente, mostram-se corroboradas por outros elementos de prova, sendo de destacar os relatórios médicos e a perícia médico-legal (donde constam todas as lesões sofridas pela assistente) e as mensagens enviadas pelo arguido no dia seguinte, onde aquele lhe dá instruções sobre como agir (“diz que bateste com a perna na porta do carro), pede perdão (perdoa amor, passeime quando começaste a gritar comigo”) e explica o que fez (não gritasses não te tinha tocado, só dei uma chapada, só dei um pontapé no cu).


10. A fundamentação no sentido da valoração das provas e da razão lógica da condenação do arguido/recorrente. Não constituindo, portanto, uma decisão ilógica, arbitrária, contraditória ou materialmente violadora das regras da experiência comum.


11. Na verdade, aquilo que o Recorrente faz é expor o seu julgamento dos factos, divergente daquele que foi feito pelo Tribunal.


12. E, tendo, como se verificou, formado a sua convicção com provas não proibidas por lei e seguindo todo um processo lógico e de acordo com as regras da experiência comum, prevalece a convicção do tribunal sobre aquela que formula o Recorrente.


13. Quanto ao crime de violação as circunstâncias atenuativas que o recorrente invoca, a saber “assistente tem hábitos de consumo de álcool e que é agressiva e conflituosa”, para que o alegado crime seja simples e não agravado, são de pequena relevância, para não dizer nenhuma, face à gravidade dos factos criminosos cometidos, muito intensa a culpa do arguido e muito elevado o grau de ilicitude dos factos, os seus antecedentes criminais e a sua atitude de indiferença e desprezo pelo valor das normas jurídicas violadas, os bens jurídicos fundamentais por elas protegidos.


14. Face à matéria de facto provada, e como salienta o acórdão recorrido impõe-se concluir que o arguido, na ocasião descrita, constrangeu a ofendida, por meio de violência – dado que usou da sua superioridade física arguido retirou as calças, a camisola e a roupa interior que a assistente trajava, e após declarou-lhe “agora já te podes ir embora”. agarrou-lhe os braços, desferiu-lhe uma chapada e deu-lhe um pontapé no cú –, a praticar consigo relações sexuais –, preenchendo a tipicidade objetiva do crime de violação na pessoa da assistente, sua ex-namorada.


15. E preencheu igualmente a tipicidade subjetiva, uma vez que o arguido, ora recorrente agiu o arguido com a finalidade de satisfazer os seus instintos sexuais por meio de violência física e psicológica, colocando em causa a sua liberdade sexual, o que representou e conseguiu. O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.


16. O arguido quis, consciente e deliberadamente, “apanhar” a vítima indefesa, (segundo as sua palavras estava embriagada, pois não estava em condições psíquicas de dar qualquer consentimento), lhe montou uma cilada, levando a assistente para a garagem, dizendo-se que queria conversar. Chegados à aludida garagem, no seu interior, arguido e assistente iniciaram uma discussão, tendo nessa altura assistente declarado que queria ir embora, o arguido agarrou


com as suas mãos nos braços impedindo-a de sair do interior da garagem, com violência, deu-lhe uma bofetada, o arguido retirou as calças, a camisola e a roupa interior que a assistente trajava, e após declarou-lhe “agora já te podes ir embora” e, em o desespero assistente abandona a garagem nua, contudo o arguido agarrou-a e levou para dentro onde após efetivou o crime de violação.


17. Cumpre ainda dizer o seguinte, ao contrário do que defende o recorrente, mas que devia saber, a inexistência de qualquer reação ou resistência de uma vítima de violência sexual radica no facto de esta a sentir a agressão como uma ofensa à sua integridade física, ou mesmo à sua vida, pelo que adota um comportamento orientado para a sua preservação, podendo optar por diferentes estratégias de sobrevivência.


18. No caso concreto, ao despir a assistente contra a sua vontade, ter evitado que ela abandonasse a garagem, mesmo nua, depois a ter agredido fisicamente, de a ter empurrado para cima da cama e ter mantido relações sexuais, é utilizada a violência adequada a impedir a resistência da ofendida, assim impondo o agressor a sua vontade para a sujeitar e obrigar a sofrer um coito vaginal.


19. Pelo que o enquadramento jurídico-penal dos factos dados como assentes a decisão recorrida é límpida e cristalina quando estabelece que aqueles factos integram os elementos típicos do crime de violação, agravado.


Consequentemente, deve, pois, ser indeferida a pretensão do recorrente.


20. Quanto ao crime de sequestro, perante o quadro fáctico apurado, a argumentação do recorrente é, com todo o respeito, injustificada e gratuita.


Após ter despido e ter mantido relações sexuais contra a sua vontade da assistente e de lhe ter dito “não sais daqui”, assim a impedindo, como queria, de se movimentar e de fugir da garagem, não é uma conduta bagatelar, irrelevante e insignificante para o direito, é uma conduta grave, e com relevância penal.


21. No concreto caso não temos dúvidas que o fechar das portas, e principalmente depois de ter despido e ter mantido relações sexuais contra a sua vontade da a assistente e de lhe ter dito “não sais daqui” constitui indiscutivelmente privação da liberdade.


22. Pelo que deve ser indeferido a pretensão do recorrente


23. Quanto à medida da pena o Ministério Público entende que a pena única de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão, se mostra justa e adequada, em nada excessiva atentos os circunstancialismos apontados no douto acórdão, a gravidade dos ilícitos da culpa e as necessidades de prevenção geral e especial.


Isto é,


24. Nenhuma censura merece a determinação da medida da pena, sendo pena aplicada ao arguido ora recorrente adequada à sua culpa, à sua conduta anterior e posterior aos factos, às exigências de prevenção geral e especial e não pecam por excesso, bem como são acertadas face às condições pessoais e potencial de inserção social do arguido.


25. Em concreto, Como se provou, o arguido agiu sempre de forma livre e conscientemente, sabendo que não podia atuar daquela forma, agiu do modo descrito alheio aos seus deveres, sabendo que estava obrigado a respeitar a ofendida, sua esposa, atuando assim com dolo direto.


26. O arguido sabia que tais condutas eram (e são) proibidas por lei, ao que foi indiferente, conformando a sua vontade com a verificação de tais resultados.


27. Assente também está o grau de ilicitude dos factos que se nos afigura elevado, tendo em conta as circunstâncias em que o recorrente além do crime de violência doméstica atacou sexualmente a sua ex-namorada, a premeditação quanto ao trato sexual final, sua preparação e atuação na calada da noite e ainda se tivermos em conta os bens jurídicos em causa e as consequências, naturalmente não patrimoniais advenientes para a lesada.


28. Importa considerar, ainda, as exigências de prevenção destes tipos de crimes, sendo elevadas as de prevenção geral, face aos interesses que se pretendem acautelar com a proteção dos bens jurídicos em causa e principalmente considerando a enorme frequência com que este tipo de crime de violência domestica são praticados, a natureza dos bens jurídicos protegidos pelos ilícitos em causa e o alarme e o sentimento de insegurança que este tipo de condutas causam na população e que exigem a reposição da confiança na validade e eficácia das normas violadas.


29. Por outro lado, a violência sexual é fortemente censurada pela comunidade que considera repugnante o comportamento do agente que atenta contra a liberdade e autodeterminação sexual, nomeadamente os crimes de violação, porque “repercute falta de ressonância ética do agente com respeito ao valor fundamental da pessoa, da sua liberdade sexual, basilar a uma sã convivência pacífica, severamente punido na generalidade das legislações (…)” Ac. do STJ, de 4/7/2011, pº 1243/10.4paalm.l1.S1.


30. Pelo que, no caso em apreço, pena mostra-se, assim, ajustada não merecendo qualquer censura.


31. Concluindo, devem improcederem, assim, a totalidade da pretensão da recorrente.


6. Também a assistente AA respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela sua total improcedência, apresentando para o efeito as seguintes conclusões (transcrição):


A – O douto acórdão recorrido é irrepreensível e não enferma de qualquer falta de fundamentação ou de erro na apreciação da prova ou deficiente interpretação ou aplicação do Direito.


B – Com o devido respeito, não assiste razão ao arguido, ora recorrente, porquanto o Tribunal valorou devidamente a prova produzida, pois formou a sua convicção sobre a factualidade provada e não provada com base na análise crítica e ponderada de todos os meios de prova produzidos na audiência de discussão e julgamento, valorados na sua globalidade à luz das regras de experiência comum (artigo 127º do Código de Processo Penal).


C - Foram valoradas pelo Tribunal as declarações prestadas pelo arguido e pela assistente (em sede de memória futura), devidamente conjugadas com os depoimentos das testemunhas e a prova documental constante dos autos (mensagens telefónicas trocadas entre arguido e assistente, o relatório médico da consulta realizada à assistente a 16/01/2023, os fotogramas das lesões apresentadas pela assistente, a informação do P............ de ..., o auto de diligência e fotogramas, o auto de busca e apreensão e fotogramas, o relatório médico de 19/01/2023, e o relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito penal).


D) - A assistente explicou, em declarações para memória futura, de forma pormenorizada e detalhada todos os acontecimentos relatados na acusação. Em contrapartida, ao arguido baseou a sua defesa na teoria absurda de que a assistente abusava do consumo de bebidas alcoólicas e de que era conflituosa e doente e, por isso, é que discutia com ela, admitindo que lhe chamava de “puta” e “doente de merda”.


E) - Quanto ao dia em que a assistente foi violada e sequestrada pelo arguido, o recorrente limitou-se a afirmar que tiveram relações sexuais porque a assistente quis e que foi ela que se pôs de joelhos e bateu com a cabeça quando foi este que a projectou para o solo, obrigando-a a ficar de joelhos, lhe tirou a roupa e obrigou-a a ir para o exterior da garagem totalmente nua.


F) Admitiu, o arguido, que empurrou a assistente, agarrou-a pelos braços e que lhe deu um pontapé no rabo porque tinha de se defender, sem explicar porquê.


G) - Enviou diversas mensagens de texto à assistente nos dias subsequentes à prática da violação e sequestro, contendo as seguintes instruções: “diz que bateste com a perna na porta do carro”, “perdoa amor, passei-me quando começaste a gritar comigo”, “não gritasses não te tinha tocado, só dei uma chapada, só dei um pontapé no cu”.


H) Não merece qualquer reparo a condenação do arguido pela prática do crime de violação agravado, p. e p. pelo artigo 164º nº 2 do Código Penal.


I) - A defesa do arguido alegou que a assistente abusava do consumo de bebidas alcoólicas, desde o início ao fim da sessão de julgamento, tentando dessa forma obter uma desculpa inadmissível para toda a violência física e psicológica que perpetrou sobre a assistente. Até hoje a assistente recebe tratamento psicológico no Centro de Saúde de ..., devido aos factos praticados pelo arguido e pelos quais este foi condenado.


J) - Quanto ao argumento do recorrente de que deve ser absolvido do crime de sequestro porque o portão da garagem não estava fechado com um cadeado não pode o mesmo proceder.


L) - Dadas as deploráveis condições psicológicas em que a assistente se encontrava, no momento da prática dos factos, não foi percecionado por esta que o portão da garagem não estava fechado com cadeado, até porque o arguido esteve sempre do lado dela a controlar-lhe os movimentos, não lhe dando qualquer hipótese de se abeirar do portão, pelo que, convencida de que não conseguia sair da garagem limitou-se a acatar a ordem que o arguido lhe deu: “não sais daqui”, com pavor de sofrer mais ofensas físicas e psíquicas.


M) - Assim sendo, e pelas razões supra expostas, não merece qualquer reparo o douto acórdão no que se refere à condenação do arguido pela prática do crime de sequestro p. e p. pelo artigo 158º nº 1 do Código Penal.


N) - Face ao supra exposto, o douto acórdão recorrido não merece qualquer censura e deve ser integralmente mantido.


7. O Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto, neste Supremo Tribunal emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá ser julgado não provido e improcedente, sendo de manter os termos da decisão recorrida.


8. Notificada deste parecer, nos termos e para efeitos do n.º 2 do art.417.º do Código de Processo Penal, o recorrente nada disse.


9. Colhidos os vistos, cumpre decidir.


Fundamentação


10. A matéria de facto apurada e respetiva convicção constante do acórdão recorrido é a seguinte (transcrição):


A) Factos provados:


1. O arguido BB e a vítima/assistente AA iniciaram uma relação de namoro em data não concretamente apurada do mês de maio de 2022, a qual terminou no dia 19 de dezembro de 2022.


2. Durante o período em que mantiveram a relação amorosa nunca coabitaram, sendo que por vezes o arguido pernoitava na residência da assistente, sita na Rua ..., em ....


3. Desde o seu início até ao seu término, a relação entre arguido e assistente sempre foi muito conturbada, pautada por vários episódios de violência perpetrados pelo arguido contra a assistente e comportamentos persecutórios daquele para com aquela.


4. Com efeito, sempre que o casal discutia, o que acontecia com periodicidade semanal, o arguido dirigia à assistente as seguintes expressões “puta”, “puta nojenta”, “doente de merda”.


5. Mais, durante essas discussões, com a mesma periocidade, o arguido solicitava o telemóvel da assistente para ver quem lhe havia ligado ou enviado mensagens.


6. Em data não concretamente apurada do mês de julho de 2022, por volta das 20:30 horas, o arguido, sabendo que a assistente se encontrava num jantar com amigos nascidos no ano de 1982, ligou para o telemóvel da mesma tendo-lhe perguntado se iria demorar muito, pois já está a achar muita demora.


7. Nessa data organizava-se na ilha de ... uma festa denominada Color Fest, tendo a assistente declarado ao arguido que pretendia ir a tal evento com os amigos, ao que este responde que nesse caso a iria buscar.


8. Uma vez chegado ao pé da assistente, o arguido decidiu ir com a mesma até ao aludido evento, o qual teve lugar no ..., em ....


9. Já no referido espaço, o arguido insinuou que a assistente estava a olhar para outros homens, razão que espoletou uma discussão entre o casal e que levou a assistente a sugerir que fossem embora da festa.


10. Já no exterior do recinto, o arguido disse à assistente para a mesma vir para a residência daquela, tendo aquela se negado e declarado que iria para sua residência.


11. Ato contínuo, o arguido disse à assistente: não, vens para a minha que vamos conversar, e agarrou com a sua mão no abraço daquela e conduziu-a até à sua residência sita da Rua ..., em ....


12. Chegados à aludida residência, o arguido conduziu a assistente até ao seu quarto e ordenou que a mesma se deitasse na cama daquele, tendo esta dito que não o faria e que iria embora para a sua residência.


13. Nisto, o arguido insinuou que a assistente não iria para casa, mas sim de volta para o Color Fest e, ato contínuo, desferiu-lhe duas pancadas de mão aberta no rosto da assistente, que lhe causaram dores.


14. Nesse momento, a assistente pediu para ir embora da casa do arguido, tendo este assentido.


15. Em data não concretamente apurada, mas compreendida entre os últimos dias de julho e os primeiros dias de agosto de 2022, o arguido efetuou vários telefonemas para o telemóvel da assistente.


16.Uma vez que a assistente não atendeu tais chamadas, o arguido dirigiu-se à sua residência e introduziu-se no interior da residência daquela.


17. Já no seu interior, o arguido surpreendeu a assistente na sala da sua residência, gerando-se uma discussão entre ambos pelo facto de aquele ali ter entrado sem consentimento.


18. Perguntado pela assistente ao arguido como ali havia entrado, este respondeu isso não interessa, eu quando quiser entrar na tua casa entro de qualquer maneira.


19. De seguida, uma vez que a assistente ameaçou chamar a irmã, o arguido acabou por sair daquela residência.


20. No dia 19 de agosto de 2022, o arguido dirigiu-se ao local de trabalho da assistente, o estabelecimento comercial “L.........”, sito na Rua ..., em ..., e iniciou uma discussão com a mesma por esta não responder às mensagens e aos telefonemas que aquele enviava e efetuava para o telemóvel daquela.


21. No decorrer dessa discussão, o arguido, levantando o braço no ar, dirigiu-lhe à assistente a seguinte expressão tu devias era levar.


22. Uns dias após, ainda durante o mês de agosto de 2022, o arguido dirigiu-se à residência da assistente e bateu à sua porta, declarando àquela que queria entrar para estar com ela.


23. Uma vez que a assistente lhe negou a entrada, o arguido desferiu um número não concretamente apurado de pontapés na porta da entrada da residência daquela.


24.A certa altura, tendo surgido no local a mãe da assistente, o arguido acabou por abandonar o local.


25. Em data não concretamente apurada do mês de setembro ou outubro de 2022, durante o período da noite, na residência da assistente, o arguido encontrava-se com aquela na cama do seu quarto.


26.A certa altura, o arguido disse à assistente que queria ter relações sexuais com aquela, tendo esta se negado, declarando estar cansada,


27.Logo após, a assistente dirigiu-se a outro quarto daquela residência e deitou-se na cama ali existente.


28.A seguir, o arguido surgiu no sobredito quarto e perguntou à assistente se estava a fazer pouco da cara dele, porque não queria ter relações sexuais com ele.


29.Nesse instante, a assistente levantou-se da cama, momento em que o arguido, fez um gesto com a sua cabeça na direção da cabeça assistente, simulando que lhe iria desferir uma pancada, vulgo, cabeçada.


30. Imediatamente a seguir, o arguido, com as suas duas mãos abertas desferiu uma pancada com as mesmas, em simultâneo, na zona dos ouvidos da assistente, causando-lhe dores.


31.Tendo a assistente começado a chorar, o arguido, declarou que se iria embora, levando consigo a chave do portão e do veículo automóvel propriedade daquela.


32.Uma vez que a assistente foi atrás do arguido para o impedir de levar o seu veículo, o arguido abeirou-se da mesma e, imprimindo força com a sua mão contra o seu ombro esquerdo, projetou-a para o solo, logrando afastar-se daquele local com o veículo de AA.


33. No dia 19 de dezembro de 2022, o arguido deslocou-se ao sobredito local de trabalho da assistente, a L........., onde a mesma se encontrava e, imprimindo força com as suas mãos empurrou a mesma e, de seguida, com um dedo da mão enfiou-a no interior do ouvido de AA, causando-lhe dores.


34. Na sobredita data, a relação entre arguido e assistente terminou.


35. No dia 31 de dezembro de 2022, no período da noite, o arguido dirigiu-se à residência da assistente, tocando várias vezes à campainha daquela, não tendo AA, todavia, aberto a porta.


36. No dia 1 de janeiro de 2023, durante a tarde, o arguido voltou a dirigir-se à residência da assistente com o intuito de falar com esta, no entanto, sem sucesso.


37. Entre os dias 2 e 11 de janeiro de 2023, encontrando-se a assistente em ... com a sua mãe, o arguido, ciente dessa informação, ligou para o telemóvel daquela sugerindo que a mesma “estava com outros homens”, que “estava em discotecas”, que havia ido a ... “para abortar”.


38. No dia 13 de janeiro de 2023, por volta das 22:00 horas, o arguido dirigiu-se à residência da assistente para a convidar a dar uma volta porque precisava de conversar com ela, tendo esta assentido.


39. Assim, arguido e assistente deslocaram-se, no veículo automóvel daquele, até ao seu local de trabalho, uma garagem sita no Lugar ..., em ....


40. Chegados à aludida garagem, no seu interior, arguido e assistente iniciaram uma discussão, tendo nessa altura AA declarado que queria ir embora.


41. Subsequentemente, o arguido agarrou com as suas mãos nos braços impedindo-a de sair do interior da garagem.


42. Ato contínuo, o arguido desferiu uma pancada de mão aberta na direção do rosto da assistente, que apenas a atingiu na zona ocular, porque esta se conseguiu desviar a tempo.


43. Depois, com as suas mãos, imprimido força, o arguido empurrou o corpo da assistente contra a parede, causando-lhe dores.


44. Logo após, o arguido ordenou à assistente que se pusesse de joelhos no chão, tendo esta se negado.


45. Então, o arguido agarrou com a sua mão a zona da nuca da assistente, imprimindo força, e projetou-a contra o solo, tendo esta ficado na posição pretendida por aquele.


46. A seguir, o arguido ordenou à assistente que se despisse, tendo esta dito que não.


47. Face à negação da assistente, o arguido retirou as calças, a camisola e a roupa interior que a assistente trajava, e após declarou-lhe “agora já te podes ir embora”.


48. De seguida, tendo a assistente se dirigido, nua, para o exterior da aludida garagem, o arguido chamou o seu nome e ordenou que ela voltasse a entrar.


49. Assim, o arguido dirigiu-se à assistente e agarrou com a sua mão no braço daquela e conduziu-a para o interior da garagem, para uma divisão daquela garagem que continha uma cama, apesar de esta manifestar que não o queria.


50. Após, o arguido projetou a assistente para a sobredita cama, na supramencionada divisão da garagem, despiu-se e deitou-se sobre a mesma, imobilizando-a.


51. De seguida, o arguido colocou o seu pénis ereto dentro da vagina da assistente, e friccionou-o no seu interior um número não concretamente apurado de vezes, não obstante os vários pedidos da assistente para que o mesmo parasse com a sua atuação.


52. Poucos minutos após, o arguido saiu de cima do corpo da assistente, tendo esta lhe pedido que a deixasse ir embora, ao qual o arguido respondeu que se quisesse ir embora, iria nua.


53. Depois, uma vez que a assistente pretendia sair daquele local com os seus pertences, o arguido declarou a AA “agora não sais daqui”.


54. De seguida, o arguido apoderou-se do telemóvel e chaves da assistente, negando-lhe o acesso a tais objetos.


55.Assim, arguido e assistente acabaram por dormir na aludida divisão da garagem.


56. No dia 14 de janeiro de 2023, pelas 06:30 horas, o arguido disse à assistente que deveria ir trabalhar, porque se não as pessoas iriam dar por falta dela, e que aquilo não era para contar à polícia.


57. Ao longo desse dia 14 de janeiro de 2023, o arguido enviou do seu telemóvel várias mensagens para o telemóvel da assistente com o seguinte teor:


− “dis ke bateste com a perna na porta do carro” “se ela perguntar alguma coisa”


− “dis ke bebestw um pocadinho ke foste fazer xixi a rua e casjiste por sima de madeiras e ferros ke tem lafo da garagem”


− “me perdua amor eu me passei cando começaste gritar comigo”


− “e amo de mais” “não parti teu corpo”


− “não gritases eu não tenha tucado”


− “porá mas eu so pegei em ti e jogei para cama”


− “eu nem te bati so dei uma xapada de resto foi so agarar”


− “so te dei um pontapé no cu”


58. O arguido sabia que ao agir da forma descrita molestava a integridade física da assistente, bem como feria a sua honra, dignidade e liberdade pessoal, ao mesmo tempo que lhe causava vergonha, medo, insegurança e inquietação.


59. Mais, o arguido sabia que devia respeito e consideração à assistente, uma vez que era sua namorada e, mais tarde, ex-namorada.


60. De igual modo, sabia o arguido que ao manter relações sexuais com a assistente nos termos descritos, a estava a privar na sua liberdade sexual, agindo contra a vontade e consentimento desta.


61. Sabia, ainda, o arguido que ao impedir a assistente de sair da sobredita garagem e obrigando que mesma permanecesse naquele local, não lhe facultando os seus pertences, a estava a privar da sua liberdade de movimentos, agindo contra a sua vontade.


62. Não obstante, o arguido quis e agiu da forma descrita.


63. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.


Das condições socioeconómicas do arguido:


64. À data da aplicação da atual medida de coação de prisão preventiva, BB, de 44 anos de idade, residia na freguesia de ... – ..., onde integrava o núcleo de origem, constituído pela progenitora de 83 anos de idade. Na mesma habitação reside também uma irmã, e três sobrinhos do arguido, dois já adultos e um menor.


65. O arguido é o elemento mais novo de uma fratria de dez elementos, sendo que o progenitor faleceu há mais de quatro décadas por patologia do foro oncológico.


66. O arguido integrou o Sistema de Ensino em idade própria, estando habilitado com o 4ºano de escolaridade tendo abandonado os estudos com treze anos de idade, tendo adquirido muito poucos conhecimentos de leitura e escrita.


67. Na esfera laboral, BB não sabe precisar há quanto tempo está desempregado, não se considerando sequer nessa condição (desemprego), referindo executar algumas tarefas em trabalho de manutenção de viaturas de terceiros, em regime precário, utilizando uma garagem/oficina para concretizar essas atividades. Não está inscrito na Agência de Emprego, referindo subsistir dos rendimentos auferidos pela progenitora, a par com as quantias monetárias que vai auferindo pela realização dos trabalhos de mecânica atrás referidos.


68. BB tem três filhos de um anterior relacionamento, os quais integram o agregado da progenitora, em Portugal Continental. Questionado sobre o relacionamento com a mãe dos filhos, o arguido referiu não se recordar da causa da separação. Ainda na esfera amorosa, apurou-se que BB manteve uma relação durante cerca de um ano com DD, em meados de 2015/2016, e por presumíveis desajustes comportamentais, deu origem ao processo 191/16.9..., em que BB foi constituído arguido pelo presumível crime de ofensa à integridade física simples, no entanto, o processo foi extinto por desistência da queixa por parte de DD, no ano de 2018.


69. Em 2017, o arguido iniciou relação amorosa com EE, (vítima identificada no processo 96/21.1...) tendo, posteriormente, o ex-casal, coabitado durante dois anos, não havendo filhos deste relacionamento. Apurou-se que a relação embora descrita pelo probando como gratificante, era caraterizada por terceiros como desajustada, existindo tentativas de controlo e ciúmes, mesmo após término do relacionamento. Tais comportamentos terão estado na origem do processo 96/21.1..., com condenação em pena de prisão de um ano e seis meses, por um crime de violência doméstica, suspensa na sua execução com regime de prova, pelo período de dois anos. A medida encontra-se com acompanhamento desta Equipa de Reinserção Social, em que o regime de prova determina a frequência de programa específico para agressores de violência doméstica. Foi também condenado na pena acessória de proibição de contactos com a vítima EE, bem como de permanecer na sua residência e local de trabalho, pelo período de 2 (dois) anos, e também na pena acessória de proibição de uso e porte de armas, pelo período de 2 (dois) anos.


70.No presente, o arguido encontra-se em medida de coação preventiva à ordem dos presentes autos, e como tal, no âmbito do processo já transitado em julgado, e anteriormente especificado, o arguido tem recebido em contexto prisional o Técnico de Reinserção Social, e beneficiado de acompanhamento psicoterapêutico individualizado. E


71. Em contexto prisional, não se encontra integrado em nenhum programa terapêutico, não tem qualquer ocupação, e tem recebido visitas mensais de uma irmã e de uma sobrinha.


72. O arguido descreve-se como um individuo com algumas dificuldades de autocontrolo, referindo que perante situações geradoras de tensão, não consegue gerir, adequadamente os impulsos, podendo por vezes ser desadequado a nível verbal. Referiu também que poucas semanas antes da emergência dos presentes autos, sentiu necessidade de solicitar acompanhamento psicológico na Unidade de Saúde de Ilha de ....


73. No decorrer da entrevista, não aparentou apresentar qualquer empatia pela presumível vítima, responsabilizando-a pelos desentendimentos conjugais, desvalorizando as presumíveis ações, e descrevendo AA, como uma pessoa desequilibrada e com problemática do foro aditivo (etílico).


74. AA encontra-se com acompanhamento do Pólo Local de Prevenção e Combate à Violência Doméstica- ... apresentando, segundo se apurou, muito medo do arguido, ex-companheiro, e muito ansiosa com a aproximação do desfecho judicial, e com a possibilidade de o arguido voltar a meio livre. Por outro lado, BB mostra-se algo ansioso com a possibilidade de ser condenado, no entanto, uma vez que não se revê no estatuto de arguido, refere que perante um eventual cenário de condenação, sentir-se-á injustiçado. Muito autocentrado, denota-se sérias dificuldades em se colocar no ponto de vista do Outro, e de antecipar as consequências da sua conduta ao longo do seu trajeto de vida.


75. O arguido já foi condenado:


i. Por sentença transitada em julgado a 16/12/2022, na pena 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa com regime de prova, pela prática de um crime de violência doméstica a 01/06/2021.


B) Factos Não Provados


Com interesse para a boa decisão da causa, não se provou que:


a) Depois, uma vez que a assistente pretendia sair daquele local com os seus pertences, o arguido dirigiu-se ao portão da garagem e fechou-o com o respetivo cadeado.


C) Motivação


O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada e não provada com base na análise crítica e ponderada de todos os meios de prova produzidos na audiência de discussão e julgamento, valorados na sua globalidade à luz das regras de experiência comum (artigo 127º do Código de Processo Penal).


Foram assim valoradas as declarações prestadas pelo arguido e pela assistente (em sede de memória futura), devidamente conjugadas com os depoimentos das testemunhas FF e GG (mãe e irmã da assistente), CC (técnica do Gabinete de Apoio à Vítima), HH (psicóloga no Centro de Saúde de ...), II (amigo comum do arguido e da assistente), JJ (amigo do arguido), KK (ex-namorado da assistente), LL (sobrinha do arguido e ex-amiga da assistente), MM (amigo do arguido) e NN (amigo do arguido).


Quanto à prova documental o Tribunal teve em consideração o auto de visionamento de telemóvel com as mensagens telefónicas trocadas entre arguido e assistente (fls. 68-88), o relatório médico da consulta realizada à assistente a 16/01/2023 (fls. 103-104), os fotogramas das lesões apresentadas pela assistente (fls. 105-108), a informação do P............ de ... (fls. 112-113), o auto de diligência e fotogramas (fls. 117-122), o auto de busca e apreensão e fotogramas (fls. 134-143) e o relatório médico de 19/01/2023 (fls. 266-267).


Por fim, e quanto à prova pericial, o Tribunal analisou o relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito penal (fls. 324-328).


Concretizando, e quanto ao primeiro grupo de factos (1º a 5º), as declarações prestadas pela assistente, conjugadas com o depoimento da testemunha II (arrolada pelo arguido) e ainda com as declarações pelo próprio arguido, não nos deixam quaisquer dúvidas em como a relação nunca foi pacífica. A assistente descreveu, de forma clara e precisa, e sem transparecer qualquer sentimento de vingança ou de aproveitamento, o quão conturbado era o relacionamento, o que foi confirmado pelo amigo comum do ex-casal, II, o qual nos disse que se afastou de ambos porque iam desabafar consigo os problemas do relacionamento e, para não se chatear com nenhum, o afastamento foi a solução, sendo que sabe que a AA “bebe muito” e que o seu amigo é “homem de dar chapadas”, que “ferve em pouco água”, que “é ciumento” e que chegou a ver marcas no corpo da AA enquanto namoravam (tal como nos disseram FF e GG, que começaram a reparar que aquela, após julho de 2022, começou a exibir marcas no corpo, o que nunca acontecera antes). Aliás, o próprio arguido confessou parcialmente estes factos, explicando o quanto amava a AA e que as discussões surgiam sempre devido ao problema de alcoolismo da assistente. No entanto, e apesar da declaração de amor, confessou que lhe chamou, por mais do que uma vez, de puta (porque lhe enervava quando ela bebia), bem como de doente (tendo justificado que a mesma era efetivamente doente epilética).


Quanto ao episódio do Colorfest (factos 6º a 14º), o Tribunal atendeu, uma vez mais, às declarações genuínas e espontâneas da assistente, conjugadas com as declarações do arguido, o qual, recorrendo novamente a autojustificações, sem demonstrando o mínimo de arrependimento, esclareceu que bateu na AA “porque ela me deu primeiro”.


No que diz respeito aos factos 15º a 21º, e pese o arguido apenas tenha dito que entrou na residência por ter as chaves, a assistente relatou os acontecimentos de forma genuína, sendo que a insistência nas comunicações móveis, por parte do arguido, foi um comportamento que se manteve em toda a relação, tendo aquele admitido que no dia 19 de agosto se dirigiu à lanchonete porque a AA não estava a atender as suas chamadas.


O episódio a que se referem os factos 22º a 24º foram-nos relatados pela assistente e pela sua mãe FF, a qual nos explicou, num depoimento preciso e claro, que a sua filha lhe ligou porque o arguido estava a bater à porta, sendo que quando lá chegou a sua filha estava escondida no quintal do vizinho (tal como nos disse a assistente) e que mandou o arguido embora (o que foi confirmado por este).


Pese embora o arguido apresente uma versão diferente dos factos 25º a 32º, a verdade é que confirma parte das declarações da assistente: admite que estiveram juntos nessa noite, que queria ter relações sexuais e que ela negou e que a AA foi dormir para outro quarto. Contudo, a forma genuína e espontânea como a assistente prestou as suas declarações, conjugado com o padrão de violência já apontado ao arguido, afastou quaisquer dúvidas quanto à credibilidade de AA, pelo que se deram os factos como provados da forma supra elencada.


Sabemos que foi no dia 19 de dezembro de 2022 que FF proibiu o arguido de entrar na lanchonete (factos 33º e 34º), pois, conforme aquela nos disse, nesse dia foram-na buscar a casa para ir acudir à sua filha já que o arguido se encontrava no estabelecimento a discutir com aquela, sendo que também o arguido nos disse que a mãe da AA o proibiu, nessa data, de voltar a entrar na lanchonete. Quanto ao fim do relacionamento, a assistente foi bem clara nas suas declarações, pese embora o arguido negue o fim da relação (sendo certo que acaba por dizer que a AA não mais falou com ele a partir dessa data).


Quanto ao facto 35º, o arguido negou, dizendo que estava a trabalhar numa discoteca (o que não foi confirmado por qualquer testemunha), mas a realidade é que FF estava em casa da sua filha, foi à janela e viu o arguido sentando no banco do largo sito à frente da casa.


Já quanto ao facto 36º diz não se recordar, mas a assistente, em declarações corroboradas pela sua mãe, confirmou-o.


Também confirmado pela assistente foi o facto 37º, tendo explicado as conversas que mantinha com o arguido, e pela sua mãe FF, a qual nos explicou que foi a ... realizar uma cirurgia e que a sua filha a veio acompanhar. Já o arguido disse-nos que ligava à AA a dizer que ia mudar (sendo que, se quer mudar, é porque algo não está bem) e que tinha entendido que a mesma tinha ido a ... fazer um aborto (é certo que LL nos disse que a AA lhe disse que tinha ido a ... fazer um aborto, mas também se mostrou claro que esta testemunha demonstrou grande animosidade para com a assistente e a realidade é também que, na data apontada e atualmente, não se realizam abortos médicos na ilha de ...).


Relativamente ao último episódio (factos 38º a 57º) a assistente e o arguido apresentaram versões contraditórias, pese embora este último tenha corroborado alguns pormenores adiantados pela assistente. Disse-nos o arguido que levou a assistente para a sua garagem e que já estava bastante embriagada (o que vai contra as mensagens trocadas, de onde resulta que o objetivo era conversarem), sendo que as relações sexuais que mantiveram foram porque ela quis. Contudo, sendo as relações sexuais por mútuo consentimento (realçando-se que, de qualquer forma, e de acordo com a versão do arguido, a assistente não estava em condições psíquicas de dar qualquer consentimento), qual o motivo pelo qual ela saiu nua para a rua e ele teve de a ir buscar (conforme o arguido nos disse)? Sendo a versão do arguido a verdadeira ficamos também sem perceber o motivo pelo qual teve de agarrar a assistente pelos braços, de a empurrar e ainda de lhe dar um pontapé no rabo, conforme admitiu! Disse-nos o arguido que fez isto porque a assistente se pôs de joelhos a bater com a cabeça no chão, mas, sendo isso realmente verdade, dar-lhe um pontapé no rabo e empurrá-la em que ajuda?


Conforme facilmente se percebe, as explicações adiantadas pelo arguido em nada convencem, até porque carecem de qualquer lógica, sendo que as da assistente, pelo contrário, porquanto relatadas de forma cronológica e coerente, mostram-se corroboradas por outros elementos de prova, sendo de destacar os relatórios médicos e a perícia médico-legal (donde constam todas as lesões sofridas pela assistente) e as mensagens enviadas pelo arguido no dia seguinte, onde aquele lhe dá instruções sobre como agir (“diz que bateste com a perna na porta do carro), pede perdão (perdoa amor, passei-me quando começaste a gritar comigo”) e explica o que fez (não gritasses não te tinha tocado, só dei uma chapada, só dei um pontapé no cu).


Lendo ainda todas as mensagens que foram trocadas entre o arguido e assistente percebemos ainda que não vinga a tese do arguido de que a assistente se encontra a mentir. Resulta de tais mensagens que foi no desespero que a assistente se deslocou ao centro de saúde, pois até já tinha dificuldade em respirar, o que fez apenas dois dias depois do acontecimento (sendo que, durante esses dois dias, foram inúmeras as mensagens do arguido). Conforme nos disse HH, psicóloga do centro de saúde, foi só após de a receber no seu gabinete no centro de saúde, e depois de a acalmar (porquanto estava com ataques de pânico), que aquela relatou que estava com muito medo do arguido (que estava na sala de espera), tendo-a reencaminhado para o atendimento no polo de violência doméstica e foi aí, perante CC, que contou o que havia acontecido (sendo que mesmo aí o arguido andava atrás da assistente, conforme nos disse CC e conforme resulta da própria mensagem que lhe mandou: não te vi a sair da segurança social).


É certo que a defesa do arguido se baseou no suposto problema de alcoolismo da arguida (pese embora HH tenha dito que aquela não cheirava a álcool nem aparentava estar embriagada), mas, mesmo sendo verdade que a assistente padeça de tal, em nada coloca os factos em causa, nem a sua credibilidade. Repare-se que aquela já havia tido três ou quatro relações (supostamente terminadas por causa do problema do álcool) e nunca nenhum problema aconteceu (confirmado pelo ex-namorado KK), não havendo qualquer notícia de que a mesma se atirasse contra as paredes e chão (como nos disse o arguido).


Não podemos ainda deixar de questionar o motivo pelo qual a assistente se viria a expor com esta situação num meio tão pequeno como é a Ilha de ...? Não foi para ganhar dinheiro (nem pedido de indemnização civil deduziu), nem por ser uma alcoólica (com 40 anos e várias relações nunca aconteceu nada semelhante). Expôs-se porque as lesões que lhe foram infligidas pelo arguido obrigaram a tratamento médico (e mesmo assim esteve dois dias em casa a sofrer) e, após entrar no Centro de Saúde, percebeu que tinha de contar o que aconteceu, sendo que até hoje recebe tratamento psicológico (conforme nos disse HH).


Em face do exposto, quem atua como o arguido atuou, sem qualquer interferência de elemento perturbador da capacidade intelectual e volitiva, não pode deixar de querer atuar como o descrito, de ter consciência da proibição da sua conduta e de conformar-se com as consequências legais das mesmas. Aliás, nas suas próprias declarações, o arguido não demonstrou qualquer tipo de arrependimento pelos factos praticados, nem empatia para com a vítima, antes tentando responsabilizá-la pelo sucedido, apodando-a de alcoólica durante toda a audiência de julgamento.


Quanto à situação pessoal e económica do arguido o Tribunal analisou o relatório social e teve em consideração o depoimento das suas testemunhas, dos quais, no entanto, resulta que aquele nunca teve um trabalho certo e é impulsivo e agressivo quando contrariado.


Por fim, atendeu-se aos certificados de registo criminal juntos aos autos.


Quanto ao facto não provado, e atenta a diligência realizada pela Polícia Judiciária, bem como o depoimento das testemunhas NN e II, resulta que a garagem só dá para fechar por cadeado por fora e não por dentro. Diga-se que tal em nada abala as declarações da assistente, tanto mais se tivermos em consideração o contexto em que se encontrava, nua e dominada por um homem com força física superior, sendo totalmente compreensível que não se tivesse apercebido de que a porta da garagem apenas estava encostada.


*


11. Objeto do recurso


O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação (art.412.º, n.º1 do Código de Processo Penal). São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso.1


Como bem esclarecem Simas Santos e Leal-Henriques, « Se o recorrente não retoma nas conclusões, as questões que suscitou na motivação, o tribunal superior, como vem entendendo o STJ, só conhece das questões resumidas nas conclusões, por aplicação do disposto no art.684.º, n.º3 do CPC. [art.635.º, n.º 4 do Novo C.P.C.]» (in Código de Processo Penal anotado, 2.ª edição, Vol. II, pág. 801).


Face às conclusões da motivação do recorrente BB as questões a decidir são as seguintes:


- Se o crime de violação não deve ser agravado pelo n.º 2 do art.164.º do Código Penal;


- Se deve ser absolvido do crime de sequestro, p. e p. pelo art.158.º, n.º1 do Código Penal; e


- Se deve ser reduzida a medida concreta da pena que lhe foi aplicada pelo crime de violação e reconsiderado o cúmulo jurídico.


12. Do crime de violação agravado.


O arguido BB defende que o Tribunal a quo não deveria ter considerado a existência de violação agravada, mas tão só violação na tipificação simples do n.º 1 do art.164.º do Código Penal, porquanto “a alegada violência” em que se respaldou o douto acórdão, para a convicção da sua agravação, não constitui uma exceção ao comportamento infelizmente transversal daquela concreta relação entre a assistente e arguido, sendo manifesta a inexistência de dolo relativamente à agravação constante do nº 2 do art.164.º do Código Penal


(conclusões 2.ª e 3.ª da motivação do recurso).


Vejamos se assim é.


O art.164.º do Código Penal, tinha a seguinte redação, à data da prática dos factos:


«1 - Quem constranger outra pessoa a:


a) Praticar consigo ou com outrem cópula, coito anal ou coito oral; ou


b) Praticar atos de introdução vaginal, anal ou oral de partes do corpo ou objetos;


é punido com pena de prisão de um a seis anos.


2 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa:


a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou


b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos;


é punido com pena de prisão de três a dez anos.


3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior, empregue para a prática dos atos referidos nas respetivas alíneas a) e b) contra a vontade cognoscível da vítima.».2


O bem jurídico protegido no crime de violação é a liberdade sexual de outra pessoa, como resulta da Secção I «Crimes contra a liberdade sexual», do Capítulo V «Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual», do Título I «Dos crimes contra as pessoas», da Parte Especial, do Código Penal.


A liberdade sexual protegida prende-se, no caso dos adultos, com a liberdade de se relacionar sexualmente ou não e com quem.


A vítima do crime de violação pode ser do sexo feminino ou masculino, isto é, independentemente do género, e tanto pode ser maior ou menor de idade e ter uma posição passiva (sofrer) como ativa (praticar, consigo ou com outrem).


O que se criminaliza no n.º 2 do art.164.º do Código Penal é o relacionamento sexual, através de atos de cópula, coito anal, coito oral e introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou de objetos, sendo utilizado como meio típico de constrangimento a violência, ameaça grave, ou ato que coloque a vítima inconsciente ou na impossibilidade de resistir.


Enquanto a violação tipificada no n.º1 é um crime de execução livre, podendo ser cometido por qualquer meio não compreendido no n.º2, a violação tipificada neste último número é um crime de execução vinculada.


Face às várias alterações legislativas vem sendo discutido se a «violência» adequada a constranger a vítima à prática de ato sexual é apenas a violência física, isto é, aquela em que é usada força física contra a vítima ou no conceito cabem também formas de violência psíquica, e, ainda, se a violência se basta com o dissentimento da vítima.3


Para o caso concreto, basta dar como firme que no conceito de «violência» inclui-se a violência física, o uso da força física sobre o corpo da vítima, destinada a vencer a sua resistência (vis absoluta ou vis compulsiva).


Não tendo a violência de ser grave, tem em todo o caso de ser idónea, segundo as circunstâncias do caso, a vencer a resistência oferecida ou esperada da vítima.


A «ameaça grave» é uma forma de violência psíquica, traduzida no propósito de causar um mal, com algum relevo, à vítima ou a terceiro.


O ato que coloca a vítima inconsciente ou na impossibilidade de resistir tem de ser realizado


de forma preordenada para a prática do ato sexual, ou seja, «depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir».


Entre os atos sexuais que a vítima é constrangida a sofrer ou a praticar, interessa para o presente caso considerar a “cópula”, que consiste no ato pelo qual a vagina é penetrada pelo pénis, haja ou não emissio seminis (acórdão do S.T.J. de fixação de jurisprudência n.º5/2003).


O tipo subjetivo de ilícito admite qualquer das suas formas contempladas no art.14.º do Código Penal, ou seja, direto, necessário ou eventual, mas o agente deve representar a oposição da vontade da vítima.


Retomando o caso concreto.


O acórdão recorrido condenou o arguido pela prática de um crime de violação agravada, p. e p. pelo art.164.º, n.º2, alínea a) do Código Penal, com a seguinte fundamentação:


“Dispõe o artigo 164º, nº2, alínea a) do Código Penal que quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral, é punido com pena de prisão de três a dez anos.


O tipo de crime de violação inscreve-se no capítulo dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual e na secção respeitante aos crimes contra a liberdade sexual. Esta referência sistemática releva para compreender não só o bem jurídico protegido pela incriminação, como também para compreender os elementos e a construção do tipo de crime, sendo o conteúdo da ação a prática de ato sexual de relevo, de entre eles o coito anal e o coito oral.


Ora, atenta a factualidade assente, é inequívoco o preenchimento dos elementos objetivo e subjetivo (com dolo direto – artigo 14º, nº 1 do Código Penal) típicos do ilícito criminal em questão, sendo a violência inequívoca (factos 41º e seguintes), previsto e punido pelo artigo 164º, nº2, alínea a) do Código Penal.


Inexiste qualquer causa de exclusão de ilicitude e/ou da culpa, nem falta qualquer condição de punibilidade, pelo que se impõe a condenação do arguido em conformidade com o exposto.”.


Se bem entendemos o recorrente, defende o mesmo que os factos por si praticados sobre a assistente, na noite de 13 de janeiro de 2023, serão inidóneos a integrar qualquer dos meios de ação descritos no n.º2 do art.164.º do Código Penal - integrando apenas a tipificação da violação simples do n.º1 do art.164.º do Código Penal -, porquanto o arguido e a assistente mantiveram uma relação em tudo idêntica à dos cônjuges, a assistente consumia álcool e sobretudo quando o fazia em excesso era agressiva e conflituosa, e a assistente conhecia o espaço em que terão ocorrido os factos por lá ter estado várias vezes na companhia do arguido e para lá se deslocou voluntariamente com o arguido.


É inequívoco, da leitura do acórdão recorrido, que o Tribunal a quo, aquando do enquadramento jurídico penal da conduta do arguido no crime de violação, p. e p. pelo n.º2 do art.164.º do Código Penal, não realçou estas circunstâncias.


Porém, este Supremo Tribunal entende que não teria de o fazer, por diversas razões.


Em primeiro lugar, o arguido e a assistente AA não mantiveram, entre maio e 19 de dezembro de 2022, uma relação em tudo idêntica à dos cônjuges, mas sim uma relação de namoro, sem coabitação, pernoitando o arguido, por vezes, na residência da assistente (pontos n.ºs 1 e 2).


Em segundo lugar, não consta em lado algum dos factos provados do acórdão recorrido, que a assistente AA era agressiva e conflituosa, designadamente quando consumia álcool. O que consta provado é que a relação entre o arguido e a assistente - que terminou a 19 de dezembro de 2022 por iniciativa da assistente - foi sempre muito conturbada, pautada por vários episódios de violência perpetrados pelo arguido contra a assistente e comportamentos persecutórios daquele para com esta, e que quando discutiam o arguido lhe dirigia expressões injuriosas (pontos n.ºs 3, 4 e 5).


Em terceiro lugar, está dado como provado que no dia 13 de janeiro de 2023, foi o arguido quem se dirigiu à casa da assistente AA para a convidar a dar uma volta porque precisava de conversar com ela, o que ela aceitou, tendo então o arguido a levado para uma garagem, que era o local de trabalho dele. Ou seja, a assistente acompanhou o arguido a dar uma volta e acabou numa garagem sujeita pelo arguido a mais um episódio de ofensas à sua integridade física e psíquica, sendo absolutamente irrelevante para o preenchimento do crime de violação se ela conhecia ou não esse local.


O que o Supremo Tribunal de Justiça tem como inequívoco é que o arguido, na garagem em causa, usou de força física idónea, suficiente, para coagir, constranger, a assistente a suportar a introdução do pénis ereto do arguido dentro da vagina desta, não obstante os vários pedidos que a assistente lhe fez para que parasse com a sua atuação.


Numa primeira resolução, o arguido quis impor, e impôs, à assistente AA uma relação de poder, de domínio sobre ela, agarrando-a primeiro pelos braços, para a impedir de sair da garagem como ela havia manifestado essa vontade; em seguida dirigiu-lhe uma pancada com a mão aberta na direção do rosto, vindo a atingi-la na zona ocular; depois empurrou-a contra a parede, causando-lhe dores e ordenou-lhe que se pusesse de joelhos e como esta não o quisesse fazer projetou-a contra o solo, tendo ficado na posição por ele pretendida. Na continuação de “coisificação” da assistente, de humilhação e manutenção da relação de poder sobre ela, quando a assistente não obedece à ordem para se despir, é o arguido que lhe retira a roupa e quando lhe diz que assim podia ir embora e a assistente se dirige, nua, para o exterior da garagem, ordenou-lhe que voltasse (pontos n.ºs 40 a 48 dos factos provados).


Amaciada a vontade” da assistente - como bem refere o Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto, neste Supremo Tribunal -, o arguido decide agarrar a assistente pelo braço e levá-la para uma divisão da garagem, onde, nua, a projeta para a cama aí existente, deita-se sobre a vítima e, imobilizando-a, sujeitou-a a cópula, apesar dos vários pedidos que a assistente lhe dirigiu.


A violação consumada da assistente, inserida num sentido social de ilicitude típica a que o arguido até aí a não sujeitara, foi manifestamente realizada sob força física e expressamente contrária à vontade da assistente.


Tendo o arguido constrangido a assistente a sofrer cópula, por meio de violência física, e sabendo que “…ao manter relações sexuais com a assistente nos termos descritos, a estava a privar na sua liberdade sexual, agindo contra a vontade e consentimento desta” (ponto n.º 60 dos factos provados), sufragamos a decisão recorrida quando deu como preenchidos todos os elementos do tipo objetivo e subjetivo do crime de violação, p. e p. pelo n.º2 do art.164.º do Código Penal.


Improcede, deste modo, a primeira questão.


13. Do crime de sequestro


O recorrente entende que deve ser absolvido do crime de sequestro, p. e p. pelo art.158.º, n.º1 do Código Penal, essencialmente, por três motivos: (i) nos casos em que um crime se apresenta como meio da realização típica de outro crime, a solução passa por reconhecer que existe concurso aparente e prevalece o crime dominante, o crime-fim, pelo que deve atender-se ao desígnio que animou o agente do crime; (ii) o acórdão recorrido trata a assistente como um autómato, incapaz de vontade própria e de se opor à vontade do arguido, quando ela é uma mulher madura, vivida, independente , que não se basta com um “não sais daqui”; (iii) tendo sido dado como não provado que “Depois, uma vez que a assistente pretendia sair daquele local com os seus pertences, o arguido dirigiu-se ao portão da garagem e fechou-o com o respetivo cadeado”, nada impedia a assistente de se ir embora enquanto o arguido dormia, pelo que existe insuficiência de factos que sustentem a condenação pelo crime de sequestro.


Vejamos.


13.1. Por razões de ordem lógica, importa em primeiro lugar decidir se, como entendeu o acórdão recorrido, a conduta do arguido preencheu todos os elementos típicos do crime de sequestro.


O acórdão recorrido consignou a propósito deste ilícito-típico, na fundamentação de direito (transcrição):


“Sob a epígrafe “Sequestro” dispõe o artigo 158º, nº1 do Código Penal que quem detiver, prender, mantiver presa ou detida outra pessoa ou de qualquer forma a privar da liberdade é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.


O tipo objetivo deste crime consiste na privação absoluta da liberdade de movimentação de outra pessoa, protegendo-se, assim, a liberdade ambulatória ou de locomoção.


Qualquer pessoa pode ser vítima do crime de sequestro, incluindo bebés, menores, incapazes, pessoas que se encontrem temporariamente sem os sentidos ou pessoas incapazes de se movimentarem pelos seus próprios meios, uma vez que a liberdade de hétero-locomoção destas pessoas está protegida pela incriminação (Paulo Pinto Albuquerque, Comentário ao Código Penal, UCE, Lisboa, 2008, pág. 424).


O crime de sequestro é um crime de execução livre, admitindo qualquer forma adequada de privar a liberdade. Estão, pois, incluídas a ameaça e a violência física e psíquica, bem como o ardil, a fraude e a astúcia.


Tratando-se de um crime de resultado aplica-se a teoria da adequação do resultado à conduta.


Ao testar esta adequação, o Tribunal deve ter em conta as características psíquicas e físicas da vítima, com vista a determinar se se o meio utilizado para limitar a liberdade da vítima era idóneo para esse efeito.


O crime consuma-se com o início da privação da liberdade e o flagrante delito mantém-se enquanto se mantiver a privação da liberdade. A privação da liberdade pode durar apenas alguns minutos, desde que seja suficientemente intensa para não poder ser socialmente adequada (Paulo Pinto Albuquerque, obra citada, pág. 425).


Para o preenchimento do tipo subjetivo é necessário que exista dolo, em qualquer das suas modalidades.


No presente caso, resultou provado que, após a prática do crime de violação, o arguido disse à assistente que não saia da garagem, tendo ficado com o seu telemóvel e com as suas chaves, pelo que ficaram ambos ali a dormir, sendo que só na madrugada seguinte é que aquele lhe disse para ela ir trabalhar.


Resulta, assim, que, em consequência da conduta do arguido, ficou a ofendida privada da sua liberdade de locomoção, porquanto, após ter sido violada, foi forçada a ficar na garagem do arguido, tendo aquele a proibido de sair.


Como se disse supra, qualquer pessoa pode ser vítima de sequestro e o crime de sequestro é um crime de execução livre, sendo que o modo de execução usado pelo arguido (descrito supra) foi a forma adequada de privar AA da sua liberdade de locomoção/hetero-locomoção.


Nem se diga que a mesma poderia ter fugido, por a porta não estar fechada, tanto mais que aquele esteve sempre perto dela e a mesma encontrava-se numa situação extremamente fragilizada, tendo acabado de ser violada.


Mas será este sequestro agravado, conforme acusou o Ministério Público?


Dispõe o artigo 158º, nº2, alínea b) do Código Penal que a pena deste crime é agravada se for precedida ou acompanhada de ofensa à integridade física grave, tortura ou outro tratamento cruel, degradante ou desumano. Não foi esse aqui o caso: é certo que para a violação o arguido recorreu à violência, mas já não para o sequestro, tendo o seu ascendente sobre aquela sido suficiente para a mesma se sentir obrigada a permanecer na garagem.


Assim, será assim o arguido condenado pela prática de um crime de sequestro, mas na sua forma simples.”


Concordamos genericamente com esta fundamentação.


Se não vejamos.


Sob a epígrafe “Sequestro” dispõe o artigo 158º, nº1 do Código Penal que quem detiver, prender, mantiver presa ou detida outra pessoa ou de qualquer forma a privar da liberdade é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.


O tipo objetivo deste crime consiste na privação absoluta da liberdade de movimentação de outra pessoa, protegendo-se, assim, a liberdade ambulatória ou de locomoção.


Qualquer pessoa pode ser vítima do crime de sequestro, incluindo bebés, menores, incapazes, pessoas que se encontrem temporariamente sem os sentidos ou pessoas incapazes de se movimentarem pelos seus próprios meios, uma vez que a liberdade de hétero-locomoção destas pessoas está protegida pela incriminação.4


O crime de sequestro é um crime de execução livre, admitindo qualquer forma adequada de privar a liberdade. Estão, pois, incluídas a ameaça e a violência física e psíquica, bem como o ardil, a fraude e a astúcia.


Tratando-se de um crime de resultado aplica-se a teoria da adequação do resultado à conduta. Ao testar esta adequação, o Tribunal deve ter em conta as características psíquicas e físicas da vítima, com vista a determinar se o meio utilizado para limitar a liberdade da vítima era idóneo para esse efeito.


O crime consuma-se com o início da privação da liberdade e o flagrante delito mantém-se enquanto se mantiver a privação da liberdade. A privação da liberdade pode durar apenas alguns minutos, desde que seja suficientemente intensa para não poder ser socialmente adequada.5


Para o preenchimento do tipo subjetivo é necessário que exista dolo, em qualquer das suas modalidades.


No caso, realçamos apenas, relativamente ao acórdão recorrido, que a privação de liberdade de locomoção não se iniciou apenas após a violação da assistente AA.


Na realidade, a privação da liberdade de locomoção, de movimentação, da assistente começou quando esta declarou ao arguido que queria ir embora (ponto n.º 40) e o arguido a agarrou nos braços, impedindo-a de sair do interior da garagem (ponto n.º41).


Esta privação de liberdade de locomoção é reafirmada, inequivocamente, pelo arguido, quando, depois de despir a assistente e de lhe declarar que “agora já te podes ir embora”, ao ver que a assistente se dirige para o exterior da garagem, ordena-lhe que volte a entrar e, agarrando-a no braço, leva-a para o quarto, onde a viola.


Nestas circunstâncias de domínio e poder completo sobre a assistente, físico e psicológico, em que até sujeitou a assistente a uma violação, não tem sentido defender, como faz o arguido, que a assistente nunca esteve privada de liberdade de locomoção, designadamente, após ter sido violada, porquanto não se provou que o portão da garagem tinha sido fechado a cadeado pelo arguido.


Perante a agressividade do arguido descrita nos factos provados e a oposição expressa afirmada pelo mesmo à assistente de que não a deixava sair da garagem, entendemos que as ordens proferidas pelo arguido foram um meio idóneo a limitar a liberdade de locomoção da assistente. É evidente, face ao caso concreto, que a desobediência da assistente às expressas ordens do arguido a faria correr um sério risco relativamente à sua integridade física.


Longe está, assim, poder concluir-se que nada impedia a assistente de se ir embora enquanto o arguido dormia.


Consequentemente, não merece censura, a decisão recorrida quando considera que o arguido com a sua descrita conduta preencheu todos os elementos do tipo objetivo e subjetivo do crime de sequestro.


13.2. A questão seguinte a decidir a este respeito, é saber se o crime de sequestro simples, p. e p. pelo art.158.º, n.º 1, do Código Penal, pelo qual o ora recorrente foi condenado, está, ou não, em concurso aparente com outro crime.


Vejamos, em termos muito sucintos, o que se entende por concurso aparente.


A problemática do concurso de crimes tem como princípio de solução o art.30.º do Código Penal, ao estabelecer que «O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.».


Traduzindo o pensamento de Eduardo Correia, o critério determinante do concurso é o que resulta da consideração dos tipos legais violados. E “efetivamente” violados, o que aponta decisivamente para a consagração de um critério teleológico referido ao bem jurídico.


Há concurso real quando o agente pratica vários atos que preenchem autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime (pluralidade de ações), e concurso ideal quando através de uma mesma ação se violam várias normas penais, ou a mesma norma, repetidas vezes (unidade de ação).


O critério teleológico que a lei acolhe no tratamento do concurso de crimes, condensado na referência a crimes «efetivamente cometidos», é adequado a delimitar os casos de concurso efetivo (pluralidade de crimes através de uma mesma ação ou de várias ações) das situações em que, não obstante a pluralidade de tipos de crime eventualmente preenchidos, não existe efetivo concurso de crimes (os casos de concurso aparente e de crime continuado).


Ao lado das espécies de concurso próprio (ideal ou real) há, com efeito, casos em que as leis penais concorrem só na aparência, excluindo uma as outras. A ideia fundamental comum a este grupo de situações é a de que o conteúdo do injusto de uma ação pode determinar-se exaustivamente apenas por uma das leis penais que podem entrar em consideração - concurso impróprio, aparente ou unidade de lei.


A determinação dos casos de concurso aparente faz-se, de acordo com as definições maioritárias, segunda regras de especialidade, subsidiariedade ou consunção.


A subsidiariedade como categoria do concurso aparente, significa “que certas normas penais intervêm só de forma auxiliar ou subsidiária, quando o facto não seja punido por uma outra norma mais grave”.6


A generalidade da jurisprudência, perante a redação do art.30.º, n.º1 do Código Penal, entende que o critério operativo de distinção entre categorias, que permite determinar se em casos de pluralidade de ações ou pluralidade de tipos realizados existe, efetivamente, unidade ou pluralidade de crimes, ou seja, concurso legal ou aparente ou real ou ideal, reverte ao bem jurídico e à concreta definição que esteja subjacente relativamente a cada tipo de crime.7


Não se desconhece que Figueiredo Dias abandonou, entretanto, os critérios baseados na unidade ou pluralidade de tipos de crimes violados e o da unidade e pluralidade de ações praticadas pelo agente, como critério possível de distinção entre unidade e pluralidade de crimes, avançando com uma nova perspetiva, do ponto de vista dogmático: é a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica, existente no comportamento global do agente submetido à cognição do tribunal, que decide em definitivo da unidade ou pluralidade de factos puníveis e, nesta aceção, de crimes.


Neste sentido, consigna que “…decisiva é, pois, a análise do significado do comportamento global que lhe empresta um sentido material (social) de ilicitude, terá então de reconhecer-se, de um ponto de vista teleológico e de valoração normativa "a partir da consequência", a existência de dois grupos de casos: (a) o caso (“normal”) em que os crimes em concurso são na verdade recondutíveis a uma pluralidade de sentidos sociais autónomos dos ilícitos-típicos cometidos e, deste ponto de vista, a uma pluralidade de factos puníveis - hipóteses que chamaremos de concurso efectivo (art.30.°-1), próprio ou puro; (b) e o caso em que, apesar do concurso de tipos legais efectivamente preenchidos pelo comportamento global, se deva ainda afirmar que aquele comportamento é dominado por um único sentido autónomo de ilicitude, que a ele corresponde uma predominante e fundamental unidade de sentido dos concretos ilícitos-típicos praticados - hipóteses que chamaremos de concurso aparente, impróprio ou impuro.”.8


Posto isto.


Embora o recorrente não seja claro quanto ao ilícito principal com o qual entende que o crime de sequestro estará em concurso aparente (conclusões 9.ª e 10.ª da motivação), esse crime só poderá ser o crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.152.º, n.º1, alínea b), do Código Penal, pelo qual o arguido foi condenado.


O art.152.º do Código Penal, sob a epígrafe « Violência doméstica», estabelece na parte com interesse para a decisão:


«1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:


a) (…);


b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;


(…)


é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.».


Não existe unanimidade na doutrina e jurisprudência sobre a identificação do(s) bem/bens jurídico(s) protegido(s) pelo crime de violência doméstica.


Ainda assim, cremos poder defender-se que o bem jurídico protegido no crime de violência doméstica é plural, complexo, abrangendo a integridade corporal, a saúde física e psíquica, em contexto de relação de namoro, relação conjugal ou relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação e mesmo após cessar essa relação.


No dizer de Nuno Brandão, “É o perigo para a saúde do objeto de ação alvo da conduta agressora que constitui motivo da criminalização, pretendendo-se deste modo oferecer uma tutela antecipada ao bem jurídico em apreço, própria dos crimes de perigo abstrato. E se a proteção da integridade corporal da vítima constitui um dos planos desta tutela, creio, no entanto, que o desvalor potencial fundamentalmente tomado em consideração para justificar esta específica modalidade de incriminação se prende com os sérios riscos para a integridade psíquica da vítima que podem advir da sujeição a maus-tratos físicos e/ou psíquicos, sobremaneira quando se prolonguem no tempo”.9


Sendo discutível se a dignidade humana faz parte do bem jurídico deste tipo penal, dada a amplitude deste conceito, dúvidas não há que a teologia do crime não é alheia a esta vertente, que emana dos artigos 25.º e 26.º da C.R.P...


Sendo a razão de ser da autonomização do crime de violência doméstica a busca de um bem jurídico suficientemente amplo e operativo, as condutas que integram o tipo-de-ilícito não devem ser individualmente consideradas, enquanto, eventualmente, integradoras de um tipo de crime, para serem atomisticamente perseguidas criminalmente mas, antes, devem ser valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento repetido ou isolado que signifique violência sobre o namorado, o cônjuge ou equiparado, mesmo após a cessação da relação .


Daqui se extraindo alguma jurisprudência que entre o crime de violência doméstica e os crimes de ofensa à integridade física simples, ameaça, injúria e difamação ou outros que o podem integrar, estabelece-se uma relação de concurso aparente, só se aplicando a pena estabelecida pelo artigo 152.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, deixando de ter relevância jurídico-penal autónoma os crimes que o podem integrar.


A unidade de ação típica não é excluída pela realização repetida de atos parciais, quer estes atos integrem, ou não, em si mesmos, outros tipos de crime.


Os maus-tratos, físicos e psíquicos, exemplificativamente elencados no n.º1 do art.152.º do Código Penal, em contexto de relação de namoro, relação conjugal ou relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação e mesmo após cessar essa relação, correspondem, pois, à prática de crimes de ofensa à integridade física simples (art.143.º do C.P.), de sequestro simples (art.158.º, n.º1 do C.P.), de ameaça (art.153.º do C.P.), de coação (art.154.º do C.P.), de coação sexual (art.163.º, n.º1 do C.P.), e de difamação e injúrias, simples ou qualificadas (artigos 180.º, 181.º, 183.º e 184.º do C.P.).


No sentido exposto, refere o S.T.J. no acórdão de 27-4-2018 (proc. n.º 131/17.8JAPRT.S1), que “…tem-se entendido que [no crime de violência doméstica] ocorre uma relação de concurso aparente de normas com outros tipos penais, designadamente as ofensas corporais simples (artigo 143.º, nº 1 do Código Penal), as injúrias (artigo 181.º), a difamação (artigo 180.º, nº 1), a coação (artigo 154.º), o sequestro simples (artigo 158.º, nº 1), a devassa da vida privada [artigo 192.º, nº 1. al. b)], as gravações e fotografias ilícitas [artigo 199.º, nº 2, al b)] – acórdão Tribunal da Relação de Évora de 8-01-2013 (dgsi) – as ameaças simples ou agravadas – Catarina Sá Gomes, “O crime de maus tratos físicos e psíquicos infligido ao cônjuge ou a convivente em condições análogas às do cônjuges, pág. 59, AAFDL, 2002.”.10


A prática mais ou menos constante e reiterada das condutas descritas no art.152.º do Código Penal, desde que cada uma dessas condutas não permita a sua autonomização por força da aplicação de uma «pena mais grave», dará origem a uma unicidade normativo-social, tipicamente imposta, pelo que o agente terá praticado um só crime, desde que esteja em causa uma só vítima.


O segmento final do n.º1 do art.152.º do Código Penal, ao estabelecer que os atos aí descritos são punidos com pena de prisão de 1 a 5 anos, «se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal», vem sendo justamente criticado, na doutrina e na jurisprudência.


O Supremo Tribunal, pelo menos maioritariamente, vem afastando uma interpretação e aplicação formal deste segmento da norma, no sentido de considerar que se a punição do crime concorrente for superior a 5 anos de prisão, existirá um concurso aparente de crimes, sendo o crime de violência doméstica afastado em resultado da regra da subsidiariedade.


Por esta interpretação poder levar a uma injustiça material intolerável em benefício do arguido, levando a que este fosse apenas punido pelo crime mais grave, como o de ofensa à integridade física grave, violação, sequestro qualificado e homicídio, mas esquecendo completamente a punição de todos os restantes atos integradores do n.º1 do art.152.º do Código Penal, que até podem ter durado anos, o S.T.J. vem permitindo a cisão desta unidade normativa sempre que o crime mais grave assuma autonomia relativamente aos maus-tratos e, assim, estabelecer uma relação de concurso efetivo com o crime de violência doméstica.11


Embora a problemática que advém da parte final do n.º1 do art.152.º do Código Penal, não faça parte da presente questão objeto de recurso, seguimos aqui também o entendimento jurisprudencial no sentido de que quando algum dos atos mais graves (violação ou sequestro qualificado, por exemplo), permita alguma autonomia face à concreta conduta do arguido olhada globalmente, relativamente aos maus-tratos unificados na violência doméstica, pelo diverso sentido social da ilicitude material e pluralidade de resoluções, o agente deve ser punido em concurso efetivo, pela incriminação respetiva mais grave e pela violência doméstica.


13.3. No caso concreto, a privação da liberdade da assistente na situação descrita nos pontos n.ºs 40 a 56 dos factos provados, foi tratada pelo Tribunal a quo como sequestro simples, pelo que integra o tipo-de-ilícito do art.152.º, n.º1 do Código Penal, na vertente dos maus-tratos, onde se incluem as «privações da liberdade».


Assim, não pode esta conduta do arguido ser individual e atomisticamente perseguida como tipo autónomo, mas antes valorada globalmente no crime de violência doméstica praticado pelo ora recorrente sobre a ex-namorada AA.


Pelo exposto, impõe-se revogar a decisão recorrida na parte em que condenou o arguido pela prática de um crime de sequestro, p. e p. pelo art.158.º, n.º1 do Código Penal, e absolvê-lo da sua prática.


14. Das penas aplicadas


Resta analisar a medida da pena parcelar aplicada ao arguido pelo crime de violação e reconfiguração do cúmulo jurídico das penas aplicadas.


O recorrente defende que, nos termos do disposto nos artigos 40.º e 71.º do Código Penal e 18.º, n.º2 e 27.º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa, deveria ter-lhe sido aplicada uma pena em torno dos 3 anos de prisão pela prática do crime de violação tipificado no n.º1 do art.164.º do Código Penal, argumentando que o Tribunal a quo não considerou as especificidades da relação, nomeadamente, a sua recíproca crispação, que resulta transversal a todos os depoimentos juntos aos autos.


Vejamos.


O critério da determinação da medida concreta da pena consta do art.71.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal.


Nos termos desta norma penal a medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo o tribunal a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor ou contra ele.


Não se esgotando o facto punível com a ação ilícita-típica, necessário se torna sempre que a conduta seja culposa, “isto é, que o facto possa ser pessoalmente censurado ao agente, por aquele se revelar expressão de uma atitude interna pessoal juridicamente desaprovada e pela qual ele tem por isso de responder perante as exigências do dever-ser sociocomunitário.”12


O juízo de censura, ou desaprovação, é suscetível de se revelar maior ou menor sendo, por natureza, graduável e dependendo sempre das circunstâncias concretas em que o agente desenvolveu a sua conduta, traduzindo igualmente um juízo de exigibilidade determinado pela vinculação de cada um a conformar-se pela atuação de acordo com as regras estipuladas pela ordem jurídica superando as proibições impostas.


O requisito de que sejam levadas em conta, na determinação da medida concreta da pena, as exigências de prevenção, remete para a realização in casu das finalidades da pena, que de acordo com o art.40.º, n.º1, do Código Penal, são a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.


O objetivo último das penas é a proteção, o mais eficaz possível, dos bens jurídicos fundamentais.


Esta proteção implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, servindo primordialmente para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva ou de integração).


A prevenção geral radica no significado que a “gravidade do facto” assume perante a comunidade, isto é, no significado que a violação de determinados bens jurídico-penais tem para a comunidade e visa satisfazer as exigências de proteção desses bens na medida do necessário para assegurar a estabilização das expectativas na validade do direito.


A reintegração do agente na sociedade está ligada à prevenção especial ou individual, isto é, à ideia de que a pena é um instrumento de atuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que no futuro, ele cometa novos crimes, que reincida.


É a prevenção geral positiva que fornece uma moldura de prevenção dentro de cujos limites podem e devem atuar considerações de prevenção especial.


As circunstâncias gerais enunciadas exemplificativamente no n.º2 do art.71.º do Código Penal, são, no ensinamento de Figueiredo Dias, elementos relevantes para a culpa e para a prevenção e, “ por isso, devem ser consideradas uno actu para efeitos do art.72.º-1; são numa palavra, fatores relevantes para a medida da pena por força do critério geral aplicável.”.


Para o mesmo autor, esses fatores podem dividir-se em “fatores relativos à execução do facto”, “fatores relativos à personalidade do agente” e “fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto”.


Como expende Maria João Antunes, podem ser agrupados nas alíneas a), b), c) e e), parte final, do n.º 2 do art.71.º, do Código Penal, os fatores relativos à execução do facto; nas alíneas d) e f), os fatores relativos à personalidade do agente; e na alínea e), os fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto. 13


Por respeito à eminente dignidade da pessoa a medida da pena não pode ultrapassar a medida da culpa (art.40.º, n.º 2 do C.P.), designadamente por razões de prevenção.


Nas situações em que o agente praticou vários crimes, o concurso efetivo de crimes impõe que se tenham em consideração as regras da punição do concurso, estabelecidas no art.77.º do Código Penal.


Nos termos desta norma a pena conjunta é definida dentro de uma moldura cujo limite mínimo é a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e o limite máximo resulta da soma das penas efetivamente aplicadas, emergindo a medida da pena conjunta, não apenas dos factos individualmente considerados, numa visão atomística, mas da imagem global do facto imputado e da personalidade do agente.


Na busca da pena do concurso, explicita Figueiredo Dias, que “Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta”. E acrescenta que “de grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).”14


Por fim, importa não esquecer que quer na determinação da pena parcelar, quer na pena conjunta, se impõe atender aos “princípios da proporcionalidade, da adequação e proibição do excesso”, constitucionalmente consagrados no art.18.º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa.


Retomando o caso concreto.


A propósito da medida das penas parcelares e única, expendeu-se, em concreto, na decisão recorrida (transcrição):


Ora, no caso dos autos, consideramos que as razões de prevenção geral são elevadíssimas neste tipo de criminalidade, causando os ilícitos sexuais um considerável tremor social –tanto mais atendendo à grandeza do bem jurídico protegido, o que, aliado à notória frequência do crime de violência doméstica nesta comunidade, reclama um forte sentido coletivo de Justiça.


Quanto às exigências de prevenção especial, deverá ter-se presente, o elevadíssimo grau de ilicitude de todos os factos praticados, especialmente o de violação, com forte intromissão no corpo e bem-estar físico e psíquico da ofendida. O grau de culpa situa-se num patamar muito superior à média, atento o calculismo do arguido (que utilizou como desculpa conversar com a assistente para a atrair para a sua garagem), os concretos atos sexuais praticados, tudo envolto num intenso dolo direto. E mesmo após a consumação de tal crime, ainda a proibiu de sair da garagem e, no dia seguinte, dava-lhe instruções de como reagir. Não podemos ainda ignorar a total falta de empatia para com a vítima e que praticou o crime durante o período da suspensão de uma pena também pela prática de um crime de violência doméstica.”


Já no que respeita ao cúmulo jurídico, consignou, em concreto:


Nos termos do nº 2 da norma acima referida [art.77.º do Código Penal], a pena única deverá ter como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos três crimes, a saber, 9 anos e 6 meses de prisão. Já o limite mínimo das penas corresponderá à mais elevada das penas concretamente aplicadas a todos os crimes (5 anos de prisão).


Dentro desta moldura, há também que atender aos factos e à personalidade do agente, apreciados conjuntamente (artigo 77º, nº 1, parte final do Código Penal), pelo que, realizando uma análise genérica e consequencial de toda a factualidade, de modo a fazer corresponder a punição aos factos e às exigências pessoais e sociais que a sua prática suscitou, com o máximo rigor e acerto, e recorrendo ao que já se escreveu aquando das exigências de prevenção geral e especial, mas destacando ainda a total falta de empatia para com a vítima, demonstra-se adequada a fixação da pena única do concurso em 7 anos e 6 meses de prisão.


Relativamente ao crime de violação, ficou já definido que a conduta do arguido preenche a tipificação do n.º2 e não do n.º1 do art.164.º do Código Penal e, consequentemente, a moldura penal não é de 1 a 6 anos de prisão, mas de 3 a 10 anos de prisão.


Em termos sucintos, no que respeita aos «fatores relativos à execução do facto», consideramos elevado o grau de ilicitude dos factos no respeitante ao crime de violação por meio de violência, dado todo o contexto em que a violação ocorreu, com expressa e reiterada oposição da vítima à prática do ato sexual de cópula por parte do ex-namorado, com quem a assistente tinha já terminado a relação de namoro. As especificidades da “relação” entre o arguido e a assistente, como sendo de “recíproca crispação”, invocadas pelo recorrente, em nada relevam para a atenuação da responsabilidade criminal pela violação, tanto mais que a relação de namoro já terminara por decisão da assistente. No modo de execução da violação merece realce a prévia humilhação da vítima. A motivação que levou o arguido a sujeitar a assistente à prática de cópula foi, evidentemente, a satisfação dos seus instintos libidinosos. O grau de violação dos deveres impostos ao arguido, é intenso, tendo em conta que os factos foram cometidos depois de ambos terem tido uma relação de namoro e no local de trabalho do mesmo para onde a levou a pretexto de dar uma volta porque precisava de conversar com ela, assim traindo a sua confiança em acompanhar. As consequências da violação pelo arguido são graves pela forte intromissão que o ato representa no corpo e bem-estar físico e psíquico da ofendida. Por fim, agiu com dolo direto e intenso.


Nos “fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto», são de realçar, como bem anota a decisão recorrida, o cometimento dos crimes durante o período de suspensão de execução de uma pena pela prática de um crime de violência doméstica e a circunstância do arguido , após a prática dos factos em causa, dar instruções à assistente de como reagir, de modo a encobrir os seus atos criminosos. Os seus relacionamentos amorosos anteriores são caraterizados como desajustados. Não beneficia de confissão aberta ou arrependimento pela violação da vítima, circunstâncias através das quais o Tribunal poderia ser levado a considerar existir um juízo de prognose favorável ao comportamento futuro do arguido.


Nos “Fatores relativos à personalidade do agente”, que integram a alínea e), n.º2 do art.71.º do Código Penal, assume preponderância a não interiorização da gravidade da conduta por parte do arguido, não apresentando qualquer empatia para com a assistente. Apresenta dificuldades de auto controlo perante situações geradoras de tensão. Tem modestas habilitações literárias e fracos hábitos de trabalho.


Considerando o grau de perigosidade do arguido que resulta da globalidade dos factos provados, entendemos, tal como a decisão recorrida, que as razões de prevenção especial são muito elevadas.


Também as razões de prevenção geral são muito elevadas nos crimes de natureza sexual, particularmente nos crimes de violação, pelo alarme e forte repugnância que causa na sociedade.


Tendo em consideração as circunstâncias valoradas na determinação da pena aplicada pelo crime de violação, as finalidades da pena, os princípios que lhe presidem e a moldura penal mencionada no acórdão recorrido, não se encontra fundamento para discordar da pena parcelar de 5 anos de prisão aplicada ao arguido, por alegadamente excessiva, quando ela se situa pouco acima do seu limite mínimo (3 anos) e bem longe do seu limite máximo (10 anos).


O Supremo Tribunal de Justiça entende que a fixação de pena inferior à pena parcelar aplicada ao ora recorrente pela prática de um crime de violação não respeitaria o disposto nos artigos 18.º, n.º 2 da C.R.P. e 40.º e 71.º do Código Penal15.


Perante a absolvição do arguido da prática de um crime de sequestro, pelo qual fora condenado na pena de 2 anos de prisão, impõe-se reformular o cúmulo jurídico das penas fixadas no acórdão recorrido, tendo em consideração que o limite mínimo da pena é de 5 anos de prisão e o limite máximo é de 7 anos e 6 meses de prisão.


Observando o ilícito global que emerge da análise unificada dos factos, não se pode deixar de qualificar o mesmo, como sendo de grau elevado.


Assim:


- Estão em concurso um crime de violência doméstica e um crime de violação, tendo como vítima uma ex-namorada, praticados no mesmo tempo e local;


- Os crimes em causa, que atentam contra a saúde física e psíquica da vítima e a liberdade e autodeterminação sexual, integram, respetivamente o conceito de “criminalidade violenta” e “criminalidade especialmente violenta”, a que aludem as alíneas j) e l), do art.1.º do Código de Processo Penal, o que os afasta da pequena/média criminalidade.


- O arguido tem antecedentes criminais , tendo os crimes sido praticados durante o período de suspensão de execução de uma pena de prisão pela prática de um crime de violência doméstica.


A culpa global do arguido é acentuada, dado o contexto em que os factos ocorreram , em que demonstrou uma intensa vontade de os praticar.


Quanto à personalidade unitária do recorrente, anotamos um percurso de vida do arguido desestruturado, no que concerne às suas condições de vida laboral e amorosa ao longo do tempo, e às suas fracas condições socioeconómicas e laborais, a que acresce a falta de um adequado juízo critico acerca da ilicitude das suas condutas, uma vez que não interiorizou a elevada gravidade das suas condutas.


Pese embora se esteja ainda numa situação de pluriocasionalidade, entende-se, no acórdão recorrido, e bem, que são prementes as exigências de prevenção especial.


Estas exigências postulam efetivamente a aplicação de uma pena que possa ser interiorizada pelo arguido, como dissuasora da prática de novos crimes e para que sirva de aviso para que adapte o seu comportamento às normas socialmente vigente.


As exigências de prevenção geral de integração que se fazem sentir são também muito elevadas, como é bem avançado no acórdão recorrido.


Neste contexto, ponderando em conjunto a gravidade dos factos e a sua relacionação com a deficiente personalidade do recorrente que resulta daquele, entendemos que se mostra justa, por adequada às finalidades de prevenção, proporcional á culpa e à personalidade do arguido/recorrente, fixar a pena conjunta em 6 anos e 10 meses de prisão.


Procede, nestes termos, parcialmente, o recurso interposto pelo arguido.


III - Decisão


Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido BB e, revogando o acórdão recorrido na parte em que o condenou pela prática de um crime de sequestro, p. e p. pelo art.158.º, n.º1 do Código Penal, absolve-se o mesmo da sua prática e, reformulando o cúmulo jurídico das penas, condenar o mesmo arguido na pena conjunta de 6 (seis) anos e 10 (dez) meses de prisão.


Sem tributação (art. 513º, n.º 1 do C. P.P.).


*


(Certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.ºs 2 e 3 do C.P.P.).


*


Lisboa,


Orlando Gonçalves (Relator)


Agostinho Torres (1.º Adjunto)


Jorge dos Reis Bravo (2.º Adjunto)

__________________________________________________

1. Cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 19-6-96 (BMJ n.º 458º, pág. 98) e de 24-3-1999 (CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247.)↩︎

2. Sem relevo para a presente questão, a Lei n.º 45/2023, de 17 de agosto, alterou parcialmente o art.164.º do Código Penal, passando a estabelecer: «1- [...]

a) Sofrer ou praticar consigo ou com outrem cópula, coito anal ou coito oral; ou

b) Sofrer ou praticar atos de introdução vaginal, anal ou oral de partes do corpo ou objetos;

[...]

2- [...]

a) [...]; ou

b) A sofrer ou a praticar atos de introdução vaginal, anal ou oral de partes do corpo ou objetos;

[...]

3- [...]».↩︎

3. Cf. Figueiredo Dias, in “Código Conimbricense do Código Penal”, Coimbra editora, Tomo I, 2.ª ed., pág. 726 e Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal”, UCE, 4.ª ed., pág. 703 , e art.36.º da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adotada em Istambul, a 11 de Maio de 2011 (Convenção de Istambul), aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 4/2013, apela à criminalização de condutas no âmbito da violência sexual, incluindo violação, relativamente aos atos praticados sem consentimento da vítima.↩︎

4. Cf. Paulo Pinto Albuquerque, in “Comentário ao Código Penal, UCE, Lisboa, 2008, pág. 424.↩︎

5. Cf. Paulo Pinto Albuquerque, obra citada, pág. 425.↩︎

6. Cf. Figueiredo Dias, in “Direito Penal, Sumários e notas das Lições…”, Universidade de Coimbra, 1976, pág. 107.↩︎

7. Cf. acórdãos do Supremo Tribunal, de 29/06/2006 (proc. nº 1942/06-3ª) e de 27-05-2010 (proc. n.º 470/09.4PSLSB.L1.S1).↩︎

8. Cf. “Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2.ª ed., pág. 990.↩︎

9. Cf. Nuno Brandão, “A Tutela Penal Especial Reforçada da Violência Doméstica “, in Julgar n.º12 (especial), págs.17 e 18.↩︎

10. In www.dgsi.pt↩︎

11. Cf. neste sentido, entre outros, os acórdãos do S.T.J. de 21-11-2018 (proc. n.º 574/16.4PBAG.S1) e de 10-3-2021 (proc. n.º 83/18.7GECUB.S1), onde se assume uma relação de concurso efetivo entre crime de violência doméstica e crime de violação, in www.dgsi.pt↩︎

12. Cf. Fig. Dias, in “Temas básicos da doutrina penal”, Coimbra Ed., pág. 230.↩︎

13. Cf. “ Consequências Jurídicas do Crime”, Lições para os alunos da FDC, Coimbra, 2010-2011.↩︎

14. Cf. “Direito Penal Português, “As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, 1993, pág.290/2.↩︎

15. A alegada violação, invocada pelo recorrente, do art.27.º, n.º2 da C.R.P., é irrelevante para a determinação da medida da pena, dado que apenas estabelece, acerca do direito à liberdade e segurança, que «ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança.».↩︎