RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANO MORTE
DANO BIOLÓGICO
DANOS FUTUROS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS REFLEXOS
DIREITOS DE TERCEIRO
PROGENITOR
DESPESAS DE FUNERAL
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
CRITÉRIOS
EQUIDADE
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA
REENVIO PREJUDICIAL
DIRETIVA COMUNITÁRIA
DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
FORÇA VINCULATIVA
Sumário


I. O nosso Código Civil não contém expressamente qualquer norma que especifique o círculo de sujeitos a quem cabe o direito à indemnização dos danos resultantes de um facto lesivo, no domínio da responsabilidade civil delitual. No entanto, em princípio, o direito à reparação apenas cabe à pessoa ou pessoas titulares do direito ou interesse juridicamente protegido, ou seja, aos lesados.
II. Muito embora se deva aceitar uma concepção atípica dos modos de lesão, significando relevar ainda a ilicitude causada de forma indirecta, não parece, em termos de direito positivo, que, em caso de morte de uma pessoa, a lei atribua a qualquer “terceiro” o direito de indemnização, a coberto do art.483 nº1 (1ª parte) CC.
III. O art.495 do CC é uma norma de natureza excepcional, pelo que apenas nos casos aí previstos a lei admite o ressarcimento dos danos patrimoniais indirectos provocados a terceiros, não sendo indemnizáveis os denominados danos patrimoniais “reflexos” que, fora da previsão sejam indirectamente causados a terceiros.
IV. A jurisprudência do TJUE tem também afirmado que a Diretiva nº 2009/103 do Parlamento Europeu e do Conselho de 16/09/2009, à semelhança das directivas que codifica, não visa harmonizar os regimes de responsabilidade civil dos Estados Membros e que, no estado actual do direito da União, estes continuam a ser livres de determinar o regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação dos veículos automóveis, pelo que os Estados Membros conservam, em princípio, a liberdade de determinar, especialmente, quais os danos causados por veículos automóveis que devem obrigatoriamente ser objecto de indemnização, o alcance do direito à indemnização e as pessoas que têm direito à mesma.
V. Assim, a obrigação de cobertura, pelo seguro de responsabilidade civil, dos danos causados a terceiros por veículos automóveis é definida e garantida pela regulamentação da União, enquanto a extensão da indemnização desses danos a título da responsabilidade civil do segurado é regulada, essencialmente, pelo direito nacional.
VI. O Direito da UE e, em particular, as Directivas de Seguro Automóvel codificadas na Directiva n.º 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 16/09/2009 que consolidou e substituiu as directivas anteriores, não impõe o ressarcimento dos danos patrimoniais indirectamente sofridos pelos aqui recorrentes em consequência da morte da sua filha, e que não se encontram previstos no art. 495.º do CC, não havendo qualquer desconformidade entre o disposto nesse normativo e a referida Directiva na interpretação que tem sido seguida pelo TJUE.
VII. A jurisprudência do TJUE tem admitido de forma consistente a dispensa da obrigação de suscitar a questão prejudicial de interpretação, por insusceptibilidade de recurso, nas seguintes situações:
(i) quando a questão de direito da UE suscitada for impertinente ou desnecessária para a resolução do litígio concreto;
(ii) quando o TJUE já se tenha pronunciado, de forma firme, sobre a questão a reenviar em caso análogo, em sede de reenvio ou outro meio processual, atento o efeito erga omnes das suas decisões;
(iii) quando o tribunal nacional considere que as normas da UE aplicáveis não suscitam dúvidas interpretativas, ou sejam suficientemente claras e determinadas, aptas para serem aplicadas imediatamente, sendo que a clareza das normas aplicáveis deve resultar da sua interpretação teleológica e sistemática e da referência ao contexto histórico, social e económico em que foram adoptadas.
VIII. O TJUE não pode ser chamado a pronunciar-se, no âmbito de um reenvio a título prejudicial, sobre a interpretação a dar às disposições do nosso direito interno ou de qualquer outro ordenamento jurídico europeu, não sendo essa a competência que os Tratados atribuíram ao TJUE.
IX. Há hoje uma preocupação superadora da tradicional categoria de “dano moral”, ampliando o seu espectro, de molde a abranger outras manifestações que a lesão provoca na pessoa, e já não a simples perturbação emocional, a dor ou o sofrimento, procurando erigir-se um novo modelo centralizado no “dano pessoal” que afecta a estrutura ontológica do ser humano, entendido como entidade psicossomática e sustentada na sua liberdade, correspondendo a duas únicas categorias de danos: o “dano psicossomático” e o “dano ao projecto de vida”, com consequências extrapatrimoniais, sendo esta a concepção que melhor se adequa à natureza e finalidade da indemnização pelos danos extrapatrimoniais/pessoais, pondo o enfoque na vítima, com implicações na (re)valorização compensatória, maximizada pelo princípio da reparação integral.
X. Provando-se que em consequência de acidente de viação, causado exclusivamente pelo condutor do veículo seguro, faleceu a filha dos Autores ( pais ), sendo filha única, de 22 anos de idade, que vivia junto com os pais, tendo estes ficado profundamente abalados psíquica e emocionalmente e envolvidos numa grande tristeza, e que a morte da sua única filha afectou os Autores de forma permanente e irreversível, designadamente a nível psíquico, psiquiátrico ou neurológico, com acompanhamento médico, tratamento medicamentoso antidepressivo, desenvolvendo ambos perturbações psíquicas, caracterizadas por humor depressivo e manifestações ansiosas, dificuldade de adaptação à perda sofrida, com comportamentos de evitamento que reúne critérios de diagnóstico para Perturbação de Stress Pós-Traumático e que este quadro lhes acarreta uma repercussão em grau ligeiro na sua autonomia pessoal, social e profissional, valorizável em 9 pontos, deve estimar-se o dano não patrimonial em € 50.000,00 ( cinquenta mil euros) para cada um dos pais.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I - RELATÓRIO



1.1.- Os Autores - AA e BB - instauraram a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra a Ré - Lusitânia – Companhia de Seguros, S.A.

Alegaram, em resumo:

No dia ... de Agosto de 2013, ocorreu um acidente de viação no Itinerário Complementar ... (IC...), no concelho de ..., em que intervieram o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-IV, conduzido por CC, e o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-ED-.., conduzido por DD.

O acidente deu-se por responsabilidade exclusiva do condutor do ..-..-IV, transferida para a Ré Seguradora.

Em consequência do acidente faleceu EE, filha única dos Autores, que seguia como passageira no veículo de matrícula ..-..-IV.

Os Autores sofreram danos patrimoniais e não patrimoniais, no valor global de € 253 480,57:- € 20.000,00 a título de danos morais sofridos pela sua falecida filha, entre o momento da ocorrência do acidente e a sua morte;- € 85.000,00 pela perda do direito à vida;- € 5.130,64 pelas despesas de funeral e outras;- € 3.449,93 pelas despesas decorrentes dos tratamentos médicos e medicamentosos;- € 45.000,00 para cada um dos autores, pelos danos não patrimoniais sofridos com a morte da filha; - € 25.000,00 para cada um dos autores pela perda de capacidade de ganho e dano biológico sofridos.

Pediram (atendendo ao requerimento de ampliação do pedido formulado em 31-05-2021) a condenação da ré a pagar-lhes a quantia global de € 253 480,57 (duzentos e cinquenta e três mil, quatrocentos e oitenta euros e cinquenta e sete cêntimos), acrescida de juros legais vincendos, calculados sobre o capital em dívida, contados desde a citação até integral e efetivo pagamento e, bem assim, das quantias a liquidar em ampliação do pedido ou execução de sentença referentes aos danos alegados nos artigos 115.º e 116.º do requerimento de ampliação do pedido formulado nos autos em 31-05-2021.

1.2. – A Ré contestou admitindo que o acidente ocorreu nos termos descritos na Participação de Acidente de Viação junta aos autos com a petição inicial, declarando que assumiu nos termos do Capitulo III do Decreto-Lei 291/2007 de 21 de Agosto, a responsabilidade civil emergente, por força do Contrato de Seguro de Responsabilidade Civil Automóvel aceite e em vigor à data do acidente, tendo apresentado proposta razoável no valor de € 125.000,00 com vista a um acordo indemnizatório com os ora autores, que não foi aceite por estes.

Impugnou parcialmente os factos alegados pelos autores relativos aos danos por eles sofridos, alegando que não é devido qualquer montante a título de danos morais sofridos pela falecida filha dos autores, entre o momento da ocorrência do acidente e a sua morte, nem qualquer valor indemnizatório pela perda de capacidade de ganho e dano biológico sofridos, sendo os restantes valores peticionados excessivos.

Invocou ainda a ineptidão parcial da petição inicial, tendo em conta que os autores pretendem ser ressarcidos pelos mesmos danos, efetuando pedidos substancialmente incompatíveis.

1.3. – Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção, decidindo:

a) Condenar a Ré a pagar aos Autores a quantia de €185.130,64 (cento e oitenta cinco mil cento e trinta euros e sessenta e quatro cêntimos) acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor;

b) Absolver a Ré do demais peticionado pelos Autores.

1.4. - Inconformados, Autores e Ré interpuseram recursos de apelação e a Relação de Évora, por acórdão de 9-02-2023, decidiu julgar improcedentes ambos os recursos e confirmar a sentença recorrida.

1.5. – Os Autores recorreram de revista excepcional, admitida por acórdão de 28-6-2023, com as seguintes conclusões:

1)A titularidade do direito indemnizatório pelos danos decorrentes de um facto ilícito cabe, em regra, ao lesado que sofreu danos diretos na sua esfera jurídica e que é titular do direito violado ou interesse legalmente protegido;

2) Todavia, pode acontecer que o facto lesivo cause igualmente danos a outras pessoas próximas da vítima, que se podem designar como terceiros, vítimas mediatas, indiretas ou secundárias;

3)No caso sub judice, foi vítima direta do facto ilícito a filha única dos aqui Autores recorrentes que veio a perder a sua vida no acidente de viação;

4)Os Autores recorrentes são igualmente vítimas pois, ao terem conhecimento do falecimento da sua única filha, vieram a sofrer danos corporais graves, irreversíveis e permanentes, os quais se traduzem numa afetação relevante da sua capacidade de ganho;

5)O critério de acordo com o qual só o titular do direito ou interesse juridicamente protegido tem direito a reparação, não excetua o ressarcimento dos danos sofridos pelos lesados mediatos, titulares de um direito subjetivo violado indiretamente pelo facto lesivo, se se admitir a causalidade indireta;

6)Padecendo a vítima direta de uma lesão corporal fatal, os seus familiares mais próximos poderão sofrer danos resultantes da violação de um direito subjetivo absoluto de que são titulares e, nesse sentido, assiste-lhes o direito de reclamar à seguradora do lesante, uma indemnização pela totalidade dos danos sofridos;

7)É uma perda que acompanha e perdura de forma definitiva na sua saúde, cujo direito absoluto tutelado pelo artigo 483.º, n.º 1, Código Civil (CC) em conjunto com o artigo 70.º, n.º 1 do mesmo diploma legal, deve dar lugar à sanção prescrita pela cláusula geral de responsabilidade delitual, ou seja, tem de se reconhecer que essa situação consubstancia um facto ilícito que ingressou na esfera jurídica dos aqui Autores, que lhes causou uma lesão para a sua saúde e como tal, gerador de uma indemnização, tal como prevê o art. 562.º do CC;

8)Indemnização essa que os Autores são titulares autónomos porque o direito violado foi o seu direito de personalidade e não por reflexo à dor da morte, sendo, pois, uma consequência direta que incide de forma independente na sua esfera jurídica;

9)Se do facto ilícito resulta objetivamente um resultado lesivo para a integridade pessoal de outrem, um dano, então merece o titular do direito violado igual tutela, seja ele o participante físico do sinistro, ou não;

10)As sequelas deixadas pelo evento trágico são realidades tangíveis decorrentes de uma patologia causada por um evento que per se atinge o direito de personalidade dos Autores recorrentes e que estão muito além de uma mera exposição à dor da perda de um filho, pelo que, são as mesmas merecedoras de tutela jurídica;

11)Devem assim esses danos serem devidamente indemnizados, fixando-se os mesmos em montante nunca inferior a € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros) para cada Autor;

12)Essa tutela jurídica já se encontra devidamente assegurada em diversos ordenamentos jurídicos de países pertencentes à União Europeia, designadamente na Espanha, França, Itália e Alemanha;

13)Impõe-se que exista uma uniformidade de entendimento de todos os Estados-Membros quanto a esta problemática, por forma, a que seja garantido que as vítimas de acidente de veículos automóveis recebam tratamento idêntico, independentemente dos locais da União onde os mesmos ocorram;

14)Salvo o devido respeito, entendem os Autores recorrentes que importará apurar se o direito comunitário, designadamente o disposto nas seis diretivas do Parlamento e do Conselho relativas ao contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, se opõe a uma legislação nacional que (i) não assegure a devida tutela jurídica aos danos indiretamente sofridos por familiares próximos de uma vítima mortal de um acidente de viação, sempre que estes assumam uma gravidade e autonomia própria e (ii) não garanta a essas vítimas um tratamento comparável com aquele que já sucede noutros Estados-Membros da União;

15)Assim se justificando o recurso à figura do Reenvio Prejudicial, nos termos do disposto no art. 267.º do TFUE, suspendendo-se a presente instância, o que expressamente se requer;

16)Ainda que que o supra alegado não venha a merecer o devido acolhimento pelo tribunal ad quem, o que apenas se admite como mera hipótese académica de raciocínio, o certo é que, ainda assim, é entendimento dos aqui Autores recorrentes que a correta interpretação do ordenamento jurídico português, já garante o ressarcimento dos danos por si reclamados, considerando que os mesmos integram uma dimensão patrimonial e pecuniária do próprio dano moral (ou não patrimonial);

17)As instâncias recorridas vieram a reconhecer tutela jurídica aos danos não patrimoniais sofridos pelos aqui Autores recorrentes, tendo-lhes fixado um valor indemnizatório, de cerca de € 30.000,00 (trinta mil euros), a cada um, pela sua dimensão imaterial ou sentimental;

18)Atento os danos corporais sofridos pelos Autores e que se encontram devidamente elencados nos pontos 24. a 40. da matéria de facto considerada provada, é facto notório que os Autores recorrentes sofreram igualmente danos graves, irreversíveis e permanentes, os quais se traduzem numa afetação objetiva da sua capacidade de ganho, existindo assim uma dimensão económica deste dano não patrimonial que não veio a ser considerada pelas instâncias recorridas;

19)As instâncias recorridas só indemnizaram a vertente não tangível do dano não patrimonial, pelo que não vieram a tornar indemne os lesados

20)Mas o princípio base a tomar em conta será o comando legal que determina que a vítima fique indemne;

21)E, numa circunstância em que as consequências do sofrimento psíquico assumem uma vertente determinável do ponto de vista pecuniário com características patrimoniais (determinada pelo cálculo da perda de capacidade de ganho), há-de ser a atribuição indemnizatória do valor respetivo a única forma de assegurar que a vítima fica indemne; Impõe-se, assim, que o tribunal ad quem venha a considerar igualmente essa dimensão (rectius, consequência) do dano não patrimonial na quantificação global do dano que vier a fixar;

22)Tudo ponderado, afigura-se ser justo e equitativo a fixação de um montante indemnizatório nunca inferior a € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros) para cada um dos Autores recorrentes, montante esse que deverá acrescer ao valor já fixado para cada um (€ 30.000,00), por forma a que os mesmos possam ser devidamente compensados pela totalidade dos danos não patrimoniais sofridos;

23)Caso tal não venha a suceder, é entendimento dos aqui Autores recorrentes que existirá uma violação do princípio constitucional da justa indemnização;

24)A decisão ora posta em crise ofende o preceituado nos artigos 70.º, 483.º, 496.º. 562.º e 566.º, todos do Código Civil e artigos 8.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa.

1.7. - A Ré contra-alegou, pugnando pela não admissão do recurso e, caso assim não se entenda, pela sua improcedência.


II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. – Delimitação do objecto do recurso

As questões submetidas a revista, delimitada pelas conclusões, são as seguintes:

A) Se os progenitores de vítima mortal de acidente de viação podem reclamar, à luz do Direito Nacional e do Direito da União Europeia, uma indemnização ao lesante ou à sua seguradora, pela perda da sua capacidade de ganho provocada pelo extremo sofrimento que lhes foi imposto pela morte da sua filha em resultado do referido acidente imputável ao condutor do veículo seguro na Ré;

B) A necessidade de submissão de questões prejudiciais ao TJUE e consequente suspensão da presente instância.

C) Se a valoração do dano não patrimonial dos Autores deve abranger as repercussões da capacidade de ganho.

2.2. – Os factos provados

1. Os Autores são os pais da EE.

2. A EE faleceu no passado dia 17 de Agosto de 2013, no estado de solteira.

3. Os Autores são os únicos e universais herdeiros da sua filha.

4. No dia ... de Agosto de 2013, cerca das 13:45 h., ocorreu um acidente de viação no Itinerário Complementar... (IC...), ao km. ...00, entre a A... e o cruzamento para C..., no concelho de ..., distrito de ....

5. Em que intervieram o veículo ligeiro de passageiros de marca Peugeot, modelo 306, com a matrícula ..-..-IV, conduzido por CC e propriedade de FF e o veículo ligeiro de passageiros, de marca Seat, modelo Alhambra, de matrícula ..-ED-.., propriedade de DD e conduzido por GG.

6. A EE seguia como passageira no veículo matrícula IV.

7. O veículo de matrícula IV circulava pela hemi-faixa de rodagem mais à direita do mencionado IC..., atento o sentido de marcha Sul (cruzamento para C...) -Norte (A...), a velocidade não concretamente apurada.

8. Nesse local, o IC... é constituído por dois corredores de circulação, cada um afeto ao seu sentido de marcha, com cerca de 3,33 metros de largura cada, sendo ladeado nas extremidades por bermas em asfalto com cerca de 2,50 metros de largura.

9. O local onde ocorreu o acidente descreve-se em reta de boa visibilidade, sendo o seu piso em asfalto, encontrando-se em bom estado de conservação.

10. O tempo estava bom.

11. Ao passar ao km. ...50, sem que nada nem ninguém o fizesse prever, o condutor do veículo de matrícula IV, começa a derivar para a sua esquerda, transpõe a linha longitudinal contínua que delimitava ao centro as duas hemifaixas de rodagem, passando a circular completamente pelo corredor de circulação mais à esquerda, atento o seu sentido de marcha.

12. Por essa hemi-faixa de rodagem, mas em sentido contrário, circulava o veículo de matrícula ED.

13. Quando a condutora do veículo de matrícula ED termina a descrição de uma curva que se apresentava à sua direita e ingressa na reta apercebe-se da trajetória seguida pelo veículo de matrícula IV.

14. Como já se encontrava muito próxima deste, apenas consegue guinar a direção do seu veículo para a direita, não conseguiu evitar o embate com a frente do veículo que conduzia e a frente do veículo de matrícula IV.

15. O embate ocorreu a 1,63 metros na berma direita, atento o sentido de marcha do veículo de matrícula ED.

16. Do acidente de viação resultou a morte da filha dos Autores.

17. Quando os Bombeiros Voluntários de ..., de ..., de ... e de ... e as equipas das VMER chegaram ao local do sinistro constataram que a mesma já se encontrava em paragem cardiorrespiratória.

18. Logo após a colisão ainda se ouviam gemidos dentro dos veículos.

19. A EE era a única filha dos Autores.

20. Dedicava muito afeto, atenção, amor e carinho aos seus pais.

21. Era uma filha presente, companheira e amiga dos seus pais em todas as horas e ocasiões.

22. Ajudava os pais no estabelecimento comercial que os mesmos exploram na cidade de ... e, bem assim, na feira semanal que se realiza todas as segundas-feiras nessa mesma cidade.

23. A sua falta provocou e vai continuar a provocar por toda a vida dos Autores uma profunda tristeza, consternação e pesar, sendo uma verdadeira lacuna nas suas vidas que jamais poderá ser preenchida.

24. O Autor AA anda abatido, deixou de conviver socialmente e raramente sai de casa, a não ser para trabalhar.

25. Chora facilmente quando se fala nesta tragédia, deslocando-se todas as semanas ao cemitério para visitar a campa da sua filha.

26. Encontra-se abalado psíquica e emocionalmente e envolvido numa grande tristeza.

27. O mesmo sucede com a Autora BB, a qual passa os dias a chorar, não se conformando com a perda da sua filha.

28. A Autora apresenta um quadro compatível com uma perturbação persistente do humor.

29. Abandonou as actividades de lazer.

30. Ambos os Autores são acompanhados clinicamente, quer ao nível de psicologia, quer ao nível de psiquiatria.

31. A morte da sua única filha afetou os Autores de forma permanente e irreversível, designadamente a nível psíquico, psiquiátrico ou neurológico.

32. Tal afetação tem implicado que os mesmos necessitem de ser acompanhados medicamente, tendo já gastado a quantia de € 3.349,93 (três mil e trezentos e quarenta e nove euros e noventa e três cêntimos) em consultas e tratamentos médicos e medicamentosos.

33. Os Autores desenvolveram perturbações psíquicas, caracterizadas por humor depressivo e manifestações ansiosas, dificuldade de adaptação à perda sofrida, com comportamentos de evitamento que reúne critérios de diagnóstico para Perturbação de Stress Pós-Traumático.

34. Logo após o falecimento da sua filha, o Autor começou a desenvolver elevados níveis de ansiedade, sono fragmentado, irritabilidade e sentimentos de tristeza e desespero.

35. Iniciou consultas de psicologia e, cerca de um ano após o evento, de psiquiatria, tendo iniciado tratamento medicamentoso antidepressivo.

36. Mantém acompanhamento em consultas privadas de psicologia e psiquiatria e está medicado com Venlafaxina 37,5 mg/dia, Agomelatina 25 mg / dia, Diazepam 5 mg 2 id., Trazodona de libertação prolongada 50 mg / dia e um suplemento vitamínico 2 id.

37. Este quadro acarreta-lhe uma repercussão em grau ligeiro na sua autonomia pessoal, social e profissional, valorizável em 9 pontos.

38. O Autor apresenta um quadro compatível com uma perturbação persistente do humor.

39. Este quadro acarreta-lhe uma repercussão em grau ligeiro na sua autonomia pessoal, social e profissional, valorizável em 9 pontos.

40. Os Autores suportaram a quantia de € 3.349,93 (três mil e trezentos e quarenta e nove euros e noventa e três cêntimos) com as despesas decorrentes dos tratamentos médicos e medicamentosos a que têm sido sujeitos.

41. A EE tinha 22 anos de idade quando faleceu.

42. Os Autores suportaram o pagamento das despesas com o funeral da sua filha, as quais ascenderam a € 3.866,80 (três mil e oitocentos e sessenta e seis euros e oitenta cêntimos) e, bem assim, a quantia de € 400,00 pelo arranjo da sepultura (tiras de pedra mármore, areia e terra), € 350,00 das flores no dia do funeral, € 50,00 da celebração exequial e missas e € 463,84 das publicações.

43. A responsabilidade civil por danos causados a terceiros pelo veículo de matrícula IV encontrava-se transferida para a Ré pela apólice n.º 5760620.

2.3. – Os factos não provados

a) A filha dos Autores teve consciência do que lhe estava a acontecer, nomeadamente da perceção da sua morte.

b) Sofreu dores ao ser esmagada daquela forma violenta.

c) As lesões corporais sofridas pela EE provocaram-lhe sofrimento físico.

d) Entre o momento do acidente e o momento que veio a ocorrer a morte da filha dos Autores decorreu um hiato de tempo.

2.4. – A ressarcibilidade dos danos patrimoniais sofridos por cada um dos Autores pela perda da sua capacidade de ganho provocada pelo extremo sofrimento que lhes foi imposto pela morte da sua filha

As instâncias fixaram a indemnização devida aos Autores no montante global de €185.130,64 (cento e oitenta cinco mil cento e trinta euros e sessenta e quatro cêntimos) que se decompõe nas seguintes parcelas indemnizatórias: € 120.000,00 pela perda do direito à vida da filha dos autores; € 30.000,00 a cada um dos autores, pelos danos não patrimoniais sofridos com a morte da filha; 5.130,64 pelas despesas de funeral e outras com elas relacionadas.

No presente recurso de revista, para além do montante arbitrado a título de danos não patrimoniais, os recorrentes pretendem ser ressarcidos pelos danos patrimoniais decorrentes da alegada perda da capacidade de ganho de cada um dos Autores provocada pelo extremo sofrimento que lhes foi imposto pela morte da sua filha, no valor de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros) para cada.

A 1.ª instância negou a pretensão dos Autores, afastando a aplicação ao caso da doutrina constante do AUJ n.º 6/2014 que respeita ao ressarcimento ou não ressarcimento dos danos não patrimoniais “reflexos” de terceiro, especificamente do cônjuge, em caso de vida do lesado em acidente de viação, defendendo que o caso apreciado nesse AUJ é substancialmente diverso da situação discutida nestes autos relativa aos danos patrimoniais próprios sofridos por cada um dos autores pela alegada perda de capacidade de ganho provocada pela morte da filha.

Defendeu a 1.ª instância que “as consequências emocionais sentidas pelos autores como decorrência da morte da sua filha encontram-se integradas na indemnização por danos morais já arbitrada. De resto é esse o regime que decorre do art.º 496º, n.º 2 do Cód. Civil.” E quanto aos alegados danos patrimoniais próprios sofridos pelos Autores, afirmou-se que “as normas que atribuem a possibilidade de arbitrar uma compensação a pessoa diversa do lesado (art.ºs 495 e 496º do Cód. Civil) revestem caracter excepcional. Em tais normas não se encontra contemplada a possibilidade de arbitramento da indemnização pretendida pelos autores. Os danos indirectos causados a terceiros são indemnizáveis na medida daquilo que se encontrem previstos pelas aludidas normas. E nem se diga que os danos suportados pelos autores são excepcionais ou que ultrapassam os habituais em situações semelhantes. É inegável que a perda de um filho acarreta profundas consequências emocionais para os pais. Pode afirmar-se sem necessidade de grandes demonstrações fácticas que tal acontecimento muda irremediavelmente a vida de quem tem que passar por tão grande sofrimento. Mas do ponto de vista do direito constituído parece-nos que a indemnização pretendida pelos autores apenas pode ser arbitrada à vítima (directa) do acontecimento lesivo.”

A Relação secundou integralmente esta fundamentação, confirmando a sentença recorrida, argumentando a dado passo:

“O citado artigo 495.º do Código Civil, sob a epígrafe de Indemnização a terceiros em caso de morte ou lesão corporal, estabelece os casos em que esse tipo de indemnização por danos patrimoniais a terceiros pode ser arbitrado. Está aí contemplada a hipótese das “despesas feitas para salvar o lesado e todas as demais, sem exceptuar as do funeral” (seu n.º 1) e, bem assim, “os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava” (seu n.º 3).

Mas a nada disso se reportam os danos cuja indemnização ora se requer. Já o artigo 496.º do Código Civil respeita a danos não patrimoniais que, note-se, não fazem parte deste item a que os Apelantes se referem no recurso – o que eles pretendem neste segmento do seu recurso é uma indemnização ainda por danos patrimoniais, “denominado Dano-Choque, o qual se constituiu como um dano autónomo, pois a morte da sua única filha afetou-os de forma direta, causal e adequada na sua saúde e no seu bem-estar” (vide a Conclusão VII do seu recurso)”.

A pretensão dos Autores situa-se no âmbito da responsabilidade civil extracontratual (art.483. CC). São pressupostos do direito da responsabilidade civil extracontratual ou delitual, o facto ilícito ligado ao agente por nexo de imputação subjectiva (a culpa) e a existência de danos causados adequadamente por esse mesmo facto.

O nosso Código Civil não contém expressamente qualquer norma que especifique o círculo de sujeitos a quem cabe o direito à indemnização dos danos resultantes de um facto lesivo, no domínio da responsabilidade civil delitual. Porém, a generalidade da nossa doutrina defende que, em princípio, o direito à reparação apenas cabe à pessoa ou pessoas titulares do direito ou interesse juridicamente protegido, ou seja, aos lesados.

O Prof. Vaz Serra, enuncia o princípio de que “visto que o obrigado a indemnizar só pode, em regra, basear as suas previsões nas relações com o titular dos bens imediatamente afectados pelo facto danoso, segue-se que a indemnização apenas pode, em princípio, abranger o interesse desse titular, e não o de terceiros. Portanto, na responsabilidade contratual, somente os danos causados ao credor, e, na responsabilidade extracontratual, apenas os causados ao titular dos bens imediatamente atingidos pelo facto danoso, e não já os danos de terceiro, são reparáveis. A circunstância de o facto danoso ter também repercussões indirectas prejudiciais para terceiros, é indiferente” ( “O dever de indemnizar e o Interesse de Terceiros”, BMJ, n.º 86, 1959, pág. 103).

Também o Prof. Antunes Varela afirma a este propósito que “tem direito à indemnização o titular do direito violado ou do interesse imediatamente lesado com a violação da disposição legal, não o terceiro que só reflexa ou indirectamente seja prejudicado.” Prossegue o mesmo autor de que “não há, efectivamente, no nosso sistema, como não existe no direito alemão por exemplo, um direito à integridade do património cuja violação possa assegurar a indemnização eventualmente requerida pelo lesado, nos casos que acabam de ser figurados. É aos danos assim causados a terceiros, sem violação de nenhuma relação negocial ou para-negocial e sem infracção de nenhum dever geral de abstenção ou omissão, que na doutrina germânica se tem dado o nome de danos patrimoniais puros — e que não encontram, realmente, por óbvias razões, cobertura directa, nem na responsabilidade aquiliana, nem na responsabilidade contratual” (Das Obrigações em Geral, vol. 1, 10.ª edição, Almedina, Coimbra, 2000, pág. 620-621).

As únicas excepções ao princípio geral acima enunciado, no que respeita a danos decorrentes ainda que indirectamente da morte de uma pessoa, encontram-se previstas no art. 495.º do CC, quanto aos danos patrimoniais e no art. 496.º, n.ºs 2, e 4, do mesmo Código quanto aos danos não patrimoniais.

Dispõe o art.495 do CC o seguinte:

“1. No caso de lesão de que proveio a morte, é o responsável obrigado a indemnizar as despesas feitas para salvar o lesado e todas as demais, sem exceptuar as do funeral.

2. Neste caso, como em todos os outros de lesão corporal, têm direito a indemnização aqueles que socorreram o lesado, bem como os estabelecimentos hospitalares, médicos ou outras pessoas ou entidades que tenham contribuído para o tratamento ou assistência da vítima.

3. Têm igualmente direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural.”

A jurisprudência consolidada do STJ atribui a esta norma natureza excepcional, pelo que apenas nos casos excepcionais aí previstos, a lei admite o ressarcimento dos danos patrimoniais indirectos provocados a terceiros, não sendo indemnizáveis os denominados danos patrimoniais “reflexos” que, fora dos casos previstos nas referidas disposições legais, sejam indirectamente causados a terceiros ( cf., por ex., Acs STJ de 29-01-2008 (Revista n.º 4397/07), de 27-11-2008 (Proc. n.º 1413/08), de 17-09-2009 (Revista n.º 292/1999-09 ), de 18-09-2012 (Revista n.º 973/09) , de 28-11-2013 (Revista n.º 177/11) e de 11-02-2015 (Revista n.º 6301/13.), todos publicados em www.dgsi.pt ).

Como afirma Abrantes Geraldes, para além dos casos previstos no art. 495.º do CC, “tem sido geralmente repudiada a invocação de outros danos patrimoniais reflexos. Assim acontece com os danos causados a determinada empresa na decorrência de acidente que afecte um seu funcionário ou administrador. Tal decorre da clara opção do legislador, revelada ainda pelos Trabalhos Preparatórios, de onde resulta que só foram consideradas pertinentes as pretensões que encontram eco, posto que mediato, na norma do art. 495°. Por isso, ainda que a morte ou a lesão corporal causem a terceiros outros danos de natureza patrimonial, como ocorre com a perda de determinado negócio ou com lucros que deixaram de ser auferidos, a necessidade de circunscrever o âmbito das reclamações decorrentes de eventos geradores de responsabilidade civil aquiliana levou a desatender outras pretensões.” (Temas da Responsabilidade Civil, Vol. II, Indemnização dos danos reflexos, Almedina, 2005, pág.21).

O problema tem sido colocado na jurisprudência sobretudo a propósito do ressarcimento de danos patrimoniais decorrentes da perda de capacidade de ganho do próprio falecido que, em razão da sua morte, deixa de poder auferir no futuro rendimentos, fora dos casos previstos no art. 495.º, n.º 3, do CC, segundo o qual têm direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural.

Como se defende no acórdão do STJ de 11-02-2015 (Revista n.º 6301/13), tendo a vítima falecido “em consequência, necessária e imediata da colisão, não gozam os autores, seus progenitores, do direito a perceberem qualquer indemnização, a título de danos patrimoniais, pela perda futura da sua capacidade de ganho, como os mesmos defendem, mas apenas com fundamento na obrigação legal de alimentos, a que se reporta a 1ª parte, do nº 3, do artigo 495º, do CC, desde que se verificassem os respectivos pressupostos legais, o que, de todo, os autores recusam. Com efeito, fora das hipóteses previstas no artigo 495º, nº 3, não podem os herdeiros da vítima, com fundamento na transmissão «mortis causa», nos termos do disposto pelo artigo 2142º, ambos do CC, peticionar outros danos patrimoniais, não lhe sendo reconhecido o direito de indemnização pela perda futura de rendimentos decorrentes da sua morte.”

No caso dos autos, os danos patrimoniais próprios reclamados pelos Autores, decorrentes da perda de capacidade de ganho de cada um em razão da afectação permanente e irreversível, a nível psíquico, psiquiátrico ou neurológico que cada um sofreu devido à morte da sua única filha, não se encontram previstos em qualquer das normas do art. 495.º do CC, não se reconduzindo os mesmos à situação prevista no n.º 3 dessa disposição legal relativa à obrigação legal de alimentos, não tendo sido alegados quaisquer factos nesse sentido.

De acordo com a factualidade apurada, apenas se provaram factos que se subsumem à previsão do art. 495.º, n.º 1, do CC, relativamente às despesas do funeral e despesas conexas cujo ressarcimento foi determinado pelas instâncias nos termos peticionados pelos autores e que não integram o objecto do presente recurso.

Os danos cujo ressarcimento está em causa no presente recurso de revista, correspondem aos chamados danos patrimoniais puros, sofridos pelos autores sem que tenha existido a violação de nenhuma relação negocial ou para-negocial e sem infracção de nenhum dever geral de abstenção ou omissão. No âmbito da responsabilidade extracontratual, o ressarcimento de tais danos é admitido em termos bastante restritivos que não incluem a situação dos autos (cf., por ex., Ac do STJ de 08-09-2016 (Revista n. º1952/13), Ac STJ de 29-10-2020 (Revista n.º 2766/16) Ac STJ de 26-11-2020 (Revista n.º 895/17), disponíveis em www dgsi.pt).

O caso dos autos, sendo indiscutivelmente um caso de responsabilidade civil extracontratual, não se reconduz a qualquer das situações acima descritas. Estando em causa danos patrimoniais indirectamente causados pela morte da filha dos Autores, a única previsão normativa específica que inclui na sua previsão essa situação corresponde ao art. 495.º do CC.

Os recorrentes também fazem alusão nas suas alegações a várias citações doutrinárias e jurisprudenciais, mas referentes a outra problemática que não está em causa no presente recurso e que assenta na ressarcibilidade dos danos não patrimoniais decorrentes da morte de uma pessoa. Nesta acção, as instâncias determinaram a indemnização do dano decorrente da perda do direito à vida da filha dos Autores, bem como os danos não patrimoniais de cada um dos Autores decorrentes do intenso sofrimento e demais consequências gravosas descritas nos factos provados provocadas pela perda da sua única filha. Também não se olvidam as posições doutrinais e jurisprudenciais que qualificam o direito de indemnização desses danos não patrimoniais como um direito fundado na violação ilícita imediata de um direito próprio de cada um dos autores, não lhe sendo aplicável o artigo 496.º, n.º 2, mas os artigos483.º e 496.º, n.º 1 do Código Civil, mas tal discussão é alheia ao objecto do presente recurso, visto que nele se pretende autonomizar o dano patrimonial futuro.

A propósito dos danos não patrimoniais, a doutrina clássica, sustenta, em princípio, só o titular do direito violado tem direito à indemnização ( art.496 nº1 CC ), não sendo incluídos na obrigação de indemnização os danos sofridos directa ou reflexamente por terceiros, salvo no caso de morte, dada a natureza excepcional da norma do nº2 do art.496, a impossibilidade de interpretação analógica das normas excepcionais e a impossibilidade de interpretação extensiva, por o legislador apenas ter querido abranger as pessoas indicadas no preceito, como decorre do argumento histórico.

Contra a posição clássica, tanto Vaz Serra ( RLJ ano 104, pág.14, como Ribeiro de Faria ( Direito das Obrigações, vol.1º, pág.491, ), Américo Marcelino ( Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, 6ª ed., pág.380 ) e Abrantes Geraldes ( Temas da responsabilidade Civil, II volume, Indemnização por Danos Reflexos, pág.75 e segs.) sustentam a possibilidade de uma interpretação actualista da norma do art.496 nº2 do CC, e esta orientação doutrinária tem sido acolhida pela jurisprudência, sendo disso sintomático o AUJ n.º 6/2014 ( cf., por ex. Ac STJ de 15/12/2022 ( proc nº 550/14.1T8PVZ.P1 ), em www dgsi.pt )

E também se entende que reconhecimento do direito de indemnização por danos não patrimoniais de terceiros pode assentar directamente nas normas dos arts.483 e 496 nº1 do Código Civil. Com efeito, o 496 nº1, ao plasmar o princípio geral da ressarcibilidade dos danos de natureza não patrimonial, impõe como única condição que os danos, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, logo, o princípio geral assim estabelecido, não se limita a tutelar apenas os prejuízos do lesado directo.

Para Abrantes Geraldes -“ São ressarcíveis os danos não patrimoniais suportados por pessoas diversas daquela que é directamente atingida por lesões de natureza física ou psíquica graves, nos termos gerais do art.496 nº1 do CC, designadamente quando fique gravemente prejudicada a sua relação com o lesado ou quando as lesões causem neste grave dependência ou perda de autonomia do lesado; Tal direito de indemnização deve ser circunscrito às pessoas indicadas no nº2 do art.496 “( cf. “ Ressarcibilidade dos danos não patrimoniais de terceiros”, publicado nos Estudos de Homenagem ao Prof. Inocêncio Galvão Telles, vol.IV, pág.263 e segs., e posteriormente desenvolvido em “ Temas da responsabilidade Civil, II volume, Almedina 2005 “).

Porém, o que aqui está em causa, em primeira mão, são os danos patrimoniais próprios de cada um dos Autores provocados pela morte da sua filha e não os danos não patrimoniais, cuja valoração apenas questionam subsidiariamente.

Os recorrentes também aludem nas suas alegações ao entendimento doutrinal e jurisprudencial de ressarcibilidade dos danos patrimoniais causados aos familiares que prestam assistência permanente à vítima direta e que, em consequência, perdem os rendimentos que auferiam (lucros cessantes) no exercício da sua actividade profissional, apesar de não existir previsão legal expressa nesse sentido. Com tal alegação, pretendem os recorrentes transpor para o caso dos autos o mesmo raciocínio que conduziu à referida interpretação do disposto no art. 495.º, n.º 2, do CC. Porém, a situação prevista nessa disposição legal e a aludida interpretação que tem sido feita da mesma, assume contornos bastante distintos da situação fáctica que é objecto destes autos, cuja justificação radica no imperativo de proteger a vida e integridade física através da promoção e incentivo dos comportamentos de socorro e tratamento da vítima.

Por outro lado, os recorrentes, como reforço da sua argumentação, invocam que a tutela jurídica dos danos patrimoniais reclamados no presente recurso já se encontra devidamente assegurada em diversos ordenamentos jurídicos de países pertencentes à União Europeia, designadamente na Espanha, França, Itália e Alemanha. No entanto, analisada a sua argumentação, os recorrentes referem-se ao direito de indemnização referente ao chamado “dano de choque” daquele que viu afetado a sua integridade biopsíquica com o conhecimento ou com o facto de ter presenciado o evento mortal, desde que efetivamente configurado e comprovado.

No entanto, esse dano reporta-se, em primeiro lugar, à vertente não patrimonial das consequências da morte da vítima para aqueles que lhe eram próximos, algo a que o nosso ordenamento jurídico também não é alheio como já se referiu, não tendo os recorrentes demonstrado que em algum dos referidos ordenamentos jurídicos estrangeiros se reconheça a ressarcibilidade dos danos decorrentes da perda de capacidade de ganho provocada por aquele dano na saúde psíquica de terceiros próximos da vítima mortal.

Importa notar que não existe uniformidade de soluções nos vários ordenamentos jurídicos europeus em matéria de responsabilidade civil extracontratual, mesmo tendo em conta apenas os sistemas continentais de civil law

Estando em causa danos patrimoniais indirectamente causados pela morte da filha dos autores, a única previsão normativa específica que inclui essa situação corresponde ao art. 495 do CC que, como acima vimos, tem natureza excepcional e não prevê a situação dos autos. Acresce que a estatuição em matéria de danos patrimoniais de terceiros lesados provocados de forma indirecta pela morte da vítima, é regulada nos arts 844.º e 845.º do Código Civil Alemão (BGB), sendo manifesta a semelhança entre o disposto no art. 844.º n.ºs 1 e 2, do BGB e os n.ºs 1 e 3 do art. 495.º do Código Civil Português.

Analisando o direito comparado (ordenamentos jurídicos alemão, suíço, francês e italiano) o Prof. Vaz Serra, escreveu - “Parece que, sendo princípio geral, conforme se disse, que o direito de indemnização pertence apenas àquele cujos bens jurídicos são imediatamente atingidos pelo facto originador da indemnização, não haveria que, no caso de morte, reconhecer direito de indemnização a quaisquer terceiros, uma vez que estes não são titulares de um direito ou bem jurídico- directamente afectado pelo facto danoso. Mas parece igualmente razoável que se reconheça, excepcionalmente, o direito de indemnização a certos terceiros a quem, pela morte do lesado, sejam causados danos. É assim que, como se viu, se dispõe ou entende, noutros direitos, que têm direito de indemnização aqueles a quem o lesado devia ou podia dever alimentos; (...). Da mesma maneira, afigura-se aceitável que, à semelhança do§ 845.º do Código alemão, se conceda o direito de indemnização àqueles a quem o lesado era por lei obrigado a prestar serviços; que tenham direito de indemnização contra o responsável pela lesão aqueles a que a lei obrigava a socorrer o lesado, bem como os estabelecimentos hospitalares, médicos, etc. que lhe prestaram auxílio; a que tenha ainda direito de indemnização das despesas de inumação aquele que é obrigado a fazê-las (Código alemão, § 844.°, alínea 1. Cfr. Código suíço, art.° 45. ° alínea 1, …).” (“O dever de indemnizar e o Interesse de Terceiros”, BMJ, n.º 86, 1959ª, págs. 116 e ss.).

Carece, assim, de razão, a argumentação dos recorrentes sobre o direito comparado, sendo evidente a diversidade de soluções nos diferentes ordenamentos jurídicos europeus.

Alegam os recorrentes que os danos patrimoniais a que se referem têm a sua origem imediata no evento lesivo (acidente de viação) que provocou a morte da sua filha, e, nessa medida, colocam a questão do alargamento da indemnização por danos patrimoniais com fundamento na violação de um direito próprio absoluto, o direito à saúde (arts. 483 nº1 (1ª parte) e 70 CC).

Porém, em sede de responsabilidade extracontratual, em que não foi estabelecido qualquer vínculo negocial entre o lesante o lesado, importa ter conta, nas palavras de Vaz Serra, que “o obrigado a indemnizar só pode, em regra, basear as suas previsões nas relações com o titular dos bens imediatamente afectados pelo facto danoso” o que, segundo o autor justifica que “a indemnização apenas pode, em princípio, abranger o interesse desse titular, e não o de terceiros” (loc. cit).

Como também afirma Rui Vasconcelos Pinto (A tutela delitual dos danos patrimoniais reflexos, O Direito, 2018, I, p. 158) a necessidade de delimitar o círculo de pessoas lesadas pelo mesmo facto ilícito que podem pedir indemnização, no âmbito da responsabilidade civil delitual, “surge porque a solução de atribuir um direito a indemnização indiscriminadamente a todos os que provem ter sofrido um dano na sua esfera jurídica, conduz a uma inadmissível multiplicação de pretensões indemnizatórias”. Ou seja, como diz no acórdão do STJ de 08-09-2016 (Revista n.º 1952/13.6TBPVZ.P1. S1), a necessidade de circunscrever as hipóteses de ressarcimento deste tipo de danos em sede de responsabilidade civil aquiliana, resulta da “necessidade de salvaguardar a liberdade de actuação dos sujeitos, pois esta opõe-se a uma protecção indiscriminada do património em sede de responsabilidade civil delitual”.

Em obediência ao princípio de que a titularidade do direito a reparação apenas cabe à pessoa a quem pertence o direito absoluto ou o interesse juridicamente protegido que foram ofendidos, o legislador limitou a extensão do dever de indemnizar, em caso de morte, aos danos não patrimoniais e aos danos patrimoniais previstos no art. 495.º do CC, nos quais se incluem as situações mais prementes de protecção legal, em concreto, as despesas decorrentes do funeral da pessoa falecida, mesmo que efectuadas por terceiro, por evidentes razões éticas e da dignidade da pessoa falecida, bem como a obrigação alimentar em relação a terceiro afectada pela morte da pessoa que prestava alimentos ou que legalmente podia ser obrigado a prestá-los, dado tratar-se de um prejuízo que contende com o direito de subsistência, e o dano na perda de rendimento.

Muito embora se deva aceitar uma concepção atípica dos modos de lesão, significando relevar ainda a ilicitude causada de forma indirecta, não parece, em termos de direito positivo, que, em caso de morte de uma pessoa, a lei atribua a qualquer “terceiro” o direito de indemnização, a coberto do art.483 nº1 (1ª parte) CC. É inquestionável que a lei limita a determinado círculo de pessoas o direito de indemnização por danos provocados em consequência de morte de outrem, conferindo apenas aos familiares e ao unido de facto ( por direito próprio) individualizados no art. 496 nº2 e 3 CC, mas esta limitação reporta-se aos danos não patrimoniais. Já as consequências patrimoniais de tais danos na saúde desses familiares, ou o chamado dano biológico na vertente patrimonial, constituem um alargamento que o legislador considerou excessivo para que pudesse ficar abrangido pelo direito à reparação, pois a perda de capacidade de ganho de cada um desses familiares exige a consideração de realidade distinta da pessoa directamente atingida pelo acto ilícito, em concreto, da situação económica e profissional de familiares desta última pessoa.

Além disso, alegando os recorrentes uma indemnização pelo dano da perda da capacidade de ganho, enquanto dano patrimonial futuro, não parece que tenha suporte suficiente na factualidade apurada. É que a perda da capacidade de ganho traduz-se numa perda de rendimento, que nem sequer foi alegada.

Comprovou-se, no entanto, que a morte da filha causou graves perturbações psíquicas, com critérios de diagnóstico para Perturbação de Stress Pós-Traumático e este quadro acarreta-lhes “uma repercussão em grau ligeiro na sua autonomia pessoal, social e profissional, valorizável em 9 pontos”.

A ressarcibilidade do dano biológico na vertente patrimonial deve ser apreciada casuisticamente, o que implica apurar se “a lesão originará, no futuro, durante o período activo do lesado ou da sua vida, e por si só, uma perda da capacidade de ganho ou se se traduz, apenas, numa afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, sem prejuízo do natural agravamento inerente ao decorrer da idade” ( Ac STJ de 21/4/2022 ( proc nº 96/18), em www dgsi.pt ), ou seja, o apuramento de “reflexos na situação patrimonial do lesado” ( Ac STJ de 4/7/2023 ( proc nº 42/190), www dgsi ), ou“ a perda de rendimentos pela incapacidade laboral para a profissão habitual, mas também as consequências da afectação, em maior ou menor grau, da capacidade para o exercício de outras actividades profissionais ou económicas, susceptíveis de ganhos materiais” ( Ac STJ de 1/3/2018 ( proc nº 773/07, em www dgsi ).

No caso dos autos não há elementos que permitam estabelecer tal implicação patrimonial.

2.5. - Conformidade do direito nacional com o Direito da União Europeia e em especial as directivas de Seguro Automóvel

Alegam também os recorrentes que importará apurar se o direito comunitário, designadamente o disposto nas seis diretivas do Parlamento e do Conselho relativas ao contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, se opõe a uma legislação nacional que (i) não assegure a devida tutela jurídica aos danos indiretamente sofridos por familiares próximos de uma vítima mortal de um acidente de viação, sempre que estes assumam uma gravidade e autonomia própria e (ii) não garanta a essas vítimas um tratamento comparável com aquele que já sucede noutros Estados-Membros da União.

Requerem também o recurso à figura do Reenvio Prejudicial, nos termos do disposto no art. 267.º do TFUE, suspendendo-se a presente instância.

Em matéria de seguro automóvel foram já emitidas pela Comunidade Europeia seis Directivas, a saber: i) Directiva n.º 72/166/CEE de 24/4/1972 (primeira directiva); ii) Directiva n.º 84/5/CEE de 30/12/1983 (segunda directiva); iii) Directiva n.º 90/232/CEE de 14/5/1990 (terceira directiva); iv) Directiva n.º 2000/26/CE de 16/05/2000 (quarta directiva); v) Directiva n.º 2005/14/CE de 11/03/2005 (quinta directiva). Posteriormente foi publicada a Directiva n.º 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 16/09/2009 que consolidou e substituiu as directivas acima identificadas. E finalmente foi publicada em 02-12-2021 a Diretiva (UE) 2021/2118 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24-10-2021, que altera a Diretiva 2009/103/CE relativa ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, a qual entrou em vigor em 22-12-2021.

Atendendo a que o acidente de viação que provocou a morte da filha dos autores ocorreu no dia ... de Agosto de 2013, é aplicável ao caso dos autos a Directiva n.º 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 16/09/2009.

De acordo com o art. 1º, n.º 2, dessa Directiva, para efeitos desse diploma, entende-se por «Pessoa lesada»: “qualquer pessoa que tenha direito a uma indemnização por danos causados por veículos.”

Nos primeiro e segundo parágrafos do artigo 3.º da mesma Diretiva 2009/103, prevê-se o seguinte:

“Cada Estado-Membro, sem prejuízo do artigo 5.º, adopta todas as medidas adequadas para que a responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro.

As medidas referidas no primeiro parágrafo devem determinar o âmbito da cobertura e as modalidades de seguro.”

Por sua vez, o último parágrafo deste preceito prevê que: “O seguro referido no primeiro parágrafo deve, obrigatoriamente, cobrir danos materiais e pessoais.”

Como tem sido apontado pela jurisprudência do TJUE, “resulta dos considerandos da Diretiva 2009/103 que esta, tal como as diretivas relativas ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis que a precederam, visa, por um lado, garantir a livre circulação tanto dos veículos que tenham o seu estacionamento habitual no território da União como das pessoas que neles viajam e, por outro, assegurar que as vítimas dos acidentes causados por esses veículos receberão tratamento comparável, independentemente do local do território da União onde o acidente tenha ocorrido. A Diretiva 2009/103 impõe, portanto, aos Estados‑Membros que garantam que a responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis com estacionamento habitual no seu território esteja coberta por um seguro e precisa, nomeadamente, os tipos de danos e os terceiros vítimas que esse seguro deve cobrir”– acórdãos de 15-12-2022, HUK-COBURG-Allgemeine Versicherung, Processo C-577/21, EU:C:2022:992, n.ºs 33 e 34; de 10-06-2021, Van Ameyde España, C - 923/19, EU:C:2021:475, n.ºs 34 e 35; de 24-10-2013, Drozdovs, C - 277/12, EU:C:2013:685, n.ºs 28 e 29; e de 14-09-2017, Delgado Mendes, C - 503/16, EU:C:2017:681, n.ºs 35 e 36.

A jurisprudência do TJUE tem também afirmado de forma consistente que resulta do objecto da Diretiva 2009/103 e da sua redação que esta, à semelhança das diretivas que codifica, não visa harmonizar os regimes de responsabilidade civil dos Estados Membros e que, no estado actual do direito da União, estes continuam a ser livres de determinar o regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação dos veículos automóveis. E dessa forma, atendendo ao art. 1., n.º 2, da mesma Directiva, no estado atual do direito da União, os Estados Membros conservam, em princípio, a liberdade de determinar, especialmente, quais os danos causados por veículos automóveis que devem obrigatoriamente ser objeto de indemnização, o alcance do direito à indemnização e as pessoas que têm direito à mesma. Assim, segundo o TJUE, “a obrigação de cobertura, pelo seguro de responsabilidade civil, dos danos causados a terceiros por veículos automóveis é, porém, distinta da extensão da indemnização desses danos a título da responsabilidade civil do segurado. Com efeito, enquanto a primeira é definida e garantida pela regulamentação da União, a segunda é regulada, essencialmente, pelo direito nacional”. Neste sentido pronunciaram-se de forma inteiramente uniforme os seguintes acórdãos do TJUE:

de 30-03-2023, AR e o. (Action directe contre l’assureur), Processo C-618/21, EU:C:2023:278, n.ºs 22, 42, 43 e 44; de 15-12-2022, HUK-COBURG-Allgemeine Versicherung, Processo C-577/21, EU:C:2022:992, n.ºs 35, 36, 37; de 20-05-2021, K. S. (Custos de reboque de um veículo danificado), C-707/19, EU:C:2021:405, n.ºs 23, 24, 25;

de 10-06-2021, Van Ameyde España, C-923/19, EU:C:2021:475, n.ºs 36, 37 e 38.

Esta jurisprudência manteve exactamente o mesmo entendimento que já era seguido no âmbito das Directivas anteriores. Vejam-se a título exemplificativo, os seguintes acórdãos do TJUE: de 14-09-2017, Delgado Mendes,C‑503/16, EU:C:2017:681, n.ºs 46, 47; de 07-09-2017, Neto de Sousa, C-506/16, EU:C:2017:642, n.ºs 28 e 29; de 23-01-2014, Petillo, C‑371/12, EU:C:2014:26, n.ºs 28 a 30; de 24-10-2013, Haasová, C‑22/12, EU:C:2013:692, n.ºs 39 a 41; de 24-10-2013, Drozdovs, C‑277/12,EU:C:2013:685, n. s 30, 31 e 32; de 23-10-2012, Marques Almeida, C‑300/10, EU:C:2012:656, n.ºs 28, 29

Nas mesmas decisões acima citadas, afirma-se, porém, que os Estados Membros devem exercer as suas competências neste domínio no respeito do direito da União e as disposições nacionais que regulam a indemnização devida por sinistros resultantes da circulação de veículos não podem privar a regulamentação da União do seu efeito útil, nomeadamente ao excluírem de modo oficioso ou ao limitarem desproporcionadamente o direito da vítima a obter uma indemnização através do seguro obrigatório de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis – entre as decisões mais recentes, vejam-se os Acórdãos de 30-03-2023, AR e o. (Action directe contre l’assureur), Processo C-618/21, EU:C:2023:278, n.º 45; de 15-12-2022, HUK-COBURG-Allgemeine Versicherung, Processo C-577/21, EU:C:2022:992, n.º 44; de 20-05-2021, K. S. (Custos de reboque de um veículo danificado), C 707/19, EU:C:2021:405, n.º 26, e de 10-06-2021, Van Ameyde España, C 923/19, EU:C:2021:475, n.º 44.

Nos referidos arestos, o TJUE densificou os princípios acima referidos nomeadamente quanto à conformidade com as Directivas de seguro automóvel de disposições nacionais que regulam o direito de indemnização de vítimas de acidentes de viação envolvendo veículos automóveis. Embora não tenha apreciado nenhum caso similar ao dos presentes autos, proferiu vários acórdãos que se debruçaram sobre a conformidade ao direito europeu de disposições nacionais que regulam a extensão da obrigação de indemnização de danos causados a terceiros por veículos automóveis, a título da responsabilidade civil do segurado, sobretudo ao nível dos danos não patrimoniais, e a respectiva cobertura, pelo seguro de responsabilidade civil, desses mesmos danos.

Assim, no acórdão de 15-12-2022, (HUK-COBURG-Allgemeine Versicherung, Processo C-577/21, EU:C:2022:992), acima citado, declarou-se que o art. 3.º, quarto parágrafo, da Diretiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009, deve ser interpretado no sentido de que não se opõe a uma regulamentação nacional que subordina a indemnização, pela seguradora da responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis, do prejuízo não patrimonial sofrido pelos membros da família próximos das vítimas de acidentes de viação à condição de esse prejuízo ter provocado um dano patológico para a saúde desses familiares próximos.

Considerou-se nesse aresto que “resulta da jurisprudência do Tribunal de Justiça, que a Diretiva 2009/103 não impõe aos Estados Membros a escolha de um regime de responsabilidade civil particular para determinar a extensão do direito da vítima a uma indemnização a título da responsabilidade civil do segurado, pelo que esta diretiva não se opõe, em princípio, a uma regulamentação nacional que fixa critérios vinculativos para a determinação dos prejuízos não patrimoniais suscetíveis de ser indemnizados” (n.º 48).

Estando em causa o direito interno alemão, considerou o TJUE que “não se afigura que as condições estabelecidas pelo legislador alemão, conforme interpretadas pelo Bundesgerichtshof (Supremo Tribunal de Justiça Federal), para que um prejuízo não patrimonial sofrido por membros da família próximos das vítimas de acidentes de viação confira um direito a indemnização, sejam suscetíveis de comprometer a realização do objetivo de proteção das vítimas de acidentes de circulação previsto pela Diretiva 2009/103 (n.º 49). Com efeito, os autos submetidos ao Tribunal de Justiça não contêm nenhum elemento suscetível de revelar que um regime de responsabilidade civil como o que está em causa exclui automaticamente ou limita de maneira desproporcionada o direito de um membro da família próximo da vítima direta de um acidente de viação obter uma indemnização pelo prejuízo não patrimonial ao abrigo do seguro obrigatório de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis (n.º 50).”

Numa outra decisão de 23-01-2014 (Acórdão Petillo, C‑371/12, EU:C:2014:26), o TJUE afirmou que “a Primeira e Segunda Diretivas não impõem aos Estados Membros a escolha de um regime particular para determinar o alcance do direito da vítima a uma indemnização a título da responsabilidade civil do segurado” (n.º 42). Pelo que “essas diretivas não se opõem, em princípio, a uma legislação nacional que imponha aos órgãos jurisdicionais nacionais critérios vinculativos para a determinação dos danos imateriais a indemnizar nem a regimes específicos adaptados às particularidades dos acidentes de circulação, ainda que tais regimes comportem, para certos danos imateriais, um modo de determinação do alcance do direito à indemnização menos favorável à vítima do que o aplicável ao direito à indemnização das vítimas de acidentes que não sejam os da circulação automóvel” (n.º 43)

No acórdão de 24-10-2013 (Haasová, C‑22/12, EU:C:2013:692), o TJUE declarou que “os artigos 3.°, n.º 1, da Diretiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de abril de 1972, 1.°, n.ºs 1 e 2, da Segunda Diretiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de dezembro de 1983, conforme alterada pela Diretiva 2005/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio de 2005, e 1.°, primeiro parágrafo, da Terceira Diretiva 90/232/CEE do Conselho, de 14 de maio de 1990, devem ser interpretados no sentido de que o seguro obrigatório de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis deve cobrir a indemnização dos danos morais sofridos pelos próximos das vítimas falecidas num acidente de viação, na medida em que essa indemnização esteja prevista a título da responsabilidade civil do segurado pelo direito nacional aplicável ao litígio no processo principal.”

Estando em causa o direito interno checo, começou por considerar que “entre os danos que devem ser indemnizados em conformidade com a Primeira, Segunda e Terceira Diretivas figuram os danos morais cuja indemnização é prevista a título da responsabilidade civil do segurado pelo direito nacional aplicável ao litígio (n.º 50). Por um lado, no que respeita à questão de saber quais são as pessoas que podem exigir a indemnização desses danos morais, há que observar que resulta de uma leitura conjugada dos artigos 1.°, ponto 2, e 3.°, n.º 1, primeiro período, da Primeira Diretiva que a proteção que deve ser assegurada nos termos dessa diretiva é alargada a qualquer pessoa que tenha direito, nos termos do direito nacional da responsabilidade civil, à indemnização do dano causado por veículos automóveis” (n.º 51).Concluiu o TJUE que “nenhum elemento da Primeira, Segunda e Terceira Diretivas permite concluir que o legislador da União terá pretendido limitar a proteção assegurada por essas diretivas apenas às pessoas diretamente envolvidas no facto danoso” (n.º 54). E, logo de seguida, afirma-se no mesmo aresto que “por conseguinte, os Estados Membros estão obrigados a garantir que a indemnização devida, segundo o seu direito nacional da responsabilidade civil, pelo dano moral sofrido pelos membros da família mais próximos das vítimas de acidentes de viação seja coberta pelo seguro obrigatório, no valor dos montantes mínimos previstos no artigo 1.o, n.o 2, da Segunda Diretiva.”

Numa outra decisão proferida na mesma data de 24-10-2013 (Acórdão Drozdovs, C 277/12, EU:C:2013:685), o TJUE declarou igualmente que: “Os artigos 3.°, n.º 1, da Diretiva 72/166/CEE do Conselho, de 24 de abril de 1972, , e 1.°, n.os 1 e 2, da Segunda Diretiva 84/5/CEE do Conselho, de 30 de dezembro de 1983, devem ser interpretados no sentido de que o seguro obrigatório de responsabilidade civil relativo à circulação de veículos automóveis deve cobrir a indemnização dos danos morais sofridos pelos próximos das vítimas falecidas num acidente de viação, na medida em que essa indemnização esteja prevista a título da responsabilidade civil do segurado pelo direito nacional aplicável ao litígio no processo principal.”

Neste caso, estando em causa o direito interno da Letónia, afirmou-se também que “entre os danos que devem ser indemnizados em conformidade com a Primeira, Segunda e Terceira Diretivas figuram os danos morais cuja indemnização é prevista a título da responsabilidade civil do segurado pelo direito nacional aplicável ao litígio (n.º 41). Por um lado, no que respeita à questão de saber quais são as pessoas que podem exigir a indemnização desses danos morais, há que observar que resulta de uma leitura conjugada dos artigos 1.°, ponto 2, e 3.°, n.o 1, primeiro período, da Primeira Diretiva que a proteção que deve ser assegurada nos termos dessa diretiva é alargada a qualquer pessoa que tenha direito, nos termos do direito nacional da responsabilidade civil, à indemnização do dano causado por veículos automóveis (n.º 42).”

Concluiu o TJUE que “nenhum elemento da Primeira, Segunda e Terceira Diretivas permite concluir que o legislador da União terá pretendido limitar a proteção assegurada por essas diretivas apenas às pessoas diretamente envolvidas no facto danoso (n.º 45). Por conseguinte, os Estados Membros estão obrigados a garantir que a indemnização devida, segundo o seu direito nacional da responsabilidade civil, pelo dano moral sofrido pelos membros da família mais próximos das vítimas de acidentes de viação seja coberta pelo seguro obrigatório, no valor dos montantes mínimos previstos no artigo 1.º, n.º 2, da Segunda Diretiva” (n.º 46).

Trata-se da afirmação do princípio largamente consagrado na jurisprudência do TJUE e também mencionado nestes acórdãos de 24-10-2013 (Haasová, C‑22/12, n.º 39 e Drozdovs, C 277/12, n.º 30), de que “a obrigação de cobertura pelo seguro de responsabilidade civil por danos causados a terceiros por veículos automóveis é distinta da extensão da indemnização desses danos no âmbito da responsabilidade civil do segurado. Com efeito, enquanto a primeira é definida e garantida pela legislação da União, a segunda é regulada, essencialmente, pelo direito nacional”.

Ou seja, segundo a interpretação do TJUE, o que as várias Directivas de seguro automóvel exigem é que a indemnização devida, segundo cada direito nacional da responsabilidade civil, pelos danos causados por veículos automóveis, seja coberta por um contrato de seguro obrigatório, respeitando-se os valores mínimos previstos nas Directivas, bem como que sejam abrangidas as vítimas expressamente referidas nesses diplomas.

Com efeito, em várias decisões, o TJUE declarou que são inadmissíveis disposições legais ou contratuais que excluam, em determinadas circunstâncias, a prestação da seguradora – a título exemplificativo, os Acórdãos de 28-03-1996, Ruiz Bernáldez, C-129/94, EU:C:1996:143 e de 30-06-2005, Katja Candolin, C-537/03, EU:C:2005:417. No primeiro dos acórdãos (Bernáldez), o TJUE declarou que a cobertura não pode ser excluída, designadamente, quando o condutor se encontre sob a influência do álcool. No acórdão Candolin considerou-se que as primeira, segunda e terceiras Directivas opõem‑se a uma regulamentação nacional que permita excluir ou limitar de modo desproporcionado, com fundamento na contribuição de um passageiro para a produção do dano que sofreu, a indemnização coberta pelo seguro automóvel obrigatório, além que o facto de o passageiro em causa ser o proprietário do veículo cujo condutor provocou o acidente é irrelevante. Numa outra decisão de 19-04-2007 (Farrell, C -356/05, EU:C:2007:229), o TJUE declarou que o artigo 1. ° da Terceira Directiva deve ser interpretado no sentido de que se opõe a uma legislação nacional nos termos da qual o seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel não cobre a responsabilidade por danos corporais causados a pessoas que viajam numa parte de um veículo automóvel que não foi concebida nem construída com assentos para passageiros.

No caso dos autos, não está em causa a cobertura dos danos invocados pelos aqui recorrentes pelo seguro de responsabilidade civil automóvel, nem sequer está em causa o direito dos aqui recorrentes, enquanto progenitores da vítima mortal, a serem indemnizados em virtude desse mesmo seguro, colocando-se o problema a montante, ou seja, está em causa a extensão da indemnização desses danos no âmbito do nosso direito interno de responsabilidade civil do segurado. E como resulta das decisões acima expostas, tal matéria é relegada pelo direito da UE para o direito interno de cada país, a não ser que este regime interno limite de forma totalmente desproporcional a extensão dessa indemnização a ponto de esta ser excluída ou reduzida a quase nada, pondo assim em causa o efeito útil das referidas Directivas.

Cremos que tal não sucede no caso dos autos pois as instâncias reconheceram aos aqui recorrentes o pleno direito a serem indemnizados pela totalidade dos danos não patrimoniais sofridos pelos mesmos e que resultaram dos factos provados, não se afigurando desproporcional que se limite ao previsto no art. 495.º do CC, o direito de indemnização quanto aos danos patrimoniais.

Com efeito, para além do dano decorrente da perda do direito à vida do lesado, para os familiares mais próximos, os maiores danos decorrentes do falecimento da vítima consistem no enorme sofrimento e tristeza provocado por tal evento fatídico, danos que são incluídos pelo legislador comunitário na categoria de danos corporais, podendo, como no caso dos autos, traduzir um verdadeiro dano na saúde desses familiares, e que têm, em primeiro lugar, uma natureza não patrimonial. Mas mesmo em relação a esses danos, o TJUE admitiu ser conforme ao direito europeu, uma regulamentação nacional, como a alemã, que subordina o ressarcimento desses danos morais decorrentes da morte da vítima à condição de esse prejuízo ter provocado um dano patológico para a saúde desses familiares próximos (Acórdão de 15-12-2022, HUK-COBURG-Allgemeine Versicherung, Processo C-577/21, EU:C:2022:992).

Os danos patrimoniais reclamados nos presentes autos não assumem, a nosso ver, a mesma gravidade para os respetivos lesados, que aqueles danos morais provocados pela morte do familiar próximo, pelo que, por maioria de razão, também aqui, não existe manifestamente qualquer violação do Direito europeu pelo nosso direito nacional, na interpretação que tem sido seguida de forma consistente pelo TJUE.

2.6.- Necessidade de submissão de questão jurisprudencial ao Tribunal de Justiça da União Europeia – o pedido de reenvio prejudicial

Os recorrentes sustentam que se justifica nos presentes autos o recurso à figura do Reenvio Prejudicial, nos termos do disposto no art. 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, suspendendo-se a presente instância, para submeter à apreciação do Tribunal de Justiça da União Europeia as seguintes questões:

(i) Se o Direito Comunitário, designadamente o previsto nas seis Diretivas referentes à matéria do seguro de responsabilidade civil automóvel obrigatória, se opõe a uma legislação nacional que não assegure a indemnização da integralidade dos danos (patrimoniais e não patrimoniais) indiretamente sofridos por familiares próximos de uma vítima mortal de um acidente de viação, sempre que tais danos assumam uma gravidade e autonomia próprias;

(ii) Se o Direito Comunitário se opõe a uma legislação nacional que não garanta a essas vítimas um tratamento indemnizatório comparável com aquele que já sucede noutros Estados-Membros da União, como a França, Espanha, Itália e Alemanha.

Importa apreciar o pedido de formulação de questões prejudiciais ao TJUE atendendo ao direito da UE e à jurisprudência do Tribunal de Justiça em matéria de reenvio prejudicial tendo em consideração as questões concretas em discussão na presente acção.

De acordo com o disposto no artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, o TJUE é competente para decidir, a título prejudicial:

a) Sobre a interpretação dos Tratados;

b) Sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.

E nos termos do mesmo preceito, apenas se surgir uma questão dessa natureza (interpretação ou validade de Direito da União Europeia) em processo pendente perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, se o mesmo órgão considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, é que pode ser solicitado ao TJUE que sobre ela se pronuncie.

Assim, cabe aos órgãos jurisdicionais de cada Estado Membro decidir se, no caso concreto que têm para decidir, se justifica ou não a formulação de um pedido de reenvio prejudicial ao TJUE, cabendo a este último admitir ou não o referido pedido.

Porém, de acordo com o terceiro parágrafo do referido art. 267.º do TFUE, “sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal.”

Decidindo o STJ em última instância, de acordo com esta disposição do tratado, este Supremo Tribunal é, em princípio, obrigado a submeter uma questão ao Tribunal de Justiça, em conformidade com o artigo 267. °, terceiro parágrafo, TFUE, quando uma questão relativa à interpretação do direito da União seja suscitada perante este órgão jurisdicional (v. acórdão Consiglio nazionale dei geologi e Autorità garante della concorrenza e del mercato, C‑136/12, EU:C:2013:489, n.º 25).

A jurisprudência do TJUE desde o Acórdão Cilfit (Acórdão do TJUE de 06-10-1982, Proc. C-283/81, ECLI:EU:C:1982:335) tem admitido de forma consistente a dispensa da obrigação de suscitar a questão prejudicial de interpretação, por insusceptibilidade de recurso, nas seguintes situações:

— Em 1º lugar, cessa a obrigação de reenvio quando a questão de direito da UE suscitada for impertinente ou desnecessária para a resolução do litígio concreto;

— Em 2º lugar, verifica-se dispensa de reenvio quando o TJUE já se tenha pronunciado, de forma firme, sobre a questão a reenviar em caso análogo, em sede de reenvio ou outro meio processual, atento o efeito erga omnes das suas decisões;

— Por último, a obrigação de reenvio não tem lugar quando o tribunal nacional considere que as normas da UE aplicáveis não suscitam dúvidas interpretativas, ou sejam suficientemente claras e determinadas, aptas para serem aplicadas imediatamente, sendo que a clareza das normas aplicáveis deve resultar da sua interpretação teleológica e sistemática e da referência ao contexto histórico, social e económico em que foram adoptadas.

No acórdão do TJUE de 09-09-2015 (acórdão Ferreira da Silva e Brito e o., C 160/14, EU:C:2015:565), essa mesma jurisprudência foi reafirmada, precisando-se ainda (n.º 39) que “a existência de tal eventualidade deve ser avaliada em função das características próprias do direito da União, das dificuldades particulares de que a sua interpretação se reveste e do risco de surgirem divergências jurisprudenciais no interior da União (acórdão Intermodal Transports, C‑495/03, EU:C:2005:552, n.° 33).”

Além desse acórdão, a mesma jurisprudência tem sido reafirmada pelo TJUE nos seguintes acórdãos: de 30-01-2019 (Comissão / Bélgica, Processo C‑587/17 P, EU:C:2019:75); de 01-10-2018 (Comissão/França, Processo C‑416/17, EU:C:2018:811);

Acórdão de 28-07-2016 (Association France Nature Environnement, Processo C‑379/15. EU:C: 2016:603);de 01-10-2015 (Doc Generici, Processo C‑452/14, EU:C:2015:644); de 18-10-2011 (Boxus e O., Processos apensos C‑128/09 a C‑131/09, C‑134/09 e C‑135/09, EU:C:2011:667)

Também nos pontos 5 e 6 das Recomendações à atenção dos órgãos jurisdicionais nacionais, relativas à apresentação de processos prejudiciais (publicadas no Jornal Oficial da União Europeia C 380 de 8.11.2019, p. 1—9), ), é esclarecido que: “5. Os órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros podem submeter uma questão ao Tribunal de Justiça sobre a interpretação ou a validade do direito da União se considerarem que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa (v. artigo 267.o, segundo parágrafo, TFUE). Um reenvio prejudicial pode revelar-se particularmente útil nomeadamente quando for suscitada perante o órgão jurisdicional nacional uma questão de interpretação nova que tenha um interesse geral para a aplicação uniforme do direito da União ou quando a jurisprudência existente não dê o necessário esclarecimento num quadro jurídico ou factual inédito. 6. Quando for suscitada uma questão no âmbito de um processo pendente perante um órgão jurisdicional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão jurisdicional é, no entanto, obrigado a submeter um pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça (v. artigo 267.o, terceiro parágrafo, TFUE), exceto quando já existir uma jurisprudência bem assente na matéria ou quando a forma correta de interpretar a regra de direito em causa não dê origem a nenhuma dúvida razoável.”

A jurisprudência do TJUE acima referida sobre a dispensa da obrigação de suscitar a questão prejudicial tem sido aplicada de forma reiterada pelo STJ – acórdãos de 10-07-2008 (Revista n.º 2944/07), de 18-12-2002 (Revista n.º 3956/02), de 30-09-2014 (Revista n.º 1020/13.0TBCHV-D.P1.S1), de 21-05-2009 (Revista n.º 4986/06.3TVLSB.S1), de 04-02-2016 (Revista n.º 536/14.6TVLSB.L1.S1), de 17-03-2016 (Revista n.º 588/13.6TVPRT.P1.S1) e de 14-03-2017 (Revista n.º 736/14.9TVLSB.L1.S1), todos publicados na DGSI, bem como nos acórdãos de 29-04-2010 (Revista n.º 622/08.1TVPRT.P1.S1); de 16-10-2014 (Revista n.º 1279/06.0TVPRT-C.P1.S1), de 29-09-2015 (Revista n.º 1740/12.7TBPVZ.P1.S1), de 02-02-2016 (Revista n.º 326-C/2002.E1.S1) e de 05-12-2017 (Revista n.º 11256/16.7T8LSB.L1.S2-A), não publicados.

No caso dos autos, em primeiro lugar, os recorrentes não concretizam qual a norma de Direito da União Europeia cuja interpretação ou validade justificaria o reenvio prejudicial àquele Tribunal, não identificando qualquer norma concreta das Directivas de seguro automóvel.

Em segundo lugar, sendo aplicável ao caso dos autos, a Directiva n.º 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 16/09/2009, a jurisprudência do TJUE tem afirmado de forma consistente que resulta do objeto e da redação dessa Directiva que esta, à semelhança das diretivas que codifica, não visa harmonizar os regimes de responsabilidade civil dos Estados Membros e que, no estado atual do direito da União, estes continuam a ser livres de determinar o regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação dos veículos automóveis. E dessa forma, atendendo ao art. 1., n.º 2, da mesma Directiva, no estado atual do direito da União, os Estados Membros conservam, em princípio, a liberdade de determinar, especialmente, quais os danos causados por veículos automóveis que devem obrigatoriamente ser objeto de indemnização, o alcance do direito à indemnização e as pessoas que têm direito à mesma. Assim, segundo o TJUE, “a obrigação de cobertura, pelo seguro de responsabilidade civil, dos danos causados a terceiros por veículos automóveis é, porém, distinta da extensão da indemnização desses danos a título da responsabilidade civil do segurado. Com efeito, enquanto a primeira é definida e garantida pela regulamentação da União, a segunda é regulada, essencialmente, pelo direito nacional”.

É verdade que o TJUE também tem afirmado que os Estados Membros devem exercer as suas competências neste domínio no respeito do direito da União e as disposições nacionais que regulam a indemnização devida por sinistros resultantes da circulação de veículos não podem privar a regulamentação da União do seu efeito útil, nomeadamente ao excluírem de modo oficioso ou ao limitarem desproporcionadamente o direito da vítima a obter uma indemnização através do seguro obrigatório de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis.

Porém, segundo a interpretação do TJUE nos termos acima expostos, o que as várias Directivas de seguro automóvel exigem é que a indemnização devida, segundo cada direito nacional da responsabilidade civil, pelos danos causados por veículos automóveis seja coberta por um contrato de seguro obrigatório, respeitando-se os valores mínimos previstos nas Directivas, bem como que sejam abrangidas as vítimas expressamente referidas nesses diplomas.

No caso dos autos, não está em causa a cobertura dos danos invocados pelos aqui recorrentes pelo seguro de responsabilidade civil automóvel, nem sequer está em causa o direito dos aqui recorrentes, enquanto progenitores da vítima mortal, a serem indemnizados em virtude desse mesmo seguro, colocando-se o problema a montante, ou seja, está em causa a extensão da indemnização desses danos no âmbito do nosso direito interno de responsabilidade civil do segurado. Sendo que, como cremos que resulta das decisões acima expostas, tal matéria é relegada pelo direito da UE para o direito interno de cada país, a não ser que este regime interno limite de forma totalmente desproporcional a extensão dessa indemnização a ponto de esta ser excluída ou reduzida a quase nada, pondo assim em causa o efeito útil das referidas Directivas.

Contudo, tal não sucede no caso dos autos pois as instâncias reconheceram aos aqui recorrentes o pleno direito a serem indemnizados pela totalidade dos danos não patrimoniais sofridos pelos mesmos e que resultaram dos factos provados, não se afigurando desproporcional que se limite ao previsto no art. 495.º do CC, o direito de indemnização quanto aos danos patrimoniais.

Com efeito, para além do dano decorrente da perda do direito à vida do lesado, para os familiares mais próximos, os maiores danos decorrentes do falecimento da vítima consistem no enorme sofrimento e tristeza provocado por tal evento fatídico, danos que são incluídos pelo legislador comunitário na categoria de danos corporais, podendo, como no caso dos autos, traduzir um verdadeiro dano na saúde desses familiares, e que têm, em primeiro lugar, uma natureza não patrimonial. Mas mesmo em relação a esses danos, o TJUE admitiu ser conforme ao direito europeu, uma regulamentação nacional, como a alemã, que subordina o ressarcimento desses danos morais decorrentes da morte da vítima à condição de esse prejuízo ter provocado um dano patológico para a saúde desses familiares próximos (Acórdão de 15-12-2022, HUK-COBURG-Allgemeine Versicherung, Processo C-577/21, EU:C:2022:992).

Os danos patrimoniais reclamados nos presentes autos não assumem, a nosso ver, a mesma gravidade para os respetivos lesados, que aqueles danos morais provocados pela morte do familiar próximo, pelo que, por maioria de razão, também aqui, não existe manifestamente qualquer violação do Direito europeu pelo nosso direito nacional, na interpretação que tem sido seguida de forma consistente pelo TJUE.

Assim, julgamos que no caso em apreço, atendendo ao teor das várias decisões do TJUE acima citadas, e ao sentido da jurisprudência que tem sido seguido, é desnecessária a submissão de questões prejudiciais àquele Tribunal, não suscitando as normas de Direito da UE, em especial, a Directiva n.º 2009/103/CE, aplicável ao caso dos autos, dúvidas interpretativas que obriguem a esse reenvio.

Também o TJUE não pode ser chamado a pronunciar-se, no âmbito de um reenvio a título prejudicial, sobre a interpretação a dar às disposições do nosso direito interno ou de qualquer outro ordenamento jurídico europeu, não sendo essa a competência que os Tratados atribuíram ao TJUE. Tal princípio tem sido sucessivamente afirmado em várias decisões desse Tribunal: acórdãos de 26-01-2021, Processos apensos C‑422/19 e C‑423/19, EU:C:2021:63; de 17-12-2020, Processo C‑398/19, EU:C:2020:1032; de 04-03-2020, Processo C‑34/19, EU:C:2020:148; de 04-03-2020, Processo C‑183/18, EU:C:2020:153;de 10-01-2019, Processo C‑97/18, EU:C:2019:7 de 07-08-2018, Processos apensos C‑96/16 e C‑94/17, EU:C:2018:643; de 16-02-2017, Processo C‑507/15, EU:C:2017:129; de 17-01-2013, Processo C‑23/12, EU:C:2013:24

Em conclusão, não se justifica a formulação de qualquer pedido de reenvio prejudicial ao TJUE.

2.7.- Se a valoração do dano não patrimonial dos Autores deve abranger as repercussões “na sua autonomia pessoal, social e profissional, valorizável em 9 pontos”.

A terceira questão essencial submetida a revista consiste em saber se na quantificação dos danos não patrimoniais de cada um dos Autores foi levada em conta as repercussões do dano biológico, designadamente, em “grau ligeiro na sua autonomia pessoal, social e profissional, valorizável em 9 pontos”.

Desde modo, os recorrentes põem em causa a valoração dos danos não patrimoniais, reclamando quantificação superior, ou seja, que em vez da quantia arbitrada de € 30.000,00 se fixe em € 55.000,00 ( €30.000,00 +€25.000,00 ) sendo este o sentido útil da pretensão recursiva subsidiária.

No recurso de apelação ambas as partes impugnaram o valor de € 30.000,00 arbitrado na sentença, a título de danos não patrimoniais, reclamando a Ré € 25.000,00 e os Autores a quantia de € 50.000,00.

Diz o acórdão recorrido:

“Do que se discorda é que uma soma de € 30.000,00 a cada um dos pais se possa considerar, no caso, exorbitante/excessiva ou simbólica/miserabilista.

Ela é, pois, a adequada, correspondendo a valores dignos e significativos do que representam: precisamente a compensação (mais que o ressarcimento, já que são danos que, pela sua natureza inegociável para o ser humano, não são passíveis de substituição por dinheiro) por padecimentos e angústias que foram suportados em consequência do evento da vida sofrido, o qual se apresenta aqui com características tipicamente ilícitas e culposas, e, assim, censuráveis em face da ordem jurídica”.

A propósito da valoração dos danos não patrimoniais, defendendo-se que a compensação deve ser digna, escreveu-se no Ac STJ de 9/5/2023, do mesmo relator deste, ( proc nº 7509/19.0T8PRT.P1.S1 ), em www dgsi.pt ) o seguinte:

“Embora sem rigor sistemático, é patente uma preocupação superadora da tradicional categoria de “dano moral”, ampliando o seu espectro, de molde a abranger outras manifestações que a lesão provoca na pessoa, e já não a simples perturbação emocional, a dor ou o sofrimento.

Na doutrina e jurisprudência italianas começou a emergir na década de setenta a noção de “dano pessoal”, incorporando todos os danos que lesam a estrutura psicossomática do ser humano, e mais recentemente com a definição conceitual de “dano existencial”, visando abarcar os danos que não sendo estritamente morais originam consequências não patrimoniais (…).

Pretende-se, assim, erigir um novo modelo centralizado no “dano pessoal” que afecta a estrutura ontológica do ser humano, entendido como entidade psicossomática e sustentada na sua liberdade, correspondendo a duas únicas categorias de danos: o “dano psicossomático” e o “dano ao projecto de vida”, com consequências extrapatrimoniais.

Na verdade, esta concepção é a que melhor se adequa à natureza e finalidade da indemnização pelos danos extrapatrimoniais/pessoais, pondo o enfoque na vítima, com implicações na (re)valorização compensatória, maximizada pelo princípio da reparação integral”.

Partindo desta concepção e como critério de determinação equitativa para o equivalente económico do dano não patrimonial (arts.496 nº3 e 494 do CC), há que atender à natureza e intensidade do dano, ao grau de culpa, à situação económica do lesado e do responsável, sendo certo que o seguro de responsabilidade civil é também um elemento a ter em conta, bem como ao valor actual da moeda e aos padrões jurisprudenciais.

Desde alguns anos que a jurisprudência vem afirmando que os padrões de indemnização têm de evoluir, acompanhando os tempos modernos, chegando-se a enfatizar que não se poderia manter uma tradição miserabilista, sob pena dos tribunais não estarem a acompanhar a evolução da vida, causando prejuízos irreparáveis aos lesados em acidentes de viação.

Neste contexto, entre outros tópicos, apela-se, por exemplo, aos critérios da convergência real das economias no seio da União Europeia, aos montantes mínimos do seguro automóvel obrigatório fixados em aplicação da Directiva do Conselho, 84/5 de 30/12/83 (Segunda Directiva-Seguros), aos seus constantes aumentos e dos respectivos prémios, como índices emergentes da preocupação legal de protecção dos lesados em matéria de acidentes de viação”.

Considerando a factualidade apurada nos pontos 23 a 39 , a morte da sua única filha, aos 21 anos de idade, afectou os Autores de forma permanente e irreversível, designadamente a nível psíquico, psiquiátrico ou neurológico, já que desenvolveram perturbações psíquicas, caracterizadas por humor depressivo e manifestações ansiosas, dificuldade de adaptação à perda sofrida, com comportamentos de evitamento que reúne critérios de diagnóstico para Perturbação de Stress Pós-Traumático, e ambos os Autores são acompanhados clinicamente, quer ao nível de psicologia, quer ao nível de psiquiatria. Este quadro acarreta-lhe uma repercussão em grau ligeiro na sua autonomia pessoal, social e profissional, valorizável em 9 pontos.

Alguma jurisprudência do STJ, em situações similares, tem estimado o dano não patrimonial em €40.000,00 (cf., por ex., Ac STJ de 1/2/2021 (proc nº 625/18), Ac STJ de 27/9/2022 ( proc nº 253/17.5T8PRT ), Ac STJ de 10/11/2022 ( proc 239/20), disponíveis em www dgsi.pt ). No entanto, tal não significa a mera transposição numérica de valores, sendo absolutamente indispensável a ponderação do caso concreto, logo as suas especificidades. Ora, a repercussão, ainda que ligeira na sua autonomia pessoal, social e profissional, valorizada em 9 pontos, é um factor a relevar para a concreta valoração do dano não patrimonial, que aqui se apresenta como “dano ao projecto de vida”.

Neste contexto, considerando que os danos não patrimoniais devem ser dignamente compensados e atento o princípio da actualidade, estima-se, em equidade, o dano não patrimonial para cada um dos Autores em € 50.000,00 ( cinquenta mil euros), actualizado nesta data, pelo que os juros de mora só podem vencer-se a partir do presente acórdão, por força do AUJ nº4/202 de 9/5/2002 ( “Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação”). Daqui resulta, ser incompatível a fixação de taxa de juros de mora desde a citação em cumulação com atualização da indemnização em função da taxa de inflação (correção monetária).

2.8. – Síntese Conclusiva

1.O nosso Código Civil não contém expressamente qualquer norma que especifique o círculo de sujeitos a quem cabe o direito à indemnização dos danos resultantes de um facto lesivo, no domínio da responsabilidade civil delitual. No entanto, em princípio, o direito à reparação apenas cabe à pessoa ou pessoas titulares do direito ou interesse juridicamente protegido, ou seja, aos lesados.

2.Muito embora se deva aceitar uma concepção atípica dos modos de lesão, significando relevar ainda a ilicitude causada de forma indirecta, não parece, em termos de direito positivo, que, em caso de morte de uma pessoa, a lei atribua a qualquer “terceiro” o direito de indemnização, a coberto do art.483 nº1 (1ª parte) CC.

3.O art.495 do CC é uma norma de natureza excepcional, pelo que apenas nos casos aí previstos a lei admite o ressarcimento dos danos patrimoniais indirectos provocados a terceiros, não sendo indemnizáveis os denominados danos patrimoniais “reflexos” que, fora da previsão sejam indirectamente causados a terceiros.

4. A jurisprudência do TJUE tem também afirmado que a Diretiva nº 2009/103 do Parlamento Europeu e do Conselho de 16/09/2009, à semelhança das directivas que codifica, não visa harmonizar os regimes de responsabilidade civil dos Estados Membros e que, no estado actual do direito da União, estes continuam a ser livres de determinar o regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação dos veículos automóveis, pelo que os Estados Membros conservam, em princípio, a liberdade de determinar, especialmente, quais os danos causados por veículos automóveis que devem obrigatoriamente ser objecto de indemnização, o alcance do direito à indemnização e as pessoas que têm direito à mesma.

5. Assim, a obrigação de cobertura, pelo seguro de responsabilidade civil, dos danos causados a terceiros por veículos automóveis é definida e garantida pela regulamentação da União, enquanto a extensão da indemnização desses danos a título da responsabilidade civil do segurado é regulada, essencialmente, pelo direito nacional.

6.O Direito da UE e, em particular, as Directivas de Seguro Automóvel codificadas na Directiva n.º 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 16/09/2009 que consolidou e substituiu as directivas anteriores, não impõe o ressarcimento dos danos patrimoniais indirectamente sofridos pelos aqui recorrentes em consequência da morte da sua filha, e que não se encontram previstos no art. 495.º do CC, não havendo qualquer desconformidade entre o disposto nesse normativo e a referida Directiva na interpretação que tem sido seguida pelo TJUE.

6.A jurisprudência do TJUE tem admitido de forma consistente a dispensa da obrigação de suscitar a questão prejudicial de interpretação, por insusceptibilidade de recurso, nas seguintes situações: (i) quando a questão de direito da UE suscitada for impertinente ou desnecessária para a resolução do litígio concreto; (ii) quando o TJUE já se tenha pronunciado, de forma firme, sobre a questão a reenviar em caso análogo, em sede de reenvio ou outro meio processual, atento o efeito erga omnes das suas decisões; (iii) quando o tribunal nacional considere que as normas da UE aplicáveis não suscitam dúvidas interpretativas, ou sejam suficientemente claras e determinadas, aptas para serem aplicadas imediatamente, sendo que a clareza das normas aplicáveis deve resultar da sua interpretação teleológica e sistemática e da referência ao contexto histórico, social e económico em que foram adoptadas.

7. O TJUE não pode ser chamado a pronunciar-se, no âmbito de um reenvio a título prejudicial, sobre a interpretação a dar às disposições do nosso direito interno ou de qualquer outro ordenamento jurídico europeu, não sendo essa a competência que os Tratados atribuíram ao TJUE.

8. Há hoje uma preocupação superadora da tradicional categoria de “dano moral”, ampliando o seu espectro, de molde a abranger outras manifestações que a lesão provoca na pessoa, e já não a simples perturbação emocional, a dor ou o sofrimento, procurando erigir-se um novo modelo centralizado no “dano pessoal” que afecta a estrutura ontológica do ser humano, entendido como entidade psicossomática e sustentada na sua liberdade, correspondendo a duas únicas categorias de danos: o “dano psicossomático” e o “dano ao projecto de vida”, com consequências extrapatrimoniais, sendo esta a concepção que melhor se adequa à natureza e finalidade da indemnização pelos danos extrapatrimoniais/pessoais, pondo o enfoque na vítima, com implicações na (re)valorização compensatória, maximizada pelo princípio da reparação integral.

9. Provando-se que em consequência de acidente de viação, causado exclusivamente pelo condutor do veículo seguro, faleceu a filha dos Autores ( pais ), sendo filha única, de 22 anos de idade, que vivia junto com os pais, tendo estes ficado profundamente abalados psíquica e emocionalmente e envolvidos numa grande tristeza, e que a morte da sua única filha afectou os Autores de forma permanente e irreversível, designadamente a nível psíquico, psiquiátrico ou neurológico, com acompanhamento médico, tratamento medicamentoso antidepressivo, desenvolvendo ambos perturbações psíquicas, caracterizadas por humor depressivo e manifestações ansiosas, dificuldade de adaptação à perda sofrida, com comportamentos de evitamento que reúne critérios de diagnóstico para Perturbação de Stress Pós-Traumático e que este quadro lhes acarreta uma repercussão em grau ligeiro na sua autonomia pessoal, social e profissional, valorizável em 9 pontos, deve estimar-se o dano não patrimonial em € 50.000,00 ( cinquenta mil euros) para cada um dos pais.


III – DECISÃO


Pelo exposto, decidem:

1)


Julgar parcialmente procedente a revista e revogar o acórdão recorrido quanto ao montante fixado a título de danos não patrimoniais para cada um dos Autores, arbitrando-se, em substituição, o valor de € 50.000,00, para cada um dos Autores

2)


Condenar a Ré a pagar a cada um dos Autores a quantia de € 50.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a presente data.

3)


Condenar Autores e Ré nas custas da revista, na proporção de 10% para os Autores e 90% para a Ré.


Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 10 de Abril de 2024.

Jorge Arcanjo (Relator)

Pedro de Lima Gonçalves

António Magalhães