HOMICÍDIO QUALIFICADO
PESSOA PARTICULARMENTE INDEFESA
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
RECURSO INTERLOCUTÓRIO
INADMISSIBILIDADE DE RECURSO
REENVIO PREJUDICIAL
PODERES DE COGNIÇÃO
QUESTÃO NOVA
Sumário


I. Tendo sido sindicados pela Relação os recursos interlocutórios dos despachos impugnados da 1ª instância (que não se debruçaram sobre o objeto do processo), ficaram decididos de modo definitivo, mesmo sendo julgados improcedentes. Ora, não se tratando de decisão sobre o objeto do processo (que é definido pelos factos que constam da acusação ou da pronúncia, sendo esses os que são imputados ao arguido e que delimitam os poderes de cognição do tribunal), é inadmissível recurso para o STJ, sendo de rejeitar nessa parte o recurso (face ao disposto nos arts. 420.º, n.º 1, al. b), e 414.º, n.ºs 2 e 3, 400.º, n.º 1, al. c) e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP).
II. Neste caso concreto, foram aplicadas normas de direito interno, não se tendo colocado quaisquer dúvidas sobre a aplicação e interpretação de normas do Direito Comunitário, o que era pressuposto essencial para acionar o mecanismo do reenvio prejudicial. Tão pouco houve uma aplicação implícita do direito da União Europeia ou das normas europeias indicadas pelo recorrente, sobre as quais a decisão recorrida nem se pronunciou, nem tinha de pronunciar-se. O que antes se verifica é que o recorrente, apelando a normas do direito da União Europeia pretende convocar o mecanismo do reenvio prejudicial, não por existir dúvida de interpretação de preceito normativo de Direito Comunitário que tivesse sido aplicado na solução do caso, mas antes porque discorda da decisão recorrida, que negou provimento ao seu recurso, o que não pode ser. Com efeito, para além do direito interno (no caso a decisão da Relação) não poder ser sindicado pelo Tribunal de Justiça, que não funciona como instância de recurso do direito interno (não sendo essa a sua função, nem sequer quando é chamado a responder a questões colocadas no âmbito de um verdadeiro pedido de reenvio, mesmo quando se trata de reenvio de interpretação), o que não sucede neste caso, o certo é que nem sequer se trata de uma indevida ou ilegal retenção do reenvio prejudicial, porque não estão preenchidos os pressupostos para acionar esse incidente.
III. Neste caso concreto, uma vez que se trata de recurso de acórdão da Relação que decide recursos de decisão de tribunal de júri da 1ª instância, os poderes de cognição do STJ, visto o disposto no art. 434.º do CPP, limitam-se exclusivamente ao reexame da matéria de direito, o que significa que as questões que o recorrente colocou (e tal como as colocou) relativas à decisão da matéria de facto estão definitivamente decididas pela Relação, não cabendo na esfera de cognição do STJ pronunciar-se sobre a invocada violação da presunção de inocência, do princípio da livre apreciação da prova, do in dubio pro reo e do disposto no art. 163.º do CPP, quanto à prova pericial, que alega ter sido avaliada erradamente. No caso aqui em apreciação, não sendo a decisão recorrida acórdão proferido pela Relação em 1ª instância, nem estando em causa recurso direto para o STJ de acórdão proferido em 1ª instância, por tribunal do júri ou coletivo, mas antes tratando-se de recurso de acórdão da Relação que decidiu recursos anteriores dos arguidos de decisão da 1ª instância, como se assinala no ac. do STJ de 15.02.2023 (Ana Barata Brito) “nada foi legislativamente alterado no que respeita à (im)possibilidade de o recurso (não) poder ter os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º”. Com efeito, as únicas exceções introduzidas pela Lei n.º 94/2021, de 21.12 à regra geral do recurso para o STJ visar exclusivamente o reexame da matéria de direito, são (como estabelecido na parte final do art. 434.º do CPP) as previstas nas als. a) e c) do n.º 1, do art. 432.º do CPP, dois casos em que, como tem sido decidido, nomeadamente, no citado acórdão deste STJ de 15.02.2023 “trata-se de recurso de primeiro grau, para o Supremo (o que justifica a diferente solução legislativa).”
IV. Sendo já imputado a prática de um crime de homicídio qualificado consumado em relação à vítima F…, finda a produção de prova, foi comunicada a alteração da qualificação jurídica, relacionada com a alteração da circunstância qualificativa, que em vez de ser a alínea l) passou a ser a da alínea c) do n.º 2 do art. 132.º do CP, a qual não envolveu qualquer alteração de factos da acusação, nem tão pouco da respetiva moldura legal abstrata da pena de prisão aplicável pelo referido crime de homicídio qualificado. Nessa perspetiva, tendo em vista, desde logo o disposto no art. 1.º, f), do CPP, é manifesto que não se está perante uma “alteração substancial dos factos” uma vez que nem houve a imputação ao arguido de crime diverso (dado que o crime imputado é o mesmo, apenas foi alterada a circunstância que deixou de ser a da alínea l) e passou a ser a da alínea c) do n.º 2 do art. 132.º do CP) e também não houve agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis (uma vez que as sanções são as mesmas). Ao ser feita essa comunicação de alteração da qualificação jurídica, nos termos do art. 358.º, n.º 3, do CPP, como a lei determina, pelo tribunal competente (o tribunal de júri como foi bem explicado pela Relação na decisão recorrida), os arguidos tiveram a possibilidade de se defenderem e de, se o entendessem mais conveniente, reorganizar a sua defesa.
V. A comunicação de alteração da qualificação jurídica foi feita precisamente para evitar decisão surpresa e para dar aos arguidos a oportunidade de requererem prazo para prepararem a sua defesa, fazendo uso do disposto do art. 358.º, n.º 1, parte final, do CPP (cf. primeira parte do n.º 3 do mesmo artigo). E, se tivessem apresentado defesa, nomeadamente apresentando provas, era novamente reaberta a audiência para o efeito, a qual prosseguiria normalmente até final, como foi bem explicado na decisão recorrida (ver de resto, o ac. STJ/FJ n.º 11/2013, de 12 de Junho de 2013). A opção dos arguidos foi não apresentarem qualquer defesa, apesar de terem tido oportunidade de a apresentarem e de requererem nessa matéria o que tivessem por conveniente, tendo em vista a defesa mais eficaz. Perante essa posição dos arguidos (que exerceram os seus direitos como entenderam), mais não restava à Srª. Juiz Presidente do Tribunal de Júri do que designar dia para a leitura do acórdão, uma vez que nem sequer fora requerida prova a produzir. Ou seja, tendo sido assegurado previamente o direito de defesa eficaz (atendendo, portanto, à necessidade de não frustrar a estratégia da defesa e o efeito útil desta) e não tendo sido violado qualquer princípio (v.g. da presunção de inocência, do contraditório, do acusatório, da vinculação temática) a alteração da qualificação jurídica podia ser tida em conta pelo tribunal do julgamento, no apuramento e na definição da responsabilidade criminal dos arguidos (sem prejuízo do oportuno conhecimento, no recurso da sentença, do invocado erro na subsunção dos factos ao direito).
VI. A situação de particular vulnerabilidade da vítima prevista no art. 132.º, n.º 2, al. c), do CP, não tem de ser pré-existente à atuação do agente, porque esse não é um pressuposto legal sequer para a verificação desse exemplo-padrão. Ao contrário do que alegam os recorrentes, o que resulta dos factos dados como provados é que não houve a chamada “luta corpo a corpo” entre a vítima e os arguidos; o que antes aconteceu foi depois de ter sido colocada a vítima em estado de desamparo por um dos arguidos (ou seja, a vítima F… foi colocada em situação de pessoa particularmente indefesa, em razão de doença, pelo arguido V…quando à traição, pela retaguarda, deu um soco na parte de trás/lateral da cabeça de F…, fazendo com que este caísse de imediato no chão), ambos os arguidos aproveitaram desse estado de desamparo da vítima (que estava inanimada e, portanto, sem capacidade de qualquer reação), desferiram pontapés (um o arguido V… e três o arguido C…) na cabeça de F…, com tal violência, sendo com as suas condutas que lhe causaram as lesões (traumáticas meningo-encefálicas e raquídeas cervico-vasculares, sofrendo uma hemorragia intracraniana grave, isquemia massiva) que determinaram a morte de F…, apesar de ter sido assistida medicamente e ainda ter estado hospitalizada cerca de 2 dias.
VII. Foi essa atuação conjunta dos arguidos sobre o F… (que tinha 26 anos e antes era saudável), que apesar de ter ocorrido em breves instantes e, em termos de golpes desferidos (todos na cabeça, sendo o soco dado pelo arguido V…na zona mais precisa da parte de trás/lateral da cabeça, uma vez que foi dado à traição, pela retaguarda, fazendo-o cair de imediato no chão, desferindo-lhe de seguida mais um pontapé na cabeça e permanecendo a vítima ainda inanimada quando o arguido C…. desferiu os três últimos pontapés), podendo ser contabilizados em um soco e quatro pontapés (o que mostra bem a intensidade da violência imprimida - em tão pouco tempo e com tão poucos golpes desferidos - para causarem as lesões que determinaram a morte da vítima), que revela bem como foi muito violenta e especialmente censurável e perversa a atuação de ambos os arguidos, sendo evidente o completo desprezo pelo valor da vida humana que ambos manifestaram com a sua conduta. Portanto, a atitude dos arguidos, além de ser especialmente censurável, revela especial perversidade, o que é evidenciado pelo seu aproveitamento daquela situação de desamparo da vítima (os arguidos aproveitaram-se da situação de vulnerabilidade total da vítima e da sua incapacidade de reagir, por estar inanimada, ou seja, por estar particularmente indefesa, por doença), ainda que tivesse sido o arguido V… que o tivesse colocado naquela situação, quando o atacou com o soco na parte de trás/lateral da cabeça, desferido à traição, fazendo com que o F… caísse de imediato ao chão.
VIII. No recurso para o STJ da decisão da Relação o recorrente não pode colocar questão nova (questão relativa à medida da pena que não colocou no recurso da decisão da 1ª instância para a Relação e sobre a qual esta não se podia pronunciar), uma vez que não pode ser sindicada nessa parte (com efeito, sendo o acórdão da Relação a decisão sob recurso, não há decisão sobre essa matéria e a questão colocada também não é de conhecimento oficioso).

Texto Integral

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

No processo comum (tribunal coletivo) n.º 266/22.5SGLSB do Juízo Central Criminal de ..., Juiz 2, comarca de Lisboa, foi proferido acórdão em 2.06.2023 a

Condenar o arguido AA:

a. pela prática, em 19.03.2022, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, nº 1, do CP, na pena de nove meses de prisão (na pessoa de BB)

b. pela prática, em 19.03.2022, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, nº 1, do CP, na pena um ano de prisão (na pessoa de CC)

c. pela prática, em 19.03.2022, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelo 131º, 132º, nº1, e nº 2, al. c) e 23º, nº 1 e 2, e 73º, do CP, na pena de três anos e nove meses de prisão (na pessoa de DD)

d. pela prática, em 19.03.2022, de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. pelo art. 131º, 132º, nº1, e nº2, al. c), do CP, na pena de quinze anos e nove meses de prisão (na pessoa da vítima EE)

e. na pena única de dezassete anos de prisão.

- Absolver o arguido AA da prática, em 19.03.2022, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos art. 143º, nº 1, 145º, nº 1, al. a), 132º, nº 2, al. l) do CP (na pessoa de FF)

Condenar o arguido GG:

a. pela prática, em 19.03.2022, de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 143º, nº 1, do CP, na pena de seis meses de prisão (na pessoa de BB, no interior da discoteca 1)

b. pela prática, em 19.03.2022, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos art. 143º, nº 1, 145º, nº 1, al. a), nº 2, e 132º, nº 2, al. c) do CP, na pena de um ano e seis meses de prisão (na pessoa de BB)

c. pela prática, em 19.03.2022, de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 143º, nº 1, do CP, na pena de um ano de prisão (na pessoa de FF)

d. pela prática, em 19.03.2022, de um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 143º, nº 1, do CP, na pena de um ano de prisão (na pessoa de CC)

e. pela prática, em 19.03.2022, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos art. 131º, 132º, nº1, e nº 2, al. c) e 23º, nº 1 e 2, e 73º, do CP, na pena de quatro anos de prisão (na pessoa de BB)

f. pela prática, em 19.03.2022, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelo art. 131º, 132º, nº1, e nº 2, al. c) e 23º, nº 1 e 2, e 73º, do CP, na pena de quatro anos de prisão (na pessoa de DD)

g. pela prática, em 19.03.2022, de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. pelo art. 131º, 132º, nº1 e nº 2, al. c) do CP, na pena de dezasseis anos de prisão (na pessoa de EE)

h. na pena única de vinte anos de prisão.

Foi ainda julgado:

- Totalmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pelo demandante Estado Português e, em conformidade, foram condenados os arguidos a pagar solidariamente ao demandante, a título de danos patrimoniais, a quantia de cento e oitenta e quatro mil, quatrocentos e trinta e sete mil e cinquenta e oito cêntimos, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a prática dos factos ilícitos e até integral pagamento (art. 805.º, n.º 1 e 2, al. b), e 806º, nº 1, do CC).

- Procedente o pedido para que se declare que o demandante Estado Português tem o direito ao valor que for despendido pelos danos que vierem a verificar-se no futuro, nomeadamente se vier a verificar-se a reabertura do processo, no caso de o trabalhador se considerar em situação de recidiva, agravamento ou recaída, ocorrida no prazo de 10 anos contados da alta, nos termos previstos no artigo 24.º do DL n.º 503/99, de 20 de novembro, na versão atualizada dada pela Lei n.º 19/2021 e dos artigos 483.º, 497.º e 562.º do Código Civil.

- Totalmente procedente o pedido do demandante Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central, E.P.E, e, em conformidade, foram condenados os arguidos a pagar solidariamente ao demandante, a título de danos patrimoniais, a quantia de vinte e quatro mil duzentos e setenta e sete euros e dezanove cêntimos, sendo que quanto apenas ao arguido GG acrescem cento e setenta e nove euros e sete cêntimos, quantias estas às quais acrescem juros de mora à taxa legal desde a notificação do pedido e até integral pagamento (art. 805.º, n.º 1 e 2, al. b), e 806º, nº 1, do CC).

- Parcialmente procedente por provado o pedido formulado pelos Demandantes HH e II e, em conformidade, foram condenados os arguidos a pagar solidariamente, aos demandados, a quantia de trezentos e vinte e cinco mil euros pelo dano morte, a quantia de cinquenta mil euros a cada demandante pelos danos morais próprios, e a quantia de sete mil e quinhentos euros pelos danos morais sofridos pela vítima, o que perfaz a quantia total de quatrocentos e trinta e dois mil e quinhentos euros, à qual acrescem juros de mora à taxa legal desde a notificação do pedido e até integral pagamento (art. 805.º, n.º 1 e 2, al. b), e 806º, nº 1, do CC).

2. Tendo ambos os arguidos recorrido para a Relação de Lisboa, por acórdão do TRL de 25.10.2023, no que aqui interessa, foi decidido:

A. No que concerne aos recursos interlocutórios interpostos pelo arguido GG:

a) Julgar improcedente o recurso interposto do despacho proferido em 27-02-2023 (questão relativa à identificação dos jurados);

b) Julgar improcedente o recurso interposto do despacho proferido em 03-04-2023 (questão relativa à não admissibilidade do depoimento de um magistrado judicial e um magistrado do MºPº);

c) Julgar improcedente o recurso interposto do despacho proferido em 10-04-2023 (questão relativa à não admissibilidade do depoimento de uma jornalista);

d) Rejeitar o recurso interposto do despacho de 12-04-2023 (nulidade da decisão relativa à impossibilidade de uso de pc na sala de audiências, por incompetência do Presidente do Tribunal, para a sua prolação);

e) Julgar improcedente o recurso interposto do despacho proferido em 14-04-2023 (nulidade decisão por incompetência do Tribunal do Júri para a sua prolação);

B. No que concerne aos recursos interpostos da decisão final:

Julgarem-se improcedentes os recursos interpostos pelo M.ºP.º e pelos arguidos AA e GG e, em consequência, rejeita-se o reenvio prejudicial peticionado pelo arguido GG, mantendo-se integralmente a decisão recorrida.

3.1. Não se conformando com o decidido, recorreu o arguido AA apresentando as seguintes conclusões1:

1. O arguido foi condenado pela prática, em 19.03.2022, de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. pelo art. 131º, 132º, nº1, e nº2, al. c), do CP, na pena de quinze anos e nove meses de prisão (na pessoa da vítima EE) e, em cúmulo jurídico, na pena de 17 (dezassete) anos de prisão.

2. Nos termos do art. 412º, n.º 2 do Código de Processo Penal, o Recorrente esclarece que o Tribunal da Relação de Lisboa através do acórdão recorrido incorreu em erro na determinação da norma aplicável, tendo considerado que os factos provados se subsumiriam à prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelo art. 131º, 132º, nº1, e nº2, al. c), do CP.

3. De facto, a alínea c) do n.º 2 do art. 132º do Código Penal estabelece que é “(…) susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente: c) Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez”.

4. E, nesta conformidade, é verdade que a prática de factos contra pessoas particularmente indefesas pode subsumir-se à prática de um crime de homicídio qualificado, desde que a ratio legis da norma (vulgo, estrutura valorativa) seja respeitada. E a ratio legis da norma pretende, desde logo, acautelar situações de absoluta desproteção e desamparado resultantes da idade, deficiência, doença ou gravidez.

5. Em breve súmula, o acórdão recorrido considera que o facto de a vítima ter sido pontapeada (uma única vez) pelo Recorrente enquanto estava no chão (e um segundo após ter sido agredida a soco) configura a prática de um crime de homicídio qualificado, porque os factos terão sido cometidos sobre uma pessoa especialmente vulnerável e indefesa.

6. Desde logo, o acórdão recorrido refere que: “Veja-se, aliás, no mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Processo 158/20.2GDSTS.P1, de 14-07-2021, onde se afirma: I - Pessoa particularmente indefesa para efeitos do disposto na al. d) do nº 1 do art.º 152º do CP, é aquela “que se encontra numa situação de especial fragilidade”, “é aquela que se encontra à mercê do agente, incapaz de esboçar uma defesa minimamente eficaz, em função de qualquer das qualidades previstas na norma.”

7. Ou seja, o próprio acórdão da Relação do Porto (2021) invocado pelo acórdão recorrido esclarece que a situação de fragilidade da vítima deve decorrer da verificação de “(…) qualquer das qualidades previstas na norma”, a saber “idade, deficiência, doença ou gravidez”, algo que o acórdão recorrido pertinentemente parece ignorar…

8. Por outro lado, esclarece o acórdão recorrido que [quanto à superação da resistência da vítima e as suas consequências no conceito de pessoa particularmente indefesa]: “Assim, não importa nem decorre, em nenhum momento, do que o legislador deixou descrito, que essa situação tenha de ocorrer previamente à actuação do agente nem, muito menos, que não tenha sido pelo mesmo provocada. A especial censurabilidade recai sobre um comportamento em que sobre alguém, que se encontra particular e especialmente indefeso, é exercida uma acção agressiva, precisamente porque, para o comum dos cidadãos, nessas situações é especialmente censurável tirar-se partido dessa indefensabilidade”.

9. Aqui chegados (e antes de nos debruçarmos sobre a questão da especial censurabilidade), urge procurar desmistificar se o malogrado EE era, ou não, uma pessoa particularmente vulnerável e indefesa para os efeitos previstos no art. 132º, n.º 2, al. c) do Código Penal. A referida circunstância agravante tem sido unanimemente interpretada no sentido de que são pessoas particularmente indefesas “aquelas que se encontram numa situação de especial fragilidade devido à sua idade precoce ou avançada, deficiência, doença física ou psíquica, gravidez ou dependência económica do agente” (neste sentido, entre muito outros melhor analisados infra, o Acórdão da Relação de Lisboa de 02.03.2017, disponível em www.dgsi.pt).

10. O Agente EE – com todo o respeito – jamais encaixaria neste perfil… Não obstante, o acórdão recorrido considera que um jovem com 26 (vinte e seis) anos de idade, agente da Polícia de Segurança Pública, interveniente numa escaramuça às 06:00 da manhã numa discoteca da capital portuguesa, é uma pessoa particularmente indefesa…

11. Salvo o devido respeito, não compreendemos como… Não se compreende como é que um cidadão que – segundos antes de ser agredido – agride ele próprio o arguido GG (facto provado n.º 2.1.89) é uma pessoa particularmente indefesa… Veja-se, ainda, o texto do acórdão recorrido (página 74) quando refere que “A favor do arguido AA encontra-se o facto de a vítima EE ter desferido um soco no arguido GG (…)”.´

12. Em abono da verdade, o Recorrente não compreende como é que um cidadão que segundos antes agride um terceiro a murro – em contexto de rixa, soco apaziguador, neutralizador, pacificador [o que se lhe queira chamar] – é uma pessoa particularmente indefesa… É que, por definição, se é capaz de (tentar) neutralizar agressores para defender terceiros, seria capaz de se defender a si próprio… É que, o Tribunal recorrido entende que o soco desferido por EE não é uma agressão ilícita para efeitos de legítima defesa, chegando a apelidá-lo de “soco apaziguador” porque visa neutralizar os agressores, mas – ao mesmo tempo – entende que uma pessoa disposta a neutralizar os agressores (selvagens, bárbaros, no entender dos sucessivos acórdãos) é especialmente vulnerável e indefesa…

13. Alguém que age sobre terceiros com o fito de neutralizar um agressor não é (nem pode ser) – por contradição ostensiva nos seus próprios termos – um cidadão especialmente vulnerável ou indefeso. Esta conclusão sai, ainda, reforçada se considerarmos a sua qualidade de Agente da Polícia de Segurança Pública e se não ignorarmos todos os treinos/formações que lhe foram ministrados para preparação do exercício das respetivas funções…

14. Em qualquer caso, o arguido AA não atacou uma vítima especialmente indefesa e/ou vulnerável… Até porque, de acordo com a matéria de facto provada, o arguido atua sobre EE em dois momentos [embora separados por não mais do que um segundo]: (i) o primeiro momento em que o agride a soco (o que lhe provoca a queda no chão), ii) um segundo momento em que – em ato contínuo ao soco – desfere um pontapé na cabeça de EE (com pouca intensidade, tal como resulta das imagens de videovigilância).

15. Se o acórdão recorrido esclarece que a vulnerabilidade do malogrado EE decorre da sua incapacidade de se defender resultante do facto de se encontrar prostrado no chão, só na situação descrita em (ii) a mesma se denota, porque aquando do soco desferido por AA este (EE) ainda estava em pé e tinha acabado de agredir GG a soco, tal como resulta até do elenco de factos provados. Por outro lado, o pontapé [descrito em (ii)] é desferido cerca de um segundo depois do soco e em ato contínuo: as circunstâncias factuais que levaram AA a desferir um soco são as mesmas que o motivaram a desferir o pontapé.

16. A motivação de AA é a mesma no soco (quando o malogrado EE estava em pé e tinha acabado de agredir GG) e no pontapé (desferido um segundo depois do murro e em ato contínuo). Não há qualquer renovação e/ou intensificação do dolo. Não há uma remotivação do Recorrente que permita sustentar a tese de que este decidiu agredir uma pessoa especialmente indefesa pelo facto de já se encontrar prostrada no chão.

17. E, portanto, urge realçar que – mesmo no entender das decisões recorridas – aquando da formação da vontade de AA (leia-se, motivação), a vítima ainda não estava particularmente indefesa. No entanto (e em qualquer caso), a vítima não é, não estava, nem poderia estar particularmente vulnerável ou indefesa nos termos e para os efeitos previstos na norma incriminadora (art. 132º, n.º 2, al. c) do Código Penal). Não há, portanto, dolo quanto a essa situação, o que afastaria a subsunção ao tipo penal pelo qual foi o arguido condenado.

18. Aqui chegados, urge aludir à jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça quanto à questão da especial vulnerabilidade da vítima. Em primeiro lugar, chamaremos à colação o Ac. do STJ de 26.11.2015 (Processo n.º 119/14.0JAPRT.P1.S1), disponível em www.dgsi.pt, na medida em que é referido que: V - Não preenche a circunstância da al. c) do n.º 2 do art. 132.º do CP, a vítima de homicídio que apesar de possuir 75 anos de idade e sofrer de diabetes (tendo tido nesse âmbito uma crise grave cerca de meio ano antes), vivia sozinha, era autónoma e até ofereceu resistência ao arguido, com quem lutou denodadamente, acabando por ser vencida, porque o agressor revelou ser mais forte, certamente pela vantagem que a sua juventude lhe dava no confronto com a idade avançada da vítima.

19. Em segundo lugar, invocaremos o Ac. do STJ de 18.09.2018 (Processo n.º359/16.8JAFAR.S1), disponível em www.dgsi.pt, quando refere que: “7. Se a vítima se encontrava na impossibilidade ou em grave dificuldade de resistir ou de se defender devido à acção do próprio arguido, o que se relacionava com a forma de execução do crime de violação que imediatamente antecedeu a tentativa de homicídio, e resultando apenas que o arguido sabia dessa situação, que provocara, não estando provado que a vítima era uma pessoa impossibilitada de se defender por causa da sua idade avançada, de doença de que padecia ou de deficiência que a afectava, não se mostra fundado concluir que o arguido, para cometer o tentado crime de homicídio, encontrando-se numa situação de superioridade, dolosamente se tenha aproveitado de uma situação de desamparo da vítima originada por qualquer desses motivos, de modo a ser preenchida a previsão típica da al. c) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal. Pelo que a elevada censurabilidade do facto praticado nestas circunstâncias somente poderá ser considerada como factor de agravação da culpa do crime de homicídio simples, nos termos do artigo 71.º do Código Penal”.

20. Antes de prosseguir, uma palavra para esclarecer que este acórdão do Supremo Tribunal de Justiça é ilustrativo da tese e da narrativa que pretendemos oferecer: se a vítima se encontrava especialmente vulnerável em consequência da atuação do arguido, “não estando provado que a vítima era uma pessoa impossibilitada de se defender por causa da sua idade avançada, de doença de que padecia ou de deficiência que a afectava, não se mostra fundado concluir que o arguido, para cometer o tentado crime de homicídio, encontrando-se numa situação de superioridade, dolosamente se tenha aproveitado de uma situação de desamparo da vítima originada por qualquer desses motivos, de modo a ser preenchida a previsão típica da al. c) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal”. Conclui (com notável brilhantismo) o nosso Supremo Tribunal que: “Pelo que a elevada censurabilidade do facto praticado nestas circunstâncias somente poderá ser considerada como factor de agravação da culpa do crime de homicídio simples, nos termos do artigo 71.º do Código Penal”.

21. Da análise da jurisprudência acabada de citar, resulta evidente a seguinte conclusão: a incapacidade de defesa deverá manifestar-se ab initio. Se a resistência oferecida pela vítima for superada pelo arguido, já não estaremos perante uma vítima particularmente indefesa. Desde logo, a vítima que esboça uma tentativa de resistência não está particularmente indefesa… É uma contradição nos seus próprios termos que, salvo o devido respeito, é (estranhamente) ignorada pelos sucessivos acórdãos proferidos nos presentes autos.

22. Aliás, a superação da resistência da vítima é uma inevitabilidade para quem se determina a tirar a vida a alguém que oferece resistência. Se em consequência de confrontos físicos a vítima vem a ficar prostrada no chão e é, depois, mortalmente agredida (com recurso a murros, pontapés, a asfixia ou estrangulamento, a golpes letais com objetos contundentes ou cortantes, etc.) não se pode verdadeiramente argumentar que a vítima estava especialmente incapacitada de resistir, desde logo, porque não corresponde à realidade: a vítima tinha capacidade de resistir, resistiu, lutou e infelizmente foi vencida…

23. Neste contexto, realçamos, aliás, que a vítima EE tinha acabado de agredir – a murro – o arguido GG. Foi neste enquadramento que o arguido AA se precipitou na sua direção, tendo-lhe desferido 1 (um) soco violento que o fez cair ao chão e, em ato contínuo, desferido um pontapé de menor intensidade (e sem qualquer preparação), factos que resultam do elenco de factos provados e são, por esse motivo, imutáveis. São estes os factos provados que no entender dos sucessivos acórdão retratam a especial censurabilidade deste crime de homicídio, porquanto cometido sobre uma vítima que estava no chão…

24. Não ficou, portanto, provado que a vítima era uma pessoa especialmente indefesa… Nem podia ser… Referimo-nos, obviamente, a um agente da PSP – com treinos intensos – com 26 (vinte e seis) anos de idade que, às 06h00 e à saída de uma discoteca, não se coibiu de ajudar os amigos que viu envolvidos num confronto.

25. Conclui-se, por conseguinte, que a doutrina e a jurisprudência acabam por convergir na ideia de que: a) A especial vulnerabilidade da vítima deve resultar da especial fragilidade decorrente da sua idade (precoce ou avançada), deficiência, doença ou gravidez, na medida em que é essa a estrutura valorativa da norma e foi essa a vontade do legislador; b) Esta especial vulnerabilidade prende-se com o desamparo objetivo da vítima manifestado ab initio e não em consequência da superação da resistência por esta oferecida… Ou seja: a qualificativa invocada pelo Tribunal está pensada e foi tipificada para casos de absoluto desamparo da vítima (social, psicológico e/ou físico).

26. Objetivamente, uma pessoa especialmente vulnerável não atuaria da forma que o malogrado EE atuou… Reiteramos: a especial vulnerabilidade da vítima deve manifestar-se ab initio e não deve ser uma consequência da superação da resistência oferecida pela vítima… A norma está pensada para os casos em que a vítima é tão vulnerável e tão incapaz de esboçar uma defesa que a afetação do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora é especialmente inaceitável (face a esta incapacidade conhecida e evidente de reagir a essa afetação).

27. No acórdão (já citado) do Supremo Tribunal de Justiça de 18.09.2018 (Processo n.º 359/16.8JAFAR.S1), pode ler-se que: “16. Para concluir pelo especial grau de perversidade e censurabilidade, por via da intermediação desta circunstância, considerou o tribunal a quo (supra, 7) que a vítima “já se encontrava prostrada no chão, totalmente indefesa em consequência das anteriores agressões levadas a cabo [pelo arguido] com vista a concretizar as agressões sexuais”, que o arguido “desferiu contra a cabeça de BB diversos pontapés já após esta se encontrar totalmente incapacitada de reagir” e que a vítima era pessoa especialmente indefesa porque “atenta a sua idade e fragilidade”, pois esta tinha 67 anos e o arguido 38, “se encontrava totalmente indefesa em consequência das anteriores agressões”. Não parece, porém, que este seja fundamento bastante para o exacto preenchimento da circunstância típica”.

28. O caso concreto decidido nesse acórdão é – nesta medida – muito semelhante ao caso concreto que presentemente nos ocupa. E, a este propósito, refere o Supremo Tribunal de Justiça (2018) que: “Se é certo que, por estar prostrada, a vítima não poderia defender-se – podendo, nesse sentido, dizer-se que se encontrava “indefesa” –, não é possível, apenas com base neste elemento, nas idades do arguido e da vítima e na mencionada “fragilidade” – qualidade notoriamente associada a idade avançada, em resultado de limitações graves inerentes ao normal processo de envelhecimento, o que, não sendo o caso, careceria de outros elementos caracterizadores, não concretizados (sobre a insuficiência da simples superioridade em razão da idade, isoladamente considerada cfr. supra, 15, o acórdão deste Tribunal de 26.11.2015) –, afirmar-se que a vítima se encontrava “particularmente indefesa” para efeitos de especial agravação da culpa nos termos do artigo 132.º. Para além de a dita razão de a vítima se encontrar nessa situação – por, no momento, se encontrar na impossibilidade ou em grave dificuldade de resistir ou de se defender devido à acção do próprio arguido (…). Não estando provado que a vítima era uma pessoa impossibilitada de se defender por causa da sua idade avançada, de doença de que padecia ou de deficiência que a afectava, não se mostra, por conseguinte, suficientemente fundado concluir que o arguido, para cometer o tentado crime de homicídio, encontrando-se numa situação de superioridade, dolosamente se tenha aproveitado de uma situação de desamparo da vítima originada por qualquer desses motivos”.

29. Novamente, num caso com contornos semelhantes, veja-se a posição adotada pelo nosso Supremo Tribunal de Justiça em 14.10.2020 (Proc. N.º 494/09.9GDTVD.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt). III - A Relação valorizou o estado de alcoolizado da vítima, o facto de ter ficado caída no chão após o confronto físico que teve com os arguidos e ainda a circunstância de serem dois os agressores. Todavia, do estado de embriaguez da vítima, ainda que com um valor de alcoolemia muito elevado (3,8 g/l), não se pode concluir que estivesse colocada numa situação de especial fragilidade ou desamparo, tornando-a particularmente indefesa. Aliás, se a vítima não estava de posse de todas as suas capacidades físicas, estas não estavam reduzidas em extremo, pois, momentos antes da morte, desferiu uma chapada na cara do recorrente e, depois deste, ripostando, lhe ter batido com uma cadeira nas costas e na cabeça, abandonou o local e dirigiu-se para a sua residência. Acresce que os arguidos não se depararam com a vítima caída no chão, numa situação de ausência total de defesa, por qualquer anomalia que apresentasse. Essa situação foi ocasionada por um dos arguidos no desenvolvimento do processo que ambos desencadearam para matá-la. IV -Mesmo que se estivesse perante circunstância que tornasse a vítima particularmente indefesa, a falta do seu conhecimento ou a tornava inoperante para qualificar o homicídio por falta de dolo ou revogaria o efeito de indício de especial censurabilidade ou perversidade do agente. Deste modo, é de concluir que não ocorreu circunstância substancialmente análoga à da al. c) do n.º 2 do art. 132.º do CP.

30. Na fundamentação deste acórdão, esclarece o Supremo Tribunal de Justiça que: “(…) Neste âmbito, a decisão recorrida valorizou ainda as circunstâncias de a vítima estar caída no chão e de serem dois os homicidas. Deve, porém, notar-se que a vítima ficou caída em resultado da luta física com um dos agressores, e não por apresentar qualquer fragilidade anterior que a tornasse particularmente indefesa. Os arguidos não se depararam com a vítima caída no chão, numa situação de ausência total de defesa, por qualquer anomalia que apresentasse. Essa situação foi já ocasionada por um dos arguidos no desenvolvimento do processo que ambos desencadearam para matá-la. E, como parece óbvio, se para a matar, o agente ganha vantagem sobre vítima, atirando-a ao chão, esse é um acto que se insere num normal processo de matar. A vítima ficou caída no chão e nessa situação não conseguiu defender-se dos arguidos, apenas por desequilíbrio de forças, com vantagem para os arguidos. E uma tal vantagem nada tem que ver com o exemplo-padrão da alínea c). Só poderia relevar, em sede da alínea h), se fossem três os comparticipantes no facto. Conclui-se, pois, que não ocorre circunstância substancialmente análoga à da alínea c).

31. É esta a tese que o arguido-recorrente pretende defender junto do Supremo Tribunal: a vítima encontrar-se-ia especialmente indefesa e vulnerável na sequência da atuação do arguido sobre si e não estava ab initio colocada nessa incapacidade de resistir. Note-se, aliás, que dos factos provados resulta inequivocamente que EE desfere um ‘soco’ que é qualificado como ‘apaziguador’ (???) em GG.

32. Citaremos, novamente, o acórdão supracitado apenas no seguinte ponto (que queremos reforçar): “A vítima ficou caída no chão e nessa situação não conseguiu defender-se dos arguidos, apenas por desequilíbrio de forças, com vantagem para os arguidos. E uma tal vantagem nada tem que ver com o exemplo-padrão da alínea c)”

33. Assim, urge concluir – tal como concluiu o Supremo Tribunal de Justiça em 26.11.2015 – que: IV - Pessoa particularmente indefesa, no contexto da al. c) do n.º 2 do art. 132.º do CPP, é aquela que se encontra à mercê do agente, incapaz de esboçar uma defesa minimamente eficaz, em função de qualquer das qualidades previstas na norma. Estará nessa situação a pessoa que, em razão da idade, doença ou deficiência física ou psíquica, não tem capacidade de movimentos, destreza ou discernimento para tomar conta de si e, logo, para verdadeiramente se defender de uma agressão, encontrando-se numa situação de completa ausência de defesa.

34. São, portanto, vários os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça que contrariam o sentido e os fundamentos da condenação confirmada nos presentes autos pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

35. Em primeiro lugar, a estrutura valorativa do preceito faz depender a sua aplicação de uma qualidade expressamente prevista na norma (norma que estabelece um elenco fechado em função da linguagem decorrente da técnica legislativa aplicada e, ainda, da abordagem subsequente da doutrina e da nossa jurisprudência [especialmente oriunda do Supremo Tribunal de Justiça]. De facto, o pensamento legislativo estava orientado para uma desproteção absoluta e não, apenas, para uma ‘aparente’ desproteção decorrente da superação da resistência da vítima.

36. O malogrado EE não estava incapacitado de resistir em consequência de idade, deficiência, doença ou gravidez e, por conseguinte, o facto não foi praticado contra pessoa especialmente vulnerável e/ou indefesa.

37. E, portanto, na esteira da jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal de Justiça, os factos provados nos presentes autos não podem sustentar a condenação do arguido recorrente pela prática de um crime de homicídio qualificado na pessoa de EE, p. e p. pelos arts. 131º, 132, n.º 1 e 132, n.º 2, al. c) do Código Penal, devendo o acórdão da Relação de Lisboa ser parcialmente revogado.

38. Por outra banda (e independentemente da questão da especial vulnerabilidade da vítima), entende o acórdão recorrido que: No caso, cremos que não restam dúvidas que as actuações dos arguidos, se mostram preenchedoras do conceito de especial censurabilidade. Na verdade, a culpa dos agentes revela-se muito superior àquela que pressupõe a prática de um crime de homicídio ou de ofensa à integridade física simples, mostrando-se espelhada no modo de cometimento dos ilícitos, reveladora de uma propensão para o uso da violência em situações banais numa vida em sociedade, em que as pessoas procuram divertir-se num estabelecimento nocturno, relaxar e descomprimir e que, para os arguidos, fomenta a sua vontade de atiçar conflitos e demonstrarem a sua pujança física. Denota a conduta dos arguidos uma firmeza e energia criminosas, no modo como, não contentes com o inicial incidente, dentro da discoteca, despoletado pelo arguido GG, ao ser este confrontado (mal) por BB, já no exterior, com um soco (porque se sentia injustiçado por ter sido sobre si que havia recaído a agressão e, ainda assim, daí ter resultado a sua expulsão e não a do agressor), ao aperceberem-se que aquele havia recuado e não demonstrava, pela sua atitude, vontade de prosseguir com qualquer nova agressão, a reacção dos arguidos foi, por parte do arguido AA, de o pôr KO, com um soco e, logo a seguir, de ambos prosseguirem com grande agressividade, sobre o seu corpo.

39. No entanto, num caso concreto com contornos semelhantes, esclareceu Supremo Tribunal de Justiça, em 23.10.2008 (Processo n.º 08P2856, disponível em www.dgsi.pt), que: O que importa ao caso presente é que houve uma luta entre dois grupos de jovens no interior de uma discoteca, um onde se enquadrava o arguido e outro ao qual, de algum modo, estava ligada a vítima. Sabe-se que essas lutas de jovens, em determinados locais onde se bebe álcool e, às vezes, onde se consomem outras substâncias, geram situações de grande emoção e em que, portanto, os contendores não agem com frieza, calculismo e determinação, antes com gestos excessivos, descontrolados e perturbados. Daí que não concordemos com as afirmações de que “o comportamento do arguido é desproporcionado e inadequado do ponto de vista do homem médio em relação ao crime” e de que o “arguido revelou uma total ausência de sentimentos bem como uma grande insistência em tirar a vida à vítima”. O arguido agiu no elevado “calor” de uma luta entre rivais e com dolo directo de tirar a vida à vítima, mas não está provado o tal “mais”, a tal circunstância ou circunstâncias que fariam recair sobre si um grau especial de culpa”.

40. Porém, o acórdão recorrido (contrariando esta ideia) esclarece que o contexto em que os factos foram cometidos é super-censurável, denotando-se uma firmeza e insistência criminosa bastante intensa. Mas justifica esta a especial censurabilidade do comportamento do Recorrente porque terá existido uma qualquer contenda no interior da discoteca (que não lhe é imputável – cfr. factos provados) e entende que – após o primeiro soco – ambos “prosseguiram com grande agressividade” sobre BB (ofendido), algo que também não corresponde à verdade, bastando – para o efeito – compulsar o elenco de factos provados [que é perentório ao referir que a única atuação do Recorrente sobre BB ocorre no exterior da discoteca e se resume a um murro].

41. Independentemente de [em nosso entender] não se verificar nenhum exemplo-padrão previsto no n.º 2 do art. 132º do Código Penal, devemos indagar se a conduta perpetrada pelo arguido-recorrente é especialmente perversa e/ou censurável.

42. Antes de prosseguir, cumpre referir que o crime de homicídio [doloso] é um crime supercensurável…A sua moldura penal é, aliás, demonstrativa do que acaba de ser dito. Por outra banda, o dolo é, regra-geral, intenso e o resultado típico é sempre inaceitável, perverso e trágico. Para que um qualquer homicídio seja especialmente censurável e/ou perverso (leia-se, qualificado), é necessário que, para além da censurabilidade típica e extraordinariamente elevada, própria dos crimes de homicídio simples, se denote um circunstancialismo que permita concluir pelo especial desvalor da conduta do arguido (quando comparado com o intenso desvalor da conduta de quem comete o crime de homicídio simples).

43. E, por maioria de razão, os homicídios que são cometidos em contexto de luta corpo-a-corpo são, também eles, censuráveis. Denotam atitudes violentas, inaceitáveis, irrefletidas, precipitadas e inconscientes. De acordo com a dinâmica dos acontecimentos e ao abrigo das regras da vida, da lógica e da experiência comum, para que um homicídio em contexto de luta corpo-a-corpo seja possível, necessário será superar a resistência da vítima até um ponto em que esta se demonstra manifestamente incapaz de resistir, acabando por sucumbir aos ferimentos/lesões resultantes das agressões.

44. No entanto, para que um homicídio cometido em contexto de luta corporal seja qualificado (e punível nos termos do art. 132º do Código Penal), exigir-se-á a especial censurabilidade e perversidade dos factos quando comparada com a censurabilidade a perversidade “normal” dos factos associados à prática de um crime de homicídio simples (punível nos termos do art. 131º do Código Penal). Exigir-se-ia, portanto, que as agressões fossem bárbaras, sucessivas, contínuas, duradouras, que o agente tivesse tempo de se (re)motivar, que estivesse em superioridade numérica, etc.

45. Nada disto ocorreu nos presentes autos… O arguido-recorrente desfere um soco e um pontapé ao malogrado EE, numa dinâmica que dura pouco mais de dois segundos; não se remotivou, não o voltou a agredir, não estava em superioridade numérica aquando da sua agressão, não demonstra uma violência extraordinariamente elevada e desproporcional ao contexto em que ambos se inseriam.

46. Aqui chegados, sempre se dirá que um soco desferido na cabeça de um jovem (enquanto este está de pé e segundos após ter – ele próprio – desferido um “soco apaziguador” sobre o arguido GG) não retrata uma conduta especialmente censurável e perversa. E o mesmo se refira quanto ao pontapé que é desferido em ato contínuo, sem qualquer preparação. Sempre se dirá que um soco e um pontapé não configuram uma atuação especialmente censurável e perversa num contexto eventualmente homicida [que não se concede], ainda que tenham conduzido ou contribuído para a morte da vítima (que todos lamentamos).

47. Uma agressão que dura cerca de 2 (dois) segundos cometida sobre um jovem com 26 (vinte e seis anos) que acabara de desferir um soco no camarada de armas do arguido-recorrente não retrata o especial desvalor da conduta do arguido (conduta, ela própria, desvaliosa porquanto configura uma agressão ilícita).

48. Salvo o devido respeito, parece-nos – evidente – que o Tribunal recorrido sucumbiu à pressão da opinião pública, sendo forçado a considerar que a atitude de alguém que dá 1 (um!!!!) pontapé na cabeça de um terceiro prostrado no chão é especialmente censurável para os efeitos previstos no art. 132º, n.º 1 e 2, al. c) do Código Penal. Mas, pasme-se, alguém que desfere vários golpes com uma arma branca já comete um crime de homicídio simples. Veja-se, aliás, o entendimento do TRPorto em 28.10.2020 (Processo n.º 2139/19.0JAPRT.P1), disponível em www.dgsi.pt, que condena o arguido pela prática de um crime de homicídio simples. A culpa é elevada, mas essa graduação deverá ser efetuada no tipo penal adequado…

49. Em suma, a atuação do arguido-recorrente (tal como consta do elenco dos factos provados) não traduz a especial censurabilidade/perversidade da sua atuação sobre a vítima EE. E, se assim é, jamais o arguido poderia ser condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado.

50. Até porque, cumpre – desde logo – questionar: o que é que sabia AA? Sabia, em primeiro lugar, que GG foi agredido por BB (o que motivou a respetiva reação). Soube, depois, que se iniciou uma confusão com muito barulho à mistura e várias pessoas que não conhecia, nem identificou. Não sabia, aliás, que estava perante elementos da Polícia de Segurança Pública (elenco de factos não provados). Soube depois (porque viu) que EE agredira GG com um murro e que EE se manteve no local.

51. Quem era, de facto, na perspetiva do Recorrente, esta pessoa que nunca viu e que a primeira vez que se apresenta no seu campo de visão, agride a soco e à traição o seu camarada e amigo GG, tal como resulta da visualização das imagens de videovigilância a fls. 346?

52. Será especialmente censurável a atuação de AA quando confrontada com o contexto fáctico que lhe era conhecido? É evidente que não, pelo menos quando comparada com a normal censurabilidade associada à prática dos factos que, normalmente, traduzem a especial censurabilidade e perversidade exigida pelos casos subsumíveis ao tipo penal previsto e punido pelo art. 132º do Código Penal, a saber o crime de homicídio qualificado.

53. Embora sem conceder, deveria – portanto – o arguido ter sido condenado pela prática do crime de homicídio simples ou, como entendemos, pela prática de um crime de ofensas à integridade física agravadas pelo resultado morte. Até porque, as “bárbaras” agressões são o meio de execução típica do homicídio simples em contexto de luta corpo a corpo. De acordo com o entendimento dos sucessivos acórdãos proferidos nestes autos, um pontapé na cabeça retrata um homicídio qualificado na forma consumada ou tentada, independentemente do falecimento (ou não) da vítima. A ser assim, estaríamos perante (infelizmente) um dos crimes mais comuns do nosso ordenamento jurídico.

54. Felizmente, a posição que tem vindo a ser sufragada nos presentes autos não traduz a posição jurídica dominante. Existem, realmente, muitos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça que abordam estas questões… Importa não olvidar que a prática de um crime de homicídio simples (ainda que na forma tentada) depende sempre da verificação de agressões bárbaras, violentas, hiper-censuráveis que não poderão, ainda assim, enquadrar a prática de um crime de homicídio qualificado.

55. De acordo com o nosso Supremo Tribunal de Justiça (2008): I - No nosso ordenamento jurídico o crime de homicídio qualificado não é um tipo legal autónomo, com elementos constitutivos específicos, constituindo antes uma forma agravada de homicídio, em que a morte é produzida em circunstâncias reveladoras de especial censurabilidade ou perversidade. II - A qualificação do homicídio assenta, pois, num especial tipo de culpa, agravado, traduzido num acentuado desvalor da atitude do agente, que tanto pode decorrer de um maior desvalor da acção, como de uma motivação especialmente reprovável. III - Como refere Figueiredo Dias (Comentário Conimbricense do Código Penal, I, pág. 29), o pensamento da lei é o de imputar à «especial censurabilidade» aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à «especial perversidade» aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas. Ou, como entende Teresa Serra, citando Sousa Brito, a especial censurabilidade refere-se às componentes da culpa relativas ao facto e a especial perversidade à atitude do agente (cf. Homicídio Qualificado Tipo de Culpa e Medida da Pena, pág. 64). (…) V - Tudo dependerá, como refere Figueiredo Dias, de uma imagem global do facto agravada que corresponda ao especial tipo de culpa que aqui se deve ter em conta. Tipo de culpa que, perante a inexistência de qualquer uma das situações previstas no texto legal, só se deve ter por verificado perante circunstâncias extraordinárias ou um conjunto de circunstâncias especiais (reveladoras da especial censurabilidade ou perversidade do agente), que exprimam um grau de gravidade e possuam um estrutura valorativa correspondente à imagem de cada um dos exemplos padrão enunciados no texto legal.

56. A imagem global do facto, tal como refere o Senhor Professor Dr. Figueiredo Dias, não nos transporta para um ilícito especialmente censurável e/ou perverso, quando comparado com a normal censurabilidade e perversidade do crime de homicídio simples (cometido com recurso a agressões físicas).

57. E, por esse motivo, a existir crime de homicídio, seria – inevitavelmente – o crime de homicídio simples, previsto no art. 131º do Código Penal.

58. Afastada que está – em nosso entender – a especial censurabilidade e perversidade da atuação do Recorrente sobre EE, importa – agora – tergiversar acerca da questão do dolo eventual e da eventual representação do resultado morte aquando do cometimento das agressões, questões que foram, também, levadas ao conhecimento do Tribunal da Relação de Lisboa que sobre elas não se pronunciou porque estariam prejudicadas em função da posição vertida no acórdão.

59. Aqui chegados e efetuada a anterior nota prévia, devemos realçar que, por um lado, se o resultado típico foi representado pelo arguido e se, ainda assim, este se conformou com a morte da vítima, estaríamos perante um crime de homicídio simples, cometido com dolo eventual. Por outro, se o resultado típico extravasou exponencialmente aquela que era a intenção do arguido, estar-se-á perante um crime de ofensas à integridade física agravado pelo resultado (morte).

60. Se considerarmos que o arguido-recorrente (ao desferir um soco na cabeça do malogrado EE enquanto este estava de pé e, imediatamente após, um pontapé na sua cabeça) representou a possível morte de EE e, ainda assim, se conformou com esse resultado, estaremos perante um crime de homicídio simples, cometido a título de dolo eventual. Por outro lado, se considerarmos que o arguido-recorrente (ao desferir um soco na cabeça do malogrado EE enquanto este estava de pé e, imediatamente após, um pontapé na sua cabeça) pretendia afetar a integridade física de EE (o que logrou fazer), tendo o resultado (morte) sido imprevisível e inesperado face às agressões concretamente cometidas, situação em que o resultado extravasou manifestamente a vontade do arguido-recorrente, estar-se-á perante um crime de ofensas à integridade física, agravado pelo trágico resultado morte.

61. É, por demais, evidente que um jovem militar português, sem antecedentes criminais, social, profissional e familiarmente integrado, que admitiu a sua intervenção nos factos, que se desculpou perante a família da vítima, que jamais terá previsto a possível consequência da sua conduta e que se precipitou a ajudar um camarada de armas que acabara de ser agredido pelo malogrado EE, não previu o resultado verificado e, por maioria de razão, com ele não se poderia ter conformado. Veja-se, aliás, o testemunho de JJ quando se reporta à surpresa manifestada pelos arguidos quando souberam, já no regresso às suas residências, que foi necessário transportar o EE para o Hospital em consequência da gravidade das lesões. A surpresa relatada por JJ é – em si mesma – incompatível com a previsão do resultado típico e com a respetiva conformação…

62. Mas a não previsão do resultado típico e a ausência de conformação com esse resultado (morte) é, ainda, corroborada pelo próprio circunstancialismo do caso concreto (que, aliás, resulta evidente da análise dos ficheiros de vídeo extraídos do circuito de videovigilância dos diversos estabelecimentos de diversão noturna).

63. Recupere-se esse contexto fáctico (a imagem global do facto referida por Figueiredo Dias): os arguidos saem da discoteca visivelmente bem-dispostos, sorridentes e, dir-se-á, até, afáveis em certa medida (abraçando o segurança). Segundos após (e sem que nada o fizesse prever), o arguido GG é agredido a murro e à “traição” pelo “ofendido” BB. Em ato contínuo, o arguido-recorrente AA, dois segundos depois, agride com apenas um soco o ofendido BB (que cai inanimado no chão). O arguido-recorrente AA recua imediatamente (algo que é perfeitamente visível nas imagens). Após recuar, AA volta a centrar a sua atenção no “epicentro” da confusão iniciada. AA vê KK e EE rodeados por pessoas que todos desconheciam. Vislumbra agressões.

64. Aqui chegados, uma breve nota: quando confrontado com as imagens, em tribunal, sem qualquer pressão externa e com a possibilidade de solicitar avanços, pausas e recuos na gravação, o Diretor Nacional da Polícia Judiciária – funcionalmente conhecedor deste tipo de situações – referiu perentoriamente que não dava para discernir quem eram os agressores, quem eram os ofendidos e quem é que agredia quem… Era uma verdadeira confusão, uma verdadeira rixa… Foi isto que o Exmo. Senhor Diretor Nacional da Polícia Judiciária, em julgamento, confrontado com as imagens mais do que uma vez, com a possibilidade de pausar as imagens, referiu… E foi também isto que o arguido-recorrente AA viu em escassos segundos (pressionado pela adrenalina, barulho e sem a possibilidade de pausar as imagens para melhor se esclarecer).

65. Foi, portanto, isto que o determinou: a ideia de que o seu camarada GG estaria a ser agredido por um grupo de indivíduos que não conhecia. O que é legítimo, na medida em que GG foi agredido inesperadamente momentos antes. Perante isto, questionar-se-á: o que é que AA pretendeu? Evidentemente, agredir as pessoas que terá identificado como agressores: foi isso que fez com BB (facto provado), foi isso que fez com DD, foi isso que fez com EE (admitido, conhecido e constatado pelo Coletivo em primeira instância, com reflexo no facto provado n.º 2.1.89).

66. A intenção de AA foi sempre a mesma: cessar as agressões cometidas sobre o seu camaradas e recuar… A intervenção de AA é inequívoca e clara…E é a intervenção, aliás, esperada de um militar sem antecedentes criminais: vê um camarada em apuros e faz o que for necessário para fazer cessar a atuação. Recorde-se, aliás, que AA não desferiu mais do que um ou dois golpes em cada pessoa: os suficientes para os neutralizar.

67. Aqui chegados, cumpre realmente questionar: terá querido um jovem militar português, sem antecedentes criminais, familiar e socialmente inserido agredir outrem de forma tão bárbara e tão violenta que o resultado morte pudesse ser esperado? Ou, inversamente, terá querido este mesmo jovem militar neutralizar aqueles que, na sua ótica, eram os agressores que – segundos antes – agrediram comprovadamente o seu camarada?

68. A construção do dolo eventual em redor do arguido-recorrente causa algum desconforto… É efetuada através de afirmações genéricas acerca do cérebro e da sua vital importância para o funcionamento dos órgãos do ser humano. Qualquer cidadão não ignora que a cabeça é uma zona hipersensível, que um simples “bater de cabeça” poderá provocar resultados trágicos.

69. A questão é diferente: o resultado era – ou não – esperado? Podia, ou não, o arguido ter-se conformado com este resultado? É que, de acordo com a tese perfilhada pelo tribunal recorrido, qualquer cidadão que agride outro com um soco violento na cabeça poderá cometer o crime de homicídio simples na forma tentada. O que, salvo o devido respeito, não é verdade… Caso contrário, estaríamos provavelmente perante o crime mais comum no nosso ordenamento jurídico. É evidente que o resultado (morte) era inesperado e é também evidente que o arguido não se conformou com o ocorrência desse resultado.

70. O resultado era inesperado, desde logo, porque a atuação de AA consistiu num murro e num pontapé. Ora, este cenário de agressões, embora violento, configura uma “normalidade” inaceitável em qualquer confronto físico… Infelizmente, é esta a bitola dos confrontos físicos: socos e pontapés desferidos de forma gratuita e censurável.

71. O Tribunal a quo parece associar a imputação (homicídio qualificado na forma tentada e consumada) aos pontapés na cabeça dos ofendidos. No entanto, no caso do arguido recorrente, apenas lhe pode imputar um único pontapé.

72. Depois, se é verdade que “pontapear com violência a cabeça pode causar a morte”, também é verdade que essa asserção implica prima facie o carácter sucessivo das agressões. Uma agressão isolada (ou seja, um pontapé desferido na cabeça) pode ser suficiente? Pode…Tal como um soco ou uma pancada com um objeto contundente...

73. Veja-se, por exemplo, a título ilustrativo, que as “garrafadas” desferidas nas cabeças dos ofendidos têm vindo a ser juridicamente qualificadas como ofensas à integridade física (e não como homicídios simples na forma tentada). Perguntar-se-á: por que motivo não se aplica a mesma lógica? Segundo cremos, a resposta encontrar-se-á na previsibilidade/probabilidade do resultado (morte).

74. No caso concreto, não podemos concordar com a asserção do Tribunal a quo vertida no acórdão recorrido: um pontapé na cabeça desferido em condições idênticas às do caso concreto – de acordo com padrões de normalidade – não é uma agressão idónea a provocar a morte do ofendido.

75. Recorde-se, uma vez mais, que o arguido-recorrente desferiu – somente – um pontapé e jamais terá previsto que essa agressão fosse idónea a provocar a morte de alguém. Dizemo-lo despudoradamente porque é a mais pura das verdades… E, portanto, com honestidade intelectual, o arguido não cometeu qualquer crime de homicídio (simples ou qualificado) porquanto não representou (nem se conformou) com a possível morte do ofendido.

76. Poderemos considerar – de forma absolutamente consciente e imparcial – que um cidadão (ainda que com uma preparação física acima da média) poderá, em apenas dois segundos, agredir mortalmente um jovem agente da PSP? Ou agredi-lo de forma tão violenta que o resultado morte seria esperado independentemente do baixo número de agressões e do seu carácter isolado?

77. O arguido-recorrente agride a soco EE (porque este acabara de agredir GG) e, em ato contínuo, desfere-lhe um pontapé e, seguidamente, afasta-se da vítima… É a própria dinâmica dos acontecimentos que evidenciam o que se acaba de referir, na medida em que o circunstancialismo do caso concreto afasta esta ideia de que AA poderia (e deveria) ter previsto a morte da pessoa que agredira. Um pontapé na cabeça – embora extraordinariamente censurável – não configura um ato de execução típico do crime de homicídio; o trágico resultado decorrente de um pontapé na cabeça (que não foi particularmente violento, algo que até resulta das imagens) e de outras agressões não poderia ter sido previsto pelo Recorrente quando desferiu o primeiro pontapé (e o único que lhe é imputável).

78. E, portanto, embora se reconheça a primazia do cérebro na condução da maioria das nossas funções vitais e motoras, sempre se dirá que um pontapé isolado na cabeça de uma pessoa (embora seja – em abstrato – suficiente para provocar a morte, embora com uma “dose” considerável de infortúnio) não é reconhecido por quem o desfere como uma atuação passível de provocar a morte no ofendido. A ser assim, os pontapés desferidos na zona da cabeça já teriam sido abolidos dos desportos de combate há muito tempo…

79. Note-se, aliás, que esta “ideia” de que o pontapé pode – em abstrato – ser “letal” não é determinante para a questão do dolo eventual. Notamos, em bom rigor, que também uma “chapada” violenta desferida na têmpora de outrem (ou noutro local mais sensível) poderá ser letal… Mas não se ouse referir que quem desfere uma “estalada” poderia (ou deveria) ter representado a eventual morte da vítima. E a questão é mesmo essa… A questão não se deve colocar no plano do “pode ou não” causar a morte, mas sim no plano do “é ou não previsível a morte”… E a resposta é inequívoca: não é esperada a morte de quem é agredido com um pontapé na cabeça (com a falta de preparação e com a baixa intensidade que as imagens demonstram).

80. E, portanto, se é verdade que AA teve uma atitude inaceitável (a todos os níveis) quando desferiu um pontapé na cabeça de EE, também é verdade que o crime por este praticado não se enquadra no tipo penal de homicídio (simples ou qualificado), mas antes no tipo penal das ofensas à integridade física (agravadas necessariamente pelo resultado morte).

81. Neste enquadramento, o Recorrente deveria ter sido condenado pela prática de um crime de ofensas à integridade física, ainda que agravado pelo resultado morte, impondo-se a revogação do acórdão.

82. Em suma, nos termos do art. 412º, n.º 2 do Código de Processo Penal, o Recorrente entende que o acórdão recorrido aplicou – de forma incorreta – os artigos 131, 132, n.º 1, 132, n.º 2, al. c), todos do Código Penal, porquanto interpretou – incorretamente – que os factos traduzem uma conduta especialmente perversa e/ou censurável, na medida em que terão sido praticados sobre uma vítima especialmente indefesa e/ou vulnerável.

83. O Recorrente entende que os artigos 131º e 132º do Código Penal não devem ser aplicados no caso concreto, porquanto não é esse o ilícito penal que está em causa nos presentes autos, devendo o Recorrente ser condenado pela prática de um crime de ofensas à integridade física grave, agravado pelo resultado morte, nos termos dos arts. 144º, al. d) e 147º do Código Penal.

84. Por outro lado, os crimes de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º do Código Penal não foram excecionados do perdão no artigo 7º da Lei n.º 38-A/2023. No demais, estando verificados todos os pressupostos formais e materiais de que depende a aplicação da lei da amnistia, impõe-se extrair para o caso concreto os efeitos resultantes da entrada em vigor e aplicação da Lei n.º 38-A/2023. E, portanto, considerando a aplicabilidade do perdão às penas parcelares aplicadas ao arguido, urge reformular a pena do arguido resultante do perdão dos 2 (dois) crimes de ofensas à integridade física simples.

Termina pedindo que seja revogado parcialmente o acórdão recorrido e, consequentemente, seja substituído por outro que altere a qualificação jurídica dos factos praticados sobre EE, procedendo-se à reformulação da pena que lhe foi aplicada, incluindo resultante do cúmulo jurídico efetuado.

3.2. Não se conformando com o decidido, recorreu o arguido GG apresentando as seguintes conclusões2:

1º. O presente recurso vem interposto da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa no âmbito do processo n.º 266/22.5SGLSB.L1 , que manteve a condenação do Recorrente numa pena de prisão de 20 (vinte) anos pela prática de (i) um crime de ofensa à integridade física p.p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do CP, na pena de seis meses de prisão (na pessoa de BB); (ii) um crime de ofensa à integridade física qualificada p.p. pelo artigo 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, al. a), n.º 2 e 132.º, n.º 2, al. c) do CP, na pena de um ano e seis meses de prisão (na pessoa de BB); (iii) um crime de ofensa à integridade física p.p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do CP, na pena de um ano de prisão (na pessoa de FF); (iv) um crime de ofensa à integridade física p.p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do CP, na pena de um ano de prisão (na pessoa de CC); (v) um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p.p. pelos art. 131.º, 132.º, n.º 1 e n.º 2, al. c) e 23.º, n.º 1 e 2 e 73.º do CP, na pena de quatro anos de prisão (na pessoa de BB); (vi) um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p.p. pelos art. 131.º, 132.º, n.º 1 e n.º 2, al. c) e 23.º, n.º 1 e 2 e 73.º do CP, na pena de quatro anos de prisão (na pessoa de DD); (vii) e um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p.p. pelos art. 131.º, 132.º, n.º 1 e n.º 2, al. c) do CP, na pena de dezasseis anos de prisão (na pessoa de EE);

2º. Manteve, igualmente, a condenação nos pedidos de indemnização civis formulados pelo MP em representação do Estado, pelo Centro Hospitalar Lisboa Central EPE., e pelos Demandantes HH e II.

3º. O recurso que ora se apresenta a este Venerando Supremo Tribunal de Justiça é o último reduto para pôr fim a uma situação de flagrante injustiça que caiu sobre o Recorrente, que destrói um projeto de vida de um jovem ao manter uma condenação de vinte anos por uma conduta que durou pouco mais de um minuto e com a qual o Recorrente nunca almejou o (infeliz) desfecho que se veio a verificar.

4º. A realização da justiça do caso concreto implica, pois, uma minuciosa análise do texto da decisão, do qual V. Exas retirarão que a condenação do Recorrente se baseia numa análise inquinada da prova, em violação do princípio da presunção de inocência que constitui um limite à livre apreciação da prova;

5º. São várias, portanto, as questões que o Recorrente colocará à apreciação deste Supremo Tribunal de Justiça, demonstrando que a sua condenação é uma decisão arbitrária, porque contrária à Lei, à Constituição da República Portuguesa e aos instrumentos de Direito Europeu a que os Tribunais Portugueses se encontram vinculados, nomeadamente, à Convenção Europeia dos Direitos Humanos, à Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, à Diretiva 2016/343 (relativa à presunção de inocência) e à Directiva 2012/13/EU (relativa ao direito à informação em processo penal), na medida em que, claramente, a Justiça se deixou contaminar pelo Julgamento em praça pública dos arguidos nos meios de comunicação social e pela pressão política e institucional nos dias seguintes à ocorrência dos factos (19-03-2022).

6º. Se bem vistas as coisas, mais do que violar o princípio da presunção de inocência na apreciação da prova, o Tribunal de 1ª instância condenou o Recorrente, fruto de uma alteração comunicada quando a fase da audiência já estava encerrada (aliás, a comunicação foi feita no dia designado para leitura do Acórdão), por um crime pelo qual não vinha acusado, comprometendo o seu direito de defesa e contraditório e, ainda, claramente, em erro acerca da subsunção jurídica, não só pela ausência de comprovação do elemento volitivo, ainda que enquadrando a atuação do Recorrente no dolo eventual, mas também por ausência de factos susceptíveis de preencherem o conceito legal de “pessoa particularmente indefesa em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez”.

7º. Para além disso, o Tribunal a quo rejeitou, também, o pedido de reenvio prejudicial formulado pelo Recorrente, que, no entanto, afigura-se como um mecanismo crucial na correta aplicação do Direito da União Europeia no caso concreto.

8º. Por isso, em primeiro lugar, é necessário comprovar a imperiosa reconsideração desse segmento da decisão do Tribunal da Relação por este Supremo Tribunal, sendo certo que, por ser a última instância recursiva, o reenvio prejudicial é, nos termos do §3 do art. 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), obrigatório, a fim de que as questões formuladas pelo Recorrente sejam respondidas pelo Tribunal competente (Tribunal de Justiça da União Europeia - TJUE), suprindo patentes e graves violações ocorridas neste processo ao Direito da União Europeia.

9º. Da análise do Acórdão recorrido, nota-se que o argumento utilizado para rejeitar o reenvio peticionado foi o de que o TJUE não se pronuncia sobre a interpretação a dar as disposições de direito interno, afirmando – de forma totalmente equivocada - que o Recorrente não direciona suas questões “a temas quer de interpretação de Tratados, quer sobre a validade e interpretação de actos adoptados por instituições da União.”

10º. Contudo, de uma simples leitura do requerimento de reenvio prejudicial elaborado no recurso de apelação apresentado pelo Recorrente, facilmente se conclui que a questão suscitada ao longo daquele recurso, no que diz respeito ao reenvio prejudicial, foi, justamente, a de o Tribunal a quo ter decidido em violação a instrumentos e normas de Direito Europeu, que vinculam os Tribunais nacionais, seja diretamente ou seja convocando interpretações normativas.

11º. Tal objetivo do Recorrente fica ainda mais evidente nas conclusões do recurso, nas quais consta expressamente que “(…) entende o Recorrente que, estando em causa uma questão de aplicabilidade e de uniformidade de interpretação do direito da UE, da competência do TJUE, nos termos do artigo 267.º do TFUE, desde já se sugere a Vossas Excelências a colocação das questões prejudiciais (…).”

12º. Ou seja, diferentemente do sustentado no Acórdão, não almeja o Recorrente que o TJUE se pronuncie sobre a interpretação do Tribunal a quo sobre normas de direito interno, mas, sim, que este Tribunal de Justiça se pronuncie sobre a validade da interpretação e aplicação dadas pelo Tribunal a quo às normas de direito comunitário do caso concreto.

13º. Isto porque, ainda que em determinados momentos a aplicação das normas dos tratados internacionais não tenha tido lugar de forma directa, isto é, com menção expressa dos dispositivos comunitários aplicáveis, a realidade é que (i) tal aplicação foi feita por meio de interpretações normativas do direito interno, assim como (ii) tal aplicação foi inevitavelmente feita, tendo em conta a imperatividade e hierarquia das normas comunitárias ao direito nacional, sobretudo quando respeitantes aos princípios fundamentais.

14º. O problema levantado é que, quando aplicadas no presente caso, o Tribunal a quo interpretou erradamente os preceitos dos Tratados e das diretivas que foram invocados, refletindo-se, consequentemente, na forma de condução do processo e de aplicação do direito interno.

15º. Ora, de forma extensa e detalhada, o Recorrente expôs as razões subjacentes ao pedido de reenvio prejudicial, tendo alegado, expressamente, as normas do direito da União (Tratados e Diretivas) que, na sua ótica, foram violadas pelo Tribunal a quo.

16º. Fez-se menção aos vários normativos de direito da União que atribuem competência à União Europeia em sede de Direito Penal, substantivo e adjetivo, com destaque aos artigos 2.º e 6.º do TUE, os artigos 4.º, n.ºs 1 e 2, 67.º, 82.º e 83.º do TFUE;

17º. E, ainda, se salientou os artigos 47.º a 49.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, o artigo 6.º da Directiva 2012/13/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de Maio de 2012, relativa ao Direito à Informação em Processo Penal e ainda os artigos 3.º a 6.º da Directiva 2016/343/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, que visa reforçar o direito a um processo equitativo em processo penal, fixando regras mínimas comuns relativas a certos aspetos (i) da presunção de inocência e (ii) do direito de comparecer em julgamento, por forma a fortalecer entre os Estados-Membros a confiança nos sistemas de justiça penal e assim contribuir para o reconhecimento mútuo de decisões em matéria penal e para a supressão os obstáculos à livre circulação dos cidadãos nos Estados-Membro;

18º. E, por fim, também reclamou a aplicação dos princípios gerais do Direito da União.

19º. Feitos os devidos esclarecimentos, é patente o preenchimento dos pressupostos do reenvio prejudicial nos termos requeridos, ao que acresce que, sendo facultativo para o Tribunal da Relação, o mesmo se torna obrigatório para este Supremo Tribunal de Justiça, por ser o mais elevado Tribunal na hierarquia dos Tribunais Judiciais em matéria penal.

20º. Afinal de contas, como se deduz do artigo 267.º do TFUE, a título prejudicial é o TJUE competente para decidir sobre a interpretação das normas dos Tratados levadas a cabo ao longo do Julgamento, que influenciaram na forma de execução do direito interno pela 1ª instância.

21º. Dito isso, mais do que comprovada se demonstra a intenção do Recorrente com o peticionado reenvio prejudicial, com enfoque na errada interpretação das normas dos Tratados e demais normas europeias, o que, in casu, teve graves consequências na forma de aplicação do direito interno.

22º. Concretizando, em sede de Julgamento, o Tribunal não permitiu que o Recorrente inquirisse todas as testemunhas que havia arrolado para sua defesa; e outras (que permitiu que comparecessem), coartou as perguntas que podiam ter sido feitas.

23º. E ainda a apreciação que fez dos vídeos juntos aos autos, vendo o que quer, e não o que lá está; e ainda levando as testemunhas, como sucedeu com JJ, a ter de admitir que os Arguidos eram os agressores, quando a testemunha havia declarado que os mesmos se estavam a defender de agressões que estavam a ser vítimas.

24º. Entre as faltas graves que podemos apontar inclui-se o indeferimento relativamente aos esclarecimentos sobre a perícia, dizendo que a mesma é claríssima e que o Tribunal não necessita de esclarecimentos, quando depois se arroga de uma soberba intelectual para tirar dela – entenda-se, da autópsia – erradas consequências jurídicas, no que diz respeito à (in)existência de nexo de causalidade entre a causa de morte e a concreta atuação do Recorrente.

25º. Na valoração da prova, portanto, o Tribunal a quo apenas apreciou o que precisava para condenar, em violação do princípio da presunção de inocência e consequente desrespeito ao limite objetivo à livre apreciação da prova, que está consagrado no artigo 151.º do CPP.

26º. Nas conclusões de direito, para piorar, agravou os crimes pelos quais os Arguidos vinham acusados, alterando o objeto de processo, reabriu a audiência quando tal lhe está expressamente vedado para “fazer cumprir” o art. 358.º do CPP, agiu em violação das regras de competência e convolou os crimes para crimes mais graves e para mais crimes, uma vez encerrada a audiência e terminada a produção de prova, sem que o Arguido pudesse sequer efetivamente se defender dessa convolação.

27º. Ou seja, no caso concreto, mais do que justificável que o Recorrente tenha sérias dúvidas de que a interpretação feita do direito da União, pela aplicação de várias disposições de direito interno no Acórdão proferido pelo Tribunal do Júri, respeite as disposições em matéria penal e processual penal constantes do Direito da UE, em matéria de (i) Direito à presunção de inocência, (ii) Direito a ser julgado por um Tribunal imparcial previamente previsto na lei e (iii) Direito a ser julgado através de um processo justo e equitativo, em que é dada uma efetiva oportunidade ao Arguido de organizar a sua defesa, estando em causa uma questão de aplicabilidade e de uniformidade de interpretação de direito da UE, da competência do TJUE.

28º. Isto porque, conforme é sabido, Portugal é um país integrado na União Europeia e, como tal, sujeito às suas fontes normativas.

29º. O direito a um tribunal imparcial e a um processo equitativo, enquanto princípio fundamental do direito da União a ser observado em todos os processos, vêm expressamente consagrados no §2º, primeira parte, do artigo 47º e no artigo 6º da CEDH, bem como refletidos na jurisprudência do TJUE.

30º. Em sede de Direito Penal substantivo e adjetivo, ademais, são vários os normativos de Direito da União, que ressaltam a importância dos mencionados direitos, prevendo-os expressamente, entre os quais destacamos os artigos 47.º a 49.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, o artigo 6.º da Directiva 2012/13/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de Maio de 2012, relativa ao Direito à Informação em Processo Penal e ainda os artigos 3.º a 6.º da Directiva 2016/343/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, que visa reforçar o direito a um processo equitativo em processo penal, fixando regras mínimas comuns relativas a certos aspetos (i) da presunção de inocência e (ii) do direito de comparecer em julgamento, por forma a fortalecer entre os Estados-Membros a confiança nos sistemas de justiça penal e assim contribuir para o reconhecimento mútuo de decisões em matéria penal e para a supressão os obstáculos à livre circulação dos cidadãos nos Estados-Membro.

31º. A Directiva (UE) 2016/343, em especial, visa garantir, além do mais, a presunção de inocência de qualquer pessoa constituída arguida ou suspeita de um ilícito penal pelas autoridades policiais ou judiciais.

32º. Entre outros, a Directiva estabelece direitos fundamentais dos arguidos ou suspeitos num processo penal, nomeadamente a presunção de inocência até prova em contrário, obrigando os países da União Europeia (UE) a tomar medidas para assegurar que as declarações públicas emitidas pelas autoridades públicas e as decisões judiciais (que não sejam as que estabelecem a culpa) não apresentam a pessoa como culpada, bem como, a que os países da UE devem igualmente tomar as medidas adequadas para assegurar que o suspeito ou o arguido não são apresentados como culpados, em tribunal ou em público, através da utilização de medidas de coerção física. Estabelecendo ainda que, o ónus da prova recai sobre a acusação, assim como que, o suspeito ou arguido tem o direito de guardar silêncio e de não se autoincriminar.

33º. Nesse contexto, restam explicitadas pelo Recorrente as normas de direito europeu que julga terem sido mal interpretadas (e aplicadas, por via da interpretação do direito interno) pelo Tribunal que julgou o Recorrente e que, a seu ver, justificam o reenvio prejudicial ao TJUE, em total contradição ao mencionado no Acórdão ora reclamado.

34º. Sem prescindir, necessário reconhecer, ainda, a aplicação directa das normas acima enunciadas ao sistema jurídico interno, por meio do artigo 114.º do TFUE, que faz uma consagração expressa da regra da harmonização e aproximação de legislações dos Estados Membros que, por sua vez, aliás, decorre dos princípios que instituem a própria União Europeia.

35º. O ordenamento jurídico da União Europeia é um sistema complexo, comum a todos os Estados-Membros que a ela pertencem, sendo que para além das fontes originárias e derivadas, este integra igualmente os princípios jurídicos “que ao longo dos tempos foram sendo acolhidos, elaborados ou explicitados pelo Tribunal de Justiça”.

36º. Do leque de princípios do direito da União, destaca-se o princípio do primado do Direito da União que é uma exigência do Direito europeu, em consequência de não existir nos Tratados qualquer norma de solução de conflitos e estabelece que, em caso de conflito “o direito da União se aplica com preferência sobre o direito nacional dos Estados-Membros”.

37º.Por força desse primado, articulado com o da lealdade ao direito europeu existe, desde logo, a obrigação para os Estados-Membros de não manter em vigor nem criar direito nacional (interno) contrário ao direito europeu e, ainda, de não interpretar o direito interno em desconformidade com o sentido e alcance daquele. Consequentemente impõe-se ao juiz nacional interpretar o direito nacional em conformidade com o direito europeu.

38º. Segundo o princípio da efetividade do Direito da União, as autoridades nacionais devem assegurar que, as pretensões decorrentes do Direito da União sejam tão protegidas quanto aquelas resultantes do direito nacional, o que se traduz numa ampliação dos poderes do Juiz já que, sempre que o direito nacional não ofereça um recurso efetivo ao particular, o juiz deve criar.

39º. Nestes termos, é nosso entendimento que as normas de Direito europeu são diretamente aplicáveis, bem como a determinação da competência exclusiva do TJUE para decidir se a interpretação feita das normas internas pelo Tribunal a quo é ou não compatível com aquelas.

40º. Deste modo, descendo ao caso concreto é para nós inquestionável que o Tribunal a quo, em toda a sua atuação decidiu diretamente, ou convocando interpretações normativas, em violação dos normativos citados – normas de Direito Europeu que vinculam os Tribunais nacionais.

41º. Por todo o exposto, impõe-se a revogação da ilegal retenção do reenvio prejudicial requerido perante o Tribunal da Relação, para que sejam respondidas pelo TJUE as questões prejudiciais expostas neste recurso.

42º. Passando, então, a percorrer sobre os vícios da decisão recorrida, o Tribunal a quo decidiu sobre o Recurso retido que havia sido interposto pelo Recorrente, que tinha como objeto o despacho de 1ª instância proferido a 27-02-2023, no apenso B, relativo ao procedimento de selecção dos jurados.

43º. Contudo, e em síntese, o Tribunal da Relação subscreve a argumentação exposta pelo Tribunal de 1ª instância, no sentido da necessidade de uma interpretação actualista do DL n.º 387-A/87, de 29 de Dezembro, perante os normativos relativos ao RGPD.

44º. Não obstante, ao impedir que os sujeitos processuais pudessem individualizar quem seriam os selecionados ao Júri, na medida em que apenas permitiu que fossem publicados o primeiro nome e a profissão dos mesmos, o Tribunal a quo violou frontalmente as regras do procedimento de selecção dos Jurados, mormente do artigo 12.°, n.° 1 do DL 387-A/87, que impõe a comunicação de nome, profissão e morada, e a ratio que lhe está subjacente, que é a de permitir que todos, em igualdade de circunstâncias, possam participar na escolha de um Tribunal tão imparcial quanto possível.

45º. Com isso, é evidente a ilegalidade da decisão recorrida, por violação do mencionado preceito, assim como a inconstitucionalidade da mesma, na medida em que viola o direito ao processo equitativo, plasmado no art. 20.º, n.º 4, da CRP – na vertente de ser julgado por um Tribunal imparcial (art. 207.º da CRP) –, as garantias de defesa do Recorrente, mormente o direito ao contraditório, e bem assim o art. 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da UE e o art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

46º. Ora, como consabido, no que diz respeito ao procedimento de seleção dos Jurados, os artigos 12.º e 13.º do DL 387-A/87 assumem uma importância fulcral. Afinal, é na audiência de seleção de Jurados que os sujeitos processuais poderão invocar as causas de incapacidade, incompatibilidade, impedimento, escusa ou recusa dos selecionados, devendo logo oferecer prova do que invocam, se o Tribunal entender ser necessário produzir meios de prova – artigos 6.°, n.° 1, al. b), n.° 2, 7.° e 12.°, n.°s 2, 3 e 4. 14.

47º. Para isso, clara está a necessidade de que os sujeitos processuais saibam, de antemão, quem são os seleccionados que irão comparecer nessa audiência de apuramento;

48º. Sendo de meridiano bom-senso e do conhecimento comum que não basta o conhecimento do nome (parcialmente…) e a profissão de uma pessoa para se poder afirmar a idoneidade e imparcialidade de alguém.

49º. Além disso, olvida-se o Tribunal recorrido de que os selecionados que chegam à audiência de apuramento a que aludem os artigos 12.° e 13.° são cidadãos chamados ao exercício de um dever de cidadania, dos quais oito (quatro efetivos e quatro suplentes) irão exercer funções atribuídas a um órgão de soberania;

50º. Ou seja, chamar à colação o RGPD e o direito à reserva da vida privada deverá ser feito, aqui, cum grano salis...desde logo porque é o RGPD que reconhece, como não poderia deixar de ser, que o direito à proteção de dados pessoais não é absoluto, como resulta claramente do artigo 24º e ss. da Lei nº 58/2019, de 08 de Agosto; deve ser considerado em relação à sua função na sociedade e ser equilibrado com outros direitos fundamentais, em conformidade com o princípio da proporcionalidade, nomeadamente com o direito à acção e a um Tribunal Imparcial.

51º. Numa sociedade democrática, os dados de identificação básicos dos Jurados (nome, morada e profissão) não são - nem podem ser - sigilosos!

52º. Em face de tudo quanto se expôs, é manifesto o interesse público na formação de um Tribunal do Júri em que os sujeitos processuais possam participar, invocando causas de recusa; exercício que só podem fazer se tiverem acesso aos dados pessoais que o despacho recorrido pretende omitir, e cujo acesso, na estrita medida em que é feito (nome completo, morada e profissão) em nada põe em causa qualquer norma do RGPD ou da CRP.

53º. Com efeito, por violar o direito ao contraditório, naquela dimensão de uma participação activa e eficaz durante todo o processo, a decisão recorrida deve ser imperiosamente revista por este Tribunal Superior, volvendo os autos à 1ª instância, para os devidos efeitos legais.

54º. Sem prescindir, o Tribunal recorrido também decidiu a respeito da irresignação do Recorrente, levantada em recurso, até então, retido, sobre a exclusão infundamentada das testemunhas por ele arroladas (Dra. LL, Magistrada do Ministério Público, Dr. MM, Magistrado Judicial, e NN, Jornalista), em manifesta violação das suas garantias de defesa, surpreendentemente, mantendo as decisões proferidas pela 1ª Instância.

55º. O Tribunal a quo utiliza como fundamento chave, para defender a ausência do cerceamento do direito de defesa do Recorrente pelo indeferimento das testemunhas arroladas, o art. 128.º do CPP, no sentido de que as testemunhas arroladas não possuíam conhecimento directo dos factos, motivo pelo qual deveriam, de qualquer forma, ser excluídas do rol, em atenção ao seu poder de evitar a prática de atos inúteis no processo.

56º. Não obstante, outras testemunhas que também não tinham tal conhecimento, não só foram admitidas, como foram ouvidas durante o julgamento – o que foi levantado em recurso, mas, convenientemente, a Relação se manteve silente.

57º. O objetivo do Recorrente ao arrolar as testemunhas foi amplamente por ele informado: a) com testemunhas LL, Procuradora da República e MM, Juiz de Instrução Criminal, pretende-se averiguar e esclarecer os procedimentos adotados na fase de inquérito e a razão de ser das conclusões (claramente precipitadas) do Mmo. Juiz de instrução aquando do primeiro interrogatório de arguido detido; b) com a testemunha NN, urge apurar o porquê da Jornalista ter feitos afirmações como se estivesse estado no local das agressões, tendo em conta que pela sua qualidade profissional, suas falas são suscetíveis de influenciar o público menos atento.

58º. Ora, o indeferimento da oitiva dessas testemunhas, a bem da verdade, revela uma manifesta diferença de tratamento das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa, pois, a Sra. OO, Inspetora da PJ, por exemplo, testemunha da acusação plenamente ouvida em julgamento, também não presenciou os factos – não esteve no “1” na madrugada do dia 19-03-2022 – tendo sido o OPC responsável pela investigação.

59º. De qualquer maneira, independentemente da razão de ciência, é ao Recorrente, e não ao Tribunal, que compete decidir quais as testemunhas que arrola, não estando as mesmas impedidas de testemunhar, as testemunhas têm o dever de comparecer e responder às perguntas que lhe forem colocadas, cingindo-se, obviamente, ao objeto do processo, condução essa que, no fim e como palavra soberana, caberá sempre ao Tribunal. O que não pode acontecer é que o Tribunal intervenha na escolha das testemunhas feita pelo Recorrente.

60º. Ora, há que ressaltar que, diferentemente do que tenta o Tribunal a quo defender, o artigo 311º-B do CPP não exige que a parte, seja a acusação ou a defesa, apresente as suas motivações para ter arrolado determinadas testemunhas. Pelo contrário, o artigo 128º do CPP concede uma ampla margem de seleção ao arrolante.

61º. Afinal, apenas podemos falar em um due process of law, exigido pelo Estado de Direito Democrático, quando, efetivamente, resta assegurado ao Estado a possibilidade de realizar o seu ius puniendi e, sobretudo, fica garantido aos cidadãos as garantias necessárias para os proteger contra abusos que possam ser cometidos no exercício desse poder punitivo.

62º. Por todo exposto, resta patente a violação que a decisão recorrida faz aos artigos 2º e 32º da Constituição da República Portuguesa, bem como o nº 3, do art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e do nº 3, do art. 14º do Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos, porquanto, ao indeferir o requerimento probatório apresentado pelo Recorrente, não só não assegura, mas também restringe, gravemente, as garantias de defesa no processo, impostas por aquelas normas constitucionais e internacionais e inerentes ao estatuto de qualquer arguido;

63º. E, por isso, outra não pode ser a conclusão se não a de que o Acórdão recorrido faz uma errada interpretação do artigo 39.º do CPP, ao passo que viola o direito a ampla defesa do Recorrente, e, nessa medida, deve ser reformado para que o despacho de 1ª instância seja considerado nulo, devendo ser revogado e substituído por outro que ordene a audição das testemunhas atempadamente arroladas.

64º. Ademais, algumas questões de nulidade foram suscitadas pelo Recorrente no decurso do Julgamento e que foram avaliadas pelo Tribunal a quo, mas que, à semelhança de tudo o que já exposto, merece a devida reforma por este v. Supremo Tribunal de Justiça.

65º. Começando pela decisão do Tribunal recorrido de concordar com o despacho de 1º grau que negou o uso ao computador pelo consultor forense da equipa de defesa do Recorrente, nota-se que os argumentos utilizados no Acórdão não fazem o menor sentido.

66º. Isto porque, as normas processuais penais e as normas civis, estas quando conjugadamente interpretadas com aquelas nos termos do artigo 4.º do CPP, que prevêem a possibilidade de os advogados serem assistidos por consultores técnicos no decorrer do processo e mormente na audiência de julgamento, mais não são do que a densificação na lei ordinária do princípio constitucional do direito à defesa.

67º. Para, então, sustentar a manutenção da decisão de 1ª instância, o Tribunal a quo, de forma discricionária, trata de forma equivalente o consultor técnico da defesa do arguido com jornalistas, apesar de estes nem sequer serem contemplados na lei processual penal como intervenientes acidentais, ao contrário daquele.

68º. Ou seja, ao assim decidir, o Tribunal posterga os direitos fundamentais de defesa e o da liberdade do Recorrente face aos direitos de informar e de liberdade de imprensa, que, como inúmeros arestos judiciais, quer de tribunais nacionais, quer de tribunais internacionais, repetidamente afirmam serem direitos atendíveis, mas não absolutos!

69º. Porém, o pior, e o de se pasmar, é que o Acórdão vai ao extremo de afirmar que “que no seio do nosso ordenamento jurídico, inexiste a figura autonomizável de consultor, seja da defesa, seja da acusação ….”.

70º. Ora, bastaria uma simples leitura do artigo 155º do CPP para evitar tão temerária, infeliz e errada afirmação ou um pequeno estudo sobre o regime legal de integração de lacunas previsto para o processo penal no artigo 4.º do CPP e a sua remissão no caso que nos ocupa para o disposto no artigo 480.º, n.º 3, do CPC ou para o artigo 50.º, n.º 1, do mesmo diploma, ou, ainda, um excurso pela jurisprudência (cfr., v.g., acs do TRC de 28-11-2018, proc. 1864/17.4T8LRA-A.C1, e de e de 23-11-2021, proc. n.º 486/21.0T8VIS-B.C1), para se evitar asserções tão desprovidas de fundamento.

71º. Resulta, assim, que o acórdão recorrido erra manifestamente quanto aos pressupostos em que se baseou para negar provimento ao recurso nesta parte, sendo a sua decisão manifestamente ilegal, discricionária e impertinente, devendo por isso ser revogada.

72º. Ainda sobre esse tema, foi suscitada também a nulidade da decisão, por incompetência, tendo em conta que a mesma foi tomada por meio de despacho singular da MMª Juiz Presidente.

73º.Assim como também se arguiu a nulidade, pela mesma razão, do despacho pelo qual o Tribunal resolveu ouvir as declarações da testemunha da acusação, Sra. Inspetora da PJ, que, dessa vez, foi proferido com participação do Tribunal do Júri.

74º. Como é bom ver, ambos os despachos cabiam na competência do Tribunal Colectivo, estando, claramente, viciados.

75º. Quanto ao primeiro caso, do despacho que proibiu o uso do computador, observa-se que o Tribunal a quo, ao fundamentar a sua decisão, sequer se atentou para os argumentos deste Recorrente.

76º. Isto porque, em momento nenhum afirma o Recorrente que tal matéria deveria “competir a um colectivo composto por 7 pessoas”, como consta da decisão recorrida; Pelo contrário, o que o Recorrente vem, a todo tempo, defender é que cabia ao Tribunal Colectivo tomar tal decisão, ou seja, àquele composto pelos três magistrados togados, e não ao Tribunal do Júri.

77º. Necessário se torna assentir, portanto, que o que está aqui em causa, ao contrário do que consta da decisão recorrida, é a incompetência da Mma. Juiz Presidente do Colectivo para decidir, de forma singular, sobre as questões que colidem com os direitos de defesa do Recorrente, assim como sobre as questões de prova no decurso do julgamento e, ainda, sobre a arguição da nulidade por incompetência arguida em audiência.

78º. Ora, parece olvidar-se o Tribunal a quo de que todas as questões abrangidas pelas “questões prévias e incidentais” e relacionadas com a produção de provas são da competência exclusiva do Tribunal Colectivo; Por isso, também as decisões sobre supostas violações dessas questões prévias são de competência exclusiva deste Tribunal, especialmente se entrarem em conflito com os direitos fundamentais.

79º. Da mesma maneira, há de se ressaltar que são da competência exclusiva do Tribunal Coletivo todas as decisões relacionadas com a aquisição probatória, nomeadamente, durante a prestação de depoimento, sobre se as testemunhas devem, ou não, ser autorizadas a depor.

80º. Equivoca-se gravemente o Tribunal recorrido ao equivaler a competência dos jurados para valorar as provas e para participar das inquirições das testemunhas com a - ilusória - competência dos mesmos para realizar a análise jurídico-procedimental de questões atinentes à produção de provas. Aceitar isso seria completamente absurdo!

81º. O que resulta da correta interpretação da lei – e nessa interpretação deve o intérprete obedecer aos comandos do artigo 9.º - é que a autorização aos jurados em matéria de culpabilidade se cinge às questões concretas, não à apreciação dos meios de prova. A apreciação destes está reservada para o Presidente ou para o tribunal coletivo.

82º. Por conseguinte, verifica-se uma errada interpretação dos dispositivos legais que disciplinam a atuação e poderes dos jurados na audiência, em especial o artigo 2º, nº 3 do Regime de Júri em Processo Penal e dos artigos 368º e 369º do CPP, nos quais não cabe uma suposta competência daqueles para decidir sobre a admissibilidade de requerimentos de prova.

83º. Deste modo, resulta claro que a decisão proferida merece reforma, a fim de que seja reconhecido o vício de incompetência das decisões mencionadas, havendo que ser declarada as suas respetivas nulidades insanável, com as legais consequências, em atenção ao artigo 119º, alínea e), do CPP.

84º. Sem prescindir, como consabido, o art. 127.º do CPP anuncia um princípio basilar em matéria probatória, dispondo que «Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente»;

85º. Doutrina e jurisprudência são unânimes em afirmar que o poder do julgador na livre apreciação da prova tem limites, que a motivação deverá ser sempre objectivável, susceptível de controlo, e tendente a uma busca da verdade processualmente válida, ou seja, com respeito pelas regras tendentes à aquisição probatória;

86º. O princípio da presunção de inocência, com assento constitucional no art. 32.º, n.º 2, da CRP, constitui um limite imanente ao princípio da livre apreciação da prova, proibindo que o Tribunal mantenha uma postura parcial, tendenciosa, e que presuma a culpabilidade dos Arguidos, em vez da sua inocência, partindo de premissas que naturalmente levarão à sua condenação, em vez de premissas neutras.

87º. No caso concreto, o Tribunal a quo, em consonância com a postura adotada pelo Juízo de 1ª instância, inverteu toda a lógica da metodologia que se espera de um Tribunal imparcial: primeiro, o Tribunal formou a sua convicção, para, somente depois, apresentar os factos provados e valorar a prova consoante era possível encaixar na decisão que já tinha tomado, numa clara violação aos artigos 127.º do CPP e 32.º da CRP, 48.º e 49.º da CFDUE e 6.º da Diretiva 2016/343.

88º. É manifesto, in casu, que a livre apreciação da prova, e até do relatório pericial, que encerra um juízo técnico-científico, foi muito além daquilo que é suposto, inclusive para dar por provado, com apelo a generalidades, factos relativamente aos quais não foi produzida uma única prova.

89º. Ora, o que o Tribunal faz é valorar as provas conforme lhe interessa para condenar… afinal, quanto às supostas agressões do Recorrente a EE – pontapés, a verdade é que nenhuma das provas produzidas em sede de Julgamento permitem, de todo, que se chegue a tal conclusão, de maneira que, pelo princípio da presunção da inocência, deveria tal facto ter sido dado como não provado.

90º. O vídeo sobre esse segmento revela imagens totalmente inconclusivas com relação ao desferimento, ou não, de qualquer agressão, após EE já estar no chão e, obviamente, sobre o suposto local das agressões;

91º. O relatório de autópsia, por sua vez, não faz qualquer menção a lesão na zona da cabeça, não tendo o Médico sequer sido capaz de indicar qual a agressão sofrida pela vítima causadora da morte, tampouco qual a zona do corpo havia sido atingida, diante da notória insuficiência de dados e informações lhe fornecidos;

92º. Inclusive, por esse motivo, tentou, incansavelmente, o Recorrente que o Perito médico-legista prestasse esclarecimentos em audiência de julgamento, mas sem qualquer sucesso, visto que tais declarações foram sucessivamente indeferidas pelo Tribunal de 1ª instância.

93º. Como se não fosse suficiente, nenhuma das testemunhas ouvidas em julgamento afirmou ter visto quaisquer pontapés, nem sequer mencionou a existência dos mesmos, com a exceção de PP, mas que diz categoricamente não saber dizer quem desferiu o pontapé que alega ter visto.

94º. Pelo que, da análise objetiva, isenta e séria da prova, em respeito ao princípio do in dúbio pro reo, diante da dúvida inultrapassável sobre qualquer efectiva agressão por parte do Recorrente a EE, sobretudo no que diz respeito se tal agressão foi, ou não, consumada e se gerou qualquer resultado, impunha ao Tribunal recorrido que decidisse a favor do Recorrente.

95º. Não obstante, o que se observa é que, de forma desesperada, com apoio na decisão de 1ª instância, a decisão recorrida limite-se à informação, por de mais genérica, que a morte de EE foi causada pela atuação dos Arguidos.

96º. Ora, acontece, porém, que a atuação de um não permite condenar o outro. É evidente que, num caso grave como o presente, que pode implicar, como se vê até aqui, condenações gravíssimas, as condutas de cada interveniente nos factos precisam de ser devidamente individualizadas e analisadas objetivamente, para que se possa concluir, com segurança, a culpabilidade, ou não, de cada um dos sujeitos processuais e, se for o caso, definir-lhes a pena.

97º. Além do mais, o Tribunal acabou por entrar abusivamente no campo das questões que cabiam apenas ao médico-legista responder, uma vez que não tem conhecimentos técnicos nem científicos para concluir que a atuação do Recorrente é apta a provocar as lesões descritas na vítima no momento da sua admissão no Hospital e nem permitiu que fossem pedidos esclarecimentos ao perito que lhe auxiliassem a alcançar essa conclusão.

98º. Assim, o Tribunal a quo, decalcando o Acórdão de 1ª instância, caiu na falácia do “paradigma da simplificação” e rendeu-se ao império dos princípios de disjunção, de redução e de abstração; isolou conhecimento, desprezou informação, reduziu o complexo ao simples e a hiperespecialização do Colectivo de Juízes (área do Direito) rasgou e retalhou o tecido complexo da ciência médico-legal.

99º. E, com isso, atuou o Tribunal a quo em patente violação ao princípio da livre apreciação da prova, especialmente no disposto no artigo 163º do CPP, segundo o qual o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador (n.º 1), sendo ainda certo que sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.

100º. No caso sub judice, em síntese, o Tribunal a quo descartou ab initio a “outra verdade possível”, convencendo-se desde logo que somente os Arguidos eram detentores de uma força fora do normal, pela função que exerciam e que, por praticarem um desporto de luta, tinham gosto pelo combate e eram agressivos.

101º. E, pior, não realizou uma análise global da prova produzida, valorando somente aquela que indiciava a responsabilidade criminal dos arguidos e não todas as outras que afastam a responsabilização dos arguidos.

102º. Se tivesse sido valorada toda a prova tendente à inocência do Recorrente, teria de ser, forçosamente, decidida a absolvição.

103º. Afinal, como se bem sabe e já se defendeu, em caso de dúvida na apreciação da prova (dúvida objetivamente existente), a decisão nunca pode deixar de ser favorável ao Recorrente;

104º. Pelo que, por respeito à presunção de inocência, devida a qualquer arguido, exigia-se que a decisão condenatória assentasse na demonstração positiva da culpa dos arguidos, em concreto do Recorrente, e fosse obtida sem sacrifício do princípio da presunção de inocência e das suas garantias e direitos de defesa, o que de todo não sucedeu, pelo que deverá ser revogada e substituída por outra que absolva o Recorrente.

105º. Sem prescindir, necessário, também, demonstrar a patente violação aos artigos 358º e 359º da decisão recorrida, ao alterar a circunstância do homicídio de EE, finda a produção de prova.

106º. Relembremos que o Recorrente vinha acusado de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p.p. pelos art. 131º, 132º, nº 2, al. L) do CP, na pessoa da vítima EE;

107º. Porém, foi condenado, ao final, por um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p.p. pelos art. 131º, 132º, nº 1 e nº 2, al. C) do CP.

108º. Ora, não é preciso muito esforço para se concluir, diferentemente do que sustenta o Tribunal recorrido, que a alteração da qualificação jurídica consubstancia uma verdadeira alteração substancial;

109º. Não só porque passam a estar em causa novas realidades, como porque onera de sobremaneira a posição do Recorrente, sem que lhe tenha sido dada efetiva oportunidade de defesa, revelando-se, nessa medida, além de ilegal, inconstitucional.

110º. O que se constata é que o Tribunal de 1ª instância, perante a evidência da impossibilidade de dar como provado que o crime foi praticado contra agente de autoridade, decidiu – de forma arbitrária e apenas para manter a qualificação do crime imputado ao Recorrente – alterar a alínea qualificativa da l) para a c), do n.º 2, do artigo 132.º do CP.

111º. É evidente que a alteração da qualificativa, além de ser totalmente injustificada, não é tão despicienda para a defesa do Recorrente, como tenta o Tribunal a quo perpassar: em momento nenhum do julgamento o Recorrente foi confrontado com a circunstância de ter agredido uma pessoa particularmente indefesa, pelo que não exerceu qualquer defesa relativamente a esse “facto”, ou a essa realidade e/ou característica da vítima, para ser mais rigoroso.

112º. Ou seja, a qualificação da vítima como pessoa particularmente indefesa, finda a produção de prova, consubstanciou uma total decisão surpresa, não compaginável com a estrutura acusatória imposta pela Constituição e pelo direito europeu, aqui muito em concreto pelo artigo 6.º da Diretiva 2012/13/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho, consubstanciando, como já se disse, uma alteração substancial dos factos, ou, pelo menos, da percepção dos mesmos, descritos na acusação.

113º. Destarte, outra conclusão não há como se chegar: a alteração da circunstância qualificativa do crime sobre EE levada a cabo pelo Tribunal a quo, apesar de sublinhar até à exasperação que “os factos permanecem intocados!”, como que seja dogma para distinguir alteração permitida de alteração proibida, é uma verdadeira alteração substancial, não só porque passam a estar em causa novas realidades fácticas que até então NÃO FORAM OBJETO DO PROCESSO, como porque onera de sobremaneira a posição do Arguido, e nessa medida, tal alteração é ilegal e inconstitucional, o que é amplamente sustentado pela doutrina nacional, bem como pelas normas de direito comunitário.

114º. Por tudo quanto ficou exposto, a alteração comunicada, produzida toda a prova e já encerrada a audiência, e que possibilitou condenar o Recorrente, nos termos em que o foi, pelo crime de que é vítima EE, viola o disposto nos artigos 358.º e 359.º do CPP, em conjugação com o artigo 1.º, alínea f), do mesmo diploma, bem como as garantias de defesa do Arguido acolhidas no artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa, no art. 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), no artigo 6.º, n.º 3, al. b), da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) e no artigo 6.º, n.º 3 e 4, da Diretiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2012, relativa ao direito à informação em processo penal, mormente a estrutura acusatória do processo penal e bem assim o direito do Arguido de conhecer, atempadamente, os crimes que lhe são imputados, incluindo a sua qualificação jurídica, para que, em consonância, possa preparar e exercer a sua defesa.

115º. Sendo desconsiderado, por tudo quanto se expôs até aqui, a alteração “da qualificação jurídica” operada, não poderá o Recorrente ser condenado um crime de homicídio qualificado, por referência à alínea c), do n.º 2, do artigo 132.º do CP, na forma consumada contra EE, mas, no máximo, por um crime de homicídio qualificado, por referência à mesma alínea l), do n.º 2, do artigo 132.º do CP, pois são esses os crimes (em sentido histórico e jurídico) que consubstanciam o objeto do processo, e foi por referência aos mesmos que o Recorrente delineou e exerceu a sua defesa.

116º. Adicionalmente a todo o exposto, a decisão recorrida incorre também num errado enquadramento jurídico dos factos.

117º. Isto porque, ao Recorrente foi imputado um crime de homicídio qualificado na pessoa da vítima EE, p.p. pelo artigo 131º do CP, de maneira que, como consabido, nos termos do artigo 13º do Código Penal só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos, especialmente previstos na lei, com negligência.

118º. Descendo ao caso concreto, constata-se, da motivação da convicção do Tribunal, que tal crime de homicídio vem imputado a título de dolo eventual.

119º. Ocorre, porém, que, diferentemente do que consta do Acórdão recorrido, da prova produzida em audiência de julgamento, não resultaram quaisquer elementos sólidos e inequívocos que demonstrem o dolo de homicídio.

120º. Ora, para a conclusão exarada na decisão recorrida, o Julgador invoca os relatórios sociais para comprovar o elemento subjectivo do tipo de crime, em manifesta violação do art. 370.º, que permite a obtenção de relatório social para determinação da sanção.

121º. Nada mais errado (!), tendo em conta que o dolo da atuação corresponde a elemento interno, intelectual e volitivo, que, de forma alguma, pode fundamentar-se em opções de vida anteriores do Agente, mas apenas retirar-se do comportamento do Recorrente manifestado nos factos.

122º. É de se salientar: a intenção de matar pertence, única e exclusivamente, ao foro íntimo e psicológico da pessoa, só a ela se chegando através de factos externos ao agente, manifestados no facto, concludentes desse nexo psicológico.

123º. A verdade é que o entendimento do Tribunal quanto aos crimes de homicídio pelos quais condenou o Recorrente é contrariado por toda a prova produzida em juízo e pela própria dinâmica dos acontecimentos, o que apenas deixa por transparecer, ainda mais, o quanto os termos da decisão foram escritos de forma conveniente à condenação do Recorrente, em patente violação ao princípio da presunção da inocência, como já se defendeu.

124º. Se analisada friamente toda a situação envolvida no caso em apreço, a única conclusão possível de alcançar é a de que inexiste – de qualquer das partes – uma intenção de matar, mas apenas uma intenção de ferir, magoar, como defesa perante uma ofensa anterior, em contexto de desavença, sendo que nenhuma outra prova se vislumbra nos autos que demonstre intenção distinta, pelo que ao Recorrente não pode ser imputada a prática de um qualquer crime de homicídio.

125º. Aliás, veja-se que a própria descrição factual operada nos acórdão, seja de 1ª ou de 2ª instância, refere sempre - e unicamente - que os arguidos “atuaram com a intenção concretizada de molestar fisicamente os ofendidos”, não havendo um único elemento do qual se possa retirar, ainda que a título eventual, um dolo de morte por parte do Recorrente.

126º. Ademais, o fundamento da decisão recorrida, ao avalizar os termos da decisão de 1ª instância, no sentido de que o dolo eventual estaria caracterizado pelo facto de o Recorrente ter – tentado – pontapear a cabeça da vítima, também não merece qualquer acolhimento… É da experiência comum que numa agressão nos moldes que são patentes nos vídeos visualizados em audiência não se planeia qual a parte da zona a atingir, pois, todos os intervenientes estão em movimento, a vítima não fica parada, não tendo o que quer atingir o outro, a noção de qual a parte corporal que poderá ser alvo da agressão.

127º. Por isso, outra conclusão não pode ter lugar se não a que existe uma errada subsunção jurídica ao crime de homicídio, pois a morte de qualquer pessoa não foi intenção direta, necessária ou sequer eventual do Recorrente.

128º. A única admissão possível perante os dados probatórios é que o Recorrente tenha agido com dolo para as ofensas corporais, mas nunca para a morte, não se conformando com esse resultado. Outro entendimento que não este é violador do princípio “in dubio pro reo”.

129º. Destarte, deve o Recorrente ser absolvido do crime de homicídio ao que foi condenado quanto à pessoa de EE, por total ausência de intenção de provocar a morte deste, ainda que a título eventual.

130º. Sem prescindir, mas meramente por cautela de patrocínio, cumpre demonstrar o não preenchimento dos pressupostos do tipo qualificado de crime, mormente através da circunstância descrita na alínea c) do n.º 2 do artigo 132.º do CP, no caso em apreço.

131º. Isto porque, do que se denota do posicionamento da doutrina sobre o artigo 132º do CP é que o nº 2 do dispositivo não tem funcionamento automático, podendo apenas operar quando as circunstâncias neles expostas revelem um especial grau de culpa.

132º. Por outro lado, o recurso a circunstâncias não enumeradas no n.º 2, ou não é permitido ou, a ser, tem que corresponder a situações substancialmente análogas, e que tenham sempre o mínimo de correspondência com as situações enumeradas no n.º 2, sob pena de violação do princípio da tipicidade e da legalidade.

133º. Resulta, assim, que a qualificação do homicídio só pode ser feita olhando para o caso concreto e para os fatores que motivaram a atuação do agente.

134º. Dito isso, atentemos, então, à alínea c), da sua leitura em conjunto com o estudo da doutrina e jurisprudência sobre o tema, conclui-se, indubitavelmente, que, para que esta condição qualificativa possa operar, é necessário que a particular vulnerabilidade da vítima resulte de uma das condições que a lei aponta: idade, doença, deficiência ou gravidez, e que, revelando uma especial censurabilidade, o agente, delas sabendo, se determine ainda assim a provocar a morte de uma pessoa naquelas condições.

135º. Ressalta-se que este venerando STJ já se manifestou anteriormente sobre o não cabimento desta circunstância qualificativa em casos com uma relevância de violência muito maior, como, por exemplo, no caso em que a vítima se encontrava no chão após atuação do Arguido, este deu pontapés na cabeça, no âmbito de uma agressão sexual.

136º. Nesse sentido, resulta à saciedade que a aplicação que o Tribunal recorrido faz da al. c), do n.º 2, do art. 132.º, para agravar o crime de homicídio não encontra qualquer justificação no caso concreto, por total ausência de demonstração dos factos em que a especial censurabilidade, revelada pela particular vulnerabilidade da vítima, é penalmente relevante: idade, doença, deficiência ou gravidez.

137º. Atente-se que estas circunstâncias, para além de como é óbvio terem de ser provadas, têm de ser pré-existentes à atuação do Arguido, pois, só assim, será possível revelar um especial grau de culpa, quando este, sabendo da vulnerabilidade da vítima, se determinou, ainda assim, a atuar contra ela.

138º. Ora, sobre isso, urge desconstruir: EE era Agente da PSP, não se comprovou a sua idade e nem o seu estado de saúde, de maneira que apenas sabemos que, à data dos factos, “estava de folga” e não de baixa e, parafraseando o Tribunal de 1ª instância era um jovem saudável. Não foi feita qualquer prova de que padecesse de doença ou incapacidade. Pelo contrário, tinha estado a divertir-se, juntamente com os seus amigos, em ambiente noturno, após jantar convívio, até cerca das 6h da manhã. Além do mais, agrediu antes de ser agredido, despoletando a reação de AA que lhe dá um soco que o deita ao chão.

139º. Assim, o Recorrente entende que, sob pena de repetir uma interpretação dos artigos 132, n.º 1 e 2, do CP que já foi declarada inconstitucional, tendo em conta os factos provados, não poderá considerar-se, em qualquer caso, estarmos perante a circunstância qualificativa prevista na alínea c) do n.º 2 do art. 132.º.

140º. Feitas todas essas considerações, resta pugnar pela necessária reponderação da medida concreta da pena, havida por excessiva e desproporcional, seja se considerada a errada subsunção jurídica levada a cabo pelo Tribunal a quo, seja tão somente se considerados os princípios norteadores da fixação da pena.

141º. Como consabido, a determinação da medida da pena, dentro dos limites da lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (arts. 71º, nº1 e 40º, nº 2, do CP), vista enquanto juízo de censura que lhe é dirigido em virtude do desvalor da ação praticada (arts. 40º e 71º, ambos do Código Penal).

142º. E, na determinação concreta da medida da pena, como impõe o art. 71º, nº 2, do Código Penal, o tribunal tem de atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depõem a favor do agente ou contra ele, designadamente as que, a título exemplificativo, estão enumeradas naquele preceito, bem como as exigências de prevenção que no caso se façam sentir, incluindo-se tanto exigências de prevenção geral como de prevenção especial.

143º. Trazendo estes requisitos ao caso concreto, a) Quanto a gravidade dos factos praticados pelo Recorrente, apesar de significativa, tem como concorrente a conduta dos demais envolvidos na contenda, bem como é patentemente atenuada pelo facto de ter sido o Recorrente, por duas vezes (BB e EE), atingido à traição, defendendo-se, a partir daí; b) Quanto a gravidade das consequências do facto, em que pese - com todo respeito e pesar - se reconheça o falecimento de EE, não há prova concreta de que foi a conduta do Recorrente que levou a tal resultado; c) No que diz respeito à intensidade do dolo ou negligência, como já se argumentou, em momento algum do julgamento, comprovou-se a existência do dolo de homicídio, mas tão somente, no máximo, a intenção de ferir, magoar, como defesa perante uma ofensa anterior; de qualquer forma, ainda que assim não se considere, a decisão recorrida, considerou que o elemento volitivo presente na conduta do Recorrente foi o dolo eventual, que constitui a modalidade mais indireta e menos intensa, de maneira que a culpa do Recorrente, enquanto reflexo da ilicitude, não pode ser tida como muito elevada; d) Quanto aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou os motivos que o determinaram, mais uma vez, torna-se inevitável ponderar que foi o Recorrente quem foi atacado primeiro, de maneira que toda a sua conduta a partir dali foi movida com a única e exclusiva intenção de fazer cessar quaisquer novos ataques à sua integridade física, e bem assim, que a outra parte na contenda era muito maior em número, o que espoletou no Recorrente um sentimento de perigo que o fez reagir; e) Sobre as condições pessoais do Recorrente, haverá sempre que ter em conta a idade e a descrição do jovem como um exímio profissional, oriundo de uma família humilde e trabalhadora, e um atencioso e carinhoso filho, irmão e namorado; f) Por fim, quanto às condutas do Recorrente posteriores ao crime, restou demonstrado pelos depoimentos prestados, o quanto a notícia do falecimento de EE surpreendeu o Recorrente, manifestando sentimentos de preocupação e consternação, assim como o abalou psicologicamente, comprovando a total ausência de intenção de matar do Arguido, ainda que revestida sobre a modalidade do dolo eventual; além disso, o Recorrente dirigiu-se, sem qualquer oposição, a base do ..., sendo cooperativo a todo o momento com a investigação.

144º. Na tradução numérica das considerações antecedentes, haverá que localizar a pena perto do limite mínimo da moldura penal abstrata, pelo que não há como concordar com a medida da pena atribuída ao Recorrente, por não ser justa e adequada.

145º. Isto, em primeiro lugar, porque, como já se defendeu, o crime cometido sobre EE não é, de todo, o de homicídio qualificado, mas, sim, o de ofensa à integridade física agravada pelo resultado morte ou, quando muito, o de homicídio simples;

146º. De maneira que, em qualquer dessas situações, entende-se que a pena a ser aplicada ao Recorrente deve se encontrar situada abaixo da linha média da pena, correspondendo a uma pena equivalente a 20% da moldura penal admitida ao crime que vier a lhe ser imputado.

147º. Caso, remotamente, no entanto, se entenda manter a condenação por homicídio qualificado, o que aqui se considera apenas por dever de patrocínio, temos que a moldura penal abstrata prevista para o crime de homicídio qualificado é de 12 a 25 anos de prisão.

148º. Mais uma vez considerando os critérios norteadores a que aludem os arts. 71º, nºs 1 e 2, e 40º, nº 1 e 2, do Código Penal, deve a pena a ser fixada também se situar abaixo da linha média da pena, correspondendo, no máximo, a uma pena equivalente a 10% da moldura penal admitida ao crime, isto é, observando um limite de 13 (treze) anos.

149º. Com efeito, apenas com tais alterações na medida da pena é que a mesma se afigurará justa, necessária, adequada e proporcional ao caso concreto.

150º. Por fim, resta ao Recorrente apenas suscitar a nulidade da decisão de condenação nos pedidos de indemnização civis formulados pelo MP em representação do Estado, pelo Centro Hospitalar Lisboa Central EPE., e pelos Demandantes HH e II.

151º. Isto porque, mais uma vez, foram inobservados pelo Tribunal recorrido as regras de competência do Tribunal do Júri, cabendo ao Jurados intervir apenas na decisão das questões da culpabilidade e da determinação da sanção, conforme decorre do artigo 2.º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 387-A/87, de 29 de dezembro;

152º. Enquanto cabe exclusivamente ao Colectivo que compõe o Tribunal do Júri a resolução das questões prévias ou incidentais, a que se alude no artigo 368.º, n.º 1 do CPP.

153º. O princípio da adesão, diferentemente do que tenta o Tribunal recorrido argumentar, visa regular tão somente a forma de processamento dos pedidos cíveis nos casos penais;

154º. Ou seja, o facto de a norma penal definir o sistema da adesão obrigatória ao pedido de pedido de indemnização civil emergente do crime não implica a modificação das normas de competência de julgamento;

155º. Uma coisa não se confunde com a outra… Uma é referente ao processamento do pedido cível no processo penal, outra diz respeito ao Tribunal competente para o julgamento de cada matéria levantada ao longo de tal processo – tema esse sobre o qual, como já se mostrou, a Lei é extremamente clara.

156º. Deste modo, verifica-se no presente caso relativamente à decisão do pedido de indemnização cível foram violadas as regras de atribuição de competência do Tribunal de Júri, conforme decorre dos artigos 2.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 387-A/87, de 29 de dezembro, em leitura conjugada com os artigos 13.º, 368.º e 369.º do CPP, o que configura uma nulidade insanável, nos termos do artigo 119.º, alínea e) do CPP, devendo essa nulidade ser declarada, com as legais consequências.

Termina pedindo que o recurso seja julgado totalmente procedente, e, em consequência:

- ser o Acórdão revogado na parte em que indeferiu o Incidente de Reenvio Prejudicial, e substituído por outro que, ao abrigo do artigo 267.º do TFUE, admita tal incidente, submetendo ao Tribunal competente as questões formuladas em sede de motivação, com as legais consequências;

- ser o Acórdão recorrido declarado nulo e substituído por outro que supra os vícios em causa, nomeadamente, que supra a violação das regras do procedimento de selecção dos Jurados, devendo os autos ser remetidos à 1ª instância para que seja observado o procedimento de seleção tal como se encontra legalmente determinado;

- ser declarada a errada interpretação e aplicação do artigo 39º do CPP, devendo ser o despacho recorrido revogado e substituído por outro que ordene a audição das testemunhas atempadamente arroladas;

- ser declarada a inobservância do artigo 368.º, n.º 1, do CPP, para que seja reconhecido o vício de incompetência das decisões de 1ª instância mencionadas, e consequentemente declarada a nulidade insanável, em atenção ao artigo 119º, alínea e), do CPP;

- Ser declarada a violação do princípio da presunção de inocência na livre apreciação da prova, para que se absolva o Recorrente dos crimes de que vem condenado;

Sem prescindir, à cautela,

- que o Acórdão recorrido seja reformulado e substituído por outro que:

(i) desconsidere a “alteração da qualificação jurídica” operada pelo Tribunal a quo, por manifestamente ilegal e inconstitucional, limitando a eventual condenação do Recorrente aos crimes que consubstanciam o objeto do processo;

(ii) absolva o Recorrente do crime de homicídio em que foi condenado quanto à pessoa de EE, por total ausência de intenção de provocar a morte deste, ainda que a título eventual.

Alternativamente, à cautela,

(iii) afaste a aplicação da circunstância qualificativa prevista na alínea c) do n.º 2 do art. 132., tendo em conta os factos provados no caso concreto.

Consequentemente,

(iv) condene o Recorrente a uma pena justa, necessária, adequada e proporcional ao caso concreto;

(v) por fim, que reconheça e declare a nulidade insanável da decisão no que concerne à condenação do Recorrente nos pedidos de indemnização civil, por incompetência do Tribunal do Júri para a decisão, nos termos do artigo 119.º, alínea e) do CPP, com as legais consequências.

4. Na resposta aos dois recursos o Ministério Público na Relação, tendo em atenção as questões colocadas por cada um dos recorrentes, concordou com a decisão recorrida, pugnando pela sua manutenção e pela improcedência daqueles.

5. Subiram os autos a este STJ e, o Sr. PGA emitiu parecer, acompanhando a posição do Ministério Público e sustentando, em síntese:

-Os recorrentes não formularam conclusões no respeito pela lógica da disposição processual-penal pertinente;

-É de rejeitar o presente recurso (recorrente GG):

No que toca à impugnação da decisão recorrida na parte em que rejeitou um dos recursos interlocutórios;

No que se refere à impugnação da decisão recorrida na parte em que rejeitou julgou improcedentes os restantes recursos interlocutórios;

-O reenvio prejudicial não constitui um mecanismo de controlo de validade do direito interno;

-O cumprimento da disposição do art. 358º/3 do Código de Processo Penal pode ter lugar após declarada encerrada a discussão e é da competência do Tribunal do Júri, e não apenas dos três Juízes togados;

-Ponderar e decidir se o agente tirou a vida a pessoa particularmente indefesa constitui uma avaliação de natureza jurídica, atinente, pois, à questão-de-direito, pelo que a sua comunicação em sede de alteração da imputação constitui uma “alteração da qualificação jurídica”, e não “alteração substancial dos factos”;

-A violação do in dubio pro reo susceptível de ser avaliada pelo STJ, pressupõe que, num estado de dúvida insanável no julgamento da questão-de-facto, o julgador decida em desfavor do arguido;

-Constando da matéria-de-facto provada a relativa:

À acção típica pautada pela decisão e execução conjuntas (domínio conjunto do facto),

À coprodução do resultado morte,

À concausalidade,

A comum representação e conformação com o resultado morte (dolo eventual),

Resulta inviável discutir em sede de revista a prática do crime de “homicídio”;

-Está particularmente indefesa, mormente por doença (embora traumática e provocada), a vítima que, depois de atirada chão, a soco e a pontapé, e já incapaz de reagir, procurando defender-se ou fugir, continua a ser sovada da mesma maneira, mormente na cabeça e região torácica, até à morte;

-O perdão decretado pela L 38-A/2023, de 02/08, no caso de condenação em cúmulo jurídico, incide sobre a pena única;

O tribunal do júri, e não apenas os juízes togados que o integram, é o competente para julgar o pedido de indemnização cível.

Conclui que deverão os recorrentes ser notificados para formularem conclusões no respeito pela lógica da disposição processual-penal pertinente, sob pena de rejeição do recurso ou, se assim não se entender, deverá ser rejeitado o recurso interposto pelo recorrente GG no que toca à impugnação da decisão recorrida na parte em que rejeitou e julgou improcedentes os recursos interlocutórios, por inadmissibilidade legal e deverão, no restante, os presentes recursos ser julgados não providos e improcedentes, sendo de manter os termos da decisão recorrida.

6. Ao Parecer do Sr. PGA, apenas respondeu o arguido/recorrente AA, discordando da posição ali sustentada, mantendo o alegado no recurso, tendo repetido alguns argumentos anteriormente invocados.

7. Após distribuição para sorteio de adjuntos entretanto jubilados, no exame preliminar a Relatora ordenou que fossem colhidos os vistos legais, tendo-se realizado depois a conferência e, dos respetivos trabalhos, resultou o presente acórdão.

II. Fundamentação

8. Factos

Consta da decisão sobre a matéria de facto do acórdão da 1ª instância, confirmada pelo Acórdão da Relação de 25.10.2023, o seguinte:

A decisão proferida pelo tribunal “a quo” deu como provados os seguintes factos:

Da acusação:

I

2.1.1 Em março de 2022, os arguidos AA e GG eram ambos militares da ... Marinha, ....

2.1.2 Em virtude desse facto tiveram formação militar na ... Marinha – ..., que lhes permitiu adquirir e possuir conhecimentos de defesa pessoal e preparação física bastante acima da média.

2.1.3 Acresce que o arguido GG é praticante da modalidade de ... amador, tendo sido inclusivamente campeão de ... amador em 2021.

2.1.4 No dia 19 de março de 2022, durante a madrugada, os arguidos AA e GG, juntamente com amigos, entre os quais KK e QQ, deslocaram-se à discoteca 1, sita na ..., em ..., e aí permaneceram a conviver, sendo que também nesse local se encontrava RR.

2.1.5 Pelas 05h49 da madrugada de ... de ... de 2022, quando os arguidos e os amigos que o acompanhavam se encontravam na pista de dança do 1.º piso da discoteca 1, por motivos desconhecidos, o arguido GG desferiu um empurrão e uma cabeçada no ofendido BB.

2.1.6 Em ato continuo um indivíduo caucasiano não identificado interveio na contenda em curso e desferiu ao ofendido BB um murro no rosto.

2.1.7 O segurança da discoteca 1, SS, de forma a tentar restabelecer a calma e evitar outros conflitos, acompanhou o ofendido BB à saída, passando ambos previamente pela casa de banho para permitir que o ofendido limpasse o rosto, que sangrava abundantemente na sequência das agressões sofridas.

2.1.8 Em momento não concretamente apurado, mas próximo das 05h58m21, TT, amigo do ofendido BB, saiu da discoteca 1 e logo de seguida o ofendido BB saiu também ele da discoteca 1.

II

2.1.9 No entanto, quer TT quer o ofendido BB permaneceram junto à entrada da Discoteca, conversando e fazendo alusões ao ferimento que o ofendido tinha na cabeça, demonstrando indignação pelo que se tinha passado no interior do estabelecimento.

2.1.10 Nessa mesma madrugada, após um jantar convívio entre agentes da Polícia de Segurança Pública, deslocaram-se à referida discoteca 1 os ofendidos FF, CC, DD e a vítima EE, todos agentes da PSP; e também ali se deslocaram UU e VV, e aí permaneceram a conviver desde as 04h00-05h00 até cerca das 06h15 da madrugada de 19 de março.

2.1.11 Os agentes da PSP CC, VV, FF e EE saíram da Discoteca entre as 06h16m53 e as 06h19m38 horas, permanecendo perto, mas já no outro lado do passeio, enquanto aguardavam a saída dos colegas UU e DD, para posteriormente apanharem um UBER que os transportasse às residências, na localidade da ....

2.1.12 Instantes depois, pelas 06h19m39 (horas do sistema de videovigilância da discoteca 1), saíram do mesmo estabelecimento os arguidos AA e GG, e logo de seguida KK e QQ.

III

2.1.13 Pelas 06h19m52 horas, o ofendido BB, que esperava à porta da Discoteca a saída do arguido GG e do outro indivíduo que o tinham agredido, ao avistá-los, dirigiu-se de imediato ao arguido GG, que se encontrava à porta a conversar com um dos seguranças e desferiu-lhe um soco na zona da cara, apanhando-o de surpresa e completamente desprevenido, e afastou-se do local cerca de 2 metros.

2.1.14 Ao aperceber-se do soco que tinha sido naquele momento desferido ao seu amigo, pelas 06h19m55 o arguido AA aproximou-se pela retaguarda do ofendido BB e desferiu-lhe um murro com muita intensidade na zona da cabeça, fazendo-o cair de imediato no chão, ficando o mesmo inconsciente, inanimado, sem sentidos.

2.1.15 Não obstante o ofendido ter perdido a consciência, estar caído no chão e sem sentidos e, consequentemente sem qualquer capacidade de se defender, o arguido GG dirigiu-se novamente ao ofendido BB, e desferiu-lhe dois pontapés na cabeça, com muita intensidade, de forma continua e sucessiva, fazendo com que a cabeça do ofendido se movimentasse de um lado para o outro.

2.1.16 Perante o que se estava a passar a testemunha JJ colocou os pés a ladear o corpo do ofendido BB, para o proteger das agressões, e logo de seguida a testemunha WW ocupou a posição de JJ, para proteger o ofendido BB também das agressões.

IV

2.1.17 Nesse momento, os ofendidos FF, CC, e a vítima EE, agentes da PSP, que se encontravam no exterior, junto à estrada, ao visualizarem as agressões contínuas ao referido indivíduo, percebendo o perigo que o mesmo corria considerando que era visível que o ofendido se encontrava sem sentidos e estava a ser pontapeado sucessivamente pelo arguido GG na zona da cabeça, decidiram intervir enquanto agentes de autoridade, e aproximaram-se com o intuito de travarem as agressões, sendo que, pelo menos, o ofendido CC colocou os braços no ar numa atitude apaziguadora.

2.1.18 O agente da PSP FF foi o primeiro a aproximar-se gritando “POLÍCIA PÁRA!” e procurando com os seus braços afastar os agressores, e impedi-los de se aproximarem do ofendido BB, que permanecia no chão sem sentidos.

2.1.19 Os demais agentes da PSP, CC e EE, aproximaram-se do local onde o arguido prosseguia as agressões, sendo que CC também disse, por uma vez, “Parem. Polícia”, o que não impediu que os arguidos as prosseguissem.

2.1.20 Sem que nada o fizesse prever, pelas 06h20m02, o arguido GG desferiu um soco na cabeça do agente FF, dizendo-lhe em tom de ameaça “O que é que tens a ver com isto?”

2.1.21 Combalido pela agressão que sofreu, o Agente FF tentou afastar-se dos arguidos AA e GG, recuando.

2.1.22 No entanto, o arguido GG continuou a dirigir-se a ele, rodeando-o e desferindo-lhe socos na cabeça.

2.1.23 O agente da PSP CC aproximou-se, igualmente, com o objetivo de pôr termo à violência, e acudir o colega FF, sendo de imediato também ele vitima de, pelo menos, um soco desferido pelo KK.

2.1.24 A partir desse momento os arguidos dirigiram-se aos três ofendidos FF, CC e EE, elementos da PSP, que tinham avançado para travar as agressões em curso.

2.1.25 Os confrontos deslocaram-se então para a zona adjacente à entrada da Discoteca 2, e os arguidos dirigiram-se ao agente EE, que tentava igualmente fazer cessar os confrontos.

2.1.26 Pelas 06h20m08 o arguido AA aproximou-se pela retaguarda do agente EE, o qual se encontrava numa atitude apaziguadora, e desferiu-lhe um soco na parte de trás/lateral da cabeça, fazendo-o cair de imediato no chão.

2.1.27 Em ato contínuo o arguido AA desferiu mais um pontapé na cabeça do agente EE.

2.1.28 E imediatamente a seguir o arguido GG desferiu três pontapés na cabeça do agente EE, que permanecia inanimado no chão.

2.1.29 Pelas 06h20m14, a agente da PSP UU e o agente da PSP DD saíram da discoteca e, ao aperceberem-se da confusão em que estavam inseridos os seus colegas, correram naquela direção para os acudir.

2.1.30 O ofendido DD agarrou o arguido GG para o afastar do local e de imediato o mesmo voltou-se e desferiu-lhe um soco com muita intensidade, considerando o já referido, que o arguido é campeão nacional de ..., e o ofendido DD tentou sair do local.

2.1.31 Provado apenas que o arguido DD caiu ao solo na sequência de um soco.

2.1.32 Encontrando-se prostrado no solo, os dois arguidos desferiram um número indeterminado de pontapés na sua cabeça e o ofendido DD, para se proteger, colocou as mãos em volta da cabeça.

2.1.33 Pelas 06h20m34 os agentes CC e UU conseguiram afastar os agressores intrometendo-se entre eles e o agente DD, sendo o ofendido CC agredido pelos arguidos com vários socos / murros.

V

2.1.34 Pelas 06h20m44, os arguidos AA e GG acompanhados de outros indivíduos começaram a abandonar o local, na direção da entrada principal da discoteca 1.

2.1.35 Nesse percurso o arguido GG desferiu um pontapé nas costas do ofendido BB, que tinha acabado de ser levantado do solo, apoiado nos ombros dos amigos.

2.1.36 Ao passarem pelos seguranças que se encontravam perto da entrada da discoteca 1 com estes confraternizaram, encolhendo os ombros, com indiferença.

2.1.37 O agente CC tentou seguir no encalço dos arguidos com o intuito de visualizar a matrícula do carro em que se faziam transportar.

2.1.38 Apercebendo-se dessa tentativa o arguido AA voltou para trás e desferiu um soco no ofendido CC.

2.1.39 Só nessa altura o grupo de elementos da PSP se deslocaram para junto da vítima EE, o qual estava inanimado no local.

VI

2.1.40 Todos os ofendidos, com exceção de BB, necessitaram de tratamento hospitalar e dirigiram-se ao hospital de ..., sendo que EE foi transportado já inanimado numa ambulância.

2.1.41 As agressões aos ofendidos ocorreram entre as 06h19 e as 06h21, de forma muito intensa, concentrada e sucessiva, utilizando os arguidos os especiais conhecimentos de luta adquiridos ... ao que acresce o facto do arguido GG ser campeão de ....

2.1.42 A referida preparação militar e desportiva permitiu aos arguidos aplicarem intensos golpes de socos, de tal forma intensos, que as vítimas caíam ao chão, nalguns casos, inconscientes, conforme acima descrito.

2.1.43 Em consequência das agressões o ofendido BB sofreu dores, sem necessitar, contudo, de receber tratamento hospitalar.

2.1.44 Em consequência das agressões o ofendido CC sofreu uma ferida incisa no lábio inferior, tendo sido efetuada limpeza, desinfeção e sutura, tendo sido assistido no serviço de Urgência do Hospital de ..., no próprio dia das agressões.

2.1.45 Resultante de tais ferimentos o ofendido permanece com a consequência permanente uma cicatriz linear no hemilábio inferior esquerdo, com 0,8cm de comprimento.

2.1.46 Tais lesões determinaram 10 dias para a consolidação médico-legal com afetação para o trabalho em geral, com 5 dias de afetação da capacidade para o trabalho profissional.

2.1.47 Em consequência das agressões sofridas, o ofendido FF apresentava ferida incisa sangrante na região supraciliar direita com cerca de 2cm e ferida no lábio esquerdo não sangrante. Foi realizada limpeza e desinfeção das feridas com sutura da ferida supraciliar, tendo sido assistido no serviço de Urgência do Hospital de ..., no próprio dia das agressões.

2.1.48 Resultante de tais ferimentos o ofendido permanece com uma cicatriz linear no bordo externo do supercilio direito, horizontal, com 1,5cm de comprimento.

2.1.49 Tais lesões determinaram 10 dias para a consolidação médico-legal, com afetação para o trabalho em geral e para o trabalho profissional por 5 dias.

2.1.50 Resultante de tais ferimentos o ofendido permanece como consequência permanente uma cicatriz no supercílio direito.

2.1.51 Em consequência das agressões o ofendido DD sofreu um hematoma no joelho esquerdo, traumatismo craniofacial, do membro inferior esquerdo e do membro superior direito tendo sido assistido no serviço de Urgência do Hospital de ..., no próprio dia das agressões.

2.1.52 Na sequência da fratura na mão direita foi efetuada imobilização antebranquipalmar e teve alta referenciado para consulta de ortopedia.

2.1.53 O ofendido retirou no dia ... de ... de 2022 a imobilização, continuando a ser seguido por ortopedia.

2.1.54 Nessa data, o ofendido apresentava diminuição da mobilidade da mão e punho direitos, dor na região do 5.º metacárpico e dedo correspondente da mão direita, aumento de volume local no couro cabeludo na região parietal direita, permanecendo de baixa.

2.1.55 Apresentava na superfície do crânio área avermelhada, linear, obliqua para baixo e para trás na região parietal direita com 2,5cm de comprimento; no membro superior direito descamação superficial cutânea do dorso da mão e das falanges próximas do 2.º ao 4.º dedo e de todo o 5.º dedo, edema sobre a face dorsal dos 4.º e 5.º metacárpicos, mobilidade passiva do punho e dos dedos mantida e dor na mobilidade passiva.

2.1.56 O ofendido permaneceu um mês com gesso no punho e posteriormente iniciou fisioterapia.

2.1.57 Tais lesões determinaram que o ofendido permanecesse de baixa médica por 65 dias.

2.1.58 Em consequência das agressões sofridas naquela madrugada, o ofendido EE sofreu no tórax superior e na cabeça lesões pulmonares e cranianas de natureza contundente/traumática, ambas graves.

2.1.59 A vítima permaneceu internado e já em 20 de março foi submetido a intervenção cirúrgica no cérebro.

2.1.60 Em consequência das agressões perpetradas, a vítima deu entrada no Centro Hospitalar de Lisboa Norte – Hospital de ..., pelas 07h01, de 19 de março de 2022.

2.1.61 Na urgência foi detetado um hematoma na região cervical direita, tendo sido realizado no Serviço de Imagiologia um exame ANGIO-TC, cujo resultado afastou suspeitas de malformação aneurismática.

2.1.62 Dos exames complementares de diagnóstico realizados, designadamente TAC CE, resulta que a vítima sofreu hemorragia subaracnoideia dispersa sulcal e cisternal, com particular atingimento das cisternas da base e inundação hemática tentraventricular, podendo o discreto aumento do volume ventricular traduzir uma hidrocefalia em curso, originando algum conflito de espaço no buraco occipital, também ele preenchido por conteúdo hemático.

2.1.63 A morte de EE foi devida às lesões traumáticas meningo-encefálicas e raquídeas cervico-vasculares que sofreu com as agressões que lhe foram infligidas.

2.1.64 A vítima sofreu uma hemorragia intracraniana grave, isquemia massiva e destas resultou a morte, ocorrida no dia ... de ... de 2022, pelas 09h58.

VII

2.1.65 O arguido AA detinha no interior da sua residência a t-shirt, as calças e os ténis que utilizou na madrugada de 19 de março.

2.1.66 O arguido GG detinha no interior do seu armário na Base de ... os ténis que utilizou na madrugada de 19 de março.

2.1.67 O arguido GG detinha no interior da sua residência as calças, a camisa e o Kispo de cor verde que utilizou na madrugada de 19 de março.

VIII

2.1.68 Os arguidos AA e GG tinham plena consciência da sua superioridade física perante os especiais conhecimentos de luta que possuíam, mas tal conhecimento não os inibiu de agredir com intensidade os ofendidos DD e EE, da forma como fizeram, e prosseguirem tais agressões mesmo quando estes já se encontravam caídos no chão, desferindo-lhes pontapés com intensidade na cabeça, sendo que o arguido GG também o fez, a acrescer, quanto ao ofendido BB, mostrando os arguidos indiferença às consequências que daí podiam advir, nomeadamente a morte.

2.1.69 O arguido AA atuou com a intenção concretizada de molestar fisicamente os ofendidos BB e CC, nos termos acima descritos, utilizando os especiais conhecimentos adquiridos na ... Marinha, ..., atuando de forma violenta e concertada com o arguido GG.

2.1.70 O arguido GG atuou com a intenção concretizada de molestar fisicamente os ofendidos BB, FF e CC, nos termos supra descritos, utilizando os especiais conhecimentos adquiridos na ...Marinha, ..., atuando de forma violenta e concertada com o arguido AA.

2.1.71 Os arguidos, atuaram com a intenção concretizada de molestar fisicamente os ofendidos, ao desferirem os socos e pontapés intensos, designadamente na zona da cabeça dos ofendidos EE e DD, atuando de forma violenta e concertada, e o arguido GG, a acrescer, a BB, e sabiam que tais condutas poderiam provocar a morte daqueles cujas cabeças socaram e pontapearam indiscriminadamente e conformaram-se com tal resultado, fazendo-o repetida e sucessivamente, o que viria a culminar na morte de EE.

2.1.72 Em todas as atuações descritas, os arguidos atuaram sempre de forma livre, voluntária e conscientemente.

Dos pedidos de indemnização civil formulados

i) Pelo Estado

2.1.73 Os três ofendidos e a vítima mortal são elementos da PSP e a sua atuação ocorreu em serviço, não obstante, naquele dia e hora, se encontrarem de folga.

2.1.74 Por despacho de 11.04.2022 do Diretor Nacional da Polícia de Segurança Pública foi qualificado como ocorrida em serviço a morte do Agente M/....55, EE, nos termos previstos no Decreto Lei 503/99 de 20 de novembro, na última redação dada pela Lei 19/2021, de 08 de abril.

2.1.75 Por despacho proferido pelo Segundo Comandante do Comando Metropolitano de Polícia de ..., de 19.04.2022, foram qualificados como ocorridas em serviços as agressões e consequentes lesões sofridas pelos Agentes M/....89, DD e M/....25, FF e por despacho de 15.06.2022, da mesma entidade, foi qualificado como ocorridas em serviço as agressões sofridas pelo Agente M/....30, CC, nos termos previstos no Decreto Lei 503/99 de 20 de novembro, na última redação dada pela Lei 19/2021, de 08 de abril.

2.1.76 Durante o período de 65 dias em que o Agente DD ficou impossibilitado de exercer as suas funções, o Estado Português / Polícia de Segurança Pública, pagou-lhe o vencimento, bem como os respetivos subsídios, no montante total de três mil, seiscentos e trinta e quatro euros e sessenta cêntimos, sem no entanto ter beneficiado da contrapartida do seu trabalho, bem como teve de despender de despesas de assistência hospitalar, no valor de cento e quatro euros e dez cêntimos e despesas médicas no valor de vinte e oito euros e vinte e oito cêntimos.

2.1.77 O Estado Português / Polícia de Segurança Pública suportou as despesas com o funeral da vítima, o Agente EE, no valor de quatro mil, quatrocentos e vinte e três euros e sessenta cêntimos.

2.1.78 O Estado Português / Secretaria Geral do Ministério das Finanças, procedeu ao pagamento aos progenitores de EE, da quantia de cento e setenta e seis mil e duzentos e cinquenta euros.

ii) Pelo demandante Centro Hospitalar

2.1.79 O demandante Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central, E.P.E. prestou assistência hospitalar a EE, DD, FF e CC.

2.1.80 Designadamente os procedimentos descritos nos procedimentos que melhor constam das faturas que junta sob o nº 1 a 6, designadamente craniotomia por traumatismo, episódios de urgência, radiografia, TAC´s e consultas.

2.1.81 O custo da assistência prestada aos ofendidos ascendeu a vinte e quatro mil, quatrocentos e cinquenta e seis euros e vinte e seis cêntimos, sendo que o valor referente à prestação de cuidados ao ofendido FF é de cento e setenta e nove euros e sete cêntimos.

iii) Pelos demandantes II e HH não constantes da acusação, com relevo para a boa decisão da causa:

2.1.82 EE era um jovem saudável, trabalhador, com uma ligação forte à família, designadamente aos pais e irmã, e aos amigos.

2.1.83 EE encontrava-se a exercer funções como agente da PSP, tendo sido colocado na Esquadra de Intervenção e Fiscalização Policial de ....

2.1.84 Por força do seu dever cívico e profissional e em conjunto com os seus colegas, EE viu-se obrigado a intervir e fazer cessar as agressões que se encontravam a ser infligidas pelos arguidos a terceiros, pessoas que se encontravam particularmente indefesas, no chão.

2.1.85 EE, naquele momento, percebeu que também a sua vida ficou em perigo.

2.1.86 A morte de EE causou profundo desgosto e tristeza aos seus pais, bem como um sentimento de perda e de vazio.

2.1.87 Viveram a angústia e a dor da iminência morte do filho nos dias que antecederam o decesso e em que ele se encontrou hospitalizado.

2.1.88 Os demandantes vivem e viverão ainda momentos emocionalmente perturbadores pela perda do filho, vivenciando a mãe um desequilíbrio psicológico considerado grave, que carece de acompanhamento especializado que estão a receber.

Da contestação do arguido GG:

2.1.89 A vítima EE desferiu um soco no arguido GG (no contexto factual da atitude descrita em 2.1.26).

Das condições pessoais do arguido AA:

2.1.90 O arguido não possui antecedentes criminais.

2.1.91 À data dos factos, o arguido AA residia na habitação de família, integrando agregado composto por ambos os progenitores e a avó materna; a sua irmã mais velha já se tinha autonomizado, residindo na zona de ... com o companheiro.

2.1.92 O apartamento próprio, de tipologia T2, apresenta boas condições habitacionais e encontra-se inserido na urbanização da ..., bairro residencial de características urbanas, próximo da vila de ..., sem problemáticas sociais ou delinquenciais identificadas.

2.1.93 A situação económica do agregado é adequada às necessidades, alicerçada, primordialmente, no trabalho de ambos os progenitores, desempenhado o pai funções como ... enquanto a mãe trabalharia como empregada doméstica.

2.1.94 AA tinha um contrato de três anos ..., para exercer funções correspondentes à categoria de praça exercendo funções laborais, como ... Marinha, afeto, à data, à base ... ... ...; auferiria com o seu trabalho cerca de 740€ mensais de remuneração, a que acresciam eventuais ajudas de custo suplementares em eventuais missões/ períodos de trabalho, fora da base.

2.1.95 Após um curso intensivo de formação na escola de ... desempenhou funções na base ... em ... até à data da sua prisão.

2.1.96 Na sequência da instauração do presente processo, o arguido foi exonerado de funções.

2.1.97 O arguido vivenciava, à data dos factos, uma fase de maior instabilidade emocional, uma vez que tinha rompido o relacionamento com a namorada há cerca de duas semanas e tinha tido COVID, motivo de período de interrupção laboral e dos seus convívios habituais, face à obrigação de permanência em casa.

2.1.98 AA nasceu na cidade ..., país onde viveu até aos dois anos de idade, vindo no ano de 2002 a emigrar com a mãe para Portugal – vila de ..., onde já residia o pai, o qual emigrou dois anos antes, na procura de melhores condições de vida para a sua família, permanecendo a avó materna e a irmã, XX, onze anos mais velha, no país de origem.

2.1.99 A adaptação da família a Portugal, decorreu de forma positiva permitindo ao agregado dispor de uma situação económica estável.

2.1.100 O arguido beneficiou de um contexto familiar apoiante e com condições sociais adequadas ao seu desenvolvimento e de investimento afetivo e educativo, sendo notória a existência de fortes laços familiares e de afetos entre os membros desta família.

2.1.101 Tendo concluído o 10º ano de escolaridade, aos 17 anos de idade, optou por deixar o ensino regular, para ingressar na Marinha Portuguesa, inscrevendo-se no curso de ..., motivado pelo facto de ambos os avós terem feito carreira militar, aspeto que, segundo o arguido, contribuiu para consolidar este seu interesse /aspiração por esta carreira, no que foi apoiado pela família.

2.1.102 A sua rede de pares era composta maioritariamente por antigos colegas do secundário e ... da zona de ..., com quem se aproximou no decurso do seu trajeto laboral.

2.1.103 Mantinha como hobbys a prática de desporto – musculação, em contexto de ginásio e desportos de ..., entre os quais … e ..., mantendo hábitos de convívio com pares praticantes destas modalidades, entre os quais o coarguido GG, instrutor de ..., com quem, por vezes, treinava.

2.1.104 De acordo com o apurado a sua rede amical, sendo heterógena, abarcava alguns pares de risco com quem convivia, aparentando o arguido ser algo suscetível à pressão/influência do grupo, sendo que, tende a envolver-se emocionalmente e a estabelecer pertença/filiação grupal nas relações, aspetos que poderão toldar o seu sentido crítico e pensamento consequencial.

2.1.105 AA mantém uma inserção sociofamiliar estruturante beneficiando de laços de interajuda e afeto com os elementos da família, aparentemente elementos pró-sociais com vidas estruturadas.

2.1.106 O arguido avalia como improvável voltar a ingressar na Marinha, a sua grande aspiração, e possui como eventual projeto de vida alternativo a hipótese de investir num curso profissional ou superior, tendo em vista mudar de ramo laboral, salientando ainda a hipótese de emigrar com a família.

2.1.107 Em contexto prisional, até à data, AA tem mantido uma rotina moldada às normas e regras, sem registo de problemas disciplinares ou conflitos de relevo.

2.1.108 O arguido tem beneficiado de visitas regulares dos seus familiares, nomeadamente por parte da sua mãe, pai e irmã entre outras figuras de suporte.

Das condições pessoais do arguido GG:

2.1.109 O arguido foi condenado no âmbito do Processo 454/17.6..., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de ..., no Juízo de competência genérica de ..., por decisão de 29.01.2020, com data de trânsito em julgado em 28.2.2020, pela prática, em 13.08.2017, de um crime de injúria agravada p.p. pelos artigos 181º e 184º, por referência ao artigo 132º, nº 2, alínea l) do Código Penal na pena parcelar de sessenta dias de multa e de um crime de ameaça agravada, p.p. pelos artigos 153º e 155º, nº 1, alíneas a) e c) por referência ao artigo 132º, nº 2, alínea l), todos do Código Penal na pena parcelar de oitenta dias de multa; foi fixada a pena única de 110 dias de multa, à taxa diária de 6,00, que perfaz o total de 660,00 euros, a qual foi declarada extinta pelo pagamento em 2021/10/08.

2.1.110 O arguido foi condenado no âmbito do Processo Comum Singular 486/18.7..., que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de ..., unidade orgânica do ..., por decisão de 8.6.2020, transitada em 8.7.2020, pela prática, em 28.12.2017, de um crime de violência depois da subtração p. e p. pelo artigo 211.º do Código Penal, em conjugação com os artigos 203.º, n.º 1 e 210.º, n.º 1, do mesmo Código, na pena de 7 meses prisão, suspensa por 1 ano, com regime de prova, a qual foi declarada extinta em 2021.07.08, por decisão datada de 2021.09.29, transitada em julgado em 2020.07.08.

2.1.111 O arguido GG, à data da sua prisão, integrava o agregado dos progenitores e irmão em habitação arrendada.

2.1.112 As duas irmãs mais velhas de GG já se encontram autonomizadas do agregado de origem, residindo no estrangeiro.

2.1.113 O ambiente familiar é descrito como afetivamente equilibrado e caraterizado por dinâmicas de interajuda e cooperação mútua, mantendo o arguido um relacionamento afetuoso e de proximidade com os progenitores e irmão.

2.1.114 Oriundo de uma família angolana, GG é o segundo de quatro irmãos germanos. Regista um processo de desenvolvimento decorrido em ..., junto do agregado de origem, de humilde condição socioeconómica, subsistindo o agregado com recurso às atividades laborais desenvolvidas pelos progenitores (mãe, ... num restaurante e pai, trabalhador assalariado na ...).

2.1.115 O arguido GG, neste contexto familiar, usufruiu de um modelo educacional norteado pela transmissão de regras e condutas pró sociais, todavia, num ambiente permissivo e frágil ao nível da supervisão parental, nomeadamente durante a fase final da adolescência e início da vida adulta, em que passou a acompanhar com grupos de pares pró criminais, desencadeando, consequentemente, os seus primeiros contactos com o sistema judicial penal.

2.1.116 Em termos laborais, à data da prática dos factos, GG integrava em regime de contrato a prazo, com a categoria de praça, o ..., sediado na ..., auferindo um vencimento mensal líquido de 744 euros, com o qual subsistia e contribuía para as despesas do agregado onde se inseria.

2.1.117 Aderiu à atividade militar em 2017, altura em que, com dezoito anos de idade, se candidatou ao concurso de admissão na categoria de Praça na classe de ... da Marinha Portuguesa, tendo sido admitido, com contrato a prazo, ainda naquele ano. Após o processo de admissão esteve cerca de um ano na ... e ainda na Escola de ..., em formação, vindo de seguida a ingressar na Polícia ... onde permaneceu até aos vinte e um anos, idade em que optou por transitar para ... (categoria ...), sediado na ..., onde se mantinha à data da sua prisão. Durante este trajeto profissional participou numa missão militar da NATO na ....

2.1.118 GG, idealizando ascender profissionalmente na carreira militar, perspetivava, após o termo do contrato, candidatar-se aos quadros permanentes da Marinha, como ....

2.1.119 O contrato que mantinha com a Marinha Portuguesa terminaria em ........2023, mas foi exonerado do posto militar que ocupava na sequência da instauração do processo em causa.

2.1.120 Praticante amador de ... desde a sua adolescência, no P....... ..... ...., em ..., GG dedicava-se, desde 2022, em regime de voluntariado, uma vez que ainda não tinha concluído o curso de formação de instrutor/treinador de ... iniciado em maio de 2021, a dar aulas da modalidade na Academia de ..., em ..., a praticantes com idades compreendidas entre os dez anos e os vinte e dois anos de idade. A prática desportiva de ... amador, pela qual demonstrou empenho e investimento, veio a assumir alguma relevância na vida de GG, tendo-se mesmo consagrado campeão amador da modalidade em 2021.

2.1.121 Face à prática de uma modalidade, na qual se pretende vir a profissionalizar, e que se caracteriza pelo recurso à utilização da força física sobre o outro, o arguido assume por vezes dificuldades ao nível do autocontrolo, nomeadamente quando se vê envolvido em situações de confronto ou de conflito com terceiros.

2.1.122 GG praticou ainda na sua adolescência e por um período aparentemente de menor duração, e prévio à sua adesão à modalidade de luta supramencionada, à prática de capoeira, em contextos de campos de férias para jovens, bem como de futebol como atleta federado, entre os oito e os quinze anos de idade no Clube ....

2.1.123 Portador de habilitações escolares ao nível do décimo ano de escolaridade, GG desistiu da escola aos dezoito anos de idade, durante a frequência do 11º ano, motivado pelo desejo de ingressar na PSP ou ... da Marinha Portuguesa.

2.1.124 No plano laboral, e durante o período escolar, GG registou ainda outras experiências, nomeadamente a partir dos dezasseis/dezassete anos de idade, em torno de atividades laborais descontinuadas e sazonais desenvolvidas durante os períodos de pausas escolares na zona de ..., como empregado de mesa, no setor da restauração e ainda como nadador salvador, durante o período balnear.

2.1.125 No plano afetivo, GG mantém, desde 2019, relação de namoro com uma praticante de ... amador, tendo-se o casal conhecido no .... Atualmente esta, por motivos profissionais, encontra-se a viver no estrangeiro.

2.1.126 A par do presente processo, o arguido aguarda ainda julgamento no Proc. nº 561/19.0..., do Juízo Central Criminal de ..., Juiz 3, acusado em coautoria com o seu irmão YY, da prática de três crimes de ofensa à integridade física qualificada, um crime de furto (factos datados em 29.09.2019), um crime de detenção de arma proibida e um crime de tráfico de estupefacientes (factos datados de 07.06.2021).

2.1.127 O arguido GG tem mantido, em meio contentor, um comportamento convergente com as regras da instituição prisional.

2.1.128 Em termos laborais, desenvolve atividade na prisão desde 04.12.2022, trabalhando no ... do Estabelecimento Prisional de ....

2.1.129 O arguido GG perspetiva, em meio livre, regressar para junto do agregado dos progenitores onde se mantém inserido o irmão mais novo, beneficiando, de acordo com o referido, de suporte e apoio familiar tanto afetivo, como material.

2.1.130 Em termos laborais, o arguido projeta prosseguir a atividade como treinador de ... amador, mas não apresenta, de momento, projeto de recolocação estruturado/definido, perspetivando retomar o investimento na sua formação escolar e ampliar qualificações nesse domínio, manifestando interesse em, futuramente, concluir o ensino secundário e prosseguir para o ensino superior universitário, onde pretende ingressar no curso de licenciatura na área de Gestão de Empresas ou de Desporto.

2.1.131 Em termos das relações interpessoais, o arguido afirma que mantinha relação de amizade próxima com o coarguido AA, desde do período de infância, tendo ambos frequentado o mesmo estabelecimento escolar e a modalidade de futebol durante a adolescência. Viriam posteriormente a reencontrarem-se ... da Marinha, mantendo a amizade que os unia.

2. Foram dados como não provados os seguintes factos:

2.2 Matéria de facto não provada, com relevo para a decisão da presente causa:

Da acusação:

I

2.2.1 Que, na noite a que se reportam os autos, na discoteca 1, RR se incluísse no grupo de amigos dos arguidos.

2.2.2 Que o arguido GG se tivesse envolvido numa discussão com o ofendido BB e que lhe tivesse desferido vários empurrões e várias cabeçadas, ao que o ofendido BB tentou reagir para se conseguir defender das agressões de que estava a ser alvo.

2.2.3 Que tivesse sido o arguido AA quem interveio na contenda em curso, de forma a repelir e evitar a possibilidade de reação do ofendido BB perante as agressões do arguido GG, e lhe tivesse desferido um murro no rosto.

2.2.4 Que tivesse havido tumultos que se geraram na pista de dança na sequência das agressões ao ofendido BB.

II

2.2.5 Que UU e VV também tivessem estado no jantar convívio com os demais colegas da PSP mencionados em 2.1.10.

III

2.2.6 Que o arguido GG tivesse desferido ao ofendido BB mais do que dois pontapés na cabeça.

2.2.7 Que o arguido AA tivesse pontapeado BB na cabeça quando este se encontrava caído no chão e sem sentidos e, consequentemente, sem capacidade de se defender.

IV

2.2.8 Que os arguidos tivessem ouvido os dizeres de FF quando deles se aproximou.

2.2.9 Que também os ofendidos FF e a vítima EE tenham levantado os braços no ar, tal como o fez o ofendido CC.

2.2.10 Que CC e EE tivessem dito repetidamente e em voz alta as palavras: “PAREM, SOMOS DA POLÍCIA”.

2.2.11 Que o arguido AA se tivesse dirigido ao agente FF, rodeando-o e desferindo-lhe socos na cabeça e pontapés nas costas.

2.2.12 Que o arguido GG tivesse desferido pontapés nas costas do agente FF.

2.2.13 Que os arguidos tivessem desferido socos em CC quando este se aproximou com o objetivo de pôr termo à violência e acudir o colega FF.

2.2.14 Que o arguido AA tivesse desferido dois pontapés na cabeça do agente EE.

2.2.15 Que tivesse sido o soco desferido pelo arguido GG ao agente DD que tivesse provocado a sua queda ao solo.

2.2.16 Que posteriormente, mas antes do facto descrito no ponto 2.1.33, o mesmo arguido GG tivesse desferido um pontapé com muita intensidade na cabeça, do lado direito, do ofendido DD.

2.2.17 Que num momento em que DD já se estava a levantar, tivesse sido ainda agredido com uma pedra na cabeça.

2.2.18 Que no momento em que o ofendido DD tentou sair do local tivesse caído novamente.

2.2.19 Que quando o ofendido DD estava prostrado no solo os dois arguidos lhe tivessem desferido um número indeterminado de socos.

VIII

2.2.20 Que os arguidos tivessem agredido com intensidade os ofendidos CC e FF, mesmo quando estes já se encontravam caídos no chão, desferindo-lhes violentos pontapés na cabeça, mostrando indiferença às consequências que daí podiam advir, nomeadamente a morte.

2.2.21 Que os arguidos estivessem cientes da condição de agentes da autoridade dos ofendidos CC, FF, DD e EE, não obstante FF ter atuado conforme descrito no ponto 2.1.18, e CC como descrito em 2.19, e que as palavras deste agente tivessem sido ouvidas pelos arguidos.

2.2.22 Que os arguidos estivessem cientes da qualidade de agentes da PSP dos ofendidos CC, FF, DD e EE e, não obstante, não tivessem acatado a advertência, mostrando uma total indiferença pela autoridade.

2.2.23 Que os arguidos tivessem desferido pontapés em CC e FF.

2.2.24 Que o arguido GG tenha um historial de indiferença e desrespeito pelas forças de segurança, designadamente no episódio em que foi apresentada queixa por agressões que, conjuntamente com o seu irmão, terá infligido a um ofendido que sabia ser militar da GNR – NUIPC 1331/21.1..., e a quem terá dirigido as seguintes palavras: “lá fora vais morrer, bófia, filha da puta, branco, lá fora vais morrer, nem que seja com armas.”

Da contestação do arguido GG:

2.2.25 Que os arguidos tivessem sido surpreendidos pela aproximação de três indivíduos desfardados e que tivessem temido que os mesmos estivessem com o agressor e viessem em seu auxílio para os agredir; que a conduta destes a isso indiciasse e que tivessem aplicado a sua força física com o intuito de evitar as temidas agressões.

Do pedido de indemnização civil de II e HH:

2.2.26 Que tivessem sido desferidos murros ou pontapés pelos arguidos a EE antes de lhe ser desferido o murro que o deixou inanimado no chão.

2.2.27 Que EE estivesse estado prostrado no chão consciente.

2.2.28 Que após ter sofrido o murro que o deixou inanimado e o momento da sua morte, EE tivesse antevisto a sua morte, tivesse sentido medo e angústia, e que tivesse sentido dor.

2.2.29 Que EE fosse desportista.3

9. Direito

Como sabido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação que apresentou (art. 412.º, n.º 1, do CPP).

Os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça restringem-se exclusivamente ao reexame da matéria de direito (art. 434.º do CPP), sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do art. 432.º

Analisadas as conclusões de cada recurso do acórdão da Relação de Lisboa apresentado pelos arguidos para o STJ - que apesar de extensas e não cumprirem integralmente o estabelecido no art. 412.º, n.º 1, do CPP, quanto ao seu significado, como resumo do pedido, ainda assim, não justificavam que fosse feito convite ao aperfeiçoamento nos termos do art. 417.º, n.º 3, do CPP, por se perceber o que é pretendido com cada recurso (o que afasta a questão prévia colocada pelo Sr. PGA e, por isso, na altura própria, se ordenou o cumprimento do disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, sem efetuar qualquer convite, por desnecessário) - verifica-se que são colocadas as seguintes questões:

a) Relativas à decisão da Relação sobre os recursos interlocutórios interpostos pelo arguido GG (quanto aos despachos da 1ª instância: de 27.02.2023 do apenso B, questão relativa à identificação dos jurados; de 3.04.2023, questão relativa à não admissibilidade do depoimento de um Magistrado Judicial e de um Magistrado do Ministério Público; de 10.04.2023, questão relativa à não admissibilidade do depoimento de uma Jornalista; de 12.04.2023, questão da nulidade do despacho que não autorizou o uso de um pc na sala de audiências por um membro da equipa da defesa, atenta a circunstância de o mesmo ter sido proferido pela Srª. Juiz Presidente e não pelo Tribunal de Júri; de 14.04.2023, questão da nulidade da decisão por incompetência do tribunal de júri para a sua prolação e indeferimento da audição de inspetora da PJ e deferimento da colocação de uma pergunta a outra testemunha);

b) Relativas à decisão da Relação sobre os recursos interpostos da decisão final da 1ª instância:

Recurso do arguido AA:

1ª- erro na subsunção dos factos ao direito;

2.ª- perdão de penas;

Recurso do arguido GG:

1ª- reenvio prejudicial (pugnando contra a rejeição deste mecanismo pela Relação e pedindo intervenção do TJUE, com vista à colocação das 4 questões colocadas no recurso de apelação, uma vez que, na sua perspetiva, foram no caso erradamente interpretadas as normas europeias que indica);

2.º- violação do princípio da presunção de inocência na (livre) apreciação da prova;

3ª- violação do disposto nos arts. 358.º e 359.º do CPP, no que se relaciona com a alteração da circunstância qualificativa do homicídio de EE, finda a produção da prova, pretendendo o recorrente a desqualificação;

4ª- erro na subsunção dos factos ao direito;

5ª- ser excessiva e desproporcional a pena aplicada pelo crime de homicídio qualificado consumado;

6ª- incompetência do tribunal para julgar o pedido de indemnização civil, o que configuraria nulidade insanável, nos termos do art. 119.º, al. e), do CPP, a qual deveria ser declarada com todas as consequências legais.

Pois bem.

A. Começando pelo recurso do arguido GG quanto ao decidido no acórdão da Relação de Lisboa relativamente aos recursos interlocutórios por si interpostos das decisões acima indicadas, contra o qual se insurge.

É certo que no acórdão do TRL impugnado, quanto aos recursos interlocutórios interpostos pelo arguido GG, decidiu-se:

a) Julgar improcedente o recurso interposto do despacho proferido em 27-02-2023 (questão relativa à identificação dos jurados);

b) Julgar improcedente o recurso interposto do despacho proferido em 03-04-2023 (questão relativa à não admissibilidade do depoimento de um magistrado judicial e um magistrado do M.ºP.º);

c) Julgar improcedente o recurso interposto do despacho proferido em 10-04-2023 (questão relativa à não admissibilidade do depoimento de uma jornalista);

d) Rejeitar o recurso interposto do despacho de 12-04-2023 (nulidade da decisão relativa à impossibilidade de uso de pc na sala de audiências, por incompetência do Presidente do Tribunal, para a sua prolação);

e) Julgar improcedente o recurso interposto do despacho proferido em 14-04- 2023 (nulidade decisão por incompetência do Tribunal do Júri para a sua prolação).

Pretende o recorrente questionar novamente a apreciação já feita pela Relação desses recursos interlocutórios.

Ou seja, pretende uma segunda reapreciação, agora pelo STJ, do que foi decidido pela Relação.

Porém, importa ter presente o disposto no art. 432.º, n.º 1, al. b), do CPP.

Segundo o art. 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, “Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º”.

E, nos termos do art. 400.º, n.º 1, al. c), do CPP:

Não é admissível recurso:

c) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que não conheçam, a final, do objeto do processo (…)”.

Ora, como resulta da jurisprudência deste STJ4, os despachos impugnados acima referidos (proferidos pela 1ª instância) que foram alvo dos recursos interlocutórios já sindicados pela Relação, ficam decididos de modo definitivo, sendo certo que não constituem uma decisão sobre o objeto do processo.

Com efeito, tem-se entendido que o objeto do processo é definido pelos factos que constam da acusação ou da pronúncia, sendo esses os que são imputados ao arguido e que delimitam os poderes de cognição do tribunal.

Nesta perspetiva, tais recursos interlocutórios, que foram julgados improcedentes pela Relação (e que não se debruçaram sobre o objeto do processo), não admitem recurso para o STJ, sendo de rejeitar nessa parte o recurso (face ao disposto nos arts. 420.º, n.º 1, al. b), e 414.º, n.ºs 2 e 3, 400.º, n.º 1, al. c) e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP).

Em conclusão: é irrecorrível o acórdão da Relação de Lisboa, na parte em que conheceu e decidiu definitivamente os recursos interlocutórios, sendo certo que não foram violados os princípios e as disposições legais invocados pelo recorrente.

B. Passemos então a conhecer das questões colocadas nos recursos dos arguidos para este STJ (vistos os poderes de cognição deste – art. 434.º do CPP) quanto ao decidido pela Relação de Lisboa, relativamente aos recursos interpostos do acórdão de 2.06.2023 da 1ª instância, começando pelas questões do arguido GG, sendo tratadas as do arguido AA na altura em que for apreciada a questão sobre o invocado erro na subsunção dos factos ao direito.

Assim.

1ª Questão (recurso do arguido GG): reenvio prejudicial

Invoca o recorrente/arguido GG que a Relação decidiu ilegalmente quando rejeitou o reenvio prejudicial por si peticionado, pedindo a intervenção do TJUE, com vista à colocação das 4 questões colocadas no recurso de apelação, uma vez que, na sua perspetiva, foram no caso erradamente interpretadas as normas europeias que indica (a saber, arts. 2.º e 6.º do TUE, os artigos 4.º, n.ºs 1 e 2, 67.º, 82.º e 83.º do TFUE, artigos 47.º a 49.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, o artigo 6.º da Diretiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de Maio de 2012, relativa ao Direito à Informação em Processo Penal e ainda os artigos 3.º a 6.º da Diretiva 2016/343/UE do Parlamento Europeu e do Conselho).

Volta a indicar as 4 questões para o Tribunal de Justiça decidir e responder, as quais, na sua perspetiva, mostram o preenchimento dos pressupostos do reenvio prejudicial (facultativo para a Relação e obrigatório para o STJ), que já havia colocado no recurso de apelação para a Relação.

Vejamos então.

Sobre a referida questão do reenvio prejudicial colocada no recurso do acórdão da 1ª instância (no que era essencial, com semelhante argumentação à do presente recurso), decidiu assim a Relação de Lisboa:

A. Do reenvio prejudicial.

1. O recorrente GG alega e peticiona, a este propósito, o seguinte:

329.ª Posto isto, atendendo a todo o mediatismo do caso e ao contexto histórico em que os Arguidos chegaram a julgamento, foi suscitado pelo Recorrente, antes do início do julgamento, a 10-04-2023, a necessidade de o Tribunal tomar medidas adicionais para garantir um julgamento justo e por Tribunal imparcial.

330.ª Contudo, o Tribunal a quo, não só não foi sensível ao apelo do Recorrente, como ainda manteve os vícios apontados, atuando constantemente em manifesta violação da presunção de inocência e do direito a um processo justo e equitativo, e isso influenciou todo o comportamento do Tribunal, e bem assim das Juradas.

331.ª Tal teve reflexo, desde logo, na condução da produção de prova: o Tribunal não permitiu que o Recorrente inquirisse todas as testemunhas que havia arrolado para sua defesa; e outras (que permitiu que comparecessem), coartou as perguntas que podiam ter sido feitas.

332.ª Entre as faltas graves que podemos apontar inclui-se o indeferimento relativamente aos esclarecimentos sobre a perícia, dizendo que a mesma é claríssima e que o Tribunal não necessita de esclarecimentos, quando depois se arroga de uma soberba intelectual para tirar dela – entenda-se, da autópsia – erradas consequências jurídicas, no que diz respeito à (in)existência de nexo de causalidade entre a causa de morte e a concreta atuação do Recorrente.

333.ª E ainda a apreciação que faz dos vídeos, vendo o que quer, e não o que lá está. Levando as testemunhas, como sucedeu com JJ, a ter de admitir que os Arguidos eram os agressores, só porque este se dignou, como pessoa educada que é, a cumprimentar o Arguido na sala de audiência.

334.ª Na valoração da prova, o Tribunal a quo apenas aprecia o que precisa para condenar, em violação do princípio da presunção de inocência e desrespeita o limite objetivo à livre apreciação da prova que está consagrado no artigo 151.º do CPP.

335.ª Nas conclusões de direito, agrava os crimes pelos quais os Arguidos vinham acusados, alterando o objeto de processo, reabre a audiência quando tal lhe está expressamente vedado para “fazer cumprir” o art. 358.º do CPP, age em violação das regras de competência e convola os crimes para crimes mais graves e para mais crimes, uma vez encerrada a audiência e terminada a produção de prova, sem que o Arguido se possa efetivamente defender dessa convolação.

336.ª Ora, Portugal é um país integrado na União Europeia e como tal sujeito às suas fontes normativas.

337.ª Em sede de Direito Penal substantivo e adjetivo são vários os normativos de Direito da União, que atribuem competência à União Europeia nesta matéria, entre os quais destacamos os artigos 2.º e 6.º do TUE, os artigos 4.º, n.ºs 1 e 2, 67.º, 82.º e 83.º do TFUE.

338.ª Para além das disposições dos Tratados, em matéria processual penal cumpre ainda destacar os artigos 47.º a 49.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, o artigo 6.º da Directiva 2012/13/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de Maio de 2012, relativa ao Direito à Informação em Processo Penal e ainda os artigos 3.º a 6.º da Directiva 2016/343/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, que visa reforçar o direito a um processo equitativo em processo penal, fixando regras mínimas comuns relativas a certos aspetos (i) da presunção de inocência e (ii) do direito de comparecer em julgamento, por forma a fortalecer entre os Estados-Membros a confiança nos sistemas de justiça penal e assim contribuir para o reconhecimento mútuo de decisões em matéria penal e para a supressão os obstáculos à livre circulação dos cidadãos nos Estados-Membro.

339.ª Nesta temática reclamam ainda aplicação os princípios gerais do Direito da União.

340.ª A Directiva (UE) 2016/343 constitui a quarta de uma série de medidas que se destinam a estabelecer regras mínimas aplicáveis aos direitos processuais em toda a UE, em conformidade com o Roteiro de 2009, sendo aplicável partir de 31.03.2016, impondo que os países da EU a transponham para a legislação nacional até 1.04.2018.

341.ª Tal Directiva visa garantir, além do mais, a presunção de inocência de qualquer pessoa constituída arguida ou suspeita de um ilícito penal pelas autoridades policiais ou judiciais.

342.ª A Directiva aplica-se aos indivíduos (pessoas singulares) que são suspeitos da prática de um ilícito penal ou que foram constituídos arguidos em processo penal, em todas as fases do processo penal, isto é, a partir do momento em que uma pessoa é suspeita ou acusada de ter cometido um ilícito penal, até ser proferida decisão transitada em julgado.

343.ª Nenhuma das Directivas referidas foi transposta para a legislação nacional, pelo que, encontrando-se ultrapassado o prazo de transposição, por efeito vertical a entrada em vigor da Directiva 2012/13/UE na ordem jurídica portuguesa ocorreu a 03-06-2014 e da Directiva 2016/343/EU ocorreu a 02-04-2018.

344.ª O ordenamento jurídico da União Europeia é um sistema complexo, comum a todos os Estados-Membros que a ela pertencem, sendo que para além das fontes originárias e derivadas, este integra igualmente os princípios jurídicos “que ao longo dos tempos foram sendo acolhidos, elaborados ou explicitados pelo Tribunal de Justiça”.

345.ª Do leque de princípios do direito da União, destaca-se o princípio do primado do Direito da União que é uma exigência do Direito europeu, em consequência de não existir nos Tratados qualquer norma de solução de conflitos e estabelece que, em caso de conflito “o direito da União se aplica com preferência sobre o direito nacional dos Estados-Membros”.

346.ª A questão do primado do direito comunitário não se coloca hoje em Portugal, porquanto, o nosso ordenamento jurídico consagrou-o expressamente incluindo o de criação jurisprudencial (vd. os Acs. do TJ Costa/ENEL, processo n.º 6/64 de 15/07/1964 e Simmenthal, proc. 106/77, de 9.03.1978).

347.ª Por força desse primado, articulado com o da lealdade ao direito europeu existe, desde logo, a obrigação para os Estados-Membros de não manter em vigor nem criar direito nacional (interno) contrário ao direito europeu e, ainda, de não interpretar o direito interno em desconformidade com o sentido e alcance daquele. Consequentemente impõe-se ao juiz nacional interpretar o direito nacional em conformidade com o direito europeu.

348.ª Segundo o princípio da efetividade do Direito da União, as autoridades nacionais devem assegurar que, as pretensões decorrentes do Direito da União sejam tão protegidas quanto aquelas resultantes do direito nacional, o que se traduz numa ampliação dos poderes do Juiz já que, sempre que o direito nacional não ofereça um recurso efetivo ao particular, o juiz deve criar.

349.ª Nestes termos, é nosso entendimento que as normas de Direito europeu são diretamente aplicáveis, bem como a determinação da competência exclusiva do TJUE para decidir se a interpretação feita das normas internas pelo Tribunal a quo é ou não compatível com aquelas.

350.ª Deste modo, descendo ao caso concreto é para nós inquestionável que o Tribunal a quo, em toda a sua atuação decidiu diretamente, ou convocando interpretações normativas, em violação dos normativos citados – normas de Direito Europeu que vinculam os Tribunais nacionais.

351.ª No caso concreto, o Recorrente tem sérias dúvidas que a interpretação feita do direito da União, pela aplicação de várias disposições de direito interno na decisão recorrida, respeite as disposições em matéria penal e processual penal constantes do Direito da UE, em matéria de

(i) Direito à presunção de inocência,

(ii) Direito a ser julgado por um Tribunal imparcial previamente previsto na lei e

(iii) Direito a ser julgado através de um processo justo e equitativo, em que é dada uma efetiva oportunidade ao Arguido de organizar a sua defesa,

352.ª Em matéria de reenvio prejudicial rege o artigo 267.º do TFUE e conforme bem prevê este dispositivo legal, o reenvio será observado de modo diferente, consoante esteja em causa uma decisão susceptível, ou não, de recurso judicial.

353.ª Sem prejuízo de se tratar, potencialmente, in casu, de uma decisão susceptível de recurso e em que, por isso, o mecanismo do reenvio prejudicial não é obrigatório, entende o Recorrente que, estando em causa uma questão de aplicabilidade e de uniformidade de interpretação de direito da UE, da competência do TJUE, nos termos do artigo 267.º do TFUE, desde já se sugere a Vossas Excelências a colocação das questões prejudiciais que abaixo se especificam.

8. Ao abrigo do artigo 267.º do TFUE seja suscitado o incidente de reenvio prejudicial, com todos os fundamentos aduzidos supra, colocando-se à instância competente, caso V. Exa. assim o entenda, as seguintes questões:

8.1. Os artigos 48, n.º 1, da CDFUE, 6, n.º 2 e n.º 3, alínea d), da CEDH, e 3 da Diretiva 2016/343/EU que consagram a presunção de inocência, em conjugação com o artigo 2, artigo 4, n.ºs 2 e 3 do TUE, com o artigo 267 TFUE e com o princípio do primado do direito da União, permitem o tratamento dado em julgamento, pelo Tribunal de um Estado Membro, a um Arguido em que o Tribunal interfere na composição do rol de testemunhas; não permite que a defesa coloque as questões que considera necessárias à defesa do Arguido e, posteriormente, em sede de valoração da prova, a coberto do princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal apenas considere o que é necessário para condenar, desconsiderando os depoimentos favoráveis, fazendo uma análise sectorial e enviesada quer dos depoimentos entre si, quer dos depoimentos e da demais prova produzida?

8.2. Os artigos 48, nº 1, da CDFUE; 6, n.º 2, da CEDH; e 3 da Diretiva 2016/343/EU que consagram a presunção de inocência, em conjugação com o artigo 2, artigo 4, n.ºs 2 e 3 do TUE, com o artigo 267 TFUE e com o princípio do primado do direito da União, permitem a interpretação feita pelo Tribunal a quo no sentido de sujeitar a prova pericial à sua livre apreciação, quando aquela tem lugar porque são exigidos especiais conhecimentos técnicos e científicos (artigo 151.º e 163.º do CPP), e o Tribunal não permite que o médico perito esteja presente em audiência de julgamento, a fim de prestar esclarecimentos sobre as afirmações que o mesmo exarou no relatório pericial, nomeadamente, para que, devidamente contextualizado das circunstâncias do crime, possa esclarecer qual ou quais as agressões são causa direta da morte?

8.3. Os artigos 47.º da CDFUE e 6.º, n.º 2, da CEDH, que consagram o Direito a ser julgado por um Tribunal imparcial previamente determinado em lei, em conjugação com o artigo 2.º, artigo 4.º, n.ºs 2 e 3 do TUE, com o artigo 267.º TFUE e com o princípio do primado do direito da União, admitem a interpretação que o Tribunal fez do direito interno, em particular dos artigos 13.º do CPP e do art. 2.º, n.º 3, do Regime do Júri em processo penal, em conjugação com os artigos 368.º e 369.º do CPP, para permitir que o Tribunal do Júri tenha participado em decisões que lhe estão vedadas por lei, antes do início da deliberação sobre as questões da culpabilidade e determinação da sanção, nomeadamente, sobre a admissibilidade de meios de prova, sobre a alteração da qualificação jurídica dos factos e sobre a decisão a proferir em matéria de pedido de indemnização civil?

8.4. Os artigos 47.º e 48.º, n.º 2, da CDFUE; 6.º, n.º 3, al. b) da CEDH; e 6.º da Diretiva 2012/13/EU, que prevêem um processo justo e equitativo, na vertente de possibilidade de exercício efectivo dos direitos de defesa e de consagração de uma estrutura acusatória do processo, admitem a interpretação do direito interno de um Estado membro, em especial dos artigos 1.º/f), 358.º e 371.º do CPP, no sentido de permitirem, uma vez produzida toda a prova e encerrada a fase da audiência, que o Tribunal volte à fase da audiência e determine uma “alteração da qualificação jurídica” da qual resulta que são imputados ao Arguido crimes mais graves (de ofensa à integridade física para homicídio) e mais crimes (de cinco para sete), sendo certo que neste momento, o mesmo já não tem oportunidade efetiva de se defender?

2. Apreciando.

A questão do reenvio já se mostra abordada - por já ter sido previamente suscitada pelo mesmo recorrente, no recurso que interpôs da decisão de aplicação da medida de coacção de prisão preventiva - pelo acórdão proferido pela 9ª secção deste TRL, de 22 de Setembro de 2022.

Aí se mostra vertido, a este propósito, o seguinte:

Relativamente à questão 7 – reenvio prejudicial

O recorrente alega que o conceito de “princípio da inocência” constante do artº 6°, n.° 1, da CEDH e do art. 3° da Diretiva 2016/343 e o do art° 17 da Lei n° 88/2009, de 31-08, não é compatível com a interpretação feita pelo tribunal nacional dos arts. 140°, 141°, 193°, 194° e 204° do CPP.

Cremos que existe aqui uma confusão manifesta do recorrente relativamente ao reenvio prejudicial.

Com efeito, o reenvio prejudicial não se destina a aferir da interpretação feita pelos tribunais nacionais de normas de direito interno. Destina-se a aferir da interpretação de direito comunitário que tenha relevância para o caso concreto. Tem em vista levar ao TJUE questão relativa à interpretação de direito comunitário, com aplicabilidade no caso concreto nacional.

Não se enquadram, pois, aí questões relativas à interpretação ou apreciação de normas legislativas ou regulamentares de direito interno, nem matérias relacionadas com a compatibilidade dessas normas ou regulamentos com o direito comunitário. Por maioria de razão também não se aplica às questões respeitantes à validade ou interpretação das decisões dos tribunais nacionais, como pretende o recorrente.

Escreve-se no Acórdão da Relação de Lisboa de 26.4.2007 (processo 1602/07.9), in dgsi.pt:

“Se o tribunal nacional considerar que o litígio subjudice não deve ser decidido de acordo com as normas comunitárias, mas tão-somente na conformidade das disposições de direito interno, parece evidente que não pode ser-lhe imposta a obrigação de solicitar a interpretação [...] de uma norma comunitária desprovida de interesse para o julgamento da causa — e isto ainda que alguma das partes a tenha indevidamente invocado e suscitado a questão da sua interpretação [...]”

Como bem se explica no acórdão do STJ de 12.6.2014 produzido no processo 7/14.0YGLSB.S1 e relatado pela Colenda Sra. Conselheira Helena Moniz:

“I - O reenvio pré-judicial, encontra-se consagrado no art. 267.º do Tratado da União Europeia, deve ocorrer sempre que existam dúvidas quanto à interpretação de um dispositivo integrado num diploma da União Europeia: sempre que a questão seja suscitada perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal.

II – Havendo a obrigação de reenviar ao TJ, nos casos em que as decisões dos tribunais não sejam passíveis de mais recursos na ordem interna, isto significa que, na nossa ordem jurídica, “a obrigatoriedade do reenvio é imposta aos Supremos Tribunais cíveis e criminais, sociais, fiscais ou administrativos. Por exemplo, em Portugal, ao Supremo Tribunal de Justiça e ao Supremo Tribunal Administrativo” (Mota de Campos, J./Mota de Campos, J.L./ Pereira, A.P., Manual de Direito Europeu, Coimbra Editora, 2014), nos casos em que o esclarecimento sobre uma certa interpretação seja necessária para julgar o litígio.

III - “Estão sujeitas a obrigação de reenvio as jurisdições inferiores nos casos em que, dado o valor da causa ou a natureza do processo, não há recurso ordinário das suas decisões” (Mota de Campos, J./ Mota de Campos J.L./ Pereira, A.P.) As posições não estão suficientemente estabilizadas — se, por um lado, o TJCE entendeu que assim seria (caso Costa/ENEL de 15 de Julho de 1964), por outro lado, vemos, entre nós, quem defenda que os Tribunais não estão obrigados àquele reenvio, mesmo quando julguem causas em que já não é admissível o recurso, pois “não são os tribunais inferiores, julgando em causas de pouca relevância e que por isso mesmo não admitem recurso, que estabelecem a jurisprudência que pode pôr em risco a interpretação uniforme do direito da União. A função de fixar jurisprudência incumbe fundamentalmente aos tribunais supremos. Os erros de interpretação do direito da União cometidos por um tribunal de instância poderão ser corrigidos em processo ulterior.” (idem)”

Impõe-se, pois, rejeitar o reenvio prejudicial requerido.

3. Salvo o devido respeito, cremos que o que se acaba de transcrever é perfeitamente claro e correcto, no que toca à questão do reenvio prejudicial, sendo aplicável, mutatis mutandis, às questões que se mostram agora enunciadas pelo recorrente que, mais uma vez, pretende através deste pedido, algo que não encontra arrimo no artº 267 do Tratado Sobre o Funcionamento da União Europeia.

Aí se estabelece que:

O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial:

a) Sobre a interpretação dos Tratados;

b) Sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.

Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie.

Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal.

Se uma questão desta natureza for suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional relativamente a uma pessoa que se encontre detida, o Tribunal pronunciar-se-á com a maior brevidade possível.

4. Ora, como é bom de ver, nenhuma das questões cujo reenvio o recorrente peticiona se reporta a temas quer de interpretação de Tratados, quer sobre a validade e interpretação de actos adoptados por instituições da União.

Como adequada e sinteticamente se mostra explicitado no site próprio (https://eur-lex.europa.eu/PT/legal-content/summary/preliminary-ruling-proceedings-recommendations-to-national-courts.html), o objecto e âmbito de aplicação do reenvio é o seguinte (sublinhados nossos):

Essencialmente, um reenvio deve ter por objeto a interpretação ou a validade do direito da UE, e não das regras de direito nacional ou questões de facto suscitadas no litígio no processo principal.

O TJUE só se pode pronunciar sobre o pedido de decisão prejudicial se o direito da UE for aplicável ao processo principal.

O próprio TJUE não aplica o direito da UE a um litígio interposto por um órgão jurisdicional de reenvio, uma vez que a sua função consiste em ajudar a encontrar uma solução para o mesmo; a função do órgão jurisdicional nacional consiste em tirar conclusões sobre a decisão do TJUE.

As decisões prejudiciais são vinculativas tanto para o órgão jurisdicional de reenvio como para todos os órgãos jurisdicionais em Estado-Membros da UE.

4. Temos, pois, que não existe qualquer fundamento legal para o reenvio prejudicial que o recorrente peticiona, já que as questões por si suscitadas se não mostram sequer incluídas no elenco do dito art. 267 do T.F.U.E., uma vez que o TJUE não se pronuncia sobre a interpretação a dar a disposições de direito interno, apenas podendo haver lugar ao uso de tal mecanismo jurídico quando, num dado processo, à jurisdição nacional de um Estado membro se suscitam dúvidas sobre a interpretação a dar a uma norma comunitária ou sobre a validade de um acto jurídico das instituições.

Tal não é, manifestamente, o caso dos autos, pelo que se rejeita o reenvio prejudicial requerido pelo arguido GG.”

Pois bem.

Apesar de não haver dúvidas sobre a obrigação de garantir o primado do direito comunitário/direito europeu (tal como decorre do art. 8.º, n.º 4, da CRP) e sobre a competência do Tribunal de Justiça para decidir de pedido de decisão/reenvio prejudicial que lhe seja colocado por órgão jurisdicional nacional de Estado-membro, a verdade é que, como bem decidiu a Relação, neste caso concreto não se verificam os pressupostos do invocado reenvio prejudicial.

É que não basta o recorrente/arguido GG vir invocar a violação de normas de direito europeu para se concluir que se verificam os pressupostos do art. 267.º TFUE5 e para o tribunal suscitar o reenvio prejudicial (e repare-se que, quem suscita o reenvio prejudicial é o órgão jurisdicional nacional de Estado-membro e não a parte ou o sujeito processual, como aqui o recorrente pretende fazer, por discordar da decisão da Relação, que não lhe deu razão às questões por si colocadas quando recorreu do acórdão da 1.ª instância).

Genericamente visando o processo do reenvio prejudicial garantir a uniformidade na interpretação e aplicação do Direito da União Europeia, diremos que é seu pressuposto que o órgão jurisdicional nacional de um Estado-membro considere que para a resolução da causa que tem para julgar e decidir é necessário apreciar ou interpretar determinada disposição do Direito da União (portanto terá de estar em causa a aplicação do Direito da União Europeia).

Nessa perspetiva, o órgão jurisdicional nacional do respetivo Estado-membro pede ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) que se pronuncie sobre as dúvidas que tem, relativas ao correto entendimento da disposição europeia relevante para a solução da causa que tem de julgar, suspendendo o processo nacional enquanto não obtém a resposta do TJUE à questão prejudicial.

Dependendo do poder discricionário do órgão jurisdicional nacional diremos que é em princípio facultativo o reenvio prejudicial.

Mesmo a aparente obrigatoriedade, quando o pedido de reenvio seja feito a órgão jurisdicional nacional cujas decisões já não sejam passíveis de recurso ordinário perante o direito interno (art. 267.º TFUE), só se impõe quando o órgão jurisdicional nacional entender que se verificam os pressupostos do reenvio, isto é, que é preciso convocar o TJUE para responder a dúvida quanto a disposição do Direito da União necessária para a solução da causa a julgar e decidir6; caso contrário, não existe essa obrigatoriedade de reenvio (assim, acórdão do Tribunal de Justiça de 6.10.1982, Cilfit, 283/81).

Ora, no caso concreto em apreciação, foram aplicadas normas de direito interno e, como bem argumenta o Sr. PGA neste STJ, não se colocaram, nem colocam, quaisquer dúvidas sobre a aplicação e interpretação de normas do Direito Comunitário, o que era pressuposto essencial para acionar o mecanismo do reenvio.

Tão pouco houve uma aplicação implícita do direito da União Europeia ou das normas indicadas pelo recorrente, sobre as quais a decisão recorrida nem se pronunciou.

Nenhuma norma ou interpretação normativa de Direito Comunitário/Direito da União Europeia está subjacente à decisão proferida, por ser a decorrência necessária da solução jurídica nela adotada, mesmo não tendo sido invocados expressamente outros preceitos legais ou princípios jurídicos, nomeadamente os invocados pelo recorrente.

O que antes se verifica é que o recorrente, apelando a normas do direito da União Europeia pretende convocar o mecanismo do reenvio prejudicial, não por existir uma dúvida de interpretação de preceito normativo de Direito Comunitário que tivesse sido aplicado na solução do caso, mas antes porque discorda da decisão recorrida, que negou provimento ao seu recurso, o que não pode ser.

De resto, o Tribunal de Justiça não funciona, como pretende o recorrente, como mais uma instância de recurso, desta vez do direito interno que lhe foi desfavorável.

Ou seja, o direito interno (no caso a decisão da Relação) não pode ser sindicado pelo Tribunal de Justiça; não é essa a sua função, nem sequer quando é chamado a responder a questões colocadas no âmbito de um verdadeiro pedido de reenvio (mesmo quando se trata de reenvio de interpretação), o que não sucede neste caso como se explicou.

Portanto, ao contrário do que afirma o recorrente, nem sequer se trata de uma indevida ou ilegal retenção do reenvio prejudicial, porque o que sucede é que não estão preenchidos os pressupostos para acionar este incidente.

Em face do exposto, por não se verificarem os pressupostos do reenvio prejudicial (não existindo sequer a aparente obrigatoriedade de reenvio como acima se elucidou), improcede a sua argumentação quanto a esta questão, sendo certo que não foram violadas as normas e princípios invocados pelo recorrente.

2ª Questão (recurso do arguido GG): violação do princípio da presunção de inocência na (livre) apreciação da prova.

Para tanto, em resumo, invoca o recorrente, que a decisão recorrida aceitou a motivação da prova que foi feita pela 1ª instância, não mantendo ao longo de toda a condução do processo uma postura isenta e imparcial e, ao invés de presumir a inocência do recorrente, partiu da sua culpabilidade sobre os factos em discussão, invertendo toda a lógica que era de esperar de um tribunal imparcial, ofuscada pela convicção que formou de que possuindo o arguido GG antecedentes criminais e praticando ..., só podia ser culpado e, por isso, foi alvo de uma condenação até superior ao seu coarguido, apesar de ter sido este a desferir o soco que levou o BB e o EE ao chão, considerando infundadamente o seu (do recorrente) mais grave, violando o princípio da livre apreciação da prova, designadamente quando deu como provados factos sobre os quais não foi produzida uma única prova, violando os princípios da presunção de inocência, do in dubio pro reo e violando o disposto no art. 163.º do CPP, quanto à prova pericial, que avaliou erradamente.

Acrescenta que para além das provas produzidas (imagens da Câmara Evolution, relatório da autópsia, testemunhas ouvidas) serem inconclusivas, não se podendo dar como provado que tivesse agredido o EE, nem tão pouco o dolo, a dúvida teria de ser decidida a favor do recorrente, o que não foi feito (em violação do princípio in dubio pro reo), sendo até evidenciada pela insuficiente fundamentação do tribunal recorrido, quanto à causa da morte daquele (por elementos insuficientes que comprovem o nexo de causalidade entre a conduta do recorrente e a morte do EE, apesar de terem sido indeferidos os pedidos que fez de esclarecimentos ao perito), importando individualizar a conduta de cada interveniente, para que se possa concluir, com segurança, a culpabilidade de cada um deles e definir-lhes a pena, se for esse o caso.

Conclui que, por respeito ao princípio da presunção de inocência e às suas garantias de defesa, exigia-se que a decisão condenatória assentasse na demonstração positiva da intencionalidade dolosa dos arguidos, em concreto do recorrente, o que não sucedeu, pelo que deve ser a mesma revogada e substituída por outra que o absolva.

No essencial estas questões também já tinham sido colocadas na Relação como a seguir se verá.

Aliás, consta da decisão sob recurso no que aqui interessa, o seguinte:

8. Revista a prova, procederemos, de seguida, à análise dos recursos interpostos, em sede de matéria factual.

9. Apreciação do recurso do arguido AA:

i. O arguido insurge-se quanto à seguinte matéria de facto:

“2.1.25 - Os confrontos deslocaram-se então para a zona adjacente à entrada da Discoteca 2 e os arguidos dirigiram-se ao agente EE, que tentava igualmente fazer cessar os confrontos”;

“2.1.26 – Pelas 06h20m08 o arguido AA aproximou-se pela retaguarda do agente EE, o qual se encontrava numa atitude apaziguadora, e desferiu-lhe um soco na parte de trás/lateral da cabeça, fazendo-o cair de imediato no chão”;

“2.1.32 – Encontrando-se prostrado no solo, os dois arguidos desferiram um número indeterminado de pontapés na sua cabeça (...)” (por referência a DD).;

“2.1.69 – O arguido AA atuou com a intenção concretizada de molestar fisicamente os ofendidos BB e CC, nos termos acima descritos, utilizando os especiais conhecimentos adquiridos no ... Marinha, ..., atuando de forma violenta e concertada com o arguido GG”

“2.1.71 – Os arguidos, atuaram com a intenção concretizada de molestar fisicamente os ofendidos, ao desferirem os socos e pontapés intensos, designadamente na zona da cabeça dos ofendidos EE e DD, atuando de forma violenta e concertada (...) e sabiam que tais condutas poderiam provocar a morte cujas cabeças socaram e pontapearam indiscriminadamente e conformaram-se com tal resultado, fazendo-o repetida e sucessivamente, o que viria a culminar na morte de EE”.

2. O ponto 2.1.25 refere que o Senhor Agente EE estaria a tentar “(...) fazer cessar os confrontos (...)” e, por outro lado, o ponto 2.1.26 refere que o Senhor Agente EE estaria numa atitude apaziguadora.

No seu entender, as imagens de videovigilância demonstram precisamente o contrário, sendo esse o meio de prova que impõe decisão diferente quanto à matéria de facto provada (fls. 346, minutos 01:30 a 01:35).; 4. As provas que implicariam uma decisão diversa são precisamente as mesmas que levaram à prova do facto 2.1.89.; 5. Existe uma contradição insanável da fundamentação, na medida em que não se pode argumentar que um qualquer indivíduo estaria a tentar fazer cessar as agressões e, numa atitude apaziguadora, decide desferir um murro “à traição” num dos agressores.

ii. Salvo o devido respeito, revista a prova, não lhe assiste qualquer razão.

De facto, e desde logo, inexiste qualquer contradição entre a adjectivação de “atitude apaziguadora” e a circunstância de EE ter dado um murro no co-arguido GG, como aliás resulta claro da fundamentação realizada a este título pelo tribunal “a quo”, onde se afirma:

O facto tido como assente extraído da contestação do arguido GG resulta da visualização do vídeo. Importa sublinhar que dele não se extrai qualquer contradição com o teor dos factos 2.1.25 e 2.1.26, na esteira do já acima fundamentado, de que os ofendidos agentes da PSP intervieram para pôr cobro às agressões e que, nessa medida, atuaram, nos termos descritos na matéria assente, em conformidade. Tentar neutralizar o agressor é uma forma de apaziguar as agressões que por este estavam a ser levadas a cabo. E não colhe o argumento de que tendo álcool no sangue cujo valor era de 1,27 gr /dl, tal o impeliu a intervir na contenda. Apurou-se que seguiu os seus colegas, que verbalizaram ser polícias, com vista a pôr cobro à contenda, tendo uma atitude apaziguadora, como já fundamentado. Na verdade, o facto de a vítima ter o referido valor de álcool no sangue não obsta ao que acabou de se exarar, nem tem a virtualidade de colocar em causa todos os factos a atinentes a EE que se tiveram por assentes.

O facto não provado encontra suporta na fundamentação que acima se exarou a propósito da versão dos arguidos que estavam a ser atacados e se defenderam, no ponto IV. Apenas se acrescenta que ainda que se estivesse no início da contenda, não há fundamento para sustentar a ideia de um ataque por parte dos ofendidos, que a eles se dirigiram de braços no ar (e no pressuposto tido como não provado, a seu favor, que não perceberam e não interiorizaram que estes eram agentes da PSP). A resposta à aproximação dos ofendidos é de tal forma intensa e brutal, sobre todos eles, e repetida, que se não compagina com a alegação de temor ou de que pensaram estar a ser atacados. De resto, se as testemunhas perceberam a atitude apaziguadora dos ofendidos agentes da PSP, não colhe que os arguidos a tivessem percecionado como agressora. Não tem sustentação probatória que a conduta dos ofendidos indiciasse uma agressão iminente, o que se sublinha.

iii. Na verdade, como resulta do próprio texto do acórdão, estamos perante o relato de uma situação dinâmica e não estática, que vai tendo desenvolvimentos.

No caso, o que resulta quer das imagens de videovigilância, quer dos depoimentos prestados, quer do texto do acórdão, é algo simples – num primeiro momento - 2.1.26 Pelas 06h20m08 o arguido AA aproximou-se pela retaguarda do agente EE, o qual se encontrava numa atitude apaziguadora, e desferiu-lhe um soco na parte de trás/lateral da cabeça, fazendo-o cair de imediato no chão; 2.1.27 Em ato contínuo o arguido AA desferiu mais um pontapé na cabeça do agente EE, - EE interveio, tentando que o confronto físico que ocorria em frente à discoteca, cessasse, algo aliás que não tentou sequer sozinho, fazendo-o apenas de modo verbal e por colocação do seu corpo no caminho dos agressores. Essa actuação não foi apenas por si prosseguida, mas por dois outros agentes. Não obstante, tal apaziguamento não foi possível, pois os arguidos agrediram os dois primeiros agentes policiais, pelo que a atitude apaziguadora da vítima, inicialmente meramente verbal e posicional, após a agressão dos seus colegas, teve de passar a interventiva, aí se inserindo o desferimento do soco consignado no ponto de facto 2.1.89 A vítima EE desferiu um soco no arguido GG (no contexto factual da atitude descrita em 2.1.26).

É aliás esta dinâmica que se se mostra claramente explicada em sede de motivação realizada pelo tribunal “a quo”, atrás transcrita.

Não se vislumbra, pois, qualquer contradição.

iv. Entende ainda o recorrente que existe um erro notório na apreciação da prova, pelas seguintes razões:

7. O Tribunal recorrido considera que o arguido-recorrente “(...) atuou com a intenção concretizada de molestar fisicamente os ofendidos BB e CC, nos termos acima descritos, utilizando os especiais conhecimentos adquiridos ... Marinha, ..., atuando de forma violenta e concertada com o arguido GG” (facto provado 2.1.69).

8. Perguntar-se-á, desde logo, como é que alguém que decide reagir a uma agressão prévia (factos provados 2.1.13 e 2.1.14) atua de forma concertada com o arguido GG, se este (GG) tinha acabado de ser agredido, limitando-se AA a reagir. Perguntar-se-á, também, o que é que um “soco” tem que ver com os “(...) especiais conhecimentos adquiridos ... Marinha, ... (...)”.

9. Não houve uma testemunha que atestasse quais eram os concretos conhecimentos adquiridos na Marinha... Ainda assim, o Tribunal precipita-se a concluir (porque assim o supôs) que ..., enquanto membros de uma tropa de elite, têm esse tipo de formação... Para além de generalidades, não existe prova nos autos que permita concluir que, de facto, os arguidos adquiriram conhecimentos especiais de luta nos cursos que lhe foram ministrados.

v. Vamos por partes.

No que respeita aos especiais conhecimentos de preparação física e de técnicas de combate de luta corpo a corpo, relativos a alguém que pertence ao corpo de ..., é algo que, para além de ser um facto notório, consubstancia-se, desde logo, nas exigências que são feitas, em termos de provas físicas de mera aptidão, para admissão nesse tipo de cursos, que bem demonstram que, apenas na fase inicial e para poderem vir a frequentar o curso de ..., quem se candidata tem de ter uma preparação que se mostra muito exigente.

Basta consultar o próprio site governamental (https://recrutamentomilitar.bud.gov.pt/profissao....-0), para se constatar que as provas físicas de admissão impõem que o candidato, para o curso de ...., tem de conseguir realizar, como requisitos mínimos:

5 elevações na barra com mãos em pronação;

30 flexões abdominais (tempo máximo de 1 minuto);

Correr 2400 m em terreno plano (tempo máximo de 12 minutos);

Nadar 25 m, em piscina, com controlo respiratório numa técnica ventral, sem apoio nem paragens. Em flutuação, mergulhar e recolher uma manilha de 0,2 a 0,5 kg de peso, colocada a uma profundidade entre 2 e 2,5 m.

Suspenso de um cabo vertical, saltar para uma rede de abordagem e descer por esta;

Descida do slide com alça.

NOTAS:

A sequência é realizada com intervalos de 5 minutos entre as provas;

São permitidas 3 tentativas em cada uma das referidas provas;

É excluído do concurso o candidato que não consiga realizar qualquer uma das provas da componente física;

A realização das provas de classificação e seleção são feitas de acordo com o Despacho do ALM CEMA, n.º 39/19, de 11SET

vi. Coisa pouca, como se vê. E esta aptidão física é apenas para poderem ingressar no curso em si, pelo que se destina a assegurar que os candidatos consigam, no decurso da formação, aguentar e aperfeiçoar esse seu desempenho, entre outros, na luta corpo a corpo, como aliás dão notícia os vários testemunhos de ... que se mostram postados pelas F..... ......., no sobredito site.

vii. Acresce que, no caso, para além deste enquadramento – o arguido era ..., pelo que superou as provas de admissão e conseguiu, igualmente, alcançar a preparação física superior que é pedida a esse tipo especial de elementos das Forças Armadas – o arguido (2.1.103) Mantinha como hobbys a prática de desporto – musculação, em contexto de ginásio e desportos de combate, entre os quais … e ..., mantendo hábitos de convívio com pares praticantes destas modalidades, entre os quais o coarguido GG, instrutor de ..., com quem, por vezes, treinava.

E esse treino e essa preparação física, muito acima da média, mesmo em relação a elementos de uma força policial (como resulta das consequências dos murros desferidos, que fazem as vítimas cair de imediato ao chão, com a aplicação de um único golpe, a que acresce a mera constatação de facto de os agentes da PSP não terem conseguido parar fisicamente nenhum dos dois arguidos…), resulta igualmente evidente do modo como os confrontos se desenvolveram e da esmagadora superioridade física que ambos os co-arguidos demonstraram, mesmo quando várias pessoas, ao mesmo tempo, os tentaram parar.

E mostra-se plenamente demonstrada pela força e violência que o recorrente imprimiu ao soco que desferiu em BB e em EE, já que uma única agressão, na zona da cabeça, determinou a queda ao solo, inanimada, das vítimas …

viii. Acresce ainda o acerto não impugnado do que se mostra referido pelo tribunal “a quo”, em sede de fundamentação da sua motivação:

Com efeito, quanto ao facto 2.1.2, não obstante os arguidos terem negado possuir esses conhecimentos de defesa pessoal, tal declaração não colheu qualquer credibilidade por parte do Tribunal. Vejamos porquê.

O arguido GG, sobre esta matéria, referiu que no Curso de ..., cuja duração é de um ano, apenas teve aulas de manuseamento de armas, e de corpo a corpo, nuns parcos um ou dois dias de formação. Acabou por dizer que há aulas de defesa pessoal, umas quatro ou cinco aulas, mas as suas declarações foram titubeantes, inseguras (o que levou a que o Tribunal chegasse mesmo a solicitar-lhe que olhasse para a frente e não sistematicamente para o lado, onde se encontravam os Defensores, deixando perceber que a estratégia da defesa passava pela negação de sustentados conhecimentos de defesa pessoal).

De igual jaez, também o arguido AA negou ter conhecimentos de defesa pessoal, admitindo apenas que a sua preparação era acima da média.

Esta versão não se compagina de todo com a preparação física bastante acima da média e a defesa pessoal que necessariamente as forças militares especiais possuem, como é consabido. Estamos a falar de uma tropa de elite, que como o arguido acabou por admitir, está na primeira linha do embate, se necessário corpo a corpo, e seria, no mínimo, inverosímil, para não dizer incompreensível, que os arguidos, integrando-a há já vários meses, não tivessem conhecimentos dessa natureza.

Mas ainda que assim não fosse, o que se diz sem conceder, ficou claro pelo testemunho de ZZ, à data Capelão da Marinha, e JJ, segurança, que ambos os arguidos eram praticantes de ..., desporto que treinavam nos “P........”, na .... Ora, as técnicas de defesa pessoal são disciplina necessária nessa modalidade, na vertente que lhe é própria, como de resto se constata à evidência pela sua atuação na dinâmica dos factos visualizável nos vídeos, na respetiva postura e na supremacia que obtiveram independentemente da discrepância numérica dos intervenientes.

Mas mais:

- AAA, testemunha absolutamente credível e que depôs de forma desinteressada e objetiva, disse que nunca tinha visto nada assim ao vivo, era uma pessoa que estava à vontade naqueles cenários, pois as pessoas caíam na sequência dos murros, e que num momento inicial ainda deu um passo ou dois para ajudar a separar a contenda, mas quando perceberam a proporção do que se estava a passar, os seus amigos o puxaram para trás, impedindo que o fizesse;

- BBB, cujo depoimento também foi absolutamente objetivo e credível, disse que se notava que um dos arguidos tinha treino, pela maneira como se mexia, sendo que acompanha há vários anos as artes marciais e que sabe fazer essa apreciação, mais esclarecendo que há movimentos que são próprios de quem as pratica; cada murro que desferia, a vítima caía ao chão, sendo que algumas caíram inconscientes; ficaram caídas imensas pessoas no chão; notava-se que os dois arguidos faziam equipa e a todos agrediam, mesmo os que explicitamente iam para apaziguar;

- CCC, cujo depoimento também foi absolutamente objetivo e credível, disse que quem caiu já não se levantou;

- SS, segurança do 1 que acompanhou BB à porta, sobre a matéria ora em fundamentação, disse de forma clarividente e desinteressada que um grupo se defendia e outro atacava, com socos, que desferiam aos que se defendiam, mas que não se sabiam defender.

Acresce o teor dos Relatórios Sociais sobre esta matéria.

Quanto ao arguido AA extrai-se do mesmo que mantinha como hobbys a prática de desporto – musculação, em contexto de ginásio e desportos de combate, entre os quais ... e ..., mantendo hábitos de convívio com pares praticantes destas modalidades, entre os quais o coarguido GG, instrutor de ..., com quem, por vezes, treinava.

Do Relatório Social de GG extrai-se que era praticante amador de ... desde a sua adolescência, no P....... ..... ...., em ..., e que se dedicava, desde 2022, em regime de voluntariado, uma vez que ainda não tinha concluído o curso de formação de instrutor/treinador de ... iniciado em maio de 2021, a dar aulas da modalidade na Academia de ..., em ..., a praticantes com idades compreendidas entre os dez anos e os vinte e dois anos de idade. A prática desportiva de ... amador, pela qual demonstrou empenho e investimento, veio a assumir alguma relevância na sua vida, tendo-se mesmo consagrado campeão amador da modalidade em 2021.

Desta feita, o Tribunal não teve qualquer dúvida em levar ao acervo fático assente o teor do facto 2.1.2, na sua integralidade, não obstante a negação do segmento “possuir conhecimentos de defesa pessoal” efetuada pelos arguidos.

ix. Por seu turno, e no que se refere à actuação concertada, ela é uma mera constatação, decorrente do comportamento de ambos os arguidos, ao saírem da discoteca. De facto, se num primeiro momento se pode referir que o co-arguido GG é agredido por BB (que o esperava à porta da dita discoteca, para responder à agressão de que tinha sido vítima no seu interior), a verdade é que este último, após desferir o soco, afasta-se cerca de 2 metros e, nesse momento, o presente recorrente, arguido AA, desfere-lhe um murro com tal intensidade, que BB cai ao chão, seguindo-se depois a agressão pelo co-arguido GG, ao mesmo BB.

Ora, salvo o devido respeito, se BB deu um murro ao arguido GG e depois se afastou, a actuação do ora recorrente não se funda em nenhuma necessidade de defesa alheia, mas antes de ataque a quem tinha atacado o seu co-arguido. De igual modo, e logo de seguida, o arguido GG avança e agride selvaticamente BB, que estava no chão, sem qualquer possibilidade de se defender. E o co-arguido AA, que está ao seu lado, não o impede ou dissuade de tal. Tiveram de ser terceiros, que se postaram ao lado do corpo caído no chão, a tentarem evitar que a agressão prosseguisse.

É assim manifesto que o arguido AA e o arguido GG actuaram de forma violenta e concertada. E não apenas neste caso, mas ainda nos restantes que a decisão enuncia.

x. Mais alega o recorrente AA o seguinte:

10. Finalmente, considera o Tribunal recorrido que “2.1.71 – Os arguidos, atuaram com a intenção concretizada de molestar fisicamente os ofendidos, ao desferirem os socos e pontapés intensos, designadamente na zona da cabeça dos ofendidos EE e DD, atuando de forma violenta e concertada (...) e sabiam que tais condutas poderiam provocar a morte cujas cabeças socaram e pontapearam indiscriminadamente e conformaram-se com tal resultado, fazendo-o repetida e sucessivamente, o que viria a culminar na morte de EE”.

11. O acórdão considerou provado, portanto, que o arguido AA desferiu “socos e pontapés”, fazendo-o “repetia e sucessivamente”, mas compulsado o facto não provado n.º 2.2.14, não se compreende a utilização do plural quanto ao arguido AA.

12. Também não se compreende a utilização dos vocábulos “repetidamente” e “sucessivamente”. Repetidamente implica, desde logo, mais do que um pontapé, na medida em que, quanto a EE, provou-se que apenas foi desferido um pontapé (o que inviabiliza a utilização do vocábulo repetidamente).

13. Por outro lado, quanto a DD, não se provou quantos pontapés foram desferidos pelo Recorrente (referindo-se, apenas, um número indeterminado)... Ora, este número indeterminado, pode – salvo o devido respeito – ser apenas um.

14. Não pode, por isso, o Tribunal a quo referir que AA pontapeou repetidamente as cabeças de EE (algo que efetivamente não aconteceu) e DD (algo que efetivamente não se logrou provar).

15. E, por esse motivo, impõe-se a respetiva correção na matéria de facto provada.

xi. Salvo o devido respeito, basta a mera leitura da matéria de facto dada como provada, para se mostrar perfeitamente compreensível e adequado o uso do plural.

Chamamos a atenção do recorrente para a circunstância de, para além do soco inicial em BB, se mostrar ainda dado como assente que:

2.1.26 Pelas 06h20m08 o arguido AA aproximou-se pela retaguarda do agente EE, o qual se encontrava numa atitude apaziguadora, e desferiu-lhe um soco na parte de trás/lateral da cabeça, fazendo-o cair de imediato no chão.

2.1.27 Em ato contínuo o arguido AA desferiu mais um pontapé na cabeça do agente EE.

2.1.32 Encontrando-se prostrado no solo, os dois arguidos desferiram um número indeterminado de pontapés na sua cabeça e o ofendido DD, para se proteger, colocou as mãos em volta da cabeça.

2.1.38 Apercebendo-se dessa tentativa o arguido AA voltou para trás e desferiu um soco no ofendido CC.

xii. Por seu turno, o uso da expressão número indeterminado significa e implica, forçosamente, que nos estejamos a referir a mais do que um. Senão dir-se-ia um e não número indeterminado, como se nos afigura mais ou menos lógico…aliás, o tribunal “a quo”, na motivação, explica, precisamente que, por não saber quantos pontapés foram desferidos (isto é, mais do que um…) determinou dar como assente que o foram, lá está, em número indeterminado; isto é, mais do que um, mas ignorando-se a quantidade concreta….

xiii. Atento tudo o que se deixa dito, há que concluir que não se vislumbra, assim, qualquer erro na apreciação probatória realizada quanto a esta matéria factual, razão pela qual não tem a mesma de sofrer qualquer rectificação. De igual modo não se verifica nenhum dos vícios consignados no artº 410 nº2 do C.P.Penal.

Improcede, pois, nesta parte, o recurso interposto pelo arguido AA.

10. Apreciação do recurso do arguido GG:

i. Afirma o recorrente que não existe prova, para além das declarações prestadas pelo ofendido, de que o arguido tenha agredido BB no interior da discoteca. Por tal razão, entende que tal matéria deve ser dada como não provada.

67.ª Passemos, então, à impugnação da matéria de facto, desde logo, salientando o Recorrente não entender como pode ser responsabilizado por qualquer lesão sofrida por BB, oriunda da altercação ocorrida no interior da discoteca 1;

68.ª O Tribunal a quo, deu como provado que o Recorrente desferiu um empurrão e uma cabeçada no mencionado Ofendido, porém, socorreu-se, para tanto, única e exclusivamente, do depoimento do próprio Ofendido BB, que, logicamente, foi totalmente motivado, interessado, bem como incoerente;

69.ª Tal depoimento não pode ser conjugado com qualquer outro que lhe confira credibilidade, pelo contrário, resulta do depoimento prestado por SS, segurança da discoteca que interveio na altercação (820230414100305_20503204_2871039, min. 02’14 – 07’25), que ele não visualizou, directamente, qualquer agressão sendo desferida e que, por isso, não consegue identificar o autor das mesmas;

70.ª Ou seja, ficou provado tão somente a ocorrência de um tumulto no interior da discoteca, bem como que o Ofendido sangrava do nariz;

71.ª Inclusive, quando questionado em audiência se reconhecia os Arguidos como agressores na contenda no interior da discoteca, negou e ainda afirmou se lembrar apenas de um homem “careca e gordinho” - quem, hoje, sabemos ser KK, acrescendo que a sua intervenção na confusão consistiu justa e unicamente na direção deste, em razão da sua exaltação na discoteca;

72.ª Ressalta-se que o próprio Ofendido BB confirmou em seu depoimento as diversas contradições existentes em torno dessa factualidade: (a) assumiu que o comportamento esperado de um segurança de um ambiente de diversão noturna, diante de uma altercação, é colocar para fora da discoteca quem provocou a briga, e não quem foi a vítima, como ele afirma ter ocorrido naquele dia no 1; (b) afirma não se ter queixado a nenhum outro responsável da discoteca, além do segurança, sobre a sua suposta injusta expulsão do local, além de contar não ter solicitado o livro de reclamações; (c) e, naturalmente, não consegue explicar como uma pessoa, com menos de 10cm de diferença dele, seria capaz lhe dar uma cabeçada na testa – ora, por completamente impossível disso acontecer;

73.ª O Tribunal a quo, sem qualquer embasamento ou explicação, invoca, para explicar a suposta cabeçada desferida pelo Recorrente, o que chama de “técnicas de elevação frontal”, esquecendo-se de esclarecer, além de quais técnicas são essas, como seria possível elas serem empregues sem que absolutamente ninguém que estava no local visse a agressão;

74.ª Assim, a verdade é que a dinâmica dos acontecimentos dentro do estabelecimento noturno 1 não ficou comprovada com o grau de certeza exigido a qualquer decisão penal, devendo dar-se como não provado que o Recorrente tenha desferido um empurrão e uma cabeçada no Ofendido BB (facto 2.1.5) e, consequentemente, o Recorrente absolvido do crime de ofensas à integridade física simples, na pessoa de BB, no qual foi condenado à pena de seis meses de prisão.

ii. Salvo o devido respeito, não lhe assiste razão.

Desde logo, o tribunal “a quo” fundamenta exaustivamente as razões pelas quais deu tal matéria como assente (sendo certo que não teve apenas por base a visualização das imagens no interior da discoteca porque, como é bom de ver, não abarcam a integralidade do sucedido, nem são o único meio de prova ao dispor do tribunal, cabendo ao julgador conjugar toda a prova produzida), nos seguintes termos:

Os arguidos também admitiram que estiveram na discoteca 1 na noite dos autos, que houve uma altercação no primeiro piso, com o ofendido BB, e que o Segurança interveio e o conduziu à saída. Nesta parte, os factos são pacíficos.

No que tange à dinâmica dos factos ocorridos no interior da discoteca, as versões dos arguidos não são coincidentes, nos pormenores, mas apenas na estratégia, ao dizerem que foi o ofendido BB quem assumiu uma postura desafiante, com um movimento corporal intimidador. O arguido AA disse que nada ouviu, mas viu o ofendido BB “partir para cima”, aproximando-se, e que o arguido GG o empurrou, tudo por causa do parco espaço para circularem. Já GG disse que o ofendido BB estava a olhar para o KK, que disse qualquer coisa, e que, parecendo que se estava a preparar para um confronto, pois colocou o fio de ouro para dentro da roupa, ele próprio o afastou com o braço.

Por seu turno, o interveniente e ofendido BB veio dizer que, sem que nada o fizesse prever, absolutamente “do nada”, quando estava na pista de dança, foi agredido por dois indivíduos, com um murro e uma cabeçada. Identificou-os como sendo de raça negra, o que lhe deu a cabeçada, a quem depois se dirigiu no exterior, e de raça branca, quem lhe desferiu o murro. Fica a dúvida sobre quem foi o autor do murro, se o arguido AA, que negou essa conduta, se o KK, que também os acompanhava no interior, já que ambos são caucasianos e não houve concretização fática que ultrapassasse a dúvida.

No essencial, e para o que ora releva, teve-se por assente que houve uma contenda entre o arguido GG, que desferiu a cabeçada. E teve-se por credível esta versão porque se encontra sustentada pelo depoimento absolutamente objetivo e desinteressado do segurança do 1, SS, que veio dizer que não conhecia nem conhece os arguidos e que estava no local dos factos, no exercício das suas funções de segurança, quando viu uma altercação entre elementos de um grupo de cerca de umas treze pessoas e um indivíduo, tendo ido pôr cobro à situação, como era seu dever. Disse que o rapaz sangrava do nariz, era alto e tinha o cabelo preto, o que é compatível com a versão do murro relatada pelo ofendido BB, que ele mesmo confirmou ter sido desferido, confirmando ter havido uma cabeçada e ou um soco. Disse ainda que foi ter com o indivíduo que crê ter desferido esse soco, o qual se encontrava alterado, tendo o mesmo dito não se ter passado nada, mas não logrou identificar se o autor do soco foi um dos arguidos.

Desta feita, dúvidas não restaram sobre o teor do facto 2.1.5 quanto ao segmento que descreve que por motivos desconhecidos o arguido GG se envolveu com o ofendido BB e lhe desferiu uma cabeçada. Na dúvida inultrapassável, teve-se o conteúdo por não provado quanto ao autor do murro desferido sobre o ofendido BB.

E não se alegue que, sendo o ofendido BB mais alto (porquanto possui 1, 87 cm e 78 kg de peso) do que o arguido GG (que apenas tem 1, 77 cm e 76 kg de peso), seria impossível a este cabecear aquele porquanto as técnicas de elevação frontal, próprias das artes marciais já acima referenciadas, a isso habilitam a uma diferença de altura de dez centímetros que, diga-se, no contexto, não é de forma alguma impeditiva.

No mais, designadamente quanto ao teor do facto 2.1.7, com exceção do segmento inicial relativo aos tumultos que se geraram na pista de dança na sequência da contenda entre GG e o ofendido BB, teve-se em consideração o depoimento da testemunha SS que o confirmou, o qual se afigurou objetivo e credível, porque isento e equidistante dos intervenientes, como já acima se exarou.

Por fim, quanto ao último facto deste grupo, 2.1.8, o tribunal não logrou obter confirmação exata da hora porquanto a visualização do vídeo Hype a não permite estabelecer, como de resto nenhum outro, mas a conjugação das imagens permite afirmar, sem dúvida, que o facto ocorreu em momento muito próximo da hora ali constante.

iii. De facto, e como se vê, não só essa agressão é confirmada pela vítima e por um dos seguranças ouvidos, como se mostra corroborada pelos actos que se lhe seguiram.

Na verdade, a única explicação plausível para o ofendido BB, depois de ter sido obrigado a sair da discoteca, ter esperado pela saída do arguido (como decorre da gravação vídeo, a vítima, na rua, viu sair várias pessoas de dentro da discoteca e só avançou quando, minutos depois, o arguido GG saiu, avançando então para o mesmo), é, manifestamente, a sua vontade de se desforrar, digamos, da agressão de que fora vítima, por quem o tinha atacado.

Se nada tivesse ocorrido ou tivesse sido ele o agressor, o que as regras de experiência comum nos ensinam é que BB teria saído e ido à sua vida, não teria ficado à espera, no exterior. E caso não conseguisse reconhecer quem o tinha agredido, não teria assistido à saída desse clube nocturno de uma série de pessoas, impávido e sereno, apenas avançando e agredindo, quando o arguido GG saiu da discoteca.

Não se vislumbra, assim, qualquer erro de apreciação quanto a esta matéria.

iv. Prosseguindo.

No que concerne às conclusões 75 a 91, o arguido entende, neste segmento que, já após a saída da discoteca:

a. Não se mostra provado que tenha dado dois pontapés na cabeça de BB (os que tentou dar não acertaram);

b. BB não ficou inanimado;

c. O que pretendeu, tão-somente, foi defender-se.

c. O que pretendeu, tão-somente, foi defender-se.

Começando pela última questão, é manifesto não assistir qualquer razão ao recorrente; isto é, a sua actuação, em relação a BB, à saída da discoteca, nada teve a ver com defesa, essencialmente pelas razões que o tribunal “a quo” aduz, pelo que já deixámos anteriormente exposto no que toca ao co-arguido AA e pelo que a seguir se adita:

Quando alguém actua em sua própria defesa – ou em defesa de outrem – isso significa que está, no momento em que o faz, a ser alvo de um ataque ou na iminência do mesmo acontecer. Ora, no caso, pese embora BB tenha, de facto, dado um soco ao ora recorrente, quando este saiu da discoteca, a verdade é que, logo de seguida, o atacante afastou-se, sendo que nesse momento BB sofreu um soco na nuca, desferido pelo co-arguido AA, que o fez cair ao chão.

A partir desse momento, o que temos é alguém prostrado no chão, sem qualquer atitude de agressão ou não se vislumbrando sequer qualquer tentativa da sua parte de se tentar levantar ou de, deitado, tentar atingir alguém com os seus pés; isto é, BB não está a atacar ninguém. Na verdade, está é a ser atacado, quer pelo arguido AA, quer pelo arguido GG.

É isto que decorre, sem sombra de dúvida, da prova produzida, sendo certo que o próprio recorrente não disputa que, quando deu os pontapés na direcção de BB, este estava deitado no chão e não estava a fazer qualquer movimento de agressão na sua direcção.

b. BB não ficou inanimado;

Analisemos agora a questão de estar ou não BB, no chão, inanimado e de os pontapés que o recorrente admite ter dado, não o terem chegado a atingir.

Refere-se a este respeito, na fundamentação realizada pelo tribunal “a quo”, o seguinte:

Por seu turno, o arguido AA assumiu em audiência de julgamento que foi ele quem desferiu o murro na cabeça de BB, justificando que o fez em defesa do seu amigo GG. O murro foi de tal forma intenso, como se extrai das imagens de videovigilância, que o ofendido, com 1, 87 cm de altura e 78 kg, como já referido, caiu inerte no chão, não mais se movendo ou fazendo qualquer movimento de defesa relativo aos pontapés na cabeça que se lhe seguiram. BB assevera que ficou de imediato inconsciente. Note-se, a acrescer, que a testemunha CC disse que ouviram um barulho forte e viu uma pessoa caída no chão que associou ao ruído; WW relatou que o amigo BB ficou inconsciente, falou com ele, não se mexia, não reagia, e segurou-lhe no pescoço na esperança de uma resposta.

O vídeo 1 C1 prova os factos como se encontram descritos, mostrando com nitidez que o arguido GG desferiu dois pontapés com muita intensidade na cabeça do ofendido BB quando este se encontrava prostrado no chão, indefeso e sem reação. O mesmo disse ter perdido os sentidos, o que foi confirmado pelo seu amigo e testemunha WW. E do que se visualiza, o mesmo encontrava-se já inerte quando o arguido GG lhe desferiu o primeiro pontapé, logo após KK ter procedido de igual forma, o que levou a que fosse protegido pelo segurança e testemunha JJ, que se colocou com os seus pés a ladear e proteger a cabeça do ofendido. Desta feliz intervenção externa da testemunha JJ, resultou, portanto, a impossibilidade de o arguido GG continuar com sucesso a sua conduta de pontapear na cabeça BB.

GG afirma que desferiu pontapés, mas sem acertar no ofendido. Ora, o vídeo prova à evidência que lhe acertou num primeiro momento com dois pontapés, nos termos supra descritos, e só a atitude protetora de JJ pôs cobro à fúria destemperada do arguido GG impedindo outros pontapés certeiros na cabeça de BB que jazia inerte, sem sentidos, no chão.

O que o tribunal “a quo” deixa exarado mostra-se de acordo com o que as imagens revelam, ao inverso do que o arguido pretende. Os pontapés seguidos – que o próprio recorrente admite ter dado – acertaram o alvo, designadamente a cabeça de BB, quando este se encontrava deitado no chão. E apenas pararam pela intervenção protectora de terceiros.

Mais: que BB se mostrava inanimado no chão decorre, quer das suas declarações, quer das do seu amigo WW, que de imediato lhe acudiu. E decorre igualmente do modo desamparado como cai ao chão, logo após o soco que sofreu, bem como da circunstância de, enquanto continuava a ser agredido, não ter feito qualquer movimento de defesa, protector da sua cabeça ou tentado levantar-se. Foram terceiros que realizaram essa tarefa, de defesa de um corpo inerte, caído no chão, impedindo que a agressão continuasse.

Assim, e nestes segmentos, constata-se não assistir qualquer razão ao recorrente.

a. Não se mostra provado que tenha dado dois pontapés na cabeça de BB (os que tentou dar não acertaram);

O arguido encontra-se a centímetros de distância do corpo de BB, quando este está caído no chão, quando faz o movimento de pontapear. Convenhamos que nem sequer seria possível falhar o alvo, pela singela razão de que, dada a sua proximidade ao corpo, o movimento da sua perna ter forçosamente, pelo ângulo e amplitude da deslocação, de alcançar o sítio onde o corpo se encontrava. Não havia sequer espaço que possibilitasse, dado o movimento de pontapear, a distância e a direcção, não ser BB atingido…E BB estava imóvel no chão, pelo que se não podia desviar….

v. Conclusões 92 a 211; 251 a 266 e 269 a 270:

Em síntese, neste segmento, entende o recorrente que:

A. Os agentes da PSP não actuaram todos com intuitos apaziguadores (apenas um deles, porque levantou os braços), sendo certo que se seis pessoas (era esse o número de agentes presentes) tivessem referido, em coro, que pertenciam à polícia, tal desiderato teria sido alcançado, tendo a sua intervenção servido apenas para escalar o conflito, pelo que entende que se não deve dar como provado que dois agentes se identificaram enquanto tendo tal qualidade, nem que tiveram uma atitude apaziguadora, nem que tivessem actuado em exercício de funções;

B. Não foram os arguidos que se dirigiram a EE, mas antes o inverso;

C. Não se mostra demonstrado, pelas imagens de videovigilância, que FF tenha continuado a ser agredido pelo recorrente, pois aquele, após cair ao chão levanta-se e vai na direcção do recorrente que, sem êxito, lhe tenta dar um murro, que só então sai a correr;

D. As imagens de videovigilância não permitem afirmar que o recorrente deu 3 pontapés na cabeça de EE, nem o relatório de autópsia os confirma;

E. Não se mostra provado que os arguidos tivessem especiais conhecimentos de luta, pelo facto de serem ... .

F. Ignora-se que agressões em concreto determinaram a morte de EE, sendo certo que não existe prova de tal ter decorrido por virtude de pontapés dados pelo recorrente, mas antes como consequência do murro que o co-arguido AA lhe inflingiu, na nuca (as lesões eram na base do crânio), inexistindo nexo de causalidade entre os alegados pontapés do Recorrente na cabeça de EE e a causa da morte;

G. O relatório de autópsia foi realizado com insuficiência de dados, pois não foi dado ao médico-legista a oportunidade de visualizar as gravações de videovigilância, tendo sido indeferido o pedido de tomada de esclarecimentos ao médico-legista, que o recorrente formulou;

H. Não há prova de ter o recorrente agido com dolo;

I. Toda a matéria relativa ao sofrimento da vítima e dos seus progenitores, em sede de PIC, mostra-se por demonstrar, assim como a actuação em serviço do agente EE;

J. O tribunal contradiz-se quando afirma, por um lado «as agressões perpetradas pelos Arguidos constituem matéria que não compete ao Senhor Perito reportar ou analisar» e por outro que «lhe compete [ao Perito] atestar se os factos de que foi informado são compatíveis com essa lesão».

K. O tribunal violou os limites à livre apreciação da prova, pois que não lhe compete substituir-se ao perito nesse juízo científico.

vi. Vejamos então.

A. Os agentes da PSP não actuaram todo com intuitos apaziguadores (apenas um deles, porque levantou os braços), sendo certo que se seis pessoas (era esse o número de agentes presentes) tivessem referido, em coro, que pertenciam à polícia, tal desiderato teria sido alcançado, tendo a sua intervenção servido apenas para escalar o conflito, pelo que entende que se não deve dar como provado que dois agentes se identificaram enquanto tendo tal qualidade, nem que tiveram uma atitude apaziguadora, nem que tivessem actuado em exercício de funções;

B. Não foram os arguidos que se dirigiram a EE, mas antes o inverso;

C. Não se mostra demonstrado, pelas imagens de videovigilância, que FF tenha continuado a ser agredido pelo recorrente, pois aquele, após cair ao chão levanta-se e vai na direcção do recorrente que, sem êxito, lhe tenta dar um murro, que só então sai a correr;

D. As imagens de videovigilância não permitem afirmar que o recorrente deu 3 pontapés na cabeça de EE, nem o relatório de autópsia os confirma;

vii. Caberá começar por realçar que temos franca dificuldade em compreender a tese de defesa deste recorrente, de que a intervenção dos seis agentes da PSP não foi no sentido do apaziguamento da situação. Salvo o devido respeito, então foi em que sentido? Foram eles que instigaram os arguidos a agredirem BB e a continuar a agredi-lo, quando este já se encontrava inanimado no chão? Qual poderia ser o intento de seis pessoas, que exercem a sua profissão enquanto agentes policiais, que estavam a acabar uma noite de convívio entre colegas, que saíram da discoteca e se preparavam para ir à sua vida, sem agredirem quem quer que fosse, para voltarem para trás (os que já haviam saído) e aproximarem-se dos arguidos? E a sua intervenção ser recebida com agressões?

Cremos que a resposta é clara e óbvia – ao aperceberem-se que alguém (que nem conheciam) estava a ser selvaticamente agredido, quando se encontrava inanimado no chão, tentaram, obviamente e precisamente dada a sua qualidade de polícias, intervir para fazer cessar a agressão. Daí a expressão apaziguamento. Tentaram fazê-lo primeiro apenas mostrando a sua presença e interpondo-se entre os arguidos e a vítima. O resultado foi o de, pese embora essa manifesta tentativa de se pôr cobro à agressão, os arguidos decidirem que iriam escalar as mesmas, agora contra quem tentava proteger quem já estava ferido.

Diga-se, aliás, que o próprio recorrente, pese embora a sua tentativa de inversão da verdade histórica, mostra-se incapaz de atribuir a qualquer um dos agentes presentes a iniciativa de o agredirem em primeiro lugar. Ora, apaziguar não é sinónimo de não fazer nada e levantar braços, isto é, para que se possa entender que alguém tem o propósito de apaziguar, não se mostra necessário que levante os braços (como aliás se viu, uma das vítimas até se aproximou fazendo tal gesto e o que recebeu em troca foi uma agressão). Apaziguamento de uma situação abrange um amplo leque de actividades, que pode ir da identificação como agentes policiais, passando para a interposição física entre o agressor e o agredido e chegar mesmo ao uso da força, para parar uma actuação que é ilícita e criminosa. E a actuação que era ilícita e criminosa era, precisamente, a perpetrada pelos arguidos, não pelos agentes policiais que lhe pretendiam pôr termo. Diga-se, aliás, que do mesmo modo, tivesse a actuação apaziguadora dos agentes da PSP, sido protagonizada por meros cidadãos, também não se verificaria, da parte destes, qualquer propósito de agressão.

Pena foi que os arguidos, vendo pessoas que pretendiam acalmar os ânimos, tenham entendido que estavam ali mais uns corpos para serem agredidos, não tendo tido qualquer reacção de bom senso, que manifestamente impunha que terminassem com a agressão. Não foi esse o caminho pelos arguidos escolhido, decisão essa que apenas a si coube tomar. Não a imputem a quem, de boa vontade, quis ajudar e acalmar.

viii. No que se refere a tudo o demais que o recorrente alega, constata-se que se trata de uma mera repetição da sua tese de defesa, apresentada em tribunal, que foi objecto de ampla e pormenorizada refutação, por parte do tribunal “a quo”. Diga-se, aliás que as imagens a que alude – como aliás bem refere o julgador de 1ª instância (e foram sete as pessoas que se tiveram de debruçar sobre esta matéria) – não são consistentes com o que o recorrente pretende das mesmas extrair (aparentemente, crer fazer crer que passou a noite a dar murros e pontapés sem acertar nos alvos que se encontravam a centímetros de si…), assim como o não é o acervo probatório alcançado neste segmento dos factos.

Note-se, aliás, que a prova se não resume às imagens recolhidas pelos sistemas de videovigilância, não só porque as mesmas não abarcam a totalidade dos acontecimentos (quer dentro da discoteca, quer no exterior), como ainda porque, nalguns casos, não permitem a definição concreta de certas actividades, que cabe à prova testemunhal esclarecer. Acresce que as câmaras não têm som e são estáticas, isto é, apenas abrangem – cada uma delas – determinados sectores fixos e pré-determinados, e nem sempre todos os envolvidos estão dentro do alcance das câmaras ou estas captam a integralidade do sucedido. Para além do mais, querer paralisar numa única frame determinadas acções, que são consequenciais umas às outras, não é um modo adequado a realizar com sucesso a impugnação que se pretende.

Para além da ligeira questão que, de facto, as imagens não confirmam sequer o que o recorrente pretende das mesmas extrair…para além de se esquecer do que é relatado por mais de uma dezena de pessoas, que tiveram intervenção e conhecimento directo dos factos, porque aos mesmos assistiram ou neles estiveram envolvidos.

Chama-se aliás a atenção do recorrente para o segmento da filmagem a que alude, onde se mostra visível encontrar-se semi-debruçado sobre a vítima, praticamente em cima do corpo desta, na zona junto à cabeça e a sua perna move-se na direcção do corpo, dando pontapés. Daí o que supra se expôs quanto à impossibilidade física de, dado o local e a distância a que se encontrava do corpo, e o sentido do movimento da sua perna, poder falhar atingir BB.

ix. Diga-se ainda que, no que toca à questão da identificação como polícias (como aliás em outros segmentos), o tribunal “a quo” fez operar o princípio in dubio pro reo, considerando assim que, pese embora alguns dos presentes se tenham identificado como tal, essa identificação possa não ter sido ouvida pelos arguidos.

É aliás surreal (para se dizer o mínimo), que o recorrente entenda que cabia aos agentes da PSP - em coro e em uníssono – identificarem-se enquanto tal, de modo a que os arguidos os tivessem ouvido e não o tendo feito, daí retira que a sua intervenção não tinha por fim o apaziguamento da situação.

Em primeiro lugar, os agentes da PSP não saíram todos ao mesmo tempo da discoteca; em segundo, não estamos na presença de um grupo coral, com maestro a liderar, em terceiro lugar, e mais relevantemente, era aos arguidos que cabia não terem agredido quem agrediram e, havendo quem tentasse que parassem (fossem polícias ou meros cidadãos), cabia-lhes responder a esse apelo de senso comum, o que manifestamente não quiseram. Por tal razão, não atirem para cima de terceiros aquilo que decorreu pura e simplesmente das suas vontades…

x. Assim, remetemos, nesta parte, para o que se mostra afirmado pelo tribunal “a quo”, pois o que aí se relata mostra-se fundado na integralidade da prova produzida e de acordo com as regras de experiência comum:

CC, não obstante a sua qualidade de ofendido, depôs com clareza, coerência, isenção e objetividade, o que se deixa sublinhado. Disse que, na sequência de ter ouvido um som forte, viu dois indivíduos a desferir pontapés de forma agressiva num individuo prostrado no chão. Relatou que quando viu a brutalidade do impacto ficou sem reação. E o que fez? O que faz um agente da PSP no cumprimento do seu dever de zelar pela segurança dos cidadãos e o que faria quem tivesse a solidariedade, o sangue-frio e a coragem de, pelo menos, tentar impedir que essa agressão continuasse – correu para o local, levantou os braços, disse “Pára, Pára, Polícia Pára”, tentando afastar com os braços quem agredia o indefeso. O que viu? O colega FF, que reagiu como ele, levar um murro na face, não logrando parar os arguidos o facto de se ter identificado como Polícia. Afastou-se, segundo disse. Não se apercebeu que foi empurrado, o que só a posteriori interiorizou, quando viu o vídeo. Pediu auxílio, ligando ao 112, mas não sabe identificar com exatidão o momento em que o fez. O que sabe é que as agressões continuaram não ficando ciente de quem a quem. Sabe que o colega DD estava a tentar levantar-se, mas levava pontapés e foi ajudá-lo, conseguindo então levantar-se e recuando ambos. E viu que os arguidos se dirigiram ao FF e ao VV, ouvindo dizer “anda mano a mano”, mantendo-se o seu colega em posição de defesa. Viu o FF ser de novo agredido com um murro na face, que já estava muito ensanguentada. Ouviu o KK gritar que que era o “Rei do Montijo”. E viu ainda os arguidos abandonarem o local, deslocando-se para o carro. Foi atrás deles para apurar “alguma coisa”. O VV chamou-o. Os arguidos apercebem-se que eles vão atrás deles e o arguido AA volta atrás e desfere-lhe um soco, provocando-lhe lesões na zona do lábio. Tudo se passou em breves minutos mas pareceu à testemunha “uma eternidade”. O que disse é que ficou atordoado. Estava em pânico, disse.

Confrontado com as imagens 1, camaras 1 e 2, 3 e vídeo designado por Évolution, identificou os intervenientes, confirmando, no essencial e relevante para o objeto do processo, a descrição que fizera.

O Tribunal, acompanhando essa visualização, com identificação por interveniente (sendo certo que, quer nas declarações dos arguidos, quer nos depoimentos seguintes, essa identificação pormenorizada jamais foi colocada em crise) inteirou-se objetivamente da dinâmica factual, tendo-se tido por provados e não provados os factos inclusos neste conjunto.

O depoimento do ofendido FF afigurou-se consistente, objetivo, congruente na sua globalidade e com os demais, pelo que granjeou credibilidade por parte do Tribunal. Também ele visualizou uma pessoa completamente inanimada no solo e outras a desferir-lhe pontapés desproporcionais e violentos. Dirigiu-se ao local do confronto. Afirmou ter dito “Polícia. Pára” e ter agarrado o arguido GG para o afastar do local. De imediato, este disse-lhe que nada tinha a ver com aquilo, desferiu-lhe um soco e ele ficou a cambalear para trás e, nesse momento, três indivíduos desferem-lhe pontapés no corpo e socos na face. Continuou a recuar e a tentar proteger-se. Tombam pessoas. Desferem-lhe um soco e rasgam-lhe o sobrolho e fica com a cara cheia de sangue. Tenta afastar-se e vai em direção à Av. 24 de julho. Estava com ele a UU e o VV. Vêm de novo os três indivíduos e o arguido GG pergunta se quer “um mano a mano”. É a UU que tenta protegê-lo dos socos que o GG lhe quer desferir de novo, sendo que o VV também o ampara e tenta proteger. Esses socos já não lhe causam grande impacto, segundo relata. Os arguidos deslocam-se então no sentido de .... O CC estava mais afastado deles, tentando perceber a identificação da matrícula, e AA apercebe-se e volta atrás e desfere-lhe novo soco.

VV estava com os colegas EE, FF e CC, já no exterior, à espera de DD e da UU que tinham permanecido por mais alguns momentos no interior da discoteca. Estava de costas e apercebeu-se da confusão. Viu o FF arrancar em direção à discoteca e ouviu-o dizer “Polícia. Pára”. Também ele se dirigiu ao local do confronto, mas não conseguiu memorizar tudo o que se passou. A partir desse momento, tudo foi pancadaria, mas não conseguiu aperceber-se de cada ato isoladamente percecionado. Quando viu o FF, este já sangrava. Nem sequer se recorda de ter sido atingido ou de ter ficado caído no chão, não obstante as imagens o demonstrarem. Recorda que o CC vai atrás dos arguidos para tentar perceber quem eram e o arguido AA voltou atrás e desferiu-lhe um soco. Nas suas próprias palavras, sobre o seu estado de espírito – “estava paralisado”.

É verdade que os arguidos tiveram declarações contrárias ao sentido destes depoimentos.

O arguido AA disse que viu um grande número de pessoas a rodear o coarguido GG, dando-lhe socos e pontapés, e que foi em seu auxílio, tentando afastar com pontapés pessoas que estavam em pé.

Também o arguido GG disse que tentou pontapear, mas que falhou.

Ambos disseram que a sua atitude foi defensiva, pois estavam a ser atacados. Aventam, portanto, uma atitude de legítima defesa. Pensavam que estavam a ser atacados e defenderam-se.

Mas a defender-se de quem, se o único agressor inicial ficou logo inconsciente no chão?

Como podem os arguidos estar a defender-se de quem jaz inerte no chão? A defender-se de alguém inconsciente, pontapeando-lhe a cabeça?

Como podem os arguidos estar a defender-se, se cada murro ou soco que desferem derruba quem o sofre?

Como podem estar os arguidos estar a defender-se se as imagens visionadas refletem uma euforia agressiva desmedida?

Na verdade, as imagens desmentem-nos à exaustão, bem como todos, sublinha-se, todos os depoimentos prestados em audiência de julgamento Mesmo JJ, amigo do arguido GG, pretendendo firmar, no início do seu depoimento, a tese de que os arguidos estavam a ser atacados, admitiu depois que eles estavam numa atitude de “lutadores”. De resto, não fora a atitude atacante dos arguidos, desde logo sobre o primeiro ofendido BB, e JJ não teria seguido o seu instinto e impulso de o proteger com os seus pés, ladeando-lhe a cabeça inerte, à mercê dos pontapés do arguido. A partir do momento em que BB cai no chão, inconsciente, é absurdo dizer-se que foi pontapeado na cabeça numa atitude defensiva. JJ, no seu depoimento, acaba por se render à evidência factual. Aliás, se os arguidos estivessem a ser atacados ao invés de atacarem, não faria sentido JJ colocar-se ao lado do indefeso BB, mas sim de quem estava a ser atacado, tanto mais que deles era amigo, como assumiu e foi evidente.

DDD, na descrição do que viu conforme o libelo acusatório, refere de forma isenta e irrepreensível que os ofendidos estavam numa postura de apaziguar a situação. E repete – houve quem tentasse apaziguar, no meio da confusão, com uma postura calma.

CCC, cujo depoimento foi absolutamente credível, também fala em tentar separar, em acabar com a confusão.

EEE também refere de forma objetiva e isenta ter-lhe parecido que havia pessoas apaziguadoras.

Inexiste, portanto, animus defendendi, ainda que se considere a sua forma excessiva. Existe, isso sim, vontade de atacar.

É verdade que os arguidos podem perfilhar a tese defensiva que melhor entenderem; mas não é menos verdade que o Tribunal não pode colher versões absurdas e desconformes com as regras da experiência e com a demais prova, sendo que, neste caso, havendo imagens dos factos que reproduzem a realidade, requeria mais cautela trazer a julgamento uma versão completamente contrária às mesmas.

Vejamos os factos não provados deste segmento factual.

Não se fez prova de que os ofendidos FF e a vítima EE tenham levantado os braços, porquanto aquele não disse que o tivesse feito. O que aquele atestou, e foi credível, foi ter dito “Polícia. Pára”. Também não se teve por provado que o tivessem feito repetidamente, pois isso não resultou dos seus depoimentos.

De igual jaez, não se teve por assente que o arguido AA se tivesse dirigido ao agente FF, rodeando e desferindo-lhe socos na cabeça e pontapés nas costas, porquanto esse facto não resulta das imagens visualizadas; e não se provou, também por via das imagens visualizadas ou dos depoimentos recolhidos, que o arguido GG tivesse desferido pontapés nas costas do ofendido FF quando ele recuava.

Por fim, quanto a este grupo factual, não resulta dos já aludidos vídeos ou depoimentos testemunhais que os arguidos tivessem desferido socos ao ofendido CC quando ele se aproximou com o objetivo de pôr termo à violência e acudir o colega FF. O que se apurou quanto ao ofendido CC é o que resulta dos depoimentos, conjugados com o Relatório Pericial à sua pessoa, e que foi levado à matéria assente relativamente à situação em que intervém com UU, pelas 6h 24m34s, no sentido de afastar os agressores do colega DD, conseguindo parar essa agressão que passou a ser dirigida e ele próprio, CC, e à situação final, quando os arguidos se afastaram em direção a ... e AA volta atrás.

Uma explanação particular se impõe quanto à circunstância de os ofendidos agentes terem ou não terem assumido a sua qualidade de polícias, propalando-o de forma audível para que os arguidos o tivessem ouvido e compreendido.

Nesta matéria, WW e TT, amigos que acompanhavam o ofendido BB, e que eram quem, para além dos arguidos, mais próximo estavam do BB e poderiam ter ouvido CC e FF dizer que eram agentes, não tiveram a noção que ali estavam polícias, sendo que o TT chega mesmo a dizer que só soube que eram polícias depois, pelas notícias. Havia muito barulho e confusão, disse TT. Estes depoimentos são absolutamente objetivos e desinteressados, tal como os que seguem.

Também AAA só se apercebeu que havia polícia no local quando, a final, chegou a polícia devidamente identificada. Mais diz que se alguém tivesse gritado, talvez tivesse ouvido e que só soube que os ofendidos eram agentes da PSP quando esteve à espera que lhe tomassem depoimento.

DDD não se recordava de ter ouvido alguém dizer que era da polícia.

FFF disse que havia barulho da confusão e não se recordar de ter ouvido “Polícia”. O seu depoimento foi predominantemente vago, não se recordando com exatidão do que se passou, mas tendo retido apenas os momentos visualizados de uma situação de luta, uma pessoa no chão, junto às arcadas.

EEE não ouviu dizer “Polícia”, mais dizendo que havia barulho de música, o que disse sem ter a certeza. O que sabe é que havia no local algum barulho.

VV disse que ouviu uma vez o FF identificar-se como polícia quando saiu de junto dele; e que ele, VV, não se identificou como tal. Apenas ouviu o FF porque estava ao pé dele, não mais ouvindo tal afirmação.

UU também ouviu o FF dizer que era da Polícia.

DD não se identificou e não sabe se os colegas se identificaram.

Quanto ao malogrado EE inexiste qualquer prova de que se tenha identificado.

Por seu turno, os arguidos vieram dizer que nunca ouviram a palavra polícia e JJ também disse que os agentes nunca se identificaram.

Em face de todo o exposto, o Tribunal não desconsiderou os depoimentos de CC e de FF, quando dizem que se identificaram como polícias, mas ficou com uma dúvida inultrapassável sobre se esses dizeres foram devidamente ouvidos pelos arguidos, atendendo ao contexto e barulho que se fazia ouvir. Ademais, surge como conforme às regras da experiência comum que após a queda ao chão de BB tivesse nascido um burburinho e gritos que impedissem os arguidos de compreenderem e interiorizarem essas palavras proferidas pelos referidos ofendidos, tanto mais que os mesmos vieram dizer que as não repetiram.

Desta feita, aplicando o princípio in dubio pro reo, entendeu o Tribunal que se devia levar ao acervo negativo que os arguidos ouviram tal expressão, facto por eles alegado e que no caso reverte a seu favor.

Vejamos agora os factos respeitantes, em particular às agressões ao malogrado EE.

Do até agora fundamentado, resulta claro que os agentes da PSP atuaram numa atitude de pôr cobro às agressões, ou seja, numa atitude apaziguadora. Não faria qualquer sentido que FF e CC tivessem agido fora desse intuito, o que se extrai não só dos seus depoimentos, como dos demais, designadamente do depoimento da testemunha SS – um grupo atacava, outro defendia-se sem se saber defender de tal ataque – mas também da visualização das imagens que revelam a postura sabedora da arte de lutar que os arguidos assumiram; e resulta, em conjugação com o acabado de expor, que o agente EE estava imbuído da mesma intencionalidade quando agiu.

Ficou claro para o Tribunal que os agentes da PSP EE, FF e CC agiram com o intuito inicial de defender o primeiro ofendido BB das agressões brutais que sofreu, quando inerte e inconsciente, foi pontapeado na cabeça, de forma sucessiva e violenta, como os vídeos atestam, e o comportamento da testemunha JJ subscreve, e depois, quando as agressões se disseminam sobre eles próprios, de se defenderem e lhes porem cobro. Resultam, destarte, positivos os factos 2.1.24 e 2.1.25.

AA, não obstante inicialmente negar, admitiu subsequentemente, em audiência de julgamento, que desferiu um soco na zona lateral, parte de trás, da cabeça, fazendo-o cair de imediato no chão. Disse que, após ver as imagens, se reconhecia e admitia essa sua conduta, a par de um pontapé que também lhe desferiu, na cabeça, quando o seu corpo jazia já inerte no chão.

Não se provou pela visualização do vídeo que o arguido AA tivesse desferido mais do que esse único pontapé, pelo que se teve por não assente que tivesse desferido dois.

A visualização do vídeo não deixa dúvidas sobre o facto de o arguido GG ter desferido três violentos pontapés, de forma sucessiva e contínua, na cabeça do malogrado EE, quando este se encontrava já prostrado no solo, sem se mexer, imobilizado, desprotegido, inanimado, à mercê da brutalidade caprichosa dos seus agressores.

Bem pode o arguido GG propalar que não o fez, alegando que nunca acertou na cabeça de ninguém e, depois, retificando, dizendo que “eu tivesse visto, não acertei”.

Fica por explicar como é possível alguém assumir verbalmente em audiência de julgamento que se considerou atacado e apenas se defendeu, quando as imagens revelam que o alegado “atacante” jaz inconsciente no chão e é pontapeado por quem alega estar a defender-se.

Os depoimentos de DD e UU foram isentos, objetivos, consistentes entre si e com a demais prova, designadamente a que resulta da visualização dos vídeos, pelo que o Tribunal os teve por credíveis.

DD saiu com a UU e viu uma grande confusão. Apercebeu-se que havia várias pessoas à volta do FF e o CC estava a tentar afastar as pessoas, estando uma pessoa caída no chão e que o GG se preparava para lhe desferir um pontapé. Então, saiu a correr e tentou agarrar o arguido GG; é de imediato agredido com um soco e caiu ao chão. Tentou levantar-se. No chão, conseguiu tentar proteger a cabeça com os seus braços, e começou a ser agredido com vários pontapés na zona da cabeça. As lesões por si sofridas e que constam do Relatório Pericial atestam a violência exacerbada dos pontapés que os arguidos lhe desferiram e a qual apenas foi mitigada por alguma proteção que logrou concretizar da forma já descrita, envolvendo a cabeça com as mãos, e ainda da intervenção dos colegas que lograram afastar os agressores, designadamente CC, que passou a ser o agredido: traumatismo craniofacial, do membro inferior esquerdo e do membro superior direito e fratura na mão direita.

E note-se que no dia 1 de maio, ou seja, decorridos mais de 30 dias sobre o evento, o ofendido DD ainda apresentava diminuição da mobilidade da mão e punho direitos, dor na região do 5.º metacárpico e dedo correspondente da mão direita, aumento de volume local no couro cabeludo na região parietal direita, permanecendo de baixa. Mais apresentava na superfície do crânio área avermelhada, linear, obliqua para baixo e para trás na região parietal direita com 2,5cm de comprimento; no membro superior direito descamação superficial cutânea do dorso da mão e das falanges próximas do 2.º ao 4.º dedo e de todo o 5.º dedo, edema sobre a face dorsal dos 4.º e 5.º metacárpicos, mobilidade passiva do punho e dos dedos mantida e dor na mobilidade passiva. Estas lesões evidenciam a intensa violência da atuação dos arguidos que só não logrou obter um desfecho pior, designadamente ao nível das consequências no seu crânio, pelos motivos já antes enunciados.

Segundo relatou, UU e CC vieram em seu auxílio e tentaram levantá-lo. Estava completamente desorientado. Não sabe quantos o agrediram, nem exatamente quem quando estava à mercê dos agressores, no chão. Nem sabe se foi ou não agredido com uma pedra na cabeça. Não sabia o que se estava a passar. Sabe que depois o CC e o FF estavam a ir em direção à estrada, à 24 de julho e que os arguidos foram em direção a eles.

UU estava no grupo de EE, CC, FF, VV e DD, tendo permanecido com este, mais alguns momentos no interior da discoteca, após os restantes terem saído. Ao sair, viu o CC, o FF, o EE e o VV a correr em direção a uma confusão e disse “vamos com os nossos” e correu. Ouviu do colega FF “Polícia, afasta”. O DD também correu e ultrapassou-a. Quando este tentou afastar os arguidos levou um soco na cara e “caiu disparado no chão” e meteu as mãos à cabeça para se tentar proteger na zona da cabeça. Tudo numa fração de segundos. Nisto, quando olha para trás vê os três colegas, o FF, o VV e o CC atrás de uma viatura e os dois arguidos a desafiar para um mano a mano. Mete-se no meio e diz que já chega, que já passou dos limites. Entretanto foram-se embora. Foi ter com o colega EE que estava no chão, e nem se lembra de mais nada. Foi tudo numa fração de segundos, segundo crê.

O depoimento de CC também inclui este segmento factual e já acima foi transcrito e analisado.

Disse saber que o colega DD estava a tentar levantar-se, mas levava pontapés e foi ajudá-lo, conseguindo, então, por fim, levantar-se e recuando ambos.

Desta feita, e felizmente, valeu-lhe o facto de não ter ficado inconsciente e ter logrado colocar as mãos a proteger a sua própria cabeça do número indeterminado de pontapés violentos que os arguidos lhe desferiram de forma contínua e sucessiva, e bem assim o facto de, após, terem intervindo os colegas, que afastaram os agressores. E CC ajudou-o a levantar-se e proteger-se, recuando do local.

Não se provou que tivesse sido o soco desferido por GG que lhe provocou a queda ao solo, porquanto tal não se apreende, sem dúvida, da visualização dos vídeos.

Igual fundamentação se exara quanto ao facto de o arguido GG lhe ter desferido um violento pontapé do lado direito, antes da sequência de pontapés que se tiveram por assentes, o que em nada colide com esse número indeterminado de pontapés que posteriormente lhe foram desferidos pelos arguidos. Obviamente que se está prostrado no chão, são-lhe desferidos pontapés e já não socos, como se extrai da visualização dos vídeos, motivo pelo qual se teve este segmento do facto por não provado.

E também não se fez prova de que tivesse sido agredido com uma pedra na cabeça. O que JJ confirmou a este respeito é que o KK agarrou numa pedra, atirou-a e falhou, pois acertou no muro.

Em suma, os factos relativos à dinâmica da ação que constitui o objeto dos autos e incorpora este grupo resulta da análise conjugada dos depoimentos com a visualização dos vídeos, tendo-se considerado ademais, os relatórios de danos corporal que sustentas as agressões sofridas compatíveis com as agressões descritas, quando não captadas pelos vídeos, fundamento essencial e primordial para a decisão do Tribunal.

xi. Prossigamos agora com as restantes questões:

E. Não se mostra provado que os arguidos tivessem especiais conhecimentos de luta, pelo facto de serem ... .

F. Ignora-se que agressões em concreto determinaram a morte de EE, sendo certo que não existe prova de tal ter decorrido por virtude de pontapés dados pelo recorrente, mas antes como consequência do murro que o co-arguido AA lhe inflingiu, na nuca (as lesões eram na base do crânio), inexistindo nexo de causalidade entre os alegados pontapés do Recorrente na cabeça de EE e a causa da morte;

G. O relatório de autópsia foi realizado com insuficiência de dados, pois não foi dado ao médico-legista a oportunidade de visualizar as gravações de videovigilância, tendo sido indeferido o pedido de tomada de esclarecimentos ao médico-legista, que o recorrente formulou;

H. Não há prova de ter o recorrente agido com dolo;

I. Toda a matéria relativa ao sofrimento da vítima e dos seus progenitores, em sede de PIC, mostra-se por demonstrar, assim como a actuação em serviço do agente EE;

J. O tribunal contradiz-se quando afirma, por um lado «as agressões perpetradas pelos Arguidos constituem matéria que não compete ao Senhor Perito reportar ou analisar» e por outro que «lhe compete [ao Perito] atestar se os factos de que foi informado são compatíveis com essa lesão».

K. O tribunal violou os limites à livre apreciação da prova, pois que não lhe compete substituir-se ao perito nesse juízo científico, e nessa medida, incorreu em erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto no art. 410.º, n.º 2, al. c) do CPP,

E. Não se mostra provado que os arguidos tivessem especiais conhecimentos de luta, pelo facto de serem ... .

xii. No que se refere à questão relativa aos ... e aos seus especiais conhecimentos de luta e preparação física, remetemos para o que acima deixámos exposto relativamente ao co-arguido AA, por se aplicar, mutatis mutandis ao presente arguido.

J. O tribunal contradiz-se quando afirma, por um lado «as agressões perpetradas pelos Arguidos constituem matéria que não compete ao Senhor Perito reportar ou analisar» e por outro que «lhe compete [ao Perito] atestar se os factos de que foi informado são compatíveis com essa lesão».

xiii. Afirma o arguido que o tribunal “a quo” se contradiz quando afirma, por um lado «as agressões perpetradas pelos Arguidos constituem matéria que não compete ao Senhor Perito reportar ou analisar» e por outro que «lhe compete [ao Perito] atestar se os factos de que foi informado são compatíveis com essa lesão».

Não vislumbramos contradição. Uma coisa é ser dada ao perito uma descrição narrativa dos factos, de modo amplo e anónimo, outra diversa ser-lhe mostrada a actuação concreta de pessoas, pois não compete ao perito fazer qualquer juízo de valor sobre a actuação específica de uma determinada pessoa (suspeita, arguida ou outra), observando a prova que lhe imputa a prática de um acto. O que lhe compete é esclarecer o que determinou as lesões que a vítima apresenta e que foram causa directa e necessária da sua morte. Nada mais. Inexiste, pois, o vício que imputa a essa parte.

Infra debruçar-nos-emos um pouco mais sobre este ponto, mas aditaremos desde já que não pode o recorrente, neste momento processual, suscitar questões relacionadas com putativos indeferimentos de pedidos de esclarecimento por si formulados, a serem respondidos pelo perito, pela singela razão de que, se peticionou a sua audição e tomada dos ditos esclarecimentos e se tal petição lhe foi indeferida, cabia-lhe ter atempadamente da decisão interposto o competente recurso, o que não fez. Trata-se, pois (independentemente do que a este respeito infra ainda se aditará), de matéria que não pode este tribunal conhecer, pois não foi pelo recorrente, tempestivamente, suscitada em recurso.

F. Ignora-se que agressões em concreto determinaram a morte de EE, sendo certo que não existe prova de tal ter decorrido por virtude de pontapés dados pelo recorrente, mas antes como consequência do murro que o co-arguido AA lhe inflingiu, na nuca (as lesões eram na base do crânio), inexistindo nexo de causalidade entre os alegados pontapés do Recorrente na cabeça de EE e a causa da morte;

G. O relatório de autópsia foi realizado com insuficiência de dados, pois não foi dado ao médico-legista a oportunidade de visualizar as gravações de videovigilância, tendo sido indeferido o pedido de tomada de esclarecimentos ao médico-legista, que o recorrente formulou;

K. O tribunal violou os limites à livre apreciação da prova, pois que não lhe compete substituir-se ao perito nesse juízo científico.

xiv. Prossigamos agora com a questão da autópsia e com a problemática relativa à perícia, consubstanciada no relatório de autópsia médico-legal.

Antes de mais, caberá fazer uma breve exposição sobre este meio de prova.

Constituem objecto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não do respectivo agente e a determinação da pena ou da medida de segurança a aplicar (cfr. art. 124°, n° 1, do C.P. Penal), sendo que, como determina o art. 125 do mesmo diploma legal, só não são admissíveis como prova as que forem proibidas por lei. Por seu turno, o elenco das mesmas (que, em bom rigor, se reporta ao modo como as provas foram obtidas e não tanto à sua natureza), tem a sua sede no artº 126 do C.P. Penal.

A prova pericial encontra-se regulada, em termos gerais, nos arts. 151° a 163°. do C.P. Penal. A perícia é a actividade de avaliação dos factos relevantes, realizada por quem possui especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 3ª Edição, pág. 197), pelo que tem lugar quando a percepção ou apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos destas naturezas.

Ordenada a perícia, aos intervenientes processuais assiste, em sede geral, o direito de nomearem um consultor técnico que, além de poder assistir à sua realização, se ainda for possível, podem propor a realização de determinadas diligências e formular observações e objecções (art. 155, 1 e 2, do C. Processo Penal).

Já não será assim, todavia, nos casos em que a lei determina que a perícia deverá ser realizada, exclusivamente, pelo INML, por estarmos perante perícia do foro médico-legal e forense.

De facto, este tipo de perícia encontra-se sujeita ao regime especial previsto na Lei n° 45/2004, de 19 de Agosto, sendo obrigatória e exclusivamente realizada nas delegações e nos gabinetes médico-legais do Instituto Nacional de Medicina Legal (art. 2°, n° 1, da mesma Lei).

E, como decorre do disposto no art. 3º da citada Lei, a este tipo de perícias não são aplicáveis as disposições contidas nos artigos 154.° e 155.° do Código de Processo Penal.

Daqui resulta que estas perícias médico-legais são obrigatória e exclusivamente realizadas pelos peritos designados pelos dirigentes ou coordenadores dos respectivos serviços (art. 5°, n° 1, da mesma Lei). E, afastada que se mostra a aplicação do disposto no artº 155 do C.P. Penal, neste tipo de perícias não podem os intervenientes processuais designar consultor técnico.

Os peritos que realizam as perícias médico-legais forenses, nas delegações do Instituto Nacional de Medicina Legal e nos gabinetes médico-legais, bem como em outros serviços universitários ou de saúde pública, são funcionários públicos, no exercício das suas funções.

O Instituto Nacional de Medicina Legal (INML) é um instituto público, dotado de autonomia administrativa e financeira, que prossegue atribuições do Ministério da Justiça e tem a natureza de laboratório do Estado (art. 1°, n°s 1 a 3 do Dec. Lei n° 131/2007, de 27 de Abril). O INML tem por missão assegurar a formação e coordenação científicas, no âmbito da medicina legal e de outras ciências forenses, superintendendo e orientando a actividade dos seus serviços médico-legais e dos peritos contratados para o exercício de funções periciais, sendo suas atribuições, além do mais, cooperar com os tribunais e demais serviços e entidades que intervêm na administração da justiça, realizando os exames e perícias de medicina legal e forenses que lhe forem solicitados e prestando-lhes apoio técnico e laboratorial especializado, sendo que, no âmbito das suas competências, o INML é considerado instituição nacional de referência (vide artº 3º do dito diploma).

A existência deste regime específico, no que concerne a este tipo de perícias, mostra-se plenamente justificado, como o próprio T.C. teve já oportunidade de referir, no seu acórdão n° 133/2007, de 27/02/2007 (in, http://www.tribunalconstitucional.pt), a propósito do art. 3°, n° 1, da Lei n° 45/2004, de 19 de Agosto:

“É, pelo contrário, manifesto que a norma impugnada, ao introduzir uma distinção quanto às perícias médicas realizadas no Instituto Nacional de Medicina Legal, teve comprovadamente em conta que esta é uma instituição com natureza judiciária, cujos peritos, para além de abrangidos pelo segredo de justiça (como os demais), estão vinculados ao dever de sigilo profissional, e gozam de total autonomia técnico científica, garantindo um elevado padrão de qualidade científica. (cfr. Acórdão n.° 189/2001, Ac TC n.° 50, p.285; Acórdão n.° 31/91, in DR II série, 25 de Junho de 1991).”

Assim, o legislador criou e concebeu o INML como uma instituição de natureza judiciária, à qual atribuiu uma posição de nível superior ao de todas as outras instituições e entidades, públicas ou privadas, de modo a garantir que os tribunais possam solicitar a realização de perícias médico-legais e forenses a uma entidade altamente especializada, garantindo um elevado rigor científico e independência, nas perícias e exames a realizar.

Fê-lo, não só estabelecendo a acima mencionada obrigatoriedade e exclusividade de tais perícias serem realizadas nas delegações e gabinetes médico-legais do INML (art. 2°, n° 1, da Lei n° 45/2004, de 19 de Agosto), como assegurando a autonomia técnico-científica dos peritos que integram o instituto e garantindo a sua isenção e imparcialidade, perante os intervenientes processuais, designadamente, no que respeita à sua designação, como resulta do disposto nos artºs 2º e 5°, n° 1, da Lei n° 45/2004, de 19 de Agosto.

E assim determinou porque esta maior e específica qualidade técnico-científica e este grau de imparcialidade, asseguravam superiores garantias, quanto à qualidade, idoneidade e equanimidade de tais perícias, vedando, inclusive, aos intervenientes processuais, a designação de consultor técnico.

Temos, pois, que o regime vinculativo probatório que a lei confere ao juízo científico pericial, parte do princípio que o perito possui uma especial capacidade técnica, em relação às matérias sobre as quais se pronuncia. No fundo, e nas palavras de Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal II, pág. 178: “(…) o que a lei verdadeiramente dispõe é que, salvo com fundamento numa crítica material da mesma natureza, isto é científica, técnica ou artística, o relatório pericial se impõe ao julgador. Não é necessária uma contraprova, basta a valoração diversa dos argumentos invocados pelos peritos e que são fundamento do juízo pericial”.

xv. Mostrou-se este intróito necessário para melhor se compreender o que de seguida se enunciará.

O tribunal “a quo”, a propósito desta matéria, deixou exarado o seguinte:

Vejamos, agora, em particular, as lesões causadas pelos arguidos na vítima EE.

Extrai-se do Relatório de Autópsia Médico-Legal efetuada a EE – Exame n.º 2022/000482/LX-P-1, de 20.05.2022, fls. 1240 a 1246, que a morte de EE foi devida às lesões traumáticas meningo-encefálicas e raquídeas cervico-vasculares descritas; tais lesões traumáticas constituem causa adequada da morte; estas lesões traumáticas denotam haver sido produzidas por instrumento de natureza contundente ou atuando como tal, podendo ter sido devidas à agressão referida na informação; as restantes lesões traumáticas descritas são próprias de atitude terapêutica e/ou diagnóstica; a análise toxicológica realizada ao sangue e urina foi negativa para drogas de abuso, tendo revelado a presença do anticonvulsivante levetiracetam, do analgésico opióide fentanilo e dos anestésicos tiopental e rocurónio, todos em concentrações consideradas terapêuticas.

Ora, o Relatório de Autópsia é cristalino.

Vir alegar que deixa dúvidas só pode resultar de uma desatenção à natureza, função e escopo da prova pericial e dos factos que, através dela, se provam.

De acordo com a história clínica e o exame pos mortem, não foram detetados dados patológicos subjacentes que possam estar relacionados com a causa de morte indicada.

De acordo o teor do Relatório, a causa de morte indicada resultou de várias lesões de natureza traumática, encefálicas e medulares cervicais, estando provado que esses traumatismos resultaram diretamente de múltiplas agressões sofridas.

A descrição das características dessas lesões explicam, pois, sem qualquer dúvida, os achados clínicos identificados no exame objetivo e nos meios complementares de diagnóstico levados a cabo antes do óbito, bem como e, sobretudo, os encontrados na necropsia posteriormente executada.

Dessa agressão, que se conclui ter sido consequência de traumatismos diretos na cabeça e coluna cervical, produzido por objeto contundente ou atuando como tal, como podem ser socos e pontapés, resultaram lesões de extrema gravidade e irreversíveis que causaram posteriormente, a muito curto prazo, a morte, apesar de todos os esforços clínicos possíveis no sentido de a evitar.

Assim, sem qualquer dúvida, as agressões provadas e as lesões consequentemente relacionadas explicam o evento fatal, isto é, são a sua causa adequada e não existe outra qualquer possibilidade justificativa, tal como fica bem claro nas conclusões do médico legista.

No mais, dir-se-á que é irrelevante, para que se estabeleça o nexo de causalidade entre a lesão e a morte, que a vítima tivesse álcool no sangue, com registo 1, 27 gr/dl, como alega o arguido.

Em síntese:

- EE foi sujeito às agressões/factos acima descritas, perpetrados pelos arguidos, já devidamente fundamentados e que constituem matéria que não compete ao Senhor Perito reportar ou analisar. O Perito não é testemunha dos factos.

- Esses factos são compatíveis com as lesões que o Senhor Perito detetou no seu cadáver, e foi essa circunstância que ele exarou de forma clara no seu Relatório.

- Mais atestou o Senhor Perito no Relatório que essas lesões foram causa direta e necessária da sua morte.

Repete-se: não compete ao Senhor Perito atestar se foram estes factos tidos como assentes os outros. Compete-lhe isso sim identificar a lesão, atestar se os factos de que foi informado são compatíveis com essa lesão, e atestar se ela é causa direta e necessária da morte.

E isso, sublinha-se, ressalta cristalino da autópsia e encontra-se indubitavelmente exarado no Relatório pericial.

Ora, o que ressalta dos factos apurados é que EE era um jovem saudável, esteve sempre bem na noite a que se reportam os autos, inexistindo qualquer evento danoso, sofreu depois as agressões compatíveis com a lesão e essa lesão foi causa da morte; desde a lesão perpetrada pelos arguidos e até ao momento fatal não sofreu qualquer outra agressão, nem aconteceu qualquer evento com elas relacionado. Isso resulta da conjugação horária do evento com o momento de entrada no Hospital.

Quanto aos demais factos constantes da acusação neste segmento, impõe-se apenas dizer que resultam da documentação clínica junta aos autos, designadamente:

- Auto de diligência no Hospital de São José (contacto com a médica responsável pela Unidade onde se encontrava a vítima EE), de fls. 87 e 88, e de onde se extrai que foram entregues aos autos os documentos clínicos pela responsável pela unidade onde se encontrava a vítima EE, inclusos a seguir, de fls. 89 a 124:

- Relatório de episódio de urgência, de fls. 89 a 94;

- Diário clínico da UUM, de fls.95 a 100;

- Análises clínicas, de fls. 101 a 108;

- Exames complementares, relatório de exames de imagens, de fls. 109 a 124;

- Boletim de Informação Clínica do SICO (Sistema de Informação dos Certificados de Óbito), de fls. 148 a 150, relativo à vítima EE.

xvi. Por seu turno, entende o recorrente que resulta do relatório de autópsia que as lesões que levaram à morte de EE se prendem com agressões exclusivamente perpetradas na zona da nuca, isto é compatíveis apenas com o soco que o co-arguido AA aplicou à vítima, mas já não com os putativos pontapés por si dados quando aquela já se encontrava no chão.

Salvo o devido respeito, não se vislumbra de onde retira tal conclusão, face ao relatório pericial de fls. 1240 a 1244. Na verdade, o que aí se refere é precisamente o que o tribunal “a quo” deixou consignado, isto é, que a morte se ficou a dever às lesões traumáticas meningo-encefálicas e raquídeas cervico-vasculares, que denotam haver sido produzidas por instrumento de natureza contundente ou actuando como tal, podendo ter sido devidas à agressão referida na informação.

xvii. Cumpre aqui fazer um parêntesis, reforçando o que já acima se deixou dito. Cabe ao perito averiguar as causas da morte, sendo certo que a autópsia, em Portugal, como determina o nº1 do art. 18 do Decreto-Lei n.º 53/2021, de 16 de Junho, apenas é realizada em situações de morte violenta ou de causa ignorada, salvo se existirem informações clínicas suficientes que associadas aos demais elementos permitam concluir, com segurança, pela inexistência de suspeita de crime, admitindo-se, neste caso, a possibilidade da dispensa de autópsia.

Ora, no caso, tal diligência foi pedida precisamente por se suspeitar que se estaria perante um caso de morte violenta, decorrente de agressões físicas determinantes de lesões. Assim, ao perito que a realiza, apenas tem de ser dada esta informação genérica, justificativa das razões que levaram ao pedido de realização da autópsia, não lhe cabendo ser informado da totalidade da actividade que se suspeita tenha ocorrido, até para evitar que, pelo conhecimento de particularidades do modo agressor, possam as suas averiguações vir a ser pelo mesmo influenciadas. O perito, como afirma o tribunal “a quo”, não é uma testemunha, nem lhe cabe, diremos nós, o papel de decisor, no sentido de estabelecer que a actividade de A ou B foi causa determinante de uma morte violenta. O que lhe cabe e compete é investigar o corpo, narrar o que encontrou e alcançar uma (ou mais) razão determinativa da causa de morte.

E foi isso que foi feito. Nada há aqui pois a entender como omisso.

xviii. Por seu turno, se analisarmos o que consta, em termos de exame de hábito externo, constatamos que aí se descreve a existência de uma equimose azulada mastóidea, que se prolongava para o pescoço, sobre o trajecto do músculo esternocleidomastóideo e trígono posterior direitos, assim como um hematoma occipital mediano (para além de equimoses no lábio). Constatou-se ainda a existência, no pescoço, de equimose na base do trígono posterior direito, com foco escoriativo com crosta no vértice superior, sugestiva de poder ter resultado de pontapé, assim como equimose sobre o trajecto do músculo esternocleidomastóideo e trígono posterior direito, continuada da descrita na cabeça.

Estas lesões exteriormente visíveis determinaram a produção de hemorragias internas massivas, quer na zona subaracnóide (generalizada), quer no tronco cerebral, quer uma hemorragia subdural discreta das fossas médias e occipitais, mais acentuada na occipital direita, bem como coágulos no seio sagital superior e em ambos os seios transversos; intensa infiltração sanguínea no pescoço, prolongada até aos planos profundos, sendo que todas estas lesões se mostravam em relação com as equimoses referidas e observadas no hábito externo (note-se que apenas fazemos referência às lesões internas que têm relevância para o que aqui se discute, uma vez que muitas outras existem e foram encontradas, excluindo as que resultaram de intervenções médicas).

xix. Assim, conjugando o que resulta do relatório pericial, temos que, sem sombra de dúvida, o perito entendeu que existiam marcas externas que denotavam a existência de agressão, já que eram compatíveis com marcas deixadas por virtude de agressões físicas, ainda que sem uso de objectos, por os membros usados funcionarem como instrumento similar a um objecto de natureza contundente, sendo que uma dessas marcas era compatível com a inflicção de um pontapé; que essas agressões vieram a determinar lesões de tal gravidade, que foram causa adequada à morte da vítima, situando-se, essencialmente, na zona do crânio e do pescoço, isto é, na zona da cabeça, em largo senso, não se restringindo apenas à zona da nuca, mas antes reportando-se a agressões sofridas na zona occipital média e na parte direita e lateral do osso temporal, nos locais onde se insere e desenvolve o músculo esternocleidomastóideo (esse músculo tem ligação com o manúbrio do esterno, com a clavícula e com o processo mastóide do osso temporal, daí o seu nome), isto é, desde sensivelmente o local onde se situa a orelha, até à clavícula.

xx. Se atentarmos na descrita actuação de ambos os arguidos, constatamos que ambos – quer o arguido AA, quer o ora recorrente – agrediram a vítima nos locais indicados, sendo certo que o arguido GG o fez com três pontapés. Mostra-se, pois, claramente determinado o nexo causal entre a actuação de qualquer um dos co-arguidos, na produção das lesões, que foram causa directa e necessária da morte de EE.

xxi. Assim, no caso, presente, não se vislumbra que o tribunal “a quo” tenha violado o determinado no artº 163 do C.P. Penal. Ao inverso, aceitou – porque, francamente, o que se mostra descrito na autópsia não revela qualquer erro, nem a leitura realizada pelo tribunal “a quo” se mostra errónea quanto ao que aí consta (sendo que nem a putativa ocorrência de erro foi oportunamente suscitada pelo ora recorrente, através da formulação de realização de nova perícia) - o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial, que se presume, aliás, subtraído à livre apreciação do julgador.

Na verdade, no normal correr das coisas, o julgador aceita o juízo científico expresso em tais perícias, sendo que, caso a sua convicção divirja – e só então – terá de justificar as razões da sua divergência. E, como se viu, nem o tribunal “a quo” vislumbrou, nem pela nossa parte descortinamos, quaisquer razões que nos façam questionar tal juízo científico pericial, que se mostra adequado, face à prova produzida (essa sem qualquer relação com a actividade pericial), para se poder entender como demonstrado que as agressões causadas pelos dois co-arguidos, determinaram a morte da vítima.

Neste contexto, o juízo pericial, que funda a causa da morte em agressões físicas localizadas naquelas zonas (essencialmente, na área do crânio, parte de trás e parte lateral direita, perto da orelha, até à zona do pescoço, o que em termos latos definimos como a zona da cabeça, não restringindo as mesmas exclusivamente à zona da nuca), mostra-se em consonância com a factualidade que cabe ao julgador apurar e que lhe permitiu concluir ter o óbito sido consequencial às agressões praticadas por ambos os arguidos, pois ambos atingiram aquelas zonas do corpo da vítima.

xxii. Assim, analisado o relatório de autópsia, não se vislumbram razões para se questionarem quer os fundamentos, quer o juízo científico expresso na perícia pelo que, nos termos do artº 163 do C.P. Penal, a apreciação probatória realizada pelo tribunal “a quo” a este respeito não merece os reparos que o recorrente lhe dirige.

H. Não há prova de ter o recorrente agido com dolo;

xxiii. Salvo o devido respeito, existe sim.

Vejamos então.

O tribunal “a quo” pronunciou-se, a este respeito, nos seguintes termos.

A prova do dolo e da consciência da ilicitude é aquela que deflui dos factos típicos objetivamente considerados e, a acrescer-lhes, aqueles que defluem do circunstancialismo do cometimento dos factos e dos que são inerentes ao percurso de vida e condições pessoais dos arguidos.

Vejamos porquê.

É, a nosso ver, irrefutável que os arguidos tinham consciência da sua superioridade física atendendo ao que se extrai dos factos 2.1.1, 2.1.2 e 2.1.3. Mas não só. Os Relatórios Sociais, devidamente sujeitos ao contraditório, trazem-nos informações importantes sobre tal circunstância de facto: traz-se à colação o teor dos pontos 2.1.94 e 2.1.102 no que tange ao arguido AA, e 1.116, 2.1.119, 2.1.1202.1.121 da matéria assente quanto a GG.

De resto, se dúvidas houvesse quanto a essa matéria – e não as há de todo – bastaria proceder à visualização dos vídeos para perceber que a sua maneira de estar na contenda, a forma como atuaram, como se estivessem num ringue de ..., em posição atacante, sempre em movimento, e bem assim os danos que a sua atuação ia causando em todos os que agrediam a murro, com uma violência que os deixava ou caídos no chão inconscientes, ou cambaleando desorientados, é de molde a criar a convicção de que a sua superioridade física era francamente exacerbada por reporte aos que sofriam as suas agressões. Os depoimentos testemunhais de AAA, BBB, CCC e SS, já acima transcritos no ponto I, rematam a fundamentação nesta parte.

No mais, resulta da factualidade assente que o teor do ponto 2.1.68.

Atentemos, então, em particular no segmento final deste facto – os arguidos mostram indiferença às consequências que podiam advir de pontapearem com violência os ofendidos na cabeça quando estes se encontravam caídos no chão, designadamente a morte.

Este segmento reporta-se a duas situações de facto: i) sabiam os arguidos que pontapear com violência a cabeça pode causar a morte? ii) Se sim, conformaram-se com essa possibilidade de facto?

O Tribunal foi particularmente cuidadoso na análise desta questão, atendendo às suas consequências jurídico-criminais. E a sua resposta foi, convictamente, positiva.

Com efeito, se é do conhecimento do homem médio comum que a zona da cabeça é particularmente vulnerável às agressões, para praticantes de ..., como eram os arguidos, esse conhecimento é obrigatório e eles não podiam deixar de estar cientes dessa vulnerabilidade. As regras da modalidade deste desporto são consabidas e claras: são válidos apenas golpes na frente ou na lateral da cabeça, um soco na nuca repetido três vezes leva à desclassificação; e, sobremaneira importante, é a regra de que a luta pára imediatamente quando um dos lutadores cair ao chão e se o mesmo não se levantar em 10 segundos contados, o combate está encerrado.

E porquê? Porque o homem comum sabe, e o lutador de ... sabe-o melhor por dever de modalidade, que no crânio encontra-se o cérebro que é o principal órgão do nosso sistema nervoso e responsável pelo comando de todos os outros órgãos vitais para a sobrevivência; numa palavra - é o maestro dos demais órgãos vitais, sendo que as lesões cerebrais são, por regra, de alto risco para a vida.

O cérebro está relacionado com diferentes funções do nosso corpo, sendo responsável, por exemplo, pela memória, motricidade, entrada de informações sensoriais e controle da respiração e batimentos cardíacos. Trata-se de um órgão nobre, uma estrutura fundamental para a sobrevivência, sendo que a paragem irreversível das suas funções é causa da morte.

O crânio é fechado e, em equilíbrio, encontram-se o cérebro, o líquido cefalorraquidiano e o sangue, inexistindo espaço para que um deles aumente sem tirar espaço aos outros, o que pode suceder quando há hemorragias difusas e edemas. Mesmo quando os ossos não são quebrados, a mera contusão cerebral pode levar à morte.

Ainda que todos estes detalhes não sejam conhecidos pelo homem médio, podendo apenas saber que o cérebro (cabeça) é um órgão vital, o que toda a está ciente é que uma forte pancada nela pode ser fatal e é por isso que é obrigatório o uso de capacete como fator de proteção quer em determinados desportos, quer em alguns trabalhos, quer na condução de veículos motorizados. E ainda assim, mesmo com capacete a proteger a cabeça, a morte é causa amiúde de acidentes.

A vulnerabilidade da cabeça é, portanto, do saber comum e tinha de o ser acrescidamente dos arguidos, pelos fundamentos que encimam esta parte da fundamentação.

Não pode, pois, vir alegar-se que não previram o desfecho mais funesto, porque qualquer homem médio o preveria. E conformaram-se com ele, pois desferiram um ou mais pontapés e, quando mais do que um, de forma contínua e sucessiva. Fizeram-no com violência, sobre quem jazia prostrado no chão, inerte, e no caso de dois dos ofendidos, inconscientes, e só mais pontapés não desferiu GG em BB porque JJ o evitou; e só não desferiram mais pontapés em DD porque UU e CC os afastaram.

Como bem referiu a testemunha JJ, também ele praticante de ..., quando o adversário está no chão, não se agride.

Malogradamente, assim não sucedeu com a vítima EE, não se logrando pôr termo às agressões que lhe foram fatais.

Quanto às demais situações que não contemplam violentos pontapés na cabeça, resulta dos factos objetivamente analisados e objetivamente apurados que a intenção dos arguidos, ao perpetrá-los, era a de molestar fisicamente os ofendidos.

xxiv. O dolo, embora sendo matéria factual, parametriza-se como um facto psicológico, de cariz interno. Isto significa que a sua apreensão não acontece, por regra (e a excepção é, precisamente, o caso de confissão integral, em que o sujeito verbaliza essa sua interna vontade e intencionalidade), de forma directa, sensorial, não é algo que seja directamente apreensível mediante observação. Ao invés, a sua averiguação decorre da avaliação crítica do comportamento humano em presença, de acordo com as regras da experiência.

Tendo em vista tais considerandos, há que entender que, no caso que agora apreciamos, se mostra inteiramente razoável e fundamentado considerar-se, como o fez o Tribunal a quo que, quem se disponibiliza a agredir alguém, com socos e pontapés, tendo perfeito conhecimento da sua superior condição física e não fazendo qualquer esforço para a refrear, sendo que tal agressão é realizada, como no caso da vítima EE, na zona mais sensível do corpo, em que se encontram órgãos insubstituíveis e absolutamente essenciais para regularem os mais básicos fundamentos da vida (a respiração, por exemplo) - algo que qualquer adulto sabe e, no caso dos arguidos, até o saberiam com mais acuidade, já que ambos eram praticantes de ..., modalidade em que os golpes na cabeça provocam, frequentemente, lesões de grande gravidade ou mesmo a morte - não restam dúvidas que os arguidos tinham de saber que as condutas por si prosseguidas poderiam provocar a morte daqueles cujas cabeças socaram e pontapearam indiscriminadamente e conformaram-se com tal resultado, sendo certo, para além do mais, que no caso específico que aqui tratamos, as agressões foram repetidas e sucessivas e, efectivamente das mesmas veio a resultar a morte de EE.

É isso o que decorre da aplicação das regras de experiência comum.

Na verdade, se a intenção do arguido fosse apenas a de intimidar ou, em última análise, magoar, ferir, ou mesmo defender-se, seria mais do que suficiente ter empurrado BB ou ter-lhe dado um murro com força moderada, saindo então do local. Nada disto teria sucedido. Mas os arguidos ficaram, atacaram, agrediram e, não contentes com o facto de terem conseguido deitar ao chão, com um único acto, EE (como, aliás, já havia sucedido com outros), que não esboçou, a partir desse momento, qualquer movimento nem sequer de defesa, tivessem decidido continuar – de uma forma gratuita, selvática e profundamente cobarde – a pontapear a zona da cabeça, com a força que demonstram as massivas e extremamente graves lesões internas decorrentes de quatro pontapés e um soco, enquanto entenderam adequado.

E a verdade é que, após descarregarem a sua fúria naquele corpo prostrado no chão, sendo manifesto que o mesmo se não mexia e que não estaria bem, nenhum dos arguidos demonstrou qualquer desacordo relativamente à decisão por ambos tomada, de o agredirem daquele modo, sequer prestando auxílio à vítima ou assegurando-se que fosse medicamente assistido. Na verdade, quando deram por findo o descarregar da sua agressividade, em cinco pessoas ali presentes, ambos os arguidos saíram do local, em boa ordem e sem pressas.

Não demonstraram, nem o recorrente nem o arguido AA, em súmula, nenhuma reacção que demonstre desvinculação ou repúdio relativamente aos actos que tinham acabado de cometer.

E, note-se, o tribunal “a quo” ressalvou que, nos casos em não ocorrem violentos pontapés na cabeça, entendeu que a intenção e a vontade dos arguidos não importava a possibilidade de o resultado morte poder vir a ocorrer e a sua conformação com o mesmo, mas antes teriam os arguidos a intenção de atingir e magoar fisicamente os ofendidos – ou seja, de os molestar fisicamente – o que se mostra avaliação em que não vislumbramos erro.

xxv. Face a tudo o que se deixa dito, há que concluir que mostrando-se a convicção do tribunal “a quo” apoiada nos elementos probatórios e nas regras que determinam a sua avaliação, sendo assim possível o raciocínio lógico realizado por se mostrar sustentado pelas regras de experiência comum, não pode a mesma ser alterada por este tribunal de recurso, face aos limites reapreciativos que já acima expusemos.

(…)

xxx. Finalmente, alega ainda o arguido a violação do princípio in dubio pro reo.

Este princípio actua em situações em que, face à prova produzida, o julgador chega a uma situação de dúvida insuperável quanto à ocorrência de um determinado facto. E, para tal, não basta que a prova seja divergente. É necessário que a mesma, apreciada no seu conjunto e à luz das regras de experiência comum, não permita dar credibilidade a um relato sobre outro.

Assim, haverá lugar à aplicação de tal princípio quando o julgador se encontrar perante uma dúvida insanável, razoável e objectivável.

Insanável, porque pese embora se tenham esgotado todas as diligências possíveis para apurar a verdade material, não foi possível ultrapassar o estado de incerteza.

Razoável, porque séria e racional, uma verdadeira dúvida e não uma qualquer dúvida.

E objectivável, por se mostrar demonstrável perante os demais intervenientes processuais.

A dúvida relevante para efeitos de aplicação de tal princípio, terá, pois, de se reconduzir a uma dúvida que qualquer homem médio, na situação do julgador, também teria, quanto à prática daqueles factos, pelo arguido, factos estes cuja prova se lhe mostra desfavorável.

No caso, o tribunal “a quo” entendeu não ter chegado a tal dúvida inultrapassável, no que se refere a uma série de factos cuja prática era imputada ao arguido e que, como tal, deu como assentes (outros houve, em relação ao mesmo, em que fez funcionar tal princípio e inseriu tal factualidade no rol dos factos não provados). Atenta a reapreciação acabada de realizar, constata-se que tal opção se mostra isenta de críticas, por se mostrar devidamente fundamentada.

11. Terminada a reapreciação pedida, bem como a análise dos vícios suscitados, há que concluir que, no que toca à primeira, a mesma não permite a alteração da matéria factual dada como provada, pretendida pelos recorrentes. Na verdade, os elementos probatórios recolhidos e acima reapreciados não impõem que outro juízo tivesse forçosamente de ser alcançado e assim, a decisão tomada em 1ª instância, mostra-se inatacável e intocável, não merecendo censura a determinação dos factos assentes e não assentes por si realizada, que se deve manter.

De igual modo se constata que os vícios invocados por ambos os recorrentes se não verificam, pelo que improcede igualmente, nesta parte, o por si alegado.

Não ocorreu violação, mas antes integral cumprimento do vertido no art. 127 do C.P.Penal, bem como não se mostra demonstrada a postergação do princípio in dubio pro reo.

Mantém-se, pois, inalterada, a matéria de facto dada como assente, na sua integralidade.

Pois bem.

Neste caso concreto, importa ter em atenção que os poderes de cognição do STJ, visto o disposto no art. 434.º do CPP (uma vez que se trata de recurso de acórdão da Relação que decide recursos de decisão de tribunal de júri da 1ª instância), limitam-se exclusivamente ao reexame da matéria de direito.

Com efeito, as únicas exceções introduzidas pela Lei n.º 94/2021, de 21.12 à regra geral do recurso para o STJ visar exclusivamente o reexame da matéria de direito, são (como estabelecido na parte final do art. 434.º do CPP) as previstas na al. a) do n.º 1, do art. 432.º (quando se trata de “de decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º”) e na al. c) do mesmo n.º 1 do artigo 432.º do CPP (quando se trata “de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º”).

Nesses dois casos, como se tem decidido, nomeadamente, no acórdão deste STJ de 15.02.2023 (Ana Barata Brito)7, que seguimos de perto, “trata-se de recurso de primeiro grau, para o Supremo (o que justifica a diferente solução legislativa).”

No caso aqui em apreciação, não sendo a decisão recorrida acórdão proferido pela Relação em 1ª instância, nem estando em causa recurso direto para o STJ de acórdão proferido em 1ª instância, por tribunal do júri ou coletivo, mas antes tratando-se de recurso de acórdão da Relação que decidiu recursos anteriores dos arguidos de decisão da 1ª instância, como se assinala na jurisprudência acima citada, “nada foi legislativamente alterado no que respeita à (im)possibilidade de o recurso (não) poder ter os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º.”

Assim sendo, o recurso do arguido segue a regra geral, o que significa que as questões que o recorrente colocou (e tal como as colocou) relativas à decisão da matéria de facto estão definitivamente decididas pela Relação, não cabendo na esfera de cognição do Supremo Tribunal de Justiça pronunciar-se sobre a invocada violação da presunção de inocência, do princípio da livre apreciação da prova, do in dubio pro reo e do disposto no art. 163.º do CPP, quanto à prova pericial, que alega ter sido avaliada erradamente.

Ora, respeitando essas questões à decisão sobre a matéria de facto e tendo sido sindicadas pela Relação no âmbito dos seus poderes de cognição (foram analisadas as questões que o recorrente colocou em sede de matéria de facto do acórdão da 1ª instância: ver questão sobre os “vícios da sentença e reapreciação probatória” e segmentos da decisão acima transcritos), ficaram definitivamente decididas, sendo irrecorrível nessa parte a decisão da Relação.

Apesar de o recurso merecer rejeição nesta parte, não deixámos de proceder a uma leitura atenta do acórdão recorrido também em matéria de facto, fazendo uma sindicância oficiosa dos vícios do art. 410.º, n.º 2 do CPP, o que apenas se pode basear no seu texto e não em provas ou elementos exteriores ao mesmo texto, por não poderem ser atendidos.

Assim, os vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, têm de resultar do texto da decisão recorrida na sua globalidade, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410º, nº 2, al. a), do CPP) “supõe que os factos provados não constituem suporte bastante para a decisão que foi tomada, quer porque não permite integrar todos os elementos materiais de um tipo de crime, quer porque deixem espaços não preenchidos relativamente a elementos essenciais à determinação da ilicitude, da culpa ou outros necessários para a fixação da medida da pena. A insuficiência significa, por outro lado, que não seja também possível uma decisão diversa da que foi tomada; se não for o caso, os factos podem não ser bastantes para constituir a base da decisão que foi tomada, mas permitir suficientemente uma decisão alternativa, mesmo de non liquet em matéria de facto. Por fim, a insuficiência da matéria de facto tem de ser objectivamente avaliada perante as várias soluções possíveis e plausíveis dentro do objecto do processo, e não na perspectiva subjectiva decorrente da interpretação pessoal do interessado perante os factos provados e as provas produzidas que permitiram a decisão sobre a matéria de facto.”8

A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (art. 410º, nº 2, al. b), do CPP) “é somente aquela que é intrínseca ao próprio teor da sentença, “considerada como peça autónoma e não também as contradições eventualmente existentes entre a decisão e o que consta do processo, no inquérito ou na instrução”.

O erro notório na apreciação da prova (art. 410º, nº 2, al. c), do CPP) “constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio. A incongruência há-de resultar de uma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revele, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas, apreciada não por simples projecções de probabilidade, mas segundo as regras da "experiência comum". Na dimensão valorativa das "regras da experiência comum" situam-se, por seu lado, as descontinuidades imediatamente apreensíveis nas correlações internas entre factos, que se manifestem no plano da lógica, ou da directa e patente insustentabilidade ou arbitrariedade; descontinuidades ou incongruências ostensivas ou evidentes que um homem médio, com a sua experiência da vida e das coisas, facilmente apreenderia e delas se daria conta.”9

Ora, lendo o texto da decisão sob recurso, na parte agora em apreciação, não ressalta que tivesse havido qualquer arbitrariedade na apreciação das provas que foi feita e considerações que dela constam a esse propósito, quando analisa as questões colocadas pelo recorrente.

Antes, considerando os poderes de cognição que nos são conferidos, transparece do texto da decisão recorrida, de forma expressa, os meios de prova em que se baseou e que apreciou de forma articulada, objetiva, racional e lógica, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova e suas exceções, nomeadamente, relativamente à prova pericial (ao contrário do que alega o recorrente não resulta do texto da decisão recorrida que tivesse havido violação do disposto no art. 163.º do CPP).

Também não resulta que tivesse havido violação do princípio in dubio pro reo (princípio este que se destina «a dar solução a um problema muito preciso – o da falta de convicção suficiente do julgador relativamente à matéria de facto, objecto da prova»10), visto que o tribunal a quo conseguiu obter a certeza dos factos que deu como provados, como se verifica do texto da respetiva fundamentação da decisão recorrida.

E, uma vez que a decisão proferida pela 1ª instância se mostra sustentada nas provas ali indicadas, produzidas em julgamento (tendo o tribunal obtido, por essa via, a certeza dos factos dados como provados), tal como resulta do texto da decisão recorrida, apenas se pode concluir que também não foi afrontado o princípio da presunção de inocência, percebendo-se, por isso, a razão pela qual a Relação confirmou essa mesma decisão (da 1ª instância).

Ao contrário do que alega o recorrente, os factos dados como provados e as considerações feitas pela Relação, que constam da decisão recorrida, demonstram, de forma suficiente, como foi morto o EE, qual a causa da sua morte, bem como o nexo de causalidade entre as condutas dos arguidos e a morte da vítima.

Do texto da decisão não decorre que a Relação tivesse qualquer interesse em condenar os recorrentes.

Obviamente que só podendo nós analisar o texto da decisão é irrelevante a argumentação do recorrente quando apela à sua apreciação pessoal de determinados meios de prova que indica (imagens da Câmara Evolution, relatório de autópsia, testemunhas ouvidas).

Tudo foi bem explicado na fundamentação da decisão recorrida, percebendo-se o motivo pelo qual a Relação concordou com a decisão de facto e respetiva motivação da 1ª instância.

Não é pelo facto da Relação concordar com a 1ª instância que se pode concluir que então foi violado o princípio da livre apreciação da prova ou/e o princípio da presunção de inocência.

Ao contrário do que o recorrente alega, não resulta do texto da decisão recorrida que a Relação tivesse invertido a “lógica da metodologia que se espera de um tribunal imparcial”, nem tão pouco se extrai que tinha previamente a sua convicção formada, ou que estava imbuída de preconceitos ou pré-juízos, no sentido do recorrente ser culpado, designadamente, por ter antecedentes criminais, praticar ..., ter uma força fora do normal pela função que exercia ou por praticar determinado desporto ou ter gosto pelo combate, ou por ser membro dos ... e/ou estar envolvido numa contenda.

No texto da decisão recorrida não existe suporte para as considerações subjetivas e pessoais que o recorrente faz da mesma, nomeadamente, quando considera ter sido de forma infundada que o seu comportamento foi considerado mais gravoso ou quando alega que foi errada a apreciação feita do relatório pericial (violadora do disposto no art. 163.º do CPP), concluindo que inexistem elementos suficientes do nexo causal entre a sua conduta e a morte do EE.

A avaliação das provas, tal como resulta do texto da decisão recorrida, é plausível, sendo certo que a decisão sobre a matéria de facto só era alterável se existissem erros que impusessem decisão diversa, o que não sucede; com efeito, não ressaltando do texto da decisão recorrida a existência de erros, vale a decisão da Relação (neste caso confirmando a decisão da 1ª instância), porquanto é a entidade competente para decidir.

Por isso, não assiste qualquer razão ao recorrente quando pretende impor a sua apreciação de parte das provas produzida em julgamento (quando pretende impor a sua visão subjetiva dessas provas, no sentido de não ter agredido o EE, não haver prova, nem factos relativos ao dolo), esquecendo a avaliação e decisão da Relação.

O que se passa é que o recorrente quer substituir-se ao tribunal, quando pretende impor a sua própria apreciação (subjetiva e parcial) de parte das provas produzida em julgamento; isto é, esqueceu o teor do art. 127.º do CPP, sendo a sua divergência pessoal e subjetiva, carecida de relevância jurídica.

Não há, por isso, qualquer erro a corrigir, nem se impõe a sua absolvição, como gratuitamente afirma o recorrente.

A circunstância da Relação, concordando com a 1ª instância, ter interpretado as diferentes provas de modo diverso do recorrente não significa que tivesse sido parcial ou que seja não isenta ou que haja falta ou insuficiente fundamentação.

O tribunal a quo explicitou o processo lógico e racional que seguiu na apreciação das provas que fez e, a forma como fundamentou a sua convicção satisfaz a exigência que decorre do n.º 2 do artigo 374.º do CPP.

De resto, para além dos factos apurados permitirem proferir uma decisão (o que mostra a sua suficiência), não se deteta qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão (nem sequer foi exposto qualquer raciocínio ilógico ou contraditório na fundamentação que apontasse para decisão contrária à da condenação do arguido/recorrente), sendo certo que a apreciação feita pela Relação (mesmo confirmando a do Tribunal da 1ª instância) não contraria as regras da experiência comum e tão pouco evidencia qualquer erro relevante de que o homem médio facilmente se desse conta.

Ora, não ocorrendo qualquer dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, nem qualquer nulidade de conhecimento oficioso e estando igualmente afastada a violação dos princípios invocados pelo recorrente, podemos concluir que está definitivamente fixada a decisão sobre a matéria de facto constante da decisão sob recurso.

Assim, improcede a argumentação do recorrente.

3ª Questão (recurso do arguido GG): violação do disposto nos arts. 358.º e 359.º do CPP, no que se relaciona com a alteração da circunstância qualificativa do homicídio de EE, finda a produção da prova, pretendendo o recorrente a desqualificação.

A este propósito, invoca, em síntese, o recorrente GG que a comunicação efetuada em 10.05.2023, finda a produção de prova, por despacho oral de “alteração da qualificação jurídica” (estando acusado, em relação à vítima EE, por um crime de homicídio qualificado na forma consumada, p. e p. nos arts. 131.º e 132.º, n.º 1 e n.º 2, al. l), do CP e tendo sido condenado por um crime de homicídio qualificado na forma consumada, p. e p. nos arts. 131.º e 132.º, n.º 1 e n.º 2, al. c), do CP), consubstancia uma alteração substancial, violadora do disposto nos arts. 358.º e 359.º do CPP, uma vez que não teve uma efetiva oportunidade de defesa, constituindo essa alteração uma verdadeira decisão surpresa (tendo preparado toda a sua defesa ao longo do julgamento para a acusação de ter agido contra um agente de autoridade e não para ter agredido uma pessoa particularmente indefesa, o que apenas lhe foi comunicado finda a produção da prova), ilegal e inconstitucional, na medida em que também afeta as suas garantias de defesa, acolhidas no art. 32.º, n.º 1 e n.º 5 da CRP, no art. 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), no art. 6.º, n.º 3, al. b), da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) e no Art. 6.º, n.º 3 e n.º 4, da Diretiva 2013/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de Maio, relativa ao direito à informação em processo penal, mormente a estrutura acusatória do processo penal e, bem assim, o direito do arguido conhecer, atempadamente, os crimes que lhe são imputados, incluindo a sua qualificação jurídica, para que possa preparar e exercer a sua defesa.

Esta questão também já foi colocada, praticamente nos mesmos moldes, no recurso interposto do acórdão da 1ª instância e, foi assim decidida no acórdão da Relação agora em apreciação:

A. Nulidades da sentença.

1. Em sede de audiência, na sessão de 10 de Maio de 2023, foi proferido o seguinte despacho:

“Produzida que foi a prova em audiência de julgamento, o Tribunal considera a possibilidade de vir a dar como assente que quando CC tentou seguir no encalço dos arguidos, AA voltou para trás e desferiu um soco no ofendido CC. Tal alteração de pontapé para soco no facto 39º da acusação resulta do depoimento do ofendido CC, suportado que se encontra pelo Relatório de Perícia de avaliação de dano corporal de fls. 1150 a 1152.

Em face do exposto, e porque se está perante uma alteração não substancial dos factos, dá-se dela conhecimento às defesas nos termos e para os efeitos do disposto no art. 358º, nº 1 do CPP.”


*

Comunicadas a referida alteração, a Meritíssima Juíza Presidente deu a palavra ao Ilustre Mandatário da Assistente e dos arguidos, que no uso da mesma disseram prescindir do prazo para preparação da defesa dos arguidos.

*

De seguida, pela Mma Juíza Presidente foi proferido o seguinte despacho: “O Tribunal considera, em sede de qualificação jurídica, no que tange aos arguidos AA e GG, que os factos: - de que foi vítima EE se subsumem ao crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos art. 131º e 132º, nº2, al. c) do CP; - de que foi ofendido DD se subsumem ao crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos art. 131º e 132º, nº 2, al. c) e art. 23º, nº 1 e 2, e 73º, nº1, al. a) e b) do CP. No que tange apenas ao arguido GG, o Tribunal considera, em sede de qualificação jurídica, que os factos de que foi ofendido BB se subsumem - ao crime homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos art. 131º e 132º, nº2, al. c) e art. 23º, nº1 e 2, e 73º, nº1, al. a) e b) do CP; - a um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, nº 1 e 2; - e um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 143º, nº1 e 2, 145º, nº 1, al. a) e nº 2, e al. 132º, nº 2, al. c) do CP. Em face do exposto, e porque se está perante meras alterações da qualificação jurídica, sendo certo que os factos subsumíveis permanecem inalterados, dá-se delas conhecimento às defesas nos termos e para os efeitos do disposto no art. 358º, nº 1 e 3 do CPP.

2. O tribunal “a quo” pronunciou-se a propósito das nulidades suscitadas em audiência de julgamento, pelo recorrente, no que se refere à notificação realizada nos termos e para os efeitos previstos no art. 358 do CPPenal, nos seguintes termos:

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com observância do formalismo legal.

No seu decurso, na sessão de 10.5.2023, procedeu-se à alteração não substancial dos factos e bem assim a uma alteração da qualificação jurídica, tendo sido dado cumprimento ao disposto no art. 358º, nº 1 e 3 do CPP.

As Defesas não requereram prazo para produção de prova, mas a Defesa do arguido GG, quanto à alteração da qualificação jurídica, tomou de imediato posição oralmente, posição essa que depois veio aperfeiçoar em requerimento escrito com a Ref. ......98, invocando, em síntese, a nulidade do despacho então proferido, sustentando o seu entendimento com os seguintes argumentos:

i) o Tribunal não pode, após encerramento da audiência de julgamento, reabri-la para efetuar uma comunicação de alteração de factos ou da qualificação jurídica;

ii) a decisão da alteração não podia ter sido tomada pelo Tribunal de Júri, mas apenas pelo Tribunal Coletivo, estando tais decisões àqueles vedadas; mais diz que é manifesto que já houve reunião para deliberação, que já se iniciou a fase de deliberação, ou seja, que foi no decurso da deliberação, após sentença com a intervenção dos Jurados, que se aventou a hipótese da alteração não substancial dos factos e da alteração da qualificação jurídica, o que acarreta uma manifesta violação do regime da distribuição de competências entre o Tribunal Coletivo e o Tribunal de Júri, o que origina a nulidade do despacho, por força do art. 119º, al. e) do CPP; por fim, diz que devia ter havido uma notificação por escrito, porque carecia de uma análise detalhada e casuística o teor do comunicado; refere que teve dúvidas e só quando ouviu a gravação e procedeu à sua transcrição é que as dissipou e apreciou, motivo pelo qual pretende, de novo, tomar posição;

iii) a alteração da qualificação jurídica comunicada consubstancia uma alteração substancial dos factos; para tanto diz que estão em causa novas realidades que oneram a posição do arguido, sendo tal decisão inconstitucional à luz do disposto no seu art. 32º a conjugar com o art. 1º, al. f) do CPP; acrescenta que estão em causa mais crimes e crimes mais graves, e considera que implicam a imputação ao arguido de um crime diverso e, cumulativamente, a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.

Exercido o direito ao contraditório pelo arguido AA, pelo mesmo foi dito acompanhar o requerimento do arguido GG, mais alegando que não poderá o Tribunal considerar que a vítima EE era uma pessoa particularmente indefesa à luz do preceito penal, inexistindo factos que possibilitem uma subsunção fática em conformidade; alega, ademais, que não consta do despacho em que se comunicou a alteração da qualificação jurídica qual o facto que preenche a al. c) do art. 132º do CP; por fim, admitindo que tal facto seja o que se reporta à situação da vítima, traz à colação o Ac. STJ, 18.09.2018, Lopes da Mota, in www.dgsi.pt , que relata as circunstâncias da prática de um crime de violação em que o arguido coloca a vítima na impossibilidade de resistir, o que se relacionava com o referido crime; conclui que não se encontrando a factualidade vertida em sede de acusação, nem tendo sido trazida pelas Defesas, se está perante uma forma de execução do crime diversa da vertida na acusação, o que implica uma verdadeira alteração substancial dos factos; pugna pela alteração do despacho colocado em crise, que deverá ser substituído por outro que considere estar-se perante uma alteração substancial dos factos.

Também o Ministério Público exerceu o direito ao contraditório, desta feita pugnando pela improcedência da invocada nulidade do despacho. Para tanto, ilustra a sua posição com o Ac. do TRL, proferida no Proc. 7029/2006-3 de 6.12.2006, dele retirando que a comunicação deve ser efetuada antes da publicação da decisão final, o que se não confunde com o encerramento da discussão. Mais diz que o despacho relativo à comunicação de alteração não substancial dos factos constitui juízo provisório, não sujeito ao dever de comunicação. Mais cita o MP o AFJ 11/2013 que a veio firmar no sentido de que a comunicação da alteração jurídica dos factos só pode ser efetuada após produção de prova.

No que tange à nulidade invocada pelo arguido decorrente de a decisão ter sido tomada pelo Tribunal de Júri e não pelo Tribunal Coletivo, sustenta que mal se compreende a alegada violação de competências, porquanto todas as decisões tomadas pelo Tribunal são assumidas por todos os seus elementos, nos termos do disposto no art. 1º do DL 387-A, de 29.12.

Cumpre apreciar e decidir.

i) Vejamos, então, a bondade da alegação do arguido de que, após produção das alegações finais e últimas declarações de arguido, está vedado ao Tribunal reabrir a audiência de julgamento com retorno à fase de discussão, a fim de proceder a qualquer uma das comunicações a que alude o disposto no art. 358º, nº 1 e 3 do CPP.

Ora, é na fase da apreciação conjugada da prova, da sua análise, após o encerramento da discussão com as alegações e declarações finais dos arguidos, como é de lei que se faça, que, não raras vezes, o Tribunal, nessa tarefa analítica, se depara com eventuais insuficiências pontuais de prova que, a serem ultrapassadas, lhe permitiriam formular uma convicção conscienciosa de molde a fundamentar um facto, seja negativa, seja positivamente; ou que conclui que há factos suscetíveis de virem a ser dados como provados, não constantes do libelo acusatório, que importa comunicar ao arguido para que, querendo, deles se defenda; ou conclui, ainda, da análise da matéria de facto que considerou provada ou não provada, que a subsunção fático-jurídica não está efetuada em conformidade com o resultado a que chegou, impondo-se comunicar a competente e legal alteração.

E essa tarefa impõe-se ao Tribunal, obrigado que se encontra a prosseguir o fim último do processo – a descoberta da verdade e a boa decisão da causa. Nada impede, desta feita, que o Tribunal regresse à fase de discussão, que comunique aos arguidos o que houver a fazer ao abrigo no disposto no art. 358º, nº 1 e 3, do CPP, para, eventualmente, produzir prova que se entenda ser necessária para decidir.

Posto isto, não se diga que a norma do art. 371º, nº 1, do CPP, apenas permite a reabertura da audiência para produção de prova para determinação da sanção e que, não se encontrando nela contemplada a possibilidade de reabertura da audiência para esclarecer questão relativa à matéria de facto, essa diligência está proibida. A letra da norma não permite a interpretação dessa proibição, nem se vislumbra onde se possa fundar essa proibição.

Os princípios do nosso sistema jurídico, numa perspetiva que se impõe conciliadora e harmónica, bem como os princípios processuais e a ratio dos procedimentos processuais penais respondem a qualquer dúvida sobre a questão, afastando essa invocada proibição.

Seria um absurdo, em sede de harmonia do sistema jurídico, que no processo civil (cf. art. 607º, nº 1, do CPC) se pudesse reabrir a audiência para produção de prova deficientemente apurada até ao encerramento da audiência, prova cujo ónus é sobremaneira das partes, e no processo penal, conformado pelo princípio da descoberta da verdade e do poder-dever do Juiz de a prosseguir, em que o Julgador é consistentemente o Magistrado do facto e da verdade material do facto, o Tribunal ficasse coartado na possibilidade de se esclarecer após o encerramento da audiência e de comunicar uma alteração dos factos ou da qualificação jurídica.

Não se vislumbra uma razão que seja para defender que o disposto no art. 607º, nº1, do CPC não se aplica no processo penal, ex vi o art. 4 do CPP, nem o arguido requerente a alega ou esgrime. Com efeito, inexiste norma que permita escorar tal conclusão; inexiste ratio que a permita acalentar; inexiste princípio que seja violado por essa aplicação do processo civil ao processo penal, que o despacho impugnado fez operar.

De resto, sempre se dirá que, no caso dos autos, em sede de alteração da qualificação jurídica, cuja matéria em apreciação se prende com a existência de dolo a extrair da factualidade que conforma os elementos objetivos do tipo de crime, só após o encerramento da audiência, em sede de deliberação do Tribunal (art. 365º a 369º do CPP) é que se assentam factos e, nessa medida, só posteriormente, e na sua sequência, pode o Tribunal fazer a necessária subsunção fático jurídica. Assim, caso não seja a mesma coincidente com a constante do libelo acusatório, deverá comunicá-la para exercício cabal do direito de defesa. E essa comunicação deve ser efetuada em audiência, pelo Tribunal, ficando documentada nos termos legais.

Por todo o exposto, e sem necessidade de expender outros argumentos, entende-se que a reabertura da audiência não viola as normas processuais penais, ou outras, nem viola qualquer princípio de direito processual ou qualquer princípio ou norma constitucional.

E mais se entende que a comunicação da alteração não substancial dos factos e da alteração da qualificação dos factos foi efetuada dando-se cumprimento ao art. 358º, nº 1 e 3, do CPP, encontrando-se, por isso, validamente efetuada e sem enfermar de qualquer nulidade. E o arguido bem compreendeu essas alterações e reagiu de imediato, conforme deflui da documentação da audiência.

Neste sentido vejam-se, por todos,

Ac. TRC, 18.5.2022, Alcina da Costa Ribeiro, in www.dgsi.pt

I – A alteração da qualificação jurídico-penal dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não constitui, no nosso sistema processual, uma questão prévia ou incidental, mas sim uma questão de fundo, só podendo, por isso, ser apreciada na estrutura da sentença prevista no artigo 374.º do Código de Processo Penal, depois de julgados os factos como provados e não provados, com indicação dos respectivos fundamentos.

E TRL, 28.4.2021, Moreira Ramos, in www.dgsi.pt

Conquanto a reabertura da audiência seja apenas admissível para a produção de prova suplementar e que do nº 1 do artigo 358º do CPP decorra que a alteração não substancial a comunicar deverá ter-se verificado no decurso da audiência, nada obsta a que, constatada a necessidade de efetuar um tal tipo de comunicação apenas na fase de deliberação do tribunal, possa ser determinada a reabertura da audiência para proceder a uma tal comunicação, assim se retrocedendo à fase da discussão, ainda que restrita a um tal aspecto, bem como aos que com ele eventualmente se mostrarem conexos.

ii) A questão a dilucidar é se compete ao Tribunal de Júri ou ao Tribunal Coletivo tomar a decisão da alteração da qualificação dos factos e da alteração não substancial dos factos.

Consigna-se que:

- nos termos do art. 13º do CPP compete ao tribunal do júri julgar os processos (…)

- nos termos do art. 1º do Regime de Júri em Processo Penal, o Tribunal do Júri é constituído pelos três Juízes que compõem o Tribunal Coletivo e por quatro jurados efetivos e quatro suplentes;

- nos termos do art. 2º do mesmo Regime, compete ao Tribunal do Júri julgar os processos (…)

- nos termos do art. 14º, nº1, do mesmo Regime, os jurados decidem apenas segundo a lei e o direito (…)

- nos termos do art. 14º, nº 2, do mesmo Regime, os jurados não podem abster-se de julgar com fundamento na falta, obscuridade ou ambiguidade da lei ou em dúvida insanável sobre a matéria de facto (…).

Ora, o arguido parece fazer alguma confusão concetual entre o funcionamento do Tribunal Coletivo e o do Júri. Com efeito, do seu requerimento parece extrair-se o entendimento de que não há um Tribunal de Júri uno no âmbito penal, composto por sete juízes, mas dois tribunais a funcionar em simultâneo no processo / julgamento, um de Júri, composto por jurados, e outro, a par com ele, o Tribunal Coletivo, composto por três Juízes de Direito, sendo o presidente do mesmo o titular do Processo.

Não se vislumbra a sustentação legal para tal entendimento.

O Tribunal de Júri é composto por três Juízes de Direito (sendo estes os que compõem o Tribunal Coletivo, e o seu presidente é, de entre estes, a quem foi o Processo distribuído) e os Jurados selecionados. É um Tribunal uno. O nosso modelo coloca os Jurados em paridade com os juízes de carreira, cabendo-lhes decidir de facto e de direito, como decorre claramente das normas acima transcritas, em particular, das que dispõem sobre a obrigação dos Jurados decidirem.

Neste sentido, decidiu o Ac. STJ, 23.11.2011, Santos Cabral, in www.dgsi.pt

I-O júri, na sua essência, delibera sobre a ocorrência dos factos relevantes para saber se se verificam os elementos constitutivos do tipo de crime, se o arguido praticou o crime ou nele participou, se o arguido actuou com culpa, se se verifica alguma causa que exclua a ilicitude do facto e se se verifica qualquer outro pressuposto de que a lei faça depender a punibilidade do agente ou a aplicação de uma medida de segurança. Depois de apreciar os factos, o júri delibera sobre todas as questões de direito suscitadas pelos factos julgados. Esta actividade decisória insere-se na apreciação da questão da culpabilidade, e a ela se refere o artigo 368.° do Código de Processo Penal.

II-Comum a todos os membros do tribunal de júri é a obrigação de procura da verdade material a qual, porém, não invalida o diferente apetrechamento em termos de domínio das regras procedimentais que conduzem tal procura.

Em face do exposto, e sem necessidade de mais delongas, improcede a invocada nulidade.

iii) Também nesta matéria se não acompanha o entendimento do arguido.

Uma coisa é a alteração de um facto, que importa a sua modificação, quer através da alteração de um ou mais segmentos do mesmo, ou o seu aditamento, e outra é a alteração da qualificação jurídica do facto que se reporta à respetiva subsunção jurídica.

Equivale isto por dizer que uma coisa é o facto e outra a sua subsunção jurídica à norma.

De entre o primeiro caso – o da alteração de um facto – há que distinguir se essa alteração tem como efeito a imputação de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis (art. 1º, al. f) do CPP), caso em que a alteração é substancial e segue o regime prescrito no art. 359º do CPP, ou não tem esse efeito, e segue o regime do art. 358º, nº1.

Ora, o despacho colocado em crise comunicou uma alteração não substancial (alterou o segmento “pontapé” para “soco”, o que não tem como efeito subsunção jurídica distinta, mantendo-se o mesmo tipo de crime de ofensas à integridade física) e, não alterando qualquer outro facto, subsumiu os que constam do libelo acusatório a outra alínea do art. 132º, nº 2, a saber, a al. c).

Compete ao Tribunal subsumir os factos ao Direito, o que fez.

Ou seja, e sublinha-se, procedeu-se a uma diversa qualificação jurídica da que constava no libelo acusatório, sem que para tanto tenha alterado qualquer facto.

Dita o art. 358º, nº 3 do CPP que, fazendo-o, deve o Tribunal dar cumprimento ao disposto no art. 358º, nº3 do CPP, o que se observou.

Não colhe o argumento de que há novas realidades – só há novas realidades quando há novos factos ou alterações dos constantes do libelo acusatório.

Não se compreende o fundamento para a alegada violação do art. 32º da CRP, nem o arguido logrou concretizá-la. Esta norma constitucional comporta várias vertentes do processo criminal. Desconhece-se qual delas teria o arguido em mente, mas desde já se consigna que nenhuma delas se encontra violada.

Note-se que o TC, no aresto 445/97 de 25.6.1997, já se pronunciou sobre tal matéria, para firmar que é inconstitucional a não comunicação da alteração da qualificação jurídica, declarando inconstitucional, por violação do princípio constante do art. 32º nº 1 da CRP, a norma ínsita na alínea f) art. 1º CPP, quando interpretada no sentido de não constituir alteração substancial dos factos descritos na acusação ou pronúncia a simples alteração da respectiva qualificação jurídica, mas tão-somente na medida em que, conduzindo a diferente qualificação jurídica dos factos à condenação do arguido em pena mais grave, não se prevê que este seja prevenido da nova qualificação e se lhe dê, quanto a ela, oportunidade de defesa. Posteriormente, o Ac TC 518/98 de 15.7.1998, veio esclarecer que o sentido e alcance da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, constante do mencionado acórdão nº 445/97, é o de que o tribunal que proceda a uma diferente qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, que importe a condenação do arguido em pena mais grave, antes de a ela proceder, deve prevenir o arguido da tal possibilidade, dando-lhe, quanto a ela, oportunidade de defesa.

A acrescer, veja-se, por todos, a seguinte jurisprudência que se acompanha para ilustrar o expendido:

Ac. TRC, 12.2.2020, João Novais, in www.dgsi.pt :

I – Quando se fala em alteração de factos, está-se a pensar primordialmente em situações de adicionamento ou de alteração de factos já constantes da acusação, porquanto é através destas duas vias que se ultrapassam os limites do objecto do processo definidos na dita peça processual.

II – Todavia, não se excluem situações em que a alteração da factualidade juridicamente relevante tenha na sua origem a exclusão de factos, importando, também aqui, que essa supressão altere de forma significativa o objecto do processo.

III – Patentemente, não existe alteração relevante do objecto do processo e, por conseguinte, alteração substancial dos factos, quando, como no caso verificado nos autos, os factos integradores do crime de homicídio tentado, sem modificação na pronúncia, já constavam integralmente do libelo acusatório, assumindo-se sem relevância a eliminação na pronúncia de determinados factos – relacionados com o imputado crime de violência doméstica – descritos na acusação.

E ainda o Ac. STJ de 6.12.1019, Manuel Augusto de Matos, in www.dgsi.pt

“Por outro lado, nada obsta a que o tribunal proceda à uma alteração da qualificação jurídica dos factos imputados ao agente, desde que essa alteração se baseie nos factos descritos na acusação - como no caso se baseou - e desde que ao arguido seja dada oportunidade de exercer o contraditório - como foi - ainda que dessa alteração venha a resultar a incriminação e condenação do arguido por crime mais grave (trata-se aqui de uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, não da alteração de factos, que com aquela não se confunde). Assim, concluindo, o arguido teve oportunidade de exercer o seu direito de defesa, quer relativamente à alteração não substancial dos factos a que o tribunal procedeu, quer relativamente à alteração da qualificação jurídica dos factos que lhe vinham imputados na acusação (no rigoroso respeito pelo art. 358.º, n.ºs 1 e 3 do CPP) - alteração da qualificação jurídica que não assentou, como se vê da matéria de facto que lhe foi imputada na acusação e do despacho que a ela procedeu, em qualquer alteração substancial dos factos, entendida como aquela que tenha como efeito a imputação (com base nesses novos factos) de um crime diverso ou a agravação dos limite máximos das sanções aplicáveis (art. 1.º, al.ª f) do CPP) - pelo que não faz qualquer sentido a pretendida aplicação do art. 359 do CPP”

Desta feita, julga-se manifestamente improcedente a invocada arguição de que a comunicação oportunamente efetuada se subsume, não a uma alteração da qualificação jurídica, mas ao instituto da alteração substancial de factos.

No que tange às alegações do arguido AA, ainda não contempladas, serão as mesmas tratadas aquando da análise dessa matéria.

2. O recorrente GG extraiu da sua motivação, a propósito desta questão, as seguintes conclusões:

16.ª Entrando no mérito do Acórdão recorrido propriamente dito, cumpre, em primeiro lugar, invocar os vícios suscetíveis de viciar toda ou quase toda a decisão, começando por arguir a nulidade do Acórdão, em razão da alteração substancial dos factos descritos na acusação, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. b) do CPP;

17.ª Isto porque, tendo em conta os crimes pelos quais o Recorrente vinha acusado e os crimes pelos quais, na sequência da alteração, foi condenado, temos que:

- em relação ao Ofendido BB, na acusação, ele vinha acusado de um crime de ofensa à integridade física; mas foi, porém, condenado a um crime de ofensa à integridade física, a um crime de ofensa à integridade física qualificada e, ainda, a um crime de homicídio qualificado, na forma tentada;

- quanto ao Ofendido DD, o Recorrente vinha acusado de um crime de ofensas à integridade física qualificada, contudo, foi condenado a um crime de homicídio qualificado, na forma tentada;

- e, por fim, no que concerne à vítima EE, o Recorrente foi acusado de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, com base no artigo 132.º, n.º 2, alínea l) do CPC, mas foi condenado ao referido crime, com fundamento na alínea c) do mencionado dispositivo.

18.ª A razão de discordância com a decisão recorrida quanto à pretendida “alteração da qualificação jurídica”, prende-se, em primeiro lugar, com o facto de que tais alterações foram comunicadas na data designada para leitura do Acórdão, uma vez já finda a produção de prova e encerrada a audiência, sem que se verificasse qualquer fundamento para a sua reabertura (cfr. artigo 371.º do CPP).

19.ª Com efeito, é consabido que a inserção sistemática das normas é um elemento interpretativo de relevo a ter em conta na altura da sua aplicação, como decorre, de resto, da regra geral sobre a interpretação hermenêutica contida no artigo 9.º do Código Civil (CC), que consagra para toda a ordem jurídica a doutrina tradicional sobre os elementos de interpretação jurídica;

20.ª Assim como que a integração de lacunas em processo penal por aplicação do artigo 4.º do CPP pressupõe, antes de tudo, que se conclua pela existência de uma lacuna, isto é, de uma situação não regulada no Código de Processo Penal, que permita ao aplicador da Lei lançar mão de outros normativos, na impossibilidade de uma decisão de non liquet, nomeadamente do CPC;

21.ª Dito isso, enquanto entende o tribunal a quo que nada impede que se volte à fase de discussão, na perspectiva do Recorrente, é a lei, nomeadamente o CPP, que impede tal regresso;

22.ª O artigo 358.º do CPP, inserido, sistematicamente, na fase de Julgamento do processo penal e no capítulo atinente à audiência, encerra expressamente no seu texto que a alteração não substancial dos factos ocorre no decurso da audiência;

23.ª O que é perfeitamente justificável, justamente tendo em conta que o instituto da alteração dos factos pretende dar voz ao princípio do acusatório, permitindo que uma alteração não substancial possa ter lugar, desde que seja respeitado o direito ao contraditório, possibilitando a produção de prova adicional – quando admitida – e, por conseguinte, deva ser feita na fase que por excelência é a da actividade probatória: a audiência;

24.ª Caso contrário, isto é, permitir que seja comunicada uma alteração dos factos ou mesmo uma alteração da qualificação jurídica uma vez terminada a fase da produção de prova, é permitir uma verdadeira subversão do sistema, em que o instituto se transforma numa forma de colmatar os erros e/ou as falhas da acusação;

25.ª In casu, no dia 20 de Abril, o Tribunal a quo deu a oportunidade aos arguidos para prestarem as suas últimas declarações e, na sequência, marcou a data para leitura do Acórdão para o dia 5 de Maio, às 9h30;

26.ª Isto é, com o encerramento da audiência, deu-se início à fase da deliberação, de maneira que a reabertura daquela audiência apenas poderia ter lugar, conforme dispõe o artigo 371.º, n.º 1, do CPP, para determinação da sanção – o que não foi o caso;

27.ª Não entende, portanto, o Recorrente o argumento do Tribunal de que a harmonia do sistema impõe a aplicação do artigo 607.º do CPC, haja vista que, na realidade, o Código de Processo Penal detém, nesta matéria, um regime completo e próprio que impede, por si só, o recurso à aplicação das normas do Código de Processo Civil;

28.ª Ademais, sendo o artigo 371.º uma norma excepcional, que abre uma excepção ao princípio da continuidade da audiência, permitindo, a posteriori, a sua reabertura, subjaz, com meridiana clareza, que a excepção apenas vale para o que está previsto na Lei e não para o que o Tribunal quiser, afirmando cegamente que “nem se vislumbra onde se possa fundar essa proibição”, simplesmente porque, estando na iminência de ter de “deixar cair” o crime qualificado pela alínea l) do n.º 2 do art. 132.º, não quer ver e tem de arranjar alternativa de trocar a alínea, dê por onde der;

29.ª Ora, como já explicado, essa proibição, que o Tribunal a quo não vislumbra de onde se retira, resulta das regras de hermenêutica que se aprendem nos bancos da Faculdade: as normas excepcionais não admitem interpretação extensiva, ou seja, não podem ser utilizadas para outras situações senão para àquelas que foram especificamente consagradas;

30.ª Isto posto, impõe-se a revogação do Acórdão, neste parte, conhecendo-se que é nulo, ou pelo menos é ilegal, por violação dos arts. 361.º, n.º 2, 365.º, n.º 1 e 371.º do CPP, a reabertura da audiência, após o seu encerramento e designação de data para leitura do Acórdão, para efeitos de fazer operar o art. 358.º do CPP, com todas as legais consequências.

31.ª Outro dos vícios assacados à decisão de “alteração da qualificação jurídica” e que foi conhecida – erradamente – no Acórdão objeto de recurso é a que se prende com a incompetência do Tribunal de Júri para decidir nesta matéria;

32.ª Não se vê onde possa estar a confusão senão do lado do Tribunal a quo, que esteve todo o julgamento sem saber bem quem devia fazer o quê, em constante violação das regras de distribuição da competência do Tribunal do Júri, do Tribunal Colectivo e da Presidente do Tribunal Colectivo, o que aliás gerou um dos recursos retidos cuja manifestação de interesse na manutenção se fez supra;

33.ª O artigo 111.° da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais determina, no nº 1, que compete ao tribunal do júri julgar os crimes a que se refere o artigo 13.° do Código de Processo Penal, salvo se tiverem por objeto crimes de terrorismo ou crimes que se enquadrem no conceito de criminalidade altamente organizada e, no nº 2, que a intervenção do júri no julgamento «é definida pela lei de processo»;

34.ª Por outro lado, o regime do júri consta do Decreto-Lei n° 387-A/87, de 29 de Dezembro, que, no n° 3 do artigo 2° enuncia que o «júri intervém na decisão das questões da culpabilidade e da determinação da sanção» e no nº 1 do artigo 14º que «[o]s jurados decidem apenas segundo a lei e o direito e não estão sujeitos a ordens ou instruções»;

35.ª Ora, no caso presente, o Recorrente arguiu a nulidade pelo vício de incompetência perante o Tribunal a quo, que, por sua vez, entendeu não verificar tal nulidade, sendo tempo, pois, de o Tribunal ad quem se pronunciar sobre se o Tribunal do Júri era, ou não - como entende o Recorrente, competente para intervir na decisão sobre a “alteração da qualificação jurídica”;

36.ª Ora, o Acórdão recorrido “navega novamente à vista”, quando, para decidir sobre a matéria, em momento nenhum analisa, invoca ou apela ao essencial: ao artigo 2.°, n.° 3, do Regime do Júri em Processo Penal, norma que fixa, de uma perspectiva funcional, a competência do Tribunal do Júri para a intervenção em questões da culpabilidade e da determinação da sanção;

37.ª Com isso, mais uma vez, uma leitura atenta ao CPP permite que se chega a conclusão contrária do Tribunal a quo, no sentido de que o Tribunal do Júri intervém indiscriminadamente no decurso do Julgamento, visto tratar-se de um Tribunal uno;

38.ª Na verdade, se atentarmos ao artigo 365.° – deliberação e votação – o mesmo faz aí já referência expressa aos jurados, o que não sucede em qualquer momento anterior (salvo nas normas relativas aos meios de prova, em que se referem sempre os Jurados como podendo inquirir diretamente o Arguido, o assistente, as partes civis, e as testemunhas, bem como sugerir questões a colocar aos peritos);

39.ª Tal solução compreende-se, em consonância com o artigo 2.°, n.° 3, do regime do júri em processo penal. Lembrar que os jurados não podem ser magistrados, nem sequer advogados, e na maioria das vezes são pessoas sem qualquer formação jurídica ajudará a perceber que o sistema não quis colocá-los a conhecer questões eminentemente técnicas, como seja a regularidade processual de produção de meios de prova e o conhecimento de uma alteração de factos, apetrechando-os somente com aquilo que for necessário para que possam tomar uma decisão, já em fase de deliberação, sobre as questões de culpabilidade e determinação da sanção;

40.ª Em face de tudo quanto se expôs, o Acórdão deverá ser revogado, nesta parte, conhecendo-se que é nula, por violação dos artigos. 2., nº 3, do Regime do Júri em processo penal, em leitura conjugada com os artigos 358 e 365., n.º 2, do CPP, nulidade que se encontra tipificada no artigo 119, al. e) do mesmo diploma, a decisão de “alteração da qualificação jurídica” tomada pelo Tribunal do Júri e não pelo Tribunal Colectivo, com todas as legais consequências.

41.ª No mais, a argumentação despendida pelo Tribunal a quo no que diz respeito à admissibilidade da “alteração da qualificação jurídica” é falaciosa na medida em que concluiu, quanto ao aqui Recorrente, que «não alterando qualquer outro facto, subsumiu os que constam do libelo acusatório a outra alínea do art. 132º, nº 2, a saber, a al. c)»;

42.ª Ora, na verdade, relativamente ao Ofendido BB, o Tribunal a quo faz muito mais do que “subsumir em outra alínea” e transforma o crime de que o Recorrente vinha acusado (ofensas à integridade física simples) em três crimes diferentes (um de ofensa à integridade física simples, um de ofensa à integridade física qualificado e um de tentativa de homicídio qualificado);

43.ª Enquanto que, quanto aos ofendidos agentes da PSP DD e EE, sim, perante a evidência da impossibilidade de dar como provado que o crime foi praticado contra agente de autoridade, decidiu alterar a alínea qualificativa da l) para a c), do n.º 2, do art. 132.º;

44.ª Ou seja, torna-se evidente que tal atitude do Tribunal consubstancia uma alteração substancial dos factos descritos na acusação e viola o direito a ser julgado mediante processo equitativo;

45.ª A final, fazer prova de que o crime não foi cometido contra uma força policial é – de facto – diferente de fazer prova de que o crime não foi cometido contra pessoa particularmente indefesa;

46.ª Da mesma forma de que exercer a defesa contra um crime de ofensas à integridade física simples, tal como foi desenhado pela acusação, é diferente de exercer a defesa por um crime de ofensas à integridade física simples em concurso efetivo com um crime de ofensas à integridade física qualificado e um crime de homicídio tentado qualificado, tudo passado num curto espaço de tempo e contra a mesma pessoa;

47.ª Ao fazer isso, nos termos do Acórdão recorrido, o Tribunal a quo olha apenas para o acontecimento histórico, e não para a relevância jurídico-penal do mesmo;

48.ª As alterações levadas a cabo pelo Tribunal a quo são uma verdadeira alteração substancial, não só porque passam a estar em causa novas realidades fácticas que até então não foram objeto do processo, como porque onera de sobremaneira a posição do Arguido, e nessa medida, tal alteração é ilegal e inconstitucional;

49.ª Não se pode negar que, finda a produção de prova, o Tribunal passar a entender que afinal não esteve em discussão se os factos foram praticados contra forças de autoridade, mas afinal contra pessoas particularmente indefesas, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez (?), consubstancia uma alteração substancial susceptível de influir negativamente no direito de defesa do Arguido;

50.ª Toda a defesa produzida, tudo o que se discutiu sobre se os Arguidos sabiam ou não que os ofendidos eram PSP’s passa a não importar, para passar afinal a discutir-se (finda a produção de prova), que os Ofendidos eram pessoas particularmente indefesas, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez (?), quando tal questão não foi, em momento nenhum, aventada por qualquer sujeito processual, e muito menos se encontra concretizada – vício que analisaremos adiante;

51.ª No caso concreto, a nova circunstância qualificativa, que rigorosamente nada tem a ver com aquela que constava da acusação e relativamente à qual o Recorrente preparou a sua defesa, foi comunicada já finda a audiência, nunca tendo sido referida em qualquer momento anterior, constituindo um fator surpresa não compaginável com a estrutura acusatória imposta pela Constituição e pelo direito europeu, aqui muito em concreto pelo artigo 6.º, n.º 3, da Diretiva 2012/13/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho;

52.ª Ora, também por aqui resulta manifesto que consubstancia uma alteração substancial, por significar a imputação de crimes mais graves e de mais crimes, a alteração da “qualificação jurídica” pretendida no que diz respeito ao Ofendido BB;

53.ª Por isso, apesar de o Tribunal a quo não o querer reconhecer, sob a égide de uma “alteração da qualificação jurídica” subjaz uma verdade alteração fáctica – ou de outro modo as condenações por estes novos crimes terão necessariamente que cair por inexistência de elementos subjetivos do tipo, em concreto, de dolo associado a cada um deles;

54.ª O Tribunal tem de decidir se existe apenas um crime de ofensa à integridade física – caso em que não há alteração dos factos constantes da acusação quanto aos crimes relacionados com BB – ou se há três diferentes crimes – e neste caso, três resoluções diferentes, com três motivações diferentes (atingir o corpo, atingir o corpo de uma pessoa particularmente indefesa e tentar atingir a vida de uma pessoa particularmente indefesa) e, portanto, com uma alteração factual inerente à alteração jurídica;

55.ª Assim, em face do exposto, as alterações pretendidas, finda a produção de prova – ainda que o Tribunal insista que não alterou os factos da acusação – são alterações substanciais porque forçosamente implicam a imputação ao arguido de um crime diverso, de factos (na acepção corretamente entendida como facto juridicamente relevante, e portanto, devidamente enquadrado em termos legais) diferentes e, cumulativamente, importam a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis;

56.ª Até mesmo a Diretiva 2012/13/EU, no seu artigo 6.º, sob a epígrafe «Direito à informação sobre a acusação», deixa claro que a qualificação jurídica não é tratada pelo Direito Europeu como um assunto de somenos, cabendo no âmbito da informação que deve ser prestada detalhada e prontamente ao arguido, por forma a salvaguardar a equidade do processo;

57.ª Por tudo quanto ficou exposto, a alteração comunicada, produzida toda a prova e já encerrada a audiência, e que possibilitou condenar o Recorrente, nos termos em que o foi, pelos crimes de que são vítimas EE, DD e BB, viola o disposto nos artigos 358.º e 359.º do CPP, em conjugação com o art. 1.º, alínea f), do mesmo diploma, bem como as garantias de defesa do Arguido acolhidas no artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa, no art. 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), no artigo 6.º, n.º 3, al. b), da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) e no artigo 6.º, n.º 3 e 4, da Diretiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de maio de 2012, relativa ao direito à informação em processo penal, mormente a estrutura acusatória do processo penal e bem assim o direito do Arguido de conhecer, atempadamente, os crimes que lhe são imputados, incluindo a sua qualificação jurídica, para que, em consonância, possa preparar e exercer a sua defesa.

58.ª Sem prescindir, sempre se dirá que o Acórdão recorrido é igualmente nulo por violação ao princípio da comunicação da acusação, naquilo que diz respeito aos crimes por que foi condenado relativamente à pessoa de BB;

59.ª Isto porque, como se constata da análise do libelo acusatório, já eram contemplados vários momentos de supostas agressões ao referido Ofendido, mas, mesmo assim, consubstanciou-se apenas um único crime, imbuído pelo mesmo espírito de “molestar fisicamente” o BB, com socos e pontapés violentos.

60.ª Ou seja, deduzida tal acusação, este é o objeto do processo quanto àquele Ofendido: um crime de ofensas à integridade física, perpetrado através de socos e pontapés em três momentos distintos contra a mesma pessoa (que não apresentava nenhum problema de saúde ou incapacidade prévio), imbuído com a intenção de molestar fisicamente o ofendido.

61.ª Caso contrário, estaremos perante uma alteração substancial, por se entender que consubstancia um crime diverso, quando o bem jurídico agora protegido é distinto do primitivo, que é paradigmaticamente o que sucede quando o bem jurídico passa da integridade física para a própria vida (alteração de ofensa à integridade para homicídio na forma tentada) – como concretizado no Acórdão recorrido.

62.ª Ora, apesar de no Acórdão objeto de recurso se invocar que estamos apenas no âmbito de uma “alteração da qualificação jurídica”, tal alteração tem efeitos práticos iguais aos de uma alteração substancial dos factos e, por isso, não pode ser permitida, sob pena de violação do princípio da identidade do objeto e do princípio do acusatório, enquanto ramificações do princípio geral a um processo justo e equitativo, tal como consagrado no artigo 32.º, n.º 1 e 5, da CRP, artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) e no §2 do artigo 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), bem como no artigo 6.º da Diretiva 2012/13/EU, relativa ao direito à informação em processo penal;

63.ª Afinal, é direito do Arguido, em decorrência das normas supra mencionadas e a estrutura acusatória do processo penal, conhecer, atempadamente, os crimes que lhe são imputados, incluindo a concreta qualificação jurídica, para que, em consonância, possa preparar e exercer a sua defesa, enquanto manifestação do direito a um processo justo e equitativo.

64.ª In casu, porém, o Recorrente foi confrontado com o facto de lhe estar a ser imputado um crime contra uma pessoa particularmente indefesa em razão da idade, de doença, deficiência ou gravidez, assim como um crime de homicídio, tentado, contra BB e, diga-se, também, contra DD, tão somente quando encerrada a audiência de julgamento.

65.ª Em face do exposto, a decisão recorrida padece do vício de nulidade insanável, o qual aqui se argui para todos os efeitos legais, na parte em que condena o Recorrente por três crimes na pessoa de BB e em que altera as alíneas ao abrigo das quais o Recorrente foi condenado pelos crimes contra DD e EE.

66.ª Para além do exposto, impõe-se também analisar criticamente a prova produzida e a apreciação que dela fez o Tribunal, para demonstrar as razões pelas quais se impõe a alteração da matéria de facto nos moldes em que consta do Acórdão recorrido.

3. Apreciando.

Sintetizando, entende o arguido que ocorrem três nulidades, a saber:

a. A decisão não poderia ter lugar, após encerramento da audiência – cfr. artigo 371 do CPP;

b. Não era o tribunal do Júri competente para dela conhecer, mas antes o Tribunal Colectivo – cfr. artigos 2, n.º 3, do regime do Júri em processo penal, em conjugação com os artigos 119, al. e), 368. e 369. do CPP;

c. A alteração implica que o Recorrente tenha sido condenado por crimes diversos daqueles que constavam da acusação, ao arrepio das normas ínsitas nos artigos 358. e 359. do CPP, em conjugação com o artigo 1., alínea f), do mesmo diploma, bem como as garantias de defesa do Arguido acolhidas no artigo 32., n.ºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa, no art. 47. da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), no artigo 6., n.º 3, al. b), da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) e no artigo 6.º, n.º 3 e 4, da Diretiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de Maio de 2012.

Vejamos então.

a. A decisão não poderia ter lugar, após encerramento da audiência – cfr. artigo 371 do CPP.

1. Salvo o devido respeito, temos franca dificuldade em compreender as razões pelas quais o arguido entende fazer referência a este dispositivo legal, uma vez que o mesmo nada tem a ver com a questão aqui a apreciar.

De facto, as normas aplicáveis, são as que se mostram contidas, no caso de alteração não substancial, no art. 358 do CPPenal, em conjugação com a interpretação decorrente do Ac. UJ proferido pelo STJ n.°11/2013, publicado a 19.07.2013 que determinou:

“A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358.º n.ºs 1 e 3 do CPP”.

2. Ora, o art. 371 do C.P.Penal é uma norma que trata, especificamente, uma questão, designadamente a de determinar que, em situações em que o julgador necessite de elementos probatórios adicionais, finda a produção de prova, para efeitos de determinação da sanção a aplicar, lhe é permitido, pese embora já tenha sido produzida toda a prova arrolada, proceder à audição de nova prova, relativa à personalidade e às circunstâncias pessoais do arguido.

Por seu turno, o art. 358 do CPPenal determina que, assim que o tribunal entender que pode haver lugar a uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, deve de tal possibilidade dar conhecimento aos intervenientes processuais, concedendo-lhes prazo para, querendo, exercerem o contraditório e requererem produção de prova.

3. Se conjugarmos o que se deixa dito com a circunstância de, salvo no caso de tribunais de composição singular, a decisão sobre a culpabilidade, na parte que envolve quer a selecção da matéria de facto provada e não provada, quer o respectivo enquadramento jurídico, depender de deliberação colegial, que será realizada, nos termos da lei, para estes propósitos, após o encerramento da discussão (art. 365 do C.P.Penal), afigura-se mais ou menos óbvio que, na maioria esmagadora dos casos, será após tal encerramento que deverá, com um mínimo de consistência, poder concluir-se que o tribunal caminha para uma tal vertente.

Ora, salvo o devido respeito, encerramento da discussão é uma coisa e audiência é outra. Na verdade, até à leitura da decisão final, a audiência de julgamento não se pode entender como definitivamente encerrada pois, em boa verdade, só com esse acto se entra numa nova etapa processual, a de eventual recurso e/ou cumprimento de pena.

4. Note-se, aliás, que tanto assim é que o acórdão de Uniformização de Jurisprudência acima transcrito determina até a obrigatoriedade de poder haver lugar a produção suplementar de prova; isto é, entende que, para além da situação prevista no art. 371 do C.P.Penal, resulta igualmente do vertido no art. 358 do mesmo diploma legal a possibilidade de poder haver lugar a produção adicional de prova, não propriamente dirigida ao apuramento da sanção, mas antes ao apuramento de factos.

5. Finalmente, há que realçar que a situação prevista no art. 358 do C.P.Penal, consignada em relação ao tribunal de 1ª instância, mostra-se igualmente prevista para os tribunais superiores, face ao disposto no art. 424 nº3 do CPPenal.

Efectivamente, aí se consigna que ….1 - Encerrada a audiência, o tribunal reúne para deliberar…3 - Sempre que se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na decisão recorrida ou da respectiva qualificação jurídica não conhecida do arguido, este é notificado para, querendo, se pronunciar no prazo de 10 dias.

Como se vê, e neste concreto caso – até porque nos tribunais superiores a realização de Audiência nem sequer é obrigatória – o próprio legislador cuidou de esclarecer que, não obstante, após deliberação, o tribunal deverá agir do modo descrito.

6. Cremos assim que resulta claríssimo, quer face às normas processuais que vigoram na 1ª instância, quer conjugando-as com as relativas aos tribunais superiores, quer atendendo ao que se mostra determinado em sede de AUJ quer, convenhamos, face a uma mera e básica lógica de senso comum (convém que propósitos de alterações sejam minimamente fundados, quando se avança a possibilidade da sua ocorrência o que, manifestamente, só pode ser feito, depois de uma ponderação sobre a totalidade da prova produzida, bem como sobre os caminhos, em sede de imputação jurídica, a que pode levar), que o cumprimento do disposto no art. 358 do CPPenal pode ser realizado após o encerramento da discussão e antes da prolação da sentença ou acórdão, desde que se sigam os requisitos legais que asseguram o cumprimento dos direitos de defesa do arguido, acautelando-se assim o direito ao contraditório – que por este pode ser realizado, quer por via de prova, quer por via de novas alegações – e impedindo-se o surgimento de uma decisão surpresa.

b. Não era o tribunal do Júri competente para dela conhecer, mas antes o Tribunal Colectivo – cfr. artigos 2, n.º 3, do regime do Júri em processo penal, em conjugação com os artigos 119, al. e), 368. e 369. do CPP;

1. Determina o art. 2º nº3, do DL n.º 387-A/87, de 29 de Dezembro, que o júri intervém na decisão das questões da culpabilidade e da determinação da sanção.

Por seu turno, o art. 368 do C.P.Penal densifica tais conceitos, ao enunciar o que preenche a noção de apuramento da questão da culpabilidade, designadamente:

2 - Em seguida, se a apreciação do mérito não tiver ficado prejudicada, o presidente enumera discriminada e especificamente e submete a deliberação e votação os factos alegados pela acusação e pela defesa e, bem assim, os que resultarem da discussão da causa, relevantes para as questões de saber:

a) Se se verificaram os elementos constitutivos do tipo de crime;

b) Se o arguido praticou o crime ou nele participou;

c) Se o arguido actuou com culpa;

d) Se se verificou alguma causa que exclua a ilicitude ou a culpa;

e) Se se verificaram quaisquer outros pressupostos de que a lei faça depender a punibilidade do agente ou a aplicação a este de uma medida de segurança;

f) Se se verificaram os pressupostos de que depende o arbitramento da indemnização civil.

3 - Em seguida, o presidente enumera discriminadamente e submete a deliberação e votação todas as questões de direito suscitadas pelos factos referidos no número anterior.

Nesta deliberação participam todos os juízes e jurados – art. 365 do C.P.Penal.

2. O que decorre da linear conjugação destes dispositivos, é simples – cabe ao tribunal do júri, no seu todo, apurar a matéria de facto provada e não provada, bem como a subsunção jurídica de tais factos.

Assim sendo, é óbvio que compete ao Tribunal do Júri proceder ao aviso previsto no art. 358 do C.P.Penal, uma vez que tal putativa alteração cabe nos poderes dessas sete pessoas. Note-se, aliás, que estranho seria se assim não fosse, pois se estaria a indevida e ilegalmente proibir quatro jurados de tomarem as decisões que a lei lhes impõe que tomem, sendo certo que até são em número maioritário, face ao número de juízes e que por tal razão, pode muito bem suceder que, havendo discórdia entre a apreciação dos jurados e a dos magistrados judiciais, os primeiros, porque em maioria, façam vencimento.

Assim, a tese apresentada pelo arguido e a putativa nulidade que aduz, não se mostram sequer remotamente lógicas, sendo certo que, seguramente, não encontram qualquer suporte na lei.

c. A alteração implica que o Recorrente tenha sido condenado por crimes diversos daqueles que constavam da acusação, ao arrepio das normas ínsitas nos artigos 358. e 359. do CPP, em conjugação com o artigo 1., alínea f), do mesmo diploma, bem como as garantias de defesa do Arguido acolhidas no artigo 32., n.ºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa, no art. 47. da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE), no artigo 6., n.º 3, al. b), da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) e no artigo 6.º, n.º 3 e 4, da Diretiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de Maio de 2012.

1. A questão que o recorrente propõe prende-se com a circunstância de, em sede de acórdão, terem ocorrido alterações de número e de qualificação jurídica, no que respeita aos crimes pelos quais vinha acusado e acabou por ser condenado, argumentando ainda que tais alterações se não quedam apenas pela parte jurídica, antes implicando alterações factuais correlacionadas.

Vejamos então.

2. Cumpre fazer um pequeno preâmbulo à apreciação das questões propostas nesta sede, destrinçando, desde logo, as diferenças entre o vertido no artº 358 e o constante no artº 359, ambos do C.P.Penal.

De facto, consoante estejamos perante uma situação prescrita no artº 358 ou no artº 359 do C.P. Penal, o legislador determina os procedimentos e as consequências que daí advirão, impondo ao juiz o cumprimento de certos requisitos e exigências.

E, diga-se, mesmo no âmbito de situações que se englobam na mesma previsão – como é o caso das situações em que ocorre alteração substancial dos factos (artº 359 do C.P. Penal) - dependendo das circunstâncias, a solução jurídica não é unívoca.

Expliquemos sucintamente porquê.

3. Ao abrigo da nossa legislação processual penal, constata-se que a alteração da qualificação jurídica, por poder ser determinada por factores diversos, tem um tratamento jurídico distinto.

Estaremos no âmbito do disposto no artº 358 do C.P. Penal (vide, a contrario, artº 359 e artº 1º al. f) do mesmo diploma legal) se essa alteração resultar da factualidade que já consta ou da acusação ou da pronúncia - sem que os factos que aí se mostram vertidos sofram qualquer modificação - ainda que da mesma venha a resultar condenação por crime mais fortemente punido.

Estaremos no âmbito de uma alteração substancial de factos, consignada no artº 359 do C.P. Penal se essa alteração resultar de uma modificação factual face à acusação ou à pronúncia - designadamente, por virtude do aditamento de factos, para além dos que já constavam nas imputações - e se tal modificação determinar que, em sede de enquadramento jurídico, o crime que vinha imputado ao arguido será mais fortemente punido.

4. Estipula o art 359 do C.P. Penal o seguinte:

1 - Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância.

2 - A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo.

3 - Ressalvam-se do disposto nos números anteriores os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal.

4 - Nos casos referidos no número anterior, o presidente concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para preparação da defesa não superior a 10 dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário.

5. Tem vindo a ser entendimento constante dos tribunais superiores, em especial do STJ (vide C.P. Penal Comentado, António Henriques Gaspar e outros, comentário aos artºs 358 e 359, Juiz-conselheiro Oliveira Mendes, cujo teor seguiremos de perto), que nos casos de alteração substancial - isto é, no âmbito das situações que se integram no disposto no art 359 do C.P.Penal - haverá que distinguir entre duas situações, consoante os novos factos, resultantes da audiência de julgamento, sejam ou não autonomizáveis em relação ao objecto do processo, a saber:

A. Se essa nova factualidade poder ser autonomizada daquela que já se mostra em apreciação pelo tribunal, isto é, se estivermos perante factos que, em si mesmos, integram a prática de um tipo criminal, quando isoladamente considerados:

a. O tribunal deve dar conta aos sujeitos processuais de tal potencial ocorrência (potencial porque a mesma só se confirmará ou infirmará, isto é, só terá concretização jurídica na decisão condenatória que haverá de vir a ser proferida) e daí, das duas uma:

b. Se todos os sujeitos a tal derem o seu expresso consentimento, o julgamento poderá prosseguir para apreciação desses novos factos, podendo ser dado ao arguido um prazo de até 10 dias (caso o requeira) para preparar a sua defesa (cumprindo-se, obviamente, as questões relativas à competência do tribunal ou fazendo o Mº Pº uso do disposto no artº 16 nº3 do C.P. Penal);

c. Se não houver unanimidade no consentimento (isto é, para tal bastando que um dos sujeitos processuais não dê o seu expresso consentimento), o tribunal “a quo”, em sede decisória (sentença ou acórdão, pois apenas nesse momento processual se fixa a convicção do julgador, em termos de matéria factual apurada), deve dar conta dessa nova matéria, das consequências jurídicas que daí decorrem, da comunicação feita aos sujeitos e falta de consentimento para a prossecução do julgamento por esses novos factos, comunicando os mesmos ao Mº Pº, comunicação esta que tem o mesmo valor da denúncia, para instauração do inquérito.

B. No caso inverso – isto é, quando os novos factos não são autonomizáveis, porque não podem ser isolada e autonomamente considerados como preenchendo a prática de um ilícito, antes se mostrando estreitamente correlacionados com a factualidade que já constava na acusação ou na pronúncia, a solução é algo diversa, a saber:

a. O tribunal, após dar conhecimento da potencial alteração e do teor desses factos, bem como da sua natureza não autonomizável, face ao processo que tem de julgar, deverá perguntar se os sujeitos processuais dão ou não o seu acordo para que possa atender a essa nova factualidade:

b. Havendo consentimento unânime, terá os mesmos em consideração em sede decisória;

c. Não havendo consentimento unânime, o tribunal procederá à elaboração da decisão (sentença ou acórdão), mas na mesma apenas poderá considerar a factualidade que já constava ou da acusação ou da pronúncia; isto é, não poderá atender (embora tenha de os consignar em sede de matéria de facto provada, caso entenda que se mostram assentes face à prova produzida) a tal alteração, para efeitos de condenação.

6. Estabelecidos os parâmetros legais e encerrado o prólogo, cabe apreciar em que categoria cabem as alterações que se produziram nos presentes autos; isto é, se cabe razão ao tribunal “a quo” ou ao recorrente.

Como acima se mencionou, o ponto básico de distinção entre estes dois institutos funda-se na questão factual. Assim, só haverá que entender estarmos perante uma situação prevista no art. 359 caso, cumulativamente, haja lugar ao aditamento de factos, não constantes na acusação e tais factos novos passem a servir como fundamento para o preenchimento da prática de um crime, cuja autoria passe a ser imputada ao arguido e que determine a sua condenação.

7. No caso dos autos, e no que ao arguido recorrente GG se refere, é manifesto que o tribunal “a quo” não aditou, em relação à sua pessoa e concernente à sua actuação, a prática de qualquer facto novo e, obviamente (porque uma inexistência não funda uma existência), daí não retirou a condenação pela prática de qualquer novo crime.

Efectivamente, pese embora o recorrente mencione, por diversas vezes, que o tribunal “a quo” procedeu a alterações em sede de matéria de facto dada como provada, designadamente ao nível do dolo, a verdade é que não enuncia uma única alteração ou aditamento, referenciando-a no texto do acórdão e demonstrando a sua ausência em sede de texto acusatório. Pela nossa parte, lida e relida a acusação e a matéria de facto dada como provada, não vislumbramos qualquer aditamento factual ao que já constava no primeiro texto.

Assim, resta concluir que, em relação ao arguido recorrente, inexistiu qualquer alteração factual, por parte do tribunal “a quo”, seja em matéria de dolo, seja em qualquer outro segmento.

8. Na realidade, apenas em relação à actuação do co-arguido AA, se verificou uma alteração factual, uma vez que o tribunal “a quo” entendeu que este não deu um pontapé (como afirmava a acusação), mas antes um murro.

Ora, essa rectificação não altera, seja de que modo for, o thema decidendum, que se fixou na acusação e que se referia a saber se este co-arguido tinha ou não agredido fisicamente uma determinada vítima, sendo certo que, no caso, tê-lo feito com a mão ou com o pé, não altera ou determina uma mudança no preenchimento dos elementos constitutivos do tipo de crime pelo qual vinha acusado. Assim e em bom rigor, esta modificação nem sequer se nos afigura constituir uma alteração não substancial dos factos (i.e., não necessitaria de notificação prévia ao arguido), uma vez que a rectificação realizada é absolutamente inócua para efeitos do preenchimento do tipo de crime que lhe era imputado.

Não obstante, entendeu o tribunal “a quo” que deveria dar cumprimento ao disposto no artº 358 do C.P.Penal (o que fez), pelo que os preceitos legais aplicáveis mostram-se devidamente cumpridos.

Assim e quanto ao arguido AA, nenhuma nulidade se verifica, sendo certo que, por ser a mesma de conhecimento oficioso, nos cumpre apreciá-la, independentemente de recurso expresso nesse sentido.

9. Vejamos então a questão relativa ao arguido recorrente, GG.

A razão de ser do vertido no artº 358 do C.P. Penal prende-se com a sustentação de dois elementos basilares, pressupostos de um processo penal justo, que se reconduzem à estabilidade temática e à possibilidade do exercício do contraditório.

Invoca o arguido que, não lhe sendo imputada, em sede de acusação, a prática de dois crimes de homicídio qualificado tentado e um crime de ofensas à integridade física qualificadas, não poderia o tribunal “a quo”, invocando o disposto no artº 358 do C.P.Penal, determinar a sua condenação pela sua prática.

10. Em sede de acusação, foi imputada ao arguido a prática dos seguintes crimes, em concurso efectivo:

- um crime de homicídio qualificado, p.p. pelos artigos 131.º e 132.º, n. º2, al. l), (vitima EE)

- três crimes de ofensas à integridade física qualificadas, p.p. pelos artigos 143.º, n. º1 e 2, 145.º, n. º1, al. a) e n.º 2 e 132.º, n.º 2, al. l), (ofendidos CC, FF e DD)

- um crime de ofensas à integridade física, p.p. pelos artigos 143.º, n. º1 e 2, (ofendido BB), todos do Código Penal.

Em sede de acórdão condenatório, o arguido recorrente foi condenado pela prática dos seguintes crimes (a sublinhado os ilícitos que foram alvo de alteração pelo Tribunal “a quo”):

- um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 143º, nº 1, do CP, na pena de seis meses de prisão (na pessoa de BB, no interior da discoteca 1)

- um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos art. 143º, nº 1, 145º, nº 1, al. a), nº 2, e 132º, nº 2, al. c) do CP, na pena de um ano e seis meses de prisão (na pessoa de BB)

- um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 143º, nº 1, do CP, na pena de um ano de prisão (na pessoa de FF)

- um crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 143º, nº 1, do CP, na pena de um ano de prisão (na pessoa de CC)

- um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos art. 131º, 132º, nº1, e nº 2, al. c) e 23º, nº 1 e 2, e 73º, do CP, na pena de quatro anos de prisão (na pessoa de BB)

- um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelo art. 131º, 132º, nº1, e nº 2, al. c) e 23º, nº 1 e 2, e 73º, do CP, na pena de quatro anos de prisão (na pessoa de DD)

- um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. pelo art. 131º, 132º, nº1 e nº 2, al. c) do CP, na pena de dezasseis anos de prisão (na pessoa de EE).

11. Prossigamos então.

Embora a acusação ou a pronúncia delimitem o objecto do processo, não circunscrevem o âmbito da discussão, como aliás se constata pela mera leitura do n.º 4 do art.º 339º do C.P.Penal.

Significa isto que o tribunal não se mostra estritamente vinculado, confinado ou espartilhado ao mero teor da acusação/pronúncia. O que efectivamente o vincula é o objecto do processo constante na acusação/pronúncia (cujo âmbito não pode extravasar) e que a jurisprudência e doutrina definem, cremos que unanimemente “como o facto, o acontecimento global da vida, o acontecimento histórico, incluindo todos os acontecimentos com ele ligados, do qual deriva a acusação admitida” (vide Frederico Isasca, Alteração Substancial Dos Factos E Sua Relevância No Processo Penal Português, Almedina, 2.ª edição, p. 84); isto é, o objecto do processo é a realidade histórica que se mostra vertida na acusação/pronúncia.

12. O que sucede é que tal acontecimento pode ser constituído por um único facto ou por uma multiplicidade de actos, que se conjugam e interligam entre si, manifestando-se como algo que é apreensível como um episódio de vida, dotado de características próprias que o individualizam e o tornam num todo com relevo jurídico-penal.

Assim, se a apreciação realizada pelo tribunal “a quo”, que incidiu sobre tal episódio, respeitou a unidade de sentido ao mesmo relativa, expressa em sede de acusação/pronúncia, não se pode falar em alteração do objecto naquelas fixado. E se, ao proceder à fixação dos actos assentes, o tribunal “a quo” não realizar alterações que possam incluir-se no vertido no artº 1 al. f) do C.P.Penal, teremos de concluir estarmos perante uma operação de apuramento perfeitamente válida face à lei.

13. No caso presente, foi precisamente isso que sucedeu.

Compulsado o texto acusatório, o que se constata é que os factos que foram dados como assentes na matéria de facto provada correspondem ipsis verbis ao que aí se mostrava consignado.

Significa isso que o que sucedeu foi que o tribunal “a quo” pegou nos diversos actos que consubstanciaram aquele episódio de vida, que abrangeu a actividade do arguido, em relação a cinco pessoas que foram vítimas dos seus actos, que se mostravam todos descritos na acusação e, no momento em que procedeu ao seu enquadramento jurídico, entendeu de modo diverso ao que aí vinha alegado, por ter concluído que consubstanciavam a prática de mais ilícitos ou de diversa natureza.

14. E, por tal razão, cumpriu o disposto no artº 358 do C.P.Penal, comunicando ao arguido que esse seria, provavelmente, o entendimento que faria constar em sede de acórdão, dando-lhe assim oportunidade para se pronunciar e se defender de tal avaliação jurídica; isto é, anunciou que havia a possibilidade de assim entender e efectivamente procedeu a uma alteração do enquadramento jurídico de parte dos factos que haviam sido englobados em sede de outros ilícitos.

15. Estamos pois perante uma questão que se engloba precisamente no disposto em tal artigo, uma vez que nenhum facto novo (isto é, que não constasse já da acusação/pronúncia) foi aditado pelo tribunal “a quo” – manteve-se assim a vinculação temática ao objecto da acusação.

O que sucede é que o julgador discordou da análise jurídica realizada em sede de acusação e procedeu a uma alteração da qualificação jurídica de uma parte dos factos que constavam na mesma.

Mas fê-lo mantendo, repete-se, a vinculação temática a que estava obrigado e assegurou os direitos de defesa do arguido, cumprindo, precisamente, a comunicação legalmente prevista para tal desiderato, no artº 358 do C.P.Penal.

Na verdade, “O instituto da alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia visa assegurar as garantias de defesa do arguido. O que a Lei pretende é que aquele não (…) venha a ser censurado jurídico-criminalmente com violação do princípio do acusatório, sem que haja tido a possibilidade de adequadamente se defender” (vide C.P.Penal Comentado, António Henriques Gaspar e outros, nota 3 ao artº 358 desse diploma legal).

16. Mas, ainda que se entendesse que, em sede de acusação, essa factualidade – embora enunciada – não foi alvo de qualquer tipo de enquadramento jurídico, de igual modo teríamos de concluir que tal situação se reconduz a uma questão de qualificação jurídica, prevista no dito artº 358 do C.P.Penal.

De facto, questão similar a esta foi já enfrentada e decidida no âmbito do Acórdão de Fixação de Jurisprudência, proferido pelo STJ, em 25.06.2008, no processo nº 07P4449, in DR, Iª Série, nº 146, de 30-07-2008, P. 5138-5145, que pela sua pertinência, passamos a transcrever no que aqui nos importa (sublinhados nossos):

De há muito se vem reconhecendo e entendendo que a cadeia de actividades e procedimentos dirigidos à constatação, positiva ou negativa, do facto criminoso, para fins de aplicação da sanção penal ao seu autor, tem de respeitar rigorosamente o Direito Constitucional, com destaque para os direitos, liberdades e garantias pessoais, bem como os princípios gerais de processo penal, nomeadamente os decorrentes de textos de Direito Internacional, designadamente a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais e o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.

Daí que a investigação e a procura da verdade, no âmbito do procedimento penal, se hajam de processar de acordo com as garantias constitucionais e os princípios gerais de processo penal.

De entre estes, à questão que ora nos ocupa, interessa, em primeira linha, o princípio da comunicação da acusação, segundo o qual deve ser dada a conhecer ao arguido, tempestivamente, ou seja, em tempo que lhe permita preparar e organizar uma defesa adequada, a acusação que contra si foi deduzida. A comunicação da acusação, como refere Bettiol, é um instituto inteiramente apontado para salvaguarda do direito de defesa do arguido, o que significa que ao arguido (através da acusação) deve ser dado a conhecer qualquer facto ou qualquer elemento essencial (momento constitutivo do crime) e acidental (circunstância) de que possa derivar a sua responsabilidade ou um seu agravamento.

Daqui que sobre a entidade a quem cabe acusar recai o estrito dever de no respectivo requerimento consignar (alíneas a) a g) do n.º 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal), sob pena de nulidade:

- As indicações tendentes à identificação do arguido;

- A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;

- A indicação das disposições legais aplicáveis;

- O rol com o máximo de vinte testemunhas, com a respectiva identificação, discriminando-se as que só devam depor sobre os aspectos referidos no n.º 2 do artigo 128º, as quais não podem exceder o número de cinco;

- A indicação dos peritos e dos consultores técnicos a serem ouvidos em julgamento, com a respectiva identificação;

- A indicação de outras provas a produzir ou a requerer;

- A data e assinatura.

Narração ou descrição factual e indicação normativa da maior importância, visto que o objecto do processo é o objecto da acusação, o qual se mantém até ao trânsito em julgado da sentença, protegendo o arguido contra arbitrários alargamentos da actividade cognitória e decisória do tribunal, assegurando os direitos ao contraditório e à audiência, direitos essenciais à defesa do arguido e à democraticidade do processo penal, que se traduzem no direito de o arguido ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte (alínea b) do n.º 1 do artigo 61º do Código de Processo Penal), bem como no direito a que todos os actos e procedimentos processuais, na fase de julgamento, sejam susceptíveis de oposição e de discussão, o que implica uma efectiva participação neles, com possibilidade de os discretear, mediante a apresentação de razões e argumentos de facto e de direito.

A vinculação do tribunal, porém, quer no que concerne aos factos descritos na acusação quer no que tange ao enquadramento jurídico dos mesmos ali operado, não é absoluta.

Com efeito, em certos casos e situações, por razões várias, já depois de deduzida a acusação, algumas vezes no decurso do julgamento, outras já na fase de recurso, vêm-se a descobrir novos factos ou a constatar que os factos constantes da acusação foram deficientemente ou insuficientemente descritos ou deficientemente ou incorrectamente qualificados, possibilitando a lei, limitadamente, desde que salvaguardadas as garantias de defesa do arguido, a alteração dos factos e/ou a alteração da sua qualificação jurídica, para que o processo possa alcançar o seu concreto fim, isto é, a descoberta da verdade e a realização da justiça.

É através do instituto denominado da alteração dos factos, instituto previsto nos artigos 358º e 359º, do Código de Processo Penal, que se estabelece e regula a possibilidade de alteração dos factos descritos na acusação e na pronúncia, bem como a alteração da sua qualificação jurídica.

(…)

Prevê a lei, ainda, a possibilidade de alteração da qualificação jurídica, situação em que, não ocorrendo alteração factual, se verifica, porém, necessidade de modificar a qualificação jurídica que na acusação ou na pronúncia se atribuiu aos factos nas mesmas descritos, situação que o legislador entendeu submeter ao regime aplicável à alteração não substancial dos factos – n.º 3 do artigo 358º.

No caso ora em apreciação não se estando perante qualquer alteração factual, vejamos, no entanto, se estamos face a situação que deva ser considerada de alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, a implicar o cumprimento do disposto no n.º 3 do artigo 358º.

(…) No cumprimento dessa tarefa cabe em primeiro lugar verificar se a condenação do arguido em pena acessória, concretamente de proibição de conduzir veículos motorizados, perante acusação ou pronúncia omissas no que concerne à possibilidade de aplicação daquela pena acessória, designadamente a ausência de indicação da disposição legal que a prevê, se deve considerar como integrante de alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.

Caso a resposta seja positiva, cumprirá determinar se a alteração da qualificação jurídica implica ou não a necessidade de comunicação prevista no artigo 358º.

Qualificar juridicamente os factos é subsumi-los ao direito constituído, ou seja, aplicar a lei aos factos, verificar se os mesmos possuem ou não relevância jurídica e em que termos devem ser integrados no respectivo ordenamento.

Verificada a relevância jurídica dos factos e feita a sua integração no ordenamento jurídico ficam os mesmos qualificados, isto é, identificados do ponto de vista normativo, dando-nos a exacta medida do tratamento que a lei lhes confere.

Em processo penal, ex vi artigos 283º, n.º 3, alíneas b) e c), 308º, n.º 2 e 374º, n.ºs 2 e 3º, alínea a) em sede de acusação, de pronúncia e de sentença, a qualificação jurídica dos factos opera-se mediante a indicação das disposições legais que lhes são aplicáveis, indicação que, obviamente, a lei manda se faça a seguir à narração ou descrição daqueles.

No caso vertente verifica-se que, perante os mesmos factos, o Ministério Público na acusação que deduziu indicou como disposições legais aplicáveis o artigo 292º, do Código Penal, enquanto que o juiz na sentença mencionou como disposições legais aplicáveis os artigos 292º e 69º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, tendo ao abrigo do primeiro normativo condenado o ora recorrente na pena de 80 dias de multa à taxa diária de € 5 e, com fundamento no segundo, condenado aquele na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 4 meses.

Ora, não sendo coincidente a indicação das disposições legais aplicáveis aos factos feita na acusação e na sentença, dúvidas não restam de que se verifica uma alteração da qualificação jurídica dos factos.

Consabido haver ocorrido em sentença uma alteração na qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, vejamos se tal alteração implica ou não a necessidade de comunicação prevista no artigo 358º.

(…) A qualificação jurídica dos factos em sede de acusação não se circunscreve à indicação da norma que prevê o tipo de crime ou crimes que aqueles preenchem.

Com efeito, a lei – alínea f) do n.º 3 do artigo 283º – impõe a indicação das disposições legais aplicáveis, ou seja, de todas as disposições legais aplicáveis.

(…) Pretende a lei que ao arguido seja dado conhecimento do exacto conteúdo jurídico-criminal da acusação, ou seja, da incriminação e da precisa dimensão das consequentes respostas punitivas, dando-se assim expressão aos princípios da comunicação da acusação e da protecção global e completa dos direitos defesa, este último estabelecido no n.º 1 do artigo 32º da Constituição Política, princípios a que já fizemos referência.

Só assim o arguido poderá preparar e organizar a sua defesa de forma adequada.

É que o arguido não tem que se defender apenas dos factos que lhe são imputados na acusação. A vertente jurídica da defesa em processo penal é, em muitos casos, mais importante. E esta para ser eficaz pressupõe que o arguido tenha conhecimento do exacto significado jurídico-criminal da acusação, o que implica, evidentemente, lhe seja dado conhecimento preciso das disposições legais que irão ser aplicadas.

Por isso, qualquer alteração que se verifique da qualificação jurídica dos factos feita na acusação ou na pronúncia (com excepção dos casos atrás referidos), nomeadamente qualquer alteração que importe um agravamento, terá necessariamente de ser dada a conhecer ao arguido para que este dela se possa defender, sob pena de se trair o favor defensionis.

Por outro lado, como deixámos assinalado nas considerações preliminares tecidas, a declaração do direito do caso penal concreto é tarefa conjunta do tribunal e dos sujeitos processuais, na qual o arguido é também chamado a intervir, porém, para isso terá de participar e de ser ouvido, nos diversos actos processuais, de acordo com o quadro jurídico pelo qual vai ser julgado e não com base noutro quadro jurídico. Assim, se o quadro jurídico que lhe foi dado a conhecer através da comunicação da acusação ou da pronúncia é alterado, disso terá de ser informado para que possa influir, se assim o entender, na declaração do direito.

Aliás, o processo penal é um processo equitativo e justo, não sendo configurável, num Estado de direito, a possibilidade de ao arguido ser aplicada uma pena sem que disso seja prevenido, isto é, sem que lhe seja dado oportuno conhecimento da possibilidade de que nela pode vir a ser condenado.

17. Como decorre de tudo o que anteriormente deixámos exposto, teremos de concluir que o tribunal “a quo”, perante a necessidade de decidir quanto à integração jurídica daquela matéria de facto e constatando que seria outra que não a que decorria da acusação, utilizou os mecanismos legais adequados, que têm por objectivo permitir o efectivo exercício do direito de defesa por parte do arguido, procedendo à comunicação prevista no artº 358 do C.P.Penal.

18. E se assim é, como é, caberá concluir que a alteração da qualificação jurídica realizada pelo tribunal “a quo”, que determinou a condenação do arguido pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos art. 131º, 132º, nº1, e nº 2, al. c) e 23º, nº 1 e 2, e 73º, do CP, na pena de quatro anos de prisão (na pessoa de BB), de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelo art. 131º, 132º, nº1, e nº 2, al. c) e 23º, nº 1 e 2, e 73º, do CP, na pena de quatro anos de prisão (na pessoa de DD) e de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos art. 143º, nº 1, 145º, nº 1, al. a), nº 2, e 132º, nº 2, al. c) do CP, na pena de um ano e seis meses de prisão (na pessoa de BB), se mostra plenamente válida e legal, não merecendo a censura que lhe dirige o recorrente. Mostra-se de acordo com a lei, cumprindo os formalismos legais que impõem a exigência de um processo justo e equitativo, assegurando ao arguido o pleno exercício do seu direito de defesa.

19. Outra questão, mas que não tem acolhimento nesta sede, será a de saber se a integração jurídica operada pelo tribunal “a quo” se mostra ou não correcta; isto é, se, efectivamente, os elementos integradores dos ilícitos pelos quais o tribunal “a quo” o condenou se mostram factualmente preenchidos, mas esse é tema a apreciar infra, quando nos debruçarmos sobre a questão proposta nos recursos, de errado enquadramento jurídico.

20. Em síntese final:

Cumpre-nos concluir que as nulidades que o recorrente invoca se não verificam, pelo que improcede, nesta parte, o recurso interposto pelo arguido GG.

Pois bem.

Como se verifica pelo teor da decisão recorrida, tendo em atenção a parte que o recorrente agora impugna no recurso para este STJ, podemos adiantar que não merece censura o ali decidido quanto à comunicação da alteração da qualificação jurídica feita ao abrigo do art. 358.º, n.º 3, do CPP, relativamente ao homicídio do EE, que teve lugar no final da produção da prova realizada em julgamento, concretamente na sessão de ........2023.

Na verdade, diremos resumidamente que, como sabido, atenta a estrutura acusatória do processo penal português (mitigada pelo princípio da investigação judicial) é a acusação ou o despacho de pronúncia, se tiver havido fase de instrução, que delimita e fixa tendencialmente o “objecto do processo” e, portanto, o do julgamento, vinculação temática essa que tem subjacente “os princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consumpção” desse mesmo objecto do processo11.

Essa vinculação temática que advém do princípio do acusatório12 exige, todavia, a garantia dos direitos de defesa, incluindo o exercício do contraditório, o que vai permitir o acesso a um processo justo e equitativo.

É a acusação ou a pronúncia «que delimita o conjunto de factos que se entende integrarem um crime, “estabelecendo assim os limites à investigação judicial”»13.

O princípio da acusação funciona aqui “como limite ao princípio da investigação”14, o que quer dizer “que são as questões que estão contidas na acusação/pronúncia (na sua síntese de facto e de direito) que limitam o âmbito da investigação do tribunal”15.

Os poderes de cognição do tribunal do julgamento estão, por isso, limitados pelo objeto da acusação ou da pronúncia, mas ao mesmo tempo o julgador tem de assegurar todos os direitos da defesa, incluindo o contraditório.

Há uma “vinculação temática” em relação à matéria que consta da acusação (ou do despacho de pronúncia), assim se criando um mínimo de segurança quanto ao objeto do processo e, ao mesmo tempo, assegurando-se o direito de defesa (através da acusação ou do despacho de pronúncia, o arguido passa a saber quais os factos que lhe são imputados ou pelos quais está pronunciado, a precisa qualificação jurídica da sua conduta – o que lhe permite conhecer a moldura da punição e, portanto, saber qual é o limite da pena ou penas com que pode contar – e, dessa forma, passa a dispor das condições necessárias para escolher a melhor forma de se defender).

Mas, claro, a acusação/pronúncia tem de conter “a descrição, de forma clara e inequívoca, de todos os factos de que o arguido é acusado, sem imprecisões ou referências vagas”16.

É que perante afirmações genéricas o arguido vê-se limitado ou até mesmo impossibilitado de exercer o seu direito de defesa.

Por isso a jurisprudência dominante do STJ tem vindo a defender que «não são "factos" susceptíveis de sustentar uma condenação penal as imputações genéricas, em que não se indica o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado»17.

A finalidade de com a acusação se fixar tendencialmente o objeto do processo18 visa, portanto, garantir a proteção do arguido, enquanto sujeito dotado de um estatuto jurídico próprio, de uma posição processual (art. 60.º do CPP), o que impõe assegurar-lhe o exercício efetivo de todas as garantias de defesa (art. 32.º, n.º 1 e n.º 5 da CRP), aqui se compreendendo o direito de não poder ser surpreendido, nem com novos factos relevantes, nem com um enquadramento jurídico-penal com que não contava.

O direito de se pronunciar previamente, quer quanto a factos novos, quer, também, sobre a qualificação jurídica dos factos que lhe são imputados (decorrente ainda do princípio do contraditório), permite ao arguido (tal como sucede com os demais sujeitos processuais), participar, de forma constitutiva, «na declaração do direito do caso concreto»19.

Só assegurando previamente o direito de defesa eficaz (atendendo, portanto, à necessidade de não frustrar a estratégia da defesa e o efeito útil desta) poderá a alteração temática do processo ser tida em conta pelo tribunal do julgamento, no apuramento e na definição da responsabilidade criminal do arguido (a única exceção à regra da imposição dessa comunicação prévia, acontece, no caso de alteração não substancial, quando é a própria defesa que alega a modificação de factos - art. 358.º, n.º 2, do CPP -, na medida em que aí não é confrontada com uma condenação de surpresa20, não havendo, por isso, neste particular aspeto direitos de defesa a salvaguardar)21.

Alteração temática que inclui igualmente a “correção” do enquadramento jurídico-penal dos factos constantes da acusação/despacho de pronúncia (seja por esquecimento, seja por o MP ou o JI entender que a sua qualificação jurídica é a mais correta, v.g. por considerar – bem ou mal – que determinada norma é inconstitucional).

É que o arguido tem direito a “que lhe seja dado conhecimento prévio das consequências jurídicas que decorrem dos factos imputados”22 (e, portanto, quando é lida a sentença/acórdão, o arguido não pode ser surpreendido com a condenação por crime diverso, que não lhe fora previamente comunicado).

Por isso, também, o art. 283.º, n.º 3, al. d), do CPP (para o qual remete o art. 308.º, n.º 2, do CPP) estabelece que a acusação contém, sob pena de nulidade, a indicação das disposições legais aplicáveis.

Disposições legais aplicáveis essas (indicando a previsão e a punição da infração que lhe é imputada), constantes da acusação/pronúncia, que constituem a qualificação jurídica e que, além do mais, visam ou permitem que o arguido conheça as consequências jurídicas da sua conduta (a que pena ou penas pode, em abstrato, ser condenado, caso se provem os factos que lhe são imputados).

Esta perspetiva processual que aqui se defende está de acordo, aliás, com o disposto no art. 6 § 3, a), da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que impõe que se preste particular atenção à notificação (à comunicação) da “acusação” ao arguido, assumindo as circunstâncias do crime no processo um significado crucial, pois é a partir do momento em que lhe são comunicadas, que o acusado é formalmente informado da base factual e jurídica das acusações que lhe são imputadas23.

Por isso, o TEDH tem entendido que, em matéria criminal, a regra sobre a informação completa e detalhada dos motivos da acusação, constitui um requisito essencial para assegurar a equidade do processo; no que respeita às modificações da acusação, incluindo a alteração dos motivos, deve ser devidamente proporcionado ao acusado o seu conhecimento, exigindo-se, assim, não apenas a completa informação, mas também o tempo e os meios necessários para reagir à alteração e organizar a sua defesa perante qualquer nova informação ou alegação24.

Portanto, o arguido tem direito a que lhe seja dado conhecimento prévio de quaisquer alterações que sejam introduzidas ao objeto do processo.

Quando é lida a sentença ou o acórdão o arguido não pode ser surpreendido com factos que sejam (mesmo em parte) diversos dos que constavam da acusação/pronúncia, nem tão pouco com um diferente enquadramento jurídico-penal.

Dependendo da natureza dos factos novos introduzidos ou do tipo de alteração da qualificação jurídica (ver art. 1.º n.º 1, al. e), do CPP), assim a comunicação a efetuar observará o formalismo previsto no artigo 358.º ou no artigo 359.º do CPP.

Os diferentes procedimentos (consoante seja caso de efetuar a comunicação nos termos do art. 358.º ou nos termos do art. 359.º do CPP) mostram-se justificados pelo grau de importância das alterações introduzidas ao objeto do processo, dadas as repercussões que podem ter na estratégia da defesa e, portanto, prendem-se com a necessidade de asseguramento de uma defesa eficaz, o que é característico de um verdadeiro processo justo e equitativo.

Por isso se compreende que, por exemplo, perante uma errada comunicação de alteração de factos (quando o tribunal comunica a alteração nos termos do art. 358.º do CPP, sendo certo, no entanto, que o deveria ter feito antes ao abrigo do art. 359.º do CPP), o silêncio do arguido não pode ser interpretado como acordo ou consentimento para a continuação do julgamento pelos novos factos introduzidos25.

Como já foi dito, quando ocorre uma alteração de direito, também se impõe a respetiva comunicação ao arguido.

Neste sentido, assinale-se, entre outros, no Ac. do Tribunal Constitucional nº 279/9526, defendendo que “(…) um exercício eficaz do direito de defesa não pode deixar de ter por referência um enquadramento jurídico-penal preciso. Dele decorrem, ou podem decorrer, muitas das opções básicas de toda a estratégia da defesa (a escolha deste ou daquele advogado, a opção por determinadas provas em vez de outras, o sublinhar de certos aspectos e não de outros, etc.) em termos que de modo algum podem ceder perante os valores subjacentes à liberdade (mesmo que lhe chamemos correcção) na qualificação jurídica do comportamento descrito na acusação.”).

A liberdade de qualificação jurídica do tribunal tem de ser compatibilizada com a oportunidade de defesa do arguido e com o seu direito de ser ouvido (o que contribui, de forma equitativa, para “a discussão sobre o direito aplicável”27 , permitindo a discussão de “todas as soluções jurídicas pertinentes”, como determina o art. 339.º, n.º 4, do CPP).

Esclarece-se no Ac. do TC n.º 173/9228: “(…) quando não se queira subordinar o poder de julgamento do tribunal a um eventual erro de qualificação da acusação e da pronúncia, então indispensável será obter um dispositivo processual que permita uma correcta qualificação sem que isso implique prejuízo para a defesa do arguido.

É que o arguido não tem de ser sacrificado no altar da correcta qualificação jurídico-penal da matéria de facto; e uma eventual alteração final do enquadramento jurídico desta não tem necessariamente de fazer-se à custa do sacrifício dos seus direitos de defesa.”

Nesse sentido, veio mais tarde o Ac. do Plenário do Tribunal Constitucional n.º 445/9729, afirmar:

“Como tem sido enfatizado pelas doutrina e jurisprudência constitucionais, as "garantias de defesa não podem deixar de incluir a possibilidade de contrariar ou contestar todos os elementos carreados pela acusação" (palavras do Acórdão n.º 54/87 deste Tribunal publicado no Diário da República, 1ª Série, de 17 de Março de 1987), sendo um dos significados jurídico-constitucionais do princípio do contraditório "o direito do arguido ... de se pronunciar e contraditar ... argumentos jurídicos trazidos ao processo" (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 206).

Tudo isto significa que, em todos esses casos que modificam de forma relevante o objeto do processo - seja pela introdução de novos factos que o alteram30 substancial ou não substancialmente, seja por diversa subsunção jurídica31 - se não é cumprido (consoante se verifiquem os respetivos pressupostos) o disposto nos arts. 358.º ou 359.º do CPP, existe nulidade da sentença prevista no art. 379.º n.º 1, al. b) e n.º 2 do mesmo código e não, por exemplo, simples irregularidade.

Com efeito, sem o prévio cumprimento do disposto nos arts. 358.º ou 359.º do CPP (consoante os casos), os poderes de cognição do tribunal do julgamento estão limitados pelo objeto da acusação/pronúncia, pela sua base factual e jurídica.

E, ao não ser dada a oportunidade ao arguido de se pronunciar, não lhe é garantido o direito de defesa (art. 32.º, n.º 1 e n.º 5 da CRP) nem o direito a um processo equitativo (art. 20.º, n.º 4, da CRP e art. 6.º § 1 da CEDH).

Feitas estas considerações teóricas, verifica-se que, na acusação, em relação à vítima EE, era imputado aos arguidos a prática de um crime de homicídio qualificado na forma consumada, p. e p. nos arts. 131.º e 132.º, n.º 1 e n.º 2, al. l), do CP e, na sessão de julgamento de ........2023, finda a produção de prova, foi-lhes feita a comunicação de alteração dessa qualificação jurídica para um crime de homicídio qualificado na forma consumada, p. e p. nos arts. 131.º e 132.º, n.º 1 e n.º 2, al. c), do CP (sendo por este crime que vieram a ser condenados).

Perante essa concreta comunicação (entre outras que foram feitas na mesma sessão equivalentes), sendo referido que se estava “perante meras alterações da qualificação jurídica, sendo certo que os factos subsumíveis permanecem inalterados”, foi dado conhecimento às defesas nos termos e para os efeitos do disposto no art. 358º, nº 1 e 3 do CPP.

E, dada a palavra aos Ilustres Mandatários, o do arguido AA disse nada ter a requerer, enquanto o do arguido GG, arguiu a nulidade da reabertura da audiência de julgamento, bem como a nulidade das comunicações efetuadas.

De seguida a Senhora Juiz Presidente proferiu despacho que ficou gravado no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática (nos termos do art. 364º, nº 2, do Código do Processo Penal, na redação que lhe foi conferida pela Lei nº 27/2015 de 14 de Abril), no qual fez constar que sobre as invocadas nulidades o Tribunal oportunamente se pronunciará, mais fazendo constar que, nada tendo sido requerido quanto a prazo para a produção de prova, se designa para a leitura de acórdão o próximo dia 29 de Maio de 2023, pelas 14:30 horas.

Portanto, no caso do recorrente GG a quem já era imputado a prática de um crime de homicídio qualificado consumado em relação à vítima EE, a comunicação da alteração da qualificação jurídica, relaciona-se com a alteração da circunstância qualificativa, que em vez de ser a alínea l) passou a ser a da alínea c) do n.º 2 do art. 132.º do CP.

Ora, essa alteração da dita circunstância do crime de homicídio qualificado não envolveu qualquer alteração de factos da acusação, nem tão pouco da respetiva moldura legal abstrata da pena de prisão aplicável ao crime de homicídio qualificado p. e p. no art. 132.º do CP imputado ao recorrente.

Nessa perspetiva, tendo em vista, desde logo o disposto no art. 1.º, f), do CPP, é manifesto que não se está perante uma “alteração substancial dos factos” uma vez que nem houve a imputação ao arguido de crime diverso (dado que o crime imputado é o mesmo, apenas foi alterada a circunstância que deixou de ser a da alínea l) e passou a ser a da alínea c) do n.º 2 do art. 132.º do CP) e também não houve agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis (uma vez que as sanções são as mesmas).

Portanto, não tem razão o recorrente quando alega que a referida alteração da qualificação jurídica se traduz numa alteração substancial (art. 359.º do CPP).

E, também não tem razão o recorrente quando alega que essa comunicação envolveu novas realidades fácticas, que não foram objeto do processo, porque como acima já se referiu, não houve qualquer alteração de factos no que se relaciona com a referida comunicação de alteração da qualificação jurídica.

Ao ser feita essa comunicação de alteração da qualificação jurídica, nos termos do art. 358.º, n.º 3, do CPP, como a lei determina, pelo tribunal competente (o tribunal de júri como foi bem explicado pela Relação na decisão recorrida), os arguidos tiveram a possibilidade de se defenderem e de, se o entendessem mais conveniente, reorganizarem a sua defesa.

Daí que não tivessem sido violadas as garantias de defesa, nem tão pouco o direito ao contraditório ou a presunção de inocência (art. 32.º, da CRP), pois, os arguidos tiveram a possibilidade de apresentar a defesa que entendessem, de discutir e contribuir para decisão que viesse a ser proferida, tendo tido a faculdade de participar de forma constitutiva, “na declaração do direito ao caso concreto”.

Como diz Figueiredo Dias32, “a necessidade de dar maior fixidez e concretização ao princípio do contraditório, autonomizando-o decididamente do princípio da verdade material e do direito de defesa do arguido, leva à sua concepção como princípio ou direito de audiência; como (…) oportunidade conferida a todo o participante processual de influir, através da sua audição pelo tribunal, no decurso do processo”.

Esse direito de audiência, dá a oportunidade, quer à acusação, quer à defesa, de apresentarem as suas “razões” sobre determinada questão concreta (no caso sobre a comunicada alteração de factos não substancial), assegurando, também, o acesso a um processo equitativo.

O que, de resto, está de acordo não só com o art. 20.º, n.º 4, da CRP, como com o disposto no art. 6.º, § 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, quando estabelece que “qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei (…)”.

Ora, os arguidos, tiveram oportunidade de exercer os seus direitos de defesa e o contraditório - quando lhes foi feita a comunicação de alteração da qualificação jurídica (cf., ata relativa à sessão do dia ........2023).

Note-se que essa comunicação de alteração da qualificação jurídica foi feita precisamente para evitar decisão surpresa e para dar aos arguidos a oportunidade de requererem prazo para prepararem a sua defesa, fazendo uso do disposto do art. 358.º, n.º 1, parte final, do CPP (cf. primeira parte do n.º 3 do mesmo artigo).

E, se tivessem apresentado defesa, nomeadamente apresentando provas, era novamente reaberta a audiência para o efeito, a qual prosseguiria normalmente até final, como foi bem explicado na decisão recorrida (ver de resto, o ac. STJ/FJ n.º 11/2013, de 12 de Junho de 201333).

Portanto, não havia qualquer impedimento para que a referida comunicação da alteração da qualificação jurídica, fosse feita finda a produção de prova, como foi, uma vez que estava sempre salvaguardado e garantido o direito de defesa dos arguidos, caso pretendessem naquela altura alterar a sua estratégia e apresentar provas, podendo até naquele momento requerer prazo para o efeito, para terem tempo de organizar eficazmente a sua defesa (cf. citado art. 358.º, n.º 3, primeira parte, que remete para o n.º 1 do mesmo artigo).

No entanto, não requereram prazo para a produção de prova, como podiam, antes optando, no que aqui interessa o recorrente por arguir a nulidade da reabertura da audiência de julgamento, bem como a nulidade das comunicações efetuadas.

A opção dos arguidos foi não apresentarem qualquer defesa, apesar de terem tido oportunidade de a apresentarem e de requererem nessa matéria o que tivessem por conveniente, tendo em vista a defesa mais eficaz.

Perante essa posição dos arguidos (que exerceram os seus direitos como entenderam), mais não restava à Srª. Presidente do Tribunal do que, designar dia para a leitura do acórdão, uma vez que nem sequer fora requerida prova a produzir.

Ou seja, tendo sido assegurado previamente o direito de defesa eficaz (atendendo, portanto, à necessidade de não frustrar a estratégia da defesa e o efeito útil desta) e não tendo sido violado qualquer princípio (v.g. da presunção de inocência, do contraditório, do acusatório, da vinculação temática) a alteração da qualificação jurídica podia ser tida em conta pelo tribunal do julgamento, no apuramento e na definição da responsabilidade criminal dos arguidos (isto sem prejuízo do oportuno conhecimento do recurso da sentença, v.g. na parte em que é invocado o erro na subsunção dos factos ao direito).

Por isso, não foi violado designadamente o disposto no art. 358.º do CPP (não sendo aplicável ao caso o disposto no art. 359.º do CPP), nem os arts. 32.º da CRP, 6.º da CEDH, 6.º da Diretiva 2012/13/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de Maio de 2012 e 47.º da CDFUE, sendo evidente que não se verificou qualquer ilegalidade, nem qualquer interpretação inconstitucional daquela norma, como gratuitamente alega o recorrente, não havendo, por isso, motivo, para qualquer “desqualificação”.

Improcede, pois, esta questão colocada pelo recorrente, sendo certo que não foram violadas as normas legais e princípios por si invocados.

4ª Questão (recursos dos arguidos AA e GG): erro na subsunção dos factos ao direito

Invocam os recorrentes, em resumo, que houve errada interpretação do art. 131.º do CP, existindo ausência de dolo eventual, além de haver incorreta subsunção no art. 132.º, n.º 2, al. c), do CP, não se verificando os pressupostos da circunstância qualificativa, o que leva a que os factos integrem o crime de ofensa à integridade física.

A este propósito, escreveu-se na decisão sob recurso:

D. Enquadramento jurídico dos factos.

1. O tribunal “a quo” pronunciou-se a este respeito nos seguintes termos:

2.3.1 Enquadramento jurídico-penal

2.3.1.1 Do crime de homicídio

Aos arguidos GG e AA foi imputado um crime de homicídio qualificado na pessoa da vítima EE, bem como um crime de homicídio qualificado na forma tentada sobre DD.

Ao arguido GG foi ainda imputado um crime de homicídio na forma tentada sobre BB.

Prevê o disposto no art. 131.º, n.º 1 do CP que, quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos.

Trata-se de uma norma que protege o bem jurídico mais importante, ou seja, a vida humana.

O tipo objetivo de ilícito consiste em matar outra pessoa, havendo obviamente que estabelecer o indispensável nexo de imputação objetiva do resultado à conduta.

Em sede de tipo subjetivo do ilícito, exige-se dolo, em qualquer uma das formas contempladas no art. 14.º do CP, a saber, direto, necessário ou eventual, sendo que nesta última o agente prevê o resultado e conforma-se com ele.

No caso em apreço, ficou assente que na madrugada do dia 19 de março de 2022, junto à discoteca 1, pelas 06h20m08, o arguido AA aproximou-se pela retaguarda do agente EE, o qual se encontrava numa atitude apaziguadora, e desferiu-lhe um soco na parte de trás/lateral da cabeça, fazendo-o cair de imediato no chão. Mais se provou que em ato contínuo o arguido AA desferiu mais um pontapé na cabeça do agente EE. E ainda que, imediatamente a seguir, o arguido GG desferiu três pontapés na cabeça do agente EE, que permanecia inanimado no chão. Tais factos foram concretizados de forma violenta e concertada.

Destas condutas resultaram as lesões descritas na matéria assente, nos pontos 2.1.58 a 2.1.64, que foram causa direta e necessária da sua morte.

Encontram-se, desta feita, verificados os elementos objetivos do tipo de crime que nos ocupa.

Vejamos de seguida o elemento subjetivo do tipo.

Como acima se deixou expresso, o tipo basta-se com qualquer modalidade de dolo, contemplando, por isso, o eventual. Este consiste em o agente configurar como possível que o resultado da sua conduta seja a morte do ofendido e conformar-se com essa situação.

No caso que nos ocupa, teve-se por provado que os arguidos AA e GG tinham plena consciência da sua superioridade física perante os especiais conhecimentos de luta que possuíam, e que tal conhecimento não os inibiu de agredir com intensidade os ofendidos DD e EE, da forma como fizeram, e prosseguirem tais agressões mesmo quando estes já se encontravam caídos no chão, desferindo-lhes pontapés com intensidade na cabeça, sendo que o arguido GG também o fez, a acrescer, ao ofendido BB, mostrando os arguidos indiferença às consequências que daí podiam advir, nomeadamente a morte. Mais se provou que os arguidos atuaram com a intenção concretizada de molestar fisicamente os ofendidos, ao desferirem os socos e pontapés intensos, designadamente na zona da cabeça dos ofendidos EE e DD, atuando de forma violenta e concertada, e o arguido GG, a acrescer, a BB, e sabiam que tais condutas poderiam provocar a morte daqueles cujas cabeças socaram e pontapearam indiscriminadamente e conformaram-se com tal resultado, fazendo-o repetida e sucessivamente, o que viria a culminar na morte de EE.

Como justamente se exarou no Ac. STJ, 18.09.2018, Lopes da Mota, in www.dgsi.pt: 5. Há tentativa de crime de homicídio qualificado com dolo eventual se os actos de execução integram, por si, um exemplo-padrão do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal e revelam especial censurabilidade ou perversidade.

Impõe-se, portanto, concluir que se verifica o elemento subjetivo do tipo.

Se malogradamente quanto à vítima EE a morte se verificou, já quanto aos ofendidos BB e DD, por circunstâncias externas à vontade dos arguidos, felizmente o mesmo não sucedeu.

Nesta matéria, teve-se como assente que não obstante o ofendido BB ter perdido a consciência, estar caído no chão e sem sentidos e, consequentemente sem qualquer capacidade de se defender, o arguido GG dirigiu-se novamente ao ofendido, e desferiu-lhe dois pontapés na cabeça, com muita intensidade, de forma continua e sucessiva, fazendo com que a cabeça do ofendido se movimentasse de um lado para o outro. Então, perante o que se estava a passar, a testemunha JJ colocou os pés a ladear o corpo do ofendido BB, para o proteger das agressões, e logo de seguida a testemunha WW ocupou a posição de JJ, para proteger o ofendido BB também das agressões.

De igual jaez, quanto ao ofendido DD, apurou-se que no momento que o mesmo, encontrava prostrado no solo, os dois arguidos desferiram-lhe um número indeterminado de pontapés na sua cabeça e o ofendido DD, para se proteger, colocou as mãos em volta da cabeça. Pelas 06h20m34 os agentes CC e UU conseguiram afastar os agressores intrometendo-se entre eles e o agente DD, sendo que inclusivamente CC sofreu vários socos/murros na sequência desse afastamento conseguido.

Temos, em suma, condutas idênticas sobre os três ofendidos, sendo que em duas delas os arguidos viram interrompida a continuação da sua atuação delituosa por interferência de fatores externos.

As suas condutas apresentam-se, pois, nestas duas situações, na forma tentada.

Neste mesmo sentido, e mutatis mutandis, veja-se o Ac. TRG, 25.03.2019, Teresa Coimbra, in www.dgsi.pt: 1. Num crime de homicídio na forma tentada, como o dolo da atuação porque se situa no campo da subjetividade é sempre de difícil discernimento, a sua avaliação impõe o recurso a dados objetivos que sejam reveladores da verdadeira vontade colocada na atuação.

2. Tais dados são, em regra, por um lado, os instrumentos utilizados na prática do crime e o modo como o foram; por outro, a parte do corpo atingida e a extensão qualitativa e quantitativa das lesões.

3. Não pratica um crime de ofensa à integridade física grave, nem um crime de ofensa à integridade física qualificada, mas antes um crime de homicídio na forma tentada, quem desfere com a parte metálica de um sacho uma pancada na cabeça de outra pessoa, provocando-lhe ferida crânio cerebral frontal com perda de massa encefálica, além de outras lesões.

Em todas as atuações descritas, os arguidos atuaram sempre de forma livre, voluntária e conscientemente.

Impõe-se, agora, proceder à análise da imputada circunstância agravante e que se integra no disposto no art. 132º, nº2, al. c).

Ora, como vem sendo repetidamente afirmado, as circunstâncias das diversas alíneas do n.º 2 do art. 132.º do C.P. não são elementos do tipo, mas da culpa, não sendo, por isso, de funcionamento automático. Têm carácter meramente exemplificativo, nelas se referindo apenas alguns indícios ou elementos que permitam revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente. Pode verificar-se qualquer das circunstâncias referidas nas várias alíneas e, nem por isso, se poder concluir pela qualificação do crime.

É certo que a enumeração do n.º 2 do art. 132.º do C.P. não é inócua. Ela traduz o desejo do legislador de que o juiz, quando se verificar uma das circunstâncias previstas, tenha particular atenção sobre a possibilidade de ser formulado um juízo de especial censurabilidade ou perversidade do agente.

No caso em apreço, a circunstância incide sobre a particular vulnerabilidade da vítima.

A Jurisprudência tem vindo a densificar o conceito.

Traz-se à colação o Ac. do TRL, de 21.3.2023, in www.dgsi.pt :

VII–Para caracterizar uma particular fragilidade da vítima, não basta a coabitação com o agente, nem mesmo que o ofendido se encontre numa das circunstâncias tidas em vista pela norma (idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica do agente). É também indispensável que, perante os factos dados como provados, se possa concluir que a vítima era uma pessoa particularmente indefesa, por se encontrar numa situação de particular vulnerabilidade e de especial incapacidade de reação relativamente às investidas do agente.

E o Ac. do TRE, de 21.9.2021, recolhido na mesma fonte, mutatis mutandis quanto ao tipo de crime:

1 - O tipo agravado de ofensa à integridade física é um tipo qualificado de culpa: trata-se de punir mais severamente, no quadro de uma moldura penal agravada em relação ao crime de ofensa à integridade física simples (o tipo matricial), condutas que, em razão da verificação de certas circunstâncias com uma estrutura essencialmente típica, traduzam vertentes do facto ou da conduta do agente particularmente desvaliosas em razão da sua personalidade ou da forma como ele imprime à sua actuação uma marca que acentua o desvalor do facto, em relação ao desvalor inerente a qualquer tipo de ofensa à integridade física.

2 - Quer dizer que o agente deve e tem de poder ser merecedor de um especial juízo de culpa ou de censura ético-jurídica em razão desse especial desvalor de que a prática do facto se revestiu.

Volvemos aos factos dos autos.

Poder-se-á, ou melhor, dever-se-á considerar especialmente censurável a conduta dos arguidos?

Vejamos as circunstâncias da prática dos factos.

Os ofendidos estavam prostrados no chão, indefesos, inertes, dois deles inconscientes, em manifesta impossibilidade de se defenderem. E o que fazem os arguidos? O que sabem que não lhes é permitido fazer quando praticam a sua modalidade desportiva de eleição, o ..., sendo que, ali, fora das regras do ringue, agridem os ofendidos / adversários. E como e onde os agridem? Com pontapés violentos, sucessivos e contínuos nos seus crânios, com a fúria destemperada que as imagens comprovam. Não se determinaram a pontapear o corpo, antes a respetiva cabeça, que escolheram deliberadamente, onde se aloja o órgão que sabiam ser vital.

As vítimas não podiam defender-se, estavam à sua mercê, encontravam-se numa situação de particular vulnerabilidade e de especial incapacidade de reação relativamente às investidas dos agentes.

Ora, não pode deixar, portanto, de se considerar que a conduta deve ser objeto de uma especial censurabilidade e bem assim que as vítimas se encontravam numa situação de espacial vulnerabilidade.

Em face do exposto, entende-se que a subsunção fático-jurídica conduz à aplicação da al. c) do nº 2, do art. 132º do CP.

Tal ilícito é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.

Esta moldura penal sofre uma atenuação especial que a coloca entre dois anos, oito meses e vinte e quatro dias a dezasseis anos e oito meses, nos termos conjugados do art.131º, 132º, nº 1 e 2, al. c) e 23º, nº1 e 2, e 73º do CP.

Desta feita, deverá o arguido GG ser punido pela prática de um crime de homicídio, na forma consumada, na pessoa de EE; um homicídio, na forma tentada, na pessoa do ofendido DD; e um homicídio, na forma tentada, na pessoa de BB.

E deverá o arguido AA ser punido pela prática de um crime de homicídio, na forma consumada, na pessoa de EE; e de um homicídio, na forma tentada, na pessoa do ofendido DD.

2.3.1.2 Do crime de ofensa à integridade física

Dispõe o art. 143º do Código Penal que, quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

O bem jurídico protegido pela incriminação é a integridade física e psíquica (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 3ª Ed., p. 555).

São elementos típicos do crime: i) a prática de factos causadores de uma ofensa no corpo ou na saúde de outrem, independentemente de dor ou sofrimento causados; si) a verificação do dolo sobre os dois elementos objetivos acima referidos.

Por ofensa no corpo ou saúde de alguém deverá entender-se "uma alteração anatómica ou patológica, uma perturbação ilícita da integridade corporal morfológica ou do funcionamento normal do organismo ou das suas funções especificas" (lesão corporal) ou do "estado de bem-estar físico, mental e social (saúde)” (Cf. Simas santos e Leal Henriques, Código Penal Anotado, 1996, vol. II, p. 134-135, em anotação ao artigo).

Desta feita, por ofensa corporal ou na saúde deverá entender-se qualquer mau trato através do qual o ofendido é prejudicado no seu bem-estar físico, de uma forma não insignificante, ou no seu bem-estar psíquico.

O tipo alberga qualquer tipo de dolo.

Vejamos o que se apurou quanto ao arguido AA:

i) O arguido aproximou-se pela retaguarda do ofendido BB e desferiu-lhe um murro com muita intensidade na zona da cabeça, fazendo-o cair de imediato no chão, ficando o mesmo inconsciente, inanimado, sem sentidos, o que fez na sequência deste ofendido ter desferido um soco no arguido GG;

ii) O arguido agrediu CC com vários socos e pontapés; de seguida, o agente CC tentou seguir no encalço dos arguidos com o intuito de visualizar a matrícula do carro em que se faziam transportar e, apercebendo-se dessa tentativa, o arguido voltou para trás e desferiu um soco no ofendido CC; consideram-se estas duas atuações numa unidade fática.

E agora o que se teve por assente quanto ao arguido GG:

i) O arguido desferiu um empurrão e uma cabeçada no ofendido BB, quando se encontravam no interior da discoteca;

ii) O arguido desferiu um soco na cabeça do ofendido FF e socos na cabeça quando este recuava; consideram-se estas duas atuações numa unidade fática;

iii) O arguido desferiu um pontapé nas costas do ofendido BB quando este estava a ser levantado em braços pelos dois amigos; neste caso, atendendo ao lapso temporal com a conduta descrita em i) e à situação interruptiva que se materializou com o hiato com conduta ilícita descrita no capítulo antecedente, não se pode considerar que exista uma unidade resolutiva entre as condutas descritas em i) e iii), mas a formulação de uma nova resolução;

iv) O arguido agrediu CC com vários socos e murros.

Tanto basta para que se encontrem verificados os elementos objetivos do tipo.

Os arguidos praticaram as suas condutas com intenção de ofender os corpos dos ofendidos e lhe causar dores e sofrimento.

Tanto basta para que se verifiquem os elementos subjetivos do tipo, na modalidade de dolo direto.

Qualifica o tipo o disposto no art. 145.º, n.º 1 do CP: “Se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido com pena de prisão até quatro anos no caso do art. 143.º”.

Mais consagra o n.º 2 do mesmo dispositivo legal, que são suscetíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, as circunstâncias previstas no n.º 2 do art. 132.º do CP, trazendo-se à colação, para o que ora releva a al. c), ou seja, a circunstância de o agente praticar o facto contra uma pessoa particularmente indefesa.

Destarte, a questão que importa analisar prende-se com a situação que se reporta ao arguido GG e descrita em iii).

Com efeito, o arguido desferiu um pontapé nas costas do ofendido BB quando este estava a ser içado pelos seus colegas, que o estavam a apoiar, a fim de o retirarem do local.

Repristinando as considerações acima efetuadas sobre se a atuação do arguido, nessas circunstâncias de facto, é especialmente censurável, atendendo ao estado e à situação do ofendido BB, conclui-se pela positiva.

Com efeito, se em circunstâncias regulares um ataque pelas costas não abona a favor de quem o desfere, por ser considerado vulgarmente “à traição” (expressão, aliás, usada pelo arguido na sua contestação, v.g. art. 22º), no caso concreto, essa agressão reflete uma maior culpa do arguido, um juízo de censurabilidade acrescida, pois o ofendido estava, se não ainda inconsciente (o ofendido relatou que já estava levantado quando recuperou os sentidos, e mais disse nem ter memória de ter sofrido esta agressão, pelo que se crê que ainda não tivesse recuperado por completo a consciência), pelo menos completamente depauperado, o que sobressai nitidamente do vídeo.

Mas mais: foi uma agressão absolutamente gratuita e demonstrativa da indiferença de ofender corporalmente, foi uma infeliz e lamentável demonstração de superioridade, de desprezo pela integridade física do ofendido, uma selagem da euforia da luta, da hegemonia da força física desregrada, conclusões estas que não podem deixar de se obter quando se analisa o respetivo facto descrito na acusação.

Desta feita, porque o juízo de censurabilidade que é mister fazer é intenso e porque a vítima estava particularmente indefesa e vulnerável às investidas do arguido, conclui-se que deve operar a qualificativa constante do art. 132º, nº 2, al. c) ex vi nº 2 do art. 145º, do CP.

Assim, entende-se que se encontra preenchido o requisito da especial censurabilidade que agrava o tipo base, qualificando-o, devendo o arguido GG, nesta situação, ser punido com a pena prevista no art. 145º, nº 1, al. a), e nº 2, conjugado com o art. 132º, nº2, al. c), a saber, até 4 anos de prisão.

Nas demais, para ambos os arguidos, a pena a aplicar é até três anos de prisão ou pena de multa decorrente da aplicação do art. 143º, nº1, do CP.

2. Os recorrentes apresentaram as seguintes conclusões:

Recurso do arguido AA:

16. O Recorrente foi condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado cometido sobre o Senhor Agente EE, na pena de 15 (quinze) anos e 9 (nove) meses de prisão. Pode, aliás, ler-se no acórdão recorrido que as normas incriminadoras invocadas foram os arts. 131º, 132º, n.º 1 e 132, n.º 2, al. c), todas do Código Penal.

17. A referida circunstância agravante tem sido unanimemente interpretada no sentido de que são pessoas particularmente indefesas “aquelas que se encontram numa situação de especial fragilidade devido à sua idade precoce ou avançada, deficiência, doença física ou psíquica, gravidez ou dependência económica do agente” (neste sentido, entre muito outros melhor analisados infra, o Acórdão da Relação de Lisboa de 02.03.2017, disponível em www.dgsi.pt).

18. Não se compreende como é que um cidadão que – segundos antes de ser agredido – agride ele próprio o arguido GG (facto provado n.º 2.1.89) é uma pessoa particularmente indefesa... Veja-se, ainda, o texto do acórdão recorrido (página 74) quando refere que “A favor do arguido AA encontra-se o facto de a vítima EE ter desferido um soco no arguido GG (...)”.

19. Em abono da verdade, o Recorrente não compreende como é que um cidadão que segundos antes agride um terceiro a murro – em contexto de rixa – é uma pessoa particularmente indefesa... Esta conclusão sai, ainda, reforçada se considerarmos a sua qualidade de Agente da Polícia de Segurança Pública e se não ignorarmos todos os treinos/formações que lhe foram ministrados para preparação do exercício das respetivas funções...

20. A qualificativa invocada pelo Tribunal está pensada para casos de absoluto desamparo da vítima (social, psicológico e/ou físico). Neste pressuposto, qualificar o Senhor Agente EE como uma vítima especialmente vulnerável não faz jus à realidade e é, até, desprimoroso para a sua própria condição.

21. É que, salvo o devido respeito por opinião diversa, a própria intervenção do Senhor Agente EE contraria esta ideia de incapacidade e a vulnerabilidade exigidas pela norma incriminadora, de molde a podermos qualificar como especialmente censurável a atitude dos arguidos.

22. Mais: a especial vulnerabilidade da vítima deve manifestar-se ab initio e não deve ser uma consequência da superação da resistência oferecida pela vítima... A norma está pensada para os casos em que a vítima é tão vulnerável e tão incapaz de esboçar uma defesa que a afetação do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora é especialmente inaceitável (face a esta incapacidade conhecida e evidente de reagir a essa afetação).

23. Se as agressões (em situação de incapacidade de defesa) forem uma consequência da superação da resistência da vítima (por parte do arguido), jamais estaremos perante uma vítima especialmente indefesa e/ou vulnerável, nos termos e para os efeitos previstos no art. 132º do Código Penal.

24. Para que um qualquer homicídio seja especialmente censurável (qualificado), é necessário que, para além da censurabilidade típica, se denote um circunstancialismo que permita concluir pelo especial desvalor da conduta do arguido (quando comparada com o desvalor da conduta de quem comete o crime de homicídio simples).

26. Ou seja: para que um homicídio cometido em contexto de luta corporal seja qualificado (e punível nos termos do art. 132º do Código Penal), exigir-se-á a especial censurabilidade e perversidade dos factos quando comparada com a censurabilidade a perversidade “normal” dos factos associados à prática de um crime de homicídio simples (punível nos termos do art. 131º do Código Penal).

27. Exigir-se-ia, portanto, que as agressões fossem bárbaras, sucessivas, contínuas, duradouras, que o agente tivesse tempo de se (re)motivar, que estivessem em superioridade numérica, etc.

28. Uma agressão que dura cerca de 2 (dois) segundos cometida sobre um jovem com 26 (vinte e seis anos) que acabara de desferir um soco no camarada de armas do arguido-recorrente não retrata o especial desvalor da conduta do arguido (conduta, ela própria, desvaliosa porquanto configura uma agressão ilícita).

29. Não devemos confundir uma agressão ilícita (sempre censurável e sempre dotada de alguma perversidade) com uma agressão – também ela ilícita – mas cometida num contexto em que seja evidente a sua especial censurabilidade e perversidade, bem como o especial desvalor da conduta do arguido-recorrente.

30. Afastada que está – em nosso entender – a especial censurabilidade e perversidade da atuação do Recorrente sobre EE, importa – agora – tergiversar acerca da questão do dolo eventual e da eventual representação do resultado morte aquando do cometimento das agressões. É que, por um lado, se o resultado típico foi representado pelo arguido e se, ainda assim, este se conformou com a morte da vítima, estaríamos perante um crime de homicídio simples, cometido com dolo eventual. Por outro, se o resultado típico extravasou exponencialmente aquela que era a intenção do arguido, estar-se-á perante um crime de ofensas à integridade física agravado pelo resultado (morte).

31. É, por demais, evidente que um jovem militar português, sem antecedentes criminais, social, profissional e familiarmente integrado, que admitiu a sua intervenção nos factos, que se desculpou perante a família da vítima, que jamais terá previsto a possível consequência da sua conduta e que se precipitou a ajudar um camarada de armas que acabara de ser agredido pelo malogrado EE, não previu o resultado verificado e, por maioria de razão, com ele não se poderia ter conformado.

32. Veja-se, aliás, o testemunho de JJ quando se reporta à surpresa manifestada pelos arguidos quando souberam, já no regresso às suas residências, que foi necessário transportar o EE para o Hospital em consequência da gravidade das lesões. A surpresa relatada por JJ é – em si mesma – incompatível com a previsão do resultado típico e com a respetiva conformação...

33. A não previsão do resultado típico e a ausência de conformação com esse resultado (morte) é, ainda, corroborada pelo próprio circunstancialismo do caso concreto (que, aliás, resulta evidente da análise dos ficheiros de vídeo extraídos do circuito de videovigilância dos diversos estabelecimentos de diversão noturna).

34. Terá querido um jovem militar português, sem antecedentes criminais, familiar e socialmente inserido agredir outrem de forma tão bárbara e tão violenta que o resultado morte pudesse ser esperado? Ou, inversamente, terá querido este mesmo jovem militar neutralizar aqueles que, na sua ótica, eram os agressores que – segundos antes – agrediram comprovadamente o seu camarada?

35. Mais... O resultado (morte) era – ou não – esperado? Podia, ou não, o arguido ter-se conformado com este resultado? É que, de acordo com a tese perfilhada pelo tribunal recorrido, qualquer cidadão que agride outro com um soco violento na cabeça poderá cometer o crime de homicídio simples na forma tentada.

36. É evidente que o resultado (morte) era inesperado e é também evidente que o arguido não se conformou com o ocorrência desse resultado, resultado esse que era inesperado, desde logo, porque a atuação de AA consistiu num murro e num pontapé... Ora, este cenário de agressões, embora violento, configura uma “normalidade” inaceitável em qualquer confronto físico, dado que, infelizmente, é esta a bitola dos confrontos físicos: socos e pontapés desferidos de forma gratuita e censurável.

37. Nesta conformidade, poderemos – legitimamente – referir que um jovem que agride outro jovem a soco representou a sua morte como possível e conformou-se com esse resultado? É evidente que não...

38. No caso concreto, não podemos concordar com a asserção do Tribunal a quo vertida no acórdão recorrido: um pontapé na cabeça desferido em condições idênticas às do caso concreto – de acordo com padrões de normalidade – não é uma agressão idónea a provocar a morte do ofendido. Recorde-se, uma vez mais, que o arguido-recorrente desferiu – somente – um pontapé e jamais terá previsto que essa agressão fosse idónea a provocar a morte de alguém.

39. Poderemos considerar – de forma absolutamente consciente e imparcial – que um cidadão (ainda que com uma preparação física acima da média) poderá, em apenas dois segundos, agredir mortalmente um jovem agente da PSP? É que, o arguido-recorrente agride a soco EE (porque este acabara de agredir GG) e, em ato contínuo, desfere-lhe um pontapé e, seguidamente, afasta-se da vítima... É a própria dinâmica dos acontecimentos que evidenciam o que se acaba de referir, na medida em que o circunstancialismo do caso concreto afasta esta ideia de que AA poderia (e deveria) ter previsto a morte da pessoa que agredira.

40. Um pontapé na cabeça – embora extraordinariamente censurável – não configura um ato de execução típico do crime de homicídio; o trágico resultado resultante de um pontapé na cabeça (que não foi particularmente violento, algo que até resulta das imagens) e de outras agressões não poderia ter sido previsto pelo Recorrente quando desferiu o primeiro pontapé (e o único que lhe é imputável).

41. Consideramos, todavia, que o arguido-recorrente terá agido em legítima defesa de terceiros, em função das circunstâncias objetivas do caso concreto.

42. No caso da chamada legitima defesa de terceiro tem, igualmente de forma pacífica, entendido o Supremo que a ameaça deve resultar de “leitura objectiva da situação de um terceiro exterior e não pela representação subjectiva do agente”. (Cfr. Acórdão do STJ de 27/10/2010 in www.dgsi.pt ).

43. Caso assim não se entenda, porém, sempre seria de se admitir um cenário de legítima defesa putativa, isto é, uma situação em que o Recorrente estivesse – objetivamente – numa situação de erro quanto aos pressupostos da legítima defesa.

44. Ao abrigo do disposto no art. 16º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, não pode o arguido ser condenado pela prática de um crime doloso (como o crime de homicídio qualificado, homicídio simples, ou ofensas à integridade física dolosas).

45. Em alternativa, nos termos do art. 16º, n.º 3 do Código Penal (e admitindo o cometimento do ilícito a título negligente), deverá o arguido ser punido pela prática de um crime de homicídio negligente (o que não se concede) ou pela prática de um crime de ofensas à integridade físicas negligente quanto à pessoa de EE.

46. Estavam, portanto, reunidas todas as condições (objetivas e subjetivas) para que AA achasse, de forma legítima, que estava a repelir uma agressão em curso e ilícita cometida sobre GG.

Recurso do arguido GG:

212.ª Relativamente à qualificação do crime de homicídio por apelo à alínea c) do n.° 2 do artigo 132.° do CP, foi entendido pelo Tribunal a quo, que o simples facto de as vítimas se encontrarem prostradas no chão, seria suficiente para as considerar particularmente indefesas, nos termos do referido preceito legal.

213.ª Ora, entende o Recorrente, e certamente V. Exas., que o Tribunal a quo incorreu em manifesto erro na interpretação do referido preceito legal, porquanto atendendo às circunstâncias do caso não é possível sustentar a existência de um grau especialmente elevado de culpa, suscetível de ser enquadrado nalguma das alíneas do n.° 2 do artigo 132.° CP.

214.ª A qualificação do homicídio só pode ser feita olhando para o caso concreto e para os fatores que motivaram a atuação do agente.

215.ª A atuação do agente tem de se mostrar desconforme com o que é aceite pela ordem jurídica e tem de consubstanciar uma censurabilidade ou perversidade acrescida àquela que está presente no tipo legal do artigo 131° do Código Penal.

216.ª Sendo que, caso a conduta do agente não se enquadre em nenhum dos exemplos-padrão ou das situações substancialmente análogas, o homicídio não pode ser considerado qualificado (cfr. entre outros Ac. do STJ de 13-07-2005, Proc. n.° 1833/05 -5.ª ).

217.ª Prescreve a alínea c) do n.º 2 artigo 132.º do CP que é susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a circunstância de o agente “Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez”.

218.ª Pelo que, para que esta condição qualificativa possa operar, é necessário que a particular vulnerabilidade da vítima resulte de uma das condições que a lei aponta: idade, doença, deficiência ou gravidez, e que, revelando uma especial censurabilidade, o agente, delas sabendo, se determine ainda assim a provocar a morte de uma pessoa naquelas condições.

219.ª No nosso caso, apesar das vítimas poderem estar no chão e nessa medida entender-se que tinham mais dificuldades em defender-se, a verdade é que atendendo ao estado de saúde, à capacidade física e à idade dos ofendidos, não é possível com base, apenas, neste elemento afirmar-se que as vítimas se encontravam “particularmente indefesas” para efeitos de especial agravação da culpa nos termos do artigo 132.º do CP.

220.ª Resulta à saciedade que a aplicação que o Tribunal a quo faz da al. c), do n.º 2, do art. 132.º do CP, seja para agravar os crimes de homicídio, seja as ofensas corporais, não encontra qualquer justificação no caso concreto, por total ausência de demonstração dos factos em que a especial censurabilidade, revelada pela particular vulnerabilidade da vítima, é penalmente relevante: idade, doença, deficiência ou gravidez.

221.ª Atente-se que estas circunstâncias, para além de como é obvio terem de ser provadas, têm de ser pré-existentes à atuação do Arguido, pois, só assim, será possível revelar um especial grau de culpa, quando este, sabendo da vulnerabilidade da vítima, se determinou, ainda assim, a atuar contra ela.

222.ª Assim, o Recorrente entende que, sob pena de repetir uma interpretação dos artigos 132, n.º 1 e 2, do CP que já foi declarada inconstitucional (pelo Acórdão n.º 852/2014, de 10 de março (processo n.º 1359/13)), tendo em conta os factos provados, não poderá considerar-se, em qualquer caso, estarmos perante a circunstância qualificativa prevista na alínea c) do n.º 2 do art. 132.º.

223.ª Por sua vez, no que diz respeito ao crime de homicídio, no entender do Recorrente é manifesto que da prova produzida em audiência de julgamento não resultaram quaisquer elementos sólidos e inequívocos quanto ao dolo de homicídio, nos termos que permitam validar as conclusões do Acórdão recorrido.

224.ª Da motivação da convicção do Tribunal, constata-se que os crimes de homicídio e tentativa de homicídio vêm imputados a título de dolo eventual. Entende o douto Tribunal a quo que o Recorrente ao atuar como atuou representou o resultado morte como consequência possível das suas condutas e agiu conformando-se com tal resultado.

225.ª Para fundamentar a sua conclusão o Tribunal a quo, em manifesta violação do disposto no artigo 370.º do CP, invoca os relatórios sociais para comprovar o elemento subjectivo do tipo de crime, nada mais errado, uma vez que, o dolo da atuação é um elemento interno, intelectual e volitivo, que não pode fundamentar-se em opções de vida anteriores do Agente, mas apenas retirar-se do comportamento do Recorrente manifestado nos factos.

226.ª Acompanhando a teoria do Tribunal a quo, qualquer membro dos ... e praticante de modalidades de luta, ao agredir outrem, comete um homicídio tentado, pois tem superioridade física e especiais conhecimentos sobre onde se pode ou não bater...

227.ª O dolo da atuação, porque se situa no campo da subjectividade é sempre de difícil discernimento, a sua avaliação impõe o recurso a dados objetivos que sejam reveladores da verdadeira vontade colocada na atuação.

228.ª Ora, o que se retira da prova produzida em juízo é que entre as várias condutas imputadas aos Recorrentes não se vislumbra qualquer diferenciação entre o tipo de agressões e grau de violência entre as agressões que foram perpetradas a todos os ofendidos. Exemplificativamente, o Tribunal também deu (erradamente, como vimos) como provado que o Recorrente atingiu FF, por diversas vezes, na cabeça.

229.ª A verdade é que, como deixámos claro, o entendimento do Tribunal quanto aos crimes de homicídio pelos quais condenou o Recorrente é contrariado por toda a prova produzida em juízo e pela própria dinâmica dos acontecimentos.

230.ª Sem prescindir, começar-se-á sempre por dizer que, objectivamente e em síntese, do relatório de autópsia resulta que as alegadas agressões perpetuadas pelo Recorrente na pessoa da vítima EE não foram aptas a causar o resultado morte, pelos exatos motivos supramencionados, ao passo que, do visionamento das imagens e do depoimento da testemunha JJ resulta que os alegados pontapés na cabeça de BB não passaram de uma agressão falhada (tentativa), os quais só tiveram lugar depois de o Recorrente ter sido surpreendido por um soco à traição por parte deste BB.

231.ª Portanto, quanto a estes, não existem sequer os elementos objetivos do tipo para que o Recorrente possa ser condenado por crimes de ofensa à integridade física com resultado morte (EE) ou consumado, quanto aos pontapés na cabeça (BB).

232.ª Por outro lado, quanto às agressões sofridas pelo ofendido DD, diga-se que as mesmas se deram já numa fase avançada da contenda, em que o Recorrente ao ver-se rodeado e atacado por várias pessoas, já nem tinha tempo para pensar, apenas reagia instintivamente em sua defesa. O DD agarrou o Recorrente por trás e este virou-se e defendeu-se, mas nem chegou a agredir, como vimos nas alegações atinentes à impugnação da matéria de facto, em concreto dos artigos 2.1.30, 2.1.31 e .2.1.32.

233.ª Considerando ainda assim os factos provados, não resulta deles uma intenção de matar, mas apenas uma intenção de ferir, magoar, como defesa perante uma ofensa anterior, em contexto de desavença, sendo que nenhuma outra prova se vislumbra nos autos que demonstre intenção distinta, pelo que ao arguido não pode ser imputada a prática de um crime de homicídio.

234.ª Aliás, veja-se que a própria descrição factual operada por este Tribunal que refere sempre que os arguidos “atuaram com a intenção concretizada de molestar fisicamente os ofendidos” (2.1.70 e 2.1.71, não impugnados neste segmento), sendo que contrariamente ao afirmado no Acórdão, não há um único elemento do qual se possa retirar, ainda que a título eventual, um dolo de morte por parte do Recorrente.

235.ª Isto porque, ao contrário do que o Tribunal a quo quer fazer crer, a circunstância do Recorrente ter reagido às agressões de que foi alvo por parte de BB e EE (factos 2.1.13 e 2.1.89) não se deveu a qualquer intenção de matar, nem mesmo a título de dolo eventual, mas antes sim ao facto de pretender evitar ser ele a ser agredido novamente, comportamento que não é de estranhar atendendo a todo o circunstancialismo do caso, sobretudo ao facto de o Recorrente ter começado por ser agredido à traição.

236.ª Diga-se que relativamente ao ofendido BB, não se consegue perceber como é que o Tribunal conclui pela gravidade das agressões, quando após o sucedido este se levantou, saiu do local e não necessitou sequer de qualquer tratamento hospitalar.

237.ª Não podendo concluir-se, dos factos provados, que o Recorrente se conformou com resultado da sua atuação, incorreu-se no vício da insuficiência dos factos provados para a solução de direito, nos termos do art.' 410.' n.' 2, al. a), do CPP.

238.ª Não podia o tribunal concluir que, dada a forma da luta descrita, mútua, descoordenada, decorrente de uma “rixa”, o Recorrente haja “elegido” a zona da cabeça ou qualquer outra. É da experiência comum que numa agressão nos moldes que são patentes nos vídeos visualizados em audiência, não se planeia qual a parte da zona a atingir, pois, todos os intervenientes estão em movimento, a vítima não fica parada, não tendo como prever onde quer atingir o outro, nem a noção de qual a parte corporal que poderá ser alvo da agressão.

239.ª No presente caso existe a intenção de agredir, mas não se pode inferir, por apelo às regras da normalidade, que o Recorrente previu a zona corporal a atingir, não se conformando em momento nenhum com o resultado.

240.ª Aliás, como se viu, não consta da matéria de facto provada que fosse intenção do Recorrente desferir socos e pontapés mortais na vítima, e ao contrário do referido também não é verdade que este se tenha conformado com a produção desse resultado, porquanto no calor da contenda este nem sequer previu esse resultado como possível.

241.ª Resulta da lógica que subsiste erro notório na apreciação da prova e que o Recorrente desferiu murros e pontapés movido pelo instinto de sobrevivência com o intuito de se proteger e de reagir às agressões de que também foi vítima, incluindo por parte de EE.

242.ª Outra conclusão não pode ter lugar se não a que existe uma errada subsunção jurídica ao crime de homicídio, pois a morte de qualquer pessoa não foi intenção direta, necessária ou sequer eventual do Recorrente.

243.ª A única admissão possível perante os dados probatórios é que o Recorrente tenha agido com dolo para as ofensas corporais, mas nunca para a morte.

244.ª Outro entendimento que não este é violador do princípio “in dubio pro reo”.

245.ª Em consequência de tudo quanto se expôs, o Recorrente deverá ser absolvido dos três crimes de homicídio de que foi condenado, quanto às pessoas de EE, DD e BB, mais que não seja, por total ausência de intenção de provocar a morte, ainda que a título eventual, de qualquer deles.

3. Apreciando.

O recorrente AA critica tão-somente a sua condenação pela prática de um crime de homicídio qualificado, relativo à pessoa da vítima EE, conformando-se assim com o enquadramento jurídico realizado pelo tribunal “a quo” no que respeita aos restantes ilícitos.

Considera o recorrente, a este respeito, que:

- Não se mostra possível concluir que, com a sua actuação, o arguido tivesse previsto que resultaria a morte da vítima e que com a mesma se tivesse conformado;

- Agiu em legítima defesa ou, em extremo, em legítima defesa de terceiros ou numa situação de legítima defesa putativa, isto é, uma situação em que o Recorrente estivesse – objectivamente – numa situação de erro quanto aos pressupostos da legítima defesa.

- A sua actuação não se enquadra num comportamento especialmente censurável.

- A vítima não se integra no conceito de pessoa particularmente indefesa;

Por seu turno, o arguido GG demonstra a sua crítica, no que se refere às condenações pela prática de crimes de homicídio (incluindo os tentados), conformando-se com o enquadramento jurídico realizado quanto aos restantes, essencialmente nos seguintes termos:

- Renova as críticas a parte da factualidade dada como assente;

-Entende que dos factos provados, não resulta uma intenção de matar, mas apenas uma intenção de ferir, magoar, como defesa perante uma ofensa anterior, em contexto de desavença, havendo dolo para as ofensas corporais, mas não de matar, sendo que outro entendimento que não este é violador do princípio “in dubio pro reo”.

- A sua actuação não se enquadra num comportamento especialmente censurável.

- As vítimas não se integram no conceito de pessoa particularmente indefesa.

4. Vejamos então.

No que concerne aos segmentos em que os arguidos pretendem reabrir a discussão a propósito da matéria de facto dada como assente, ou fundam os seus argumentos numa putativa e por si peticionada modificação do seu conteúdo, por ser matéria já anteriormente tratada por este tribunal, nada mais há a referir a este respeito.

De facto, é com base na matéria factual dada como assente (efectiva e definitivamente assente), que o tribunal procede ao enquadramento jurídico das condutas provadas dos arguidos, não lhe cabendo realizar exercícios teóricos, face a alternativas factuais não comprovadas.

Por seu turno e para encerrarmos este segmento, dir-se-á que se mostra incompreensível a alusão à violação do princípio in dubio pro reo, nesta sede, uma vez que o mesmo (como, aliás, supra se deixou já explicitado), tem o seu campo de aplicação próprio, que é o do apuramento factual. Ultrapassada e determinada a matéria de facto provada, em sede de enquadramento jurídico mostra-se o mesmo inaplicável, já que a dúvida se reporta ao convencimento quanto à ocorrência ou não de um facto desfavorável a um arguido.

Assim, quanto a estes pontos, nada mais há que compita a este tribunal decidir.

5. Prossigamos então com a apreciação da questão do preenchimento, face à matéria de facto dada como assente, dos elementos constitutivos do tipo do crime de homicídio qualificado.

6. Comecemos pela questão relativa à putativa actuação em sede de legítima defesa, seja própria, seja alheia, seja em excesso.

Como se refere no Ac. STJ Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo 08P3781, Nº Convencional JSTJ000, de 12-03-2009: XXI - São pressupostos da legítima defesa: a actuação em defesa de uma agressão e o elemento subjectivo a que a doutrina dá o nome de animus defendendi. XXII - São requisitos da agressão a ilegalidade, a actualidade e a falta de provocação, e requisitos da defesa a impossibilidade de recurso à força pública, a necessidade e a racionalidade do meio.

No caso dos autos, como aliás supra se deixou já mencionado, não se verifica a conjugação cumulativa de tais requisitos. Na verdade, a única agressão que é perpetrada contra apenas um dos arguidos, por BB (que dá um murro ao arguido GG), cessa de imediato, já que o atacante, após o desferir (como forma de desforço à agressão de que havia sido vítima no interior da discoteca) afasta-se, não se mostrando que pretenda prosseguir com qualquer ataque.

Não obstante, o arguido AA resolve intervir, atacando quem, naquele momento, já não estava a agredir ninguém.

E, a partir desse momento, todas as agressões que se seguiram, contra as cinco pessoas vítimas nestes autos, partiram da iniciativa dos arguidos. Nenhuma destas pessoas avançou para os arguidos, agredindo-os, antes foram estes que, perante a intervenção dos agentes da PSP, que pretendiam acalmar os ânimos e proteger BB, que estava a ser espancado no chão, decidiram partir para a agressão directa, sendo que o único murro dado por um agente (EE) é dado já no contexto da sua tentativa de defender os seus dois colegas, entretanto já agredidos pelos arguidos.

Salvo o devido respeito, não se mostra sequer compreensível como, neste contexto, se possa sequer falar em postura defensiva, por parte dos arguidos e, ainda menos, em legitimamente defensiva, quando, na realidade, nenhuma das pessoas presentes constituía para aqueles (a sua superioridade física era total) qualquer ameaça, por um lado e quando, por outro, BB deu um murro e não deu sinais de pretender entrar em qualquer nova agressão e nenhum dos restantes intervenientes se dirigiu, agredindo-os, em direcção dos arguidos, sendo antes estes últimos manifestamente os agressores.

7. Como se refere no Acórdão do STJ acima citado, apenas se poderá entender que existe legítima defesa (alheia ou própria) ou excesso de legítima defesa, quando os respectivos requisitos e pressupostos se mostram preenchidos. XXIII - A necessidade de defesa há-de apurar-se segundo a totalidade das circunstâncias em que ocorre a agressão, e em particular, com base na intensidade daquela, da perigosidade do agressor e da sua forma de agir. Deve ajuizar-se objectivamente e ex ante, na perspectiva de um terceiro prudente colocado na situação do arguido – cf. Ac. do STJ de 18-12-1996, Proc. n.º 115/96 - 3.ª. XXIV - Essencial à legítima defesa é mesmo o animus defendendi, a intenção de, pelo contra-ataque a uma agressão, se suspender uma agressão ilegítima: o facto típico levado a cabo pelo defendente há-de destinar-se a prevenir uma agressão ilícita actual. XXV - A intenção de defesa, correspondendo a um estado de espírito, inapreensível sensorialmente, há-de ser a resultante de factos objectivos que a indiciem: tal como a intenção de matar, integrando matéria de facto, há-de derivar de factos dos quais se infira. XXVI - «O excesso de legítima defesa (que melhor se denominaria «excesso na defesa») só tem lugar quando se verificam os pressupostos da defesa, isto é, quando se verifica uma agressão ilícita e actual» – cf. Cavaleiro de Ferreira; Lições de Direito Penal, vol. I, Verbo, 1985, pág. 99.

8. No caso, atento o que se deixa exposto e a clareza da factualidade provada conclui-se, como consta no sobredito acórdão do STJ que não se tendo verificado uma agressão que estivesse em execução ou iminente e que o arguido tivesse de sustar, pondo com a sua conduta em risco a vida alheia, que veio a sucumbir, para salvaguardar a sua, o arguido não actuou em legítima defesa, pelo que não pode considerar-se ter agido com excesso de legítima defesa.

Adiante-se que, de igual modo, se não vislumbra – nem se mostra demonstrado – que o arguido AA tenha agido em erro quanto à questão da legítima defesa, pois qualquer cidadão tem a plena noção que o recurso à mesma apenas se mostra viável quando, de facto, se está perante uma agressão de tal ordem, que apenas por esse meio se poderá pôr termo à mesma. Em nenhum momento é sequer cogitável, atentas as mais básicas regras de experiência comum, que o arguido AA em tal erro tivesse ocorrido. E, adita-se, ainda que no primeiro momento, após o murro dado por BB ao seu co-arguido, pudesse ter tido tal erróneo entendimento, a verdade é que, a partir do momento em que este cai inanimado no chão, não se mostraria possível a ninguém considerar que a ameaça persistia, pois a mesma jazeria inconsciente no chão, aos seus pés.

Não assiste, pois, razão aos recorrentes, nesta crítica que dirigem ao decidido.

9. Debrucemo-nos então sobre a questão do enquadramento jurídico da conduta dos arguidos em sede de crime de homicídio e, na afirmativa, se se mostra ou não preenchida a circunstância qualificativa agravante, prevista na al. c) do nº 2 do artº 132 do C.Penal (essa análise abrangerá ainda, por arrastamento, a verificação ou não da mesma circunstância qualificativa agravante, em sede de crime de ofensa à integridade física).

Para tal efeito, há que atender em especial, para além dos pontos de facto que descrevem e pormenorizam a actuação agressiva dos arguidos, perante os ofendidos, à seguinte matéria factual:

2.1.68 Os arguidos AA e GG tinham plena consciência da sua superioridade física perante os especiais conhecimentos de luta que possuíam, mas tal conhecimento não os inibiu de agredir com intensidade os ofendidos DD e EE, da forma como fizeram, e prosseguirem tais agressões mesmo quando estes já se encontravam caídos no chão, desferindo-lhes pontapés com intensidade na cabeça, sendo que o arguido GG também o fez, a acrescer, quanto ao ofendido BB, mostrando os arguidos indiferença às consequências que daí podiam advir, nomeadamente a morte.

2.1.69 O arguido AA atuou com a intenção concretizada de molestar fisicamente os ofendidos BB e CC, nos termos acima descritos, utilizando os especiais conhecimentos adquiridos na ... Marinha, ..., atuando de forma violenta e concertada com o arguido GG

2.1.70 O arguido GG atuou com a intenção concretizada de molestar fisicamente os ofendidos BB, FF e CC, nos termos supra descritos, utilizando os especiais conhecimentos adquiridos na ... Marinha, ..., atuando de forma violenta e concertada com o arguido AA.

2.1.71 Os arguidos, atuaram com a intenção concretizada de molestar fisicamente os ofendidos, ao desferirem os socos e pontapés intensos, designadamente na zona da cabeça dos ofendidos EE e DD, atuando de forma violenta e concertada, e o arguido GG, a acrescer, a BB, e sabiam que tais condutas poderiam provocar a morte daqueles cujas cabeças socaram e pontapearam indiscriminadamente e conformaram-se com tal resultado, fazendo-o repetida e sucessivamente, o que viria a culminar na morte de EE.

2.1.72 Em todas as atuações descritas, os arguidos atuaram sempre de forma livre, voluntária e conscientemente.

10. Como se constata, pela mera leitura do ponto 2.2.71, os elementos preenchedores do tipo de crimes pelos quais os arguidos foram condenados – homicídio – mostram-se preenchidos.

Na verdade, os arguidos parecem fixar-se no modo como é descrita a intenção de molestação física, ignorando, todavia, o que vem igualmente afirmado e se integra na intenção e no modo como agiram - e sabiam que tais condutas poderiam provocar a morte daqueles cujas cabeças socaram e pontapearam indiscriminadamente e conformaram-se com tal resultado.

Quando se pretende matar alguém, para a realização desse intuito, tem sempre de se passar por uma vontade de magoar fisicamente a pessoa visada. Sem essa agressão, o objectivo morte não pode ser alcançado; isto é, nos elementos constitutivos que preenchem o tipo de crime de homicídio, compreende-se sempre o elemento de ofensa física, dano no corpo de outrem, pois sem tal ofensa não é possível causar a morte.

Assim, a diferença essencial entre um crime de ofensa à integridade física e um crime de homicídio reside na circunstância de, no primeiro caso, a intenção do agente se quedar pela intenção e vontade de infligir sofrimento, danos, no corpo (ou na saúde) da vítima. Todavia, no crime de homicídio, a intenção e a vontade do agente ultrapassa esse limiar, uma vez que se dirige à procura da obtenção de um resultado mais grave; isto é, que essa lesão venha a causar a morte da vítima.

11. Esta directa vontade de, agindo com inflicção de danos físicos, provocar a morte, reporta-se, obviamente, ao enquadramento do crime de homicídio, quando cometido com dolo directo; isto é, o agente, ao actuar, tinha a intenção e o intuito directo de querer tirar a vida a outrem, como aliás decorre do disposto no artº 14 nº1 do C.Penal (age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar.)

Não obstante, nem sempre essa directa vontade se observa. Casos há, como o presente, em que os arguidos actuaram com a intenção concretizada de molestar fisicamente os ofendidos e, pese embora não tenham directamente agido com a intenção e vontade de os matar, a verdade é que sabiam que, pelas circunstâncias da sua actuação – isto é, atenta a forma como os molestaram fisicamente – e enquanto executavam essa sua vontade, que o modo como agiam poderia provocar a morte dessas pessoas e aceitaram (conformaram-se) com tal resultado.

Nestes casos, como os aqui em apreciação, a sua actuação reveste a modalidade não de dolo directo, mas antes de dolo eventual, como resulta cristalino do disposto no artº 14 nº3 do C.Penal (Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização.)

12. Atento o que se deixa dito, não restam dúvidas que, nos casos relativamente aos quais os arguidos avançam críticas ao decidido a este propósito, as mesmas não colhem. Na verdade, provado se mostra que os arguidos actuaram, relativamente àquelas vítimas, com vontade e intenção de as magoar, sabendo que a sua actuação era susceptível de lhes causar a morte (como sucedeu, efectivamente, com uma delas, o agente EE) e conformando-se com tal desfecho.

Mostram-se assim preenchidos os elementos constitutivos do crime de homicídio, previstos no artº 131 e 14 nº3, ambos do C.Penal, sendo certo que dois dos ilícitos revestem a forma tentada, uma vez que o resultado morte não chegou a verificar-se (artºs 22 e 23 nº1 do C.Penal).

13. Efectivamente, não restam dúvidas que a actuação de ambos os arguidos, no que se refere ao ofendido DD, e a do arguido GG, relativamente ao ofendido BB, dadas como assentes, integram a prática de actos de execução que eram idóneos à produção de um resultado típico – a morte – atentas as zonas que os arguidos escolheram atingir e o modo como o fizeram (como exige o citado artº 22 do C.Penal), questão que se abordou já supra, a propósito do apuramento factual desta intenção. A mera circunstância de o resultado se não ter produzido é irrelevante para a imputação, uma vez que tal ocorreu por razões independentes da vontade dos arguidos. Tem apenas relevo jurídico na medida em que estamos perante crimes na forma tentada e que, como tal, terão a moldura penal especialmente atenuada.

Diga-se apenas, ad latere, que a perfilhar-se a tese dos arguidos, não se vislumbra a possibilidade de alguma vez poder ocorrer um crime de homicídio na forma tentada, pois parecem querer argumentar que, pelo facto de alguém ter conseguido recuperar razoavelmente depressa das violentas agressões de que foi alvo, daí decorre que obviamente não havia nenhuma antecipação de das mesmas poder resultar a morte da vítima. Resta questionar porque razão, no entendimento dos recorrentes, teria o legislador decidido dar-se ao trabalho de criminalizar a tentativa de homicídio…

14. Aqui chegados, cumpre então afirmar que a integração das condutas dos arguidos nos supra-referidos crimes de homicídio e de homicídios tentados, se mostra correcta, pelo que não deve ser alterada.

15. Resta então a última questão, que é a de saber se estaremos perante ilícitos na sua forma simples ou antes, como entendeu o tribunal “a quo”, na forma qualificada.

Importa então aferir se os factos provados revelam especial perversidade ou especial censurabilidade do agente e, consequentemente, serem subsumíveis na previsão do nº2 do art° 132 do C. Penal, tal como sustentado no acórdão proferido pelo tribunal “a quo”, designadamente no que respeita à al. c) (c) Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez;).

16. Como refere Teresa Serra, citando Sousa Brito, a especial censurabilidade refere-se às componentes da culpa relativas ao facto e a especial perversidade à atitude do agente (cf. Homicídio Qualificado Tipo de Culpa e Medida da Pena, pág. 64).

Assim, nas palavras do Acordão de 2011-02-17 do STJ, processo n.º 227/07.4JAPRT.P2.S1, consultável em www.dre.pt (sublinhados nossos), “a censurabilidade especial de que fala o art. 132.º do CP reporta-se às circunstâncias em que a morte foi causada, sendo que, estas são de tal modo graves quando reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com certos valores, visível na realização do facto. A especial perversidade revela uma atitude profundamente rejeitável, constituindo um indício de motivos e sentimentos absolutamente rejeitados pela sociedade, reconduzindo-se a uma atitude má, atinente à personalidade do autor”.

17. São estes os princípios orientadores para a avaliação da ocorrência ou não dessa especial censura penal, em sede, neste caso, quer de um crime de homicídio, quer em certos casos de crimes de ofensa à integridade física, que não revestem a forma simples, antes se integrando na qualificada.

18. Afirma o tribunal “a quo”, no caso destes autos, que ocorre uma situação em que se mostra preenchido um dos exemplos-padrão – quer nos crimes de homicídio, consumado e tentados, quer num ilícito de ofensa à integridade física – designadamente o consignado na al. c) do nº2 do artº 132 do C.Penal, a saber, o facto ter sido praticado contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez.

19. Porém, dessa mera constatação não surge, sem mais, a aplicação ao caso de qualquer uma das circunstâncias qualificativas enunciadas em tais exemplos-padrão, sendo necessário averiguar em concreto – isto é, perante a conjuntura presente – se é possível concluir pela existência de um maior grau de culpa do que aquele em que assenta o tipo, que consubstancie o preenchimento da circunstância qualificativa agravante acima mencionada.

No caso, cremos que não restam dúvidas que as actuações dos arguidos, se mostram preenchedoras do conceito de especial censurabilidade. Na verdade, a culpa dos agentes revela-se muito superior àquela que pressupõe a prática de um crime de homicídio ou de ofensa à integridade física simples, mostrando-se espelhada no modo de cometimento dos ilícitos, reveladora de uma propensão para o uso da violência em situações banais numa vida em sociedade, em que as pessoas procuram divertir-se num estabelecimento nocturno, relaxar e descomprimir e que, para os arguidos, fomenta a sua vontade de atiçar conflitos e demonstrarem a sua pujança física.

Denota a conduta dos arguidos uma firmeza e energia criminosas, no modo como, não contentes com o inicial incidente, dentro da discoteca, despoletado pelo arguido GG, ao ser este confrontado (mal) por BB, já no exterior, com um soco (porque se sentia injustiçado por ter sido sobre si que havia recaído a agressão e, ainda assim, daí ter resultado a sua expulsão e não a do agressor), ao aperceberem-se que aquele havia recuado e não demonstrava, pela sua atitude, vontade de prosseguir com qualquer nova agressão, a reacção dos arguidos foi, por parte do arguido AA, de o pôr KO, com um soco e, logo a seguir, de ambos prosseguirem com grande agressividade, sobre o seu corpo.

E, não contentes com a criação deste foco de violência, no meio da rua, perante uma série de pessoas, no final de uma noite que se pretendia, para todos os presentes, de relaxamento e divertimento, e de se aperceberem que algumas se acercavam, para tentarem proteger o corpo caído no chão, entenderam os arguidos que, viesse o número de pessoas que viesse, a si direccionado, não para consigo lutar, mas para fazerem cessar as agressões, o tratamento que era adequado era, perdoe-se-nos o coloquialismo, espancá-los do modo mais devastador possível, fazendo-os cair ao chão e, ainda assim, não demonstrando qualquer capacidade de pararem, antes do aniquilamento total das suas vítimas.

Na verdade, quando os arguidos esgotaram a sua energia, no maltratar dos outros – embora esse maltrato não tenha demorado mais do que minutos, seguramente que para as vítimas o tempo decorrido pareceria outro, assim como a violência seria assustadora – cinco corpos jaziam no chão da rua, um deles mortalmente ferido.

20. Demonstraram os arguidos uma forte intensidade de vontade criminosa revelando, com a sua actuação, um acentuado desprezo pelo valor da vida humana, uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com certos valores, bem visível na realização do facto e uma atitude, em termos de personalidade, profundamente rejeitável, constituindo um indício de motivos e sentimentos absolutamente rejeitados pela sociedade (quatro das vítimas não tinham tido sequer qualquer contenda ou relacionamento prévio com os arguidos), reflectindo as circunstâncias em que ocorreu a morte da vítima e as ofensas nos acima mencionados ofendidos, ao nível da culpa, a especial censurabilidade e perversidade exigidas para a qualificação da actuação dos arguidos.

Assiste, pois, razão ao tribunal “a quo” no entendimento de que se mostram as suas condutas especialmente censuráveis.

21. Ultrapassada esta questão, resta a última – a de saber se, pese embora essa especial censurabilidade, o comportamento dos arguidos se integra na previsão normativa da referida al. a) do nº 2 do artº 132 do C.Penal.

22. Antes de mais caberá notar que se mostra incompreensível a alusão do recorrente GG à putativa inconstitucionalidade interpretativa, por já demonstrada em sede do Acórdão n.º 852/2014, do Tribunal Constitucional.

Na verdade, este aresto (que não inclui nenhuma declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral e que contém, aliás, um voto de vencida) determinou julgar inconstitucional a norma retirada do n.º 1 do artigo 132.º do Código Penal, na relação deste com o n.º 2 do mesmo preceito, quando interpretada no sentido de nela se poder ancorar a construção da figura do homicídio qualificado, sem que seja possível subsumir a conduta do agente a qualquer das alíneas do n.º 2 ou ao critério de agravação a ela subjacente, por violação dos princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade penais, garantidos pelo artigo 29.º, n.º1, da Constituição da República Portuguesa;

Ora, independentemente de tal declaração nem sequer ter força obrigatória legal, a verdade é que, ainda que tivesse, se mostrava inaplicável ao caso presente, uma vez que o tribunal “a quo” indicou, com precisão, qual a al. do nº2 que entendia mostrar-se preenchida – a al. c).

23. No que se reporta aos argumentos que os recorrentes aduzem, para a inaplicabilidade do vertido em tal alínea e que se reconduzem a entenderem que a situação de especial vulnerabilidade tem de se reportar, por um lado, a uma situação pré-existente e, por outro, que se tem de reconduzir forçosamente a razões de idade, deficiência, doença ou gravidez cremos, salvo o devido respeito, não lhes assistir qualquer razão.

Efectivamente, o que essa alínea previne é a prática do facto contra alguém particularmente indefeso, dando depois alguns exemplos do que pode determinar tal particular indefensibilidade. Mas, manifestamente, a agravante reporta-se à situação de alguém que, encontrando-se numa situação em que se mostra particularmente vulnerável, o agente da mesma se aproveita, para melhor e mais facilmente alcançar os seus fins.

24. Assim, não importa nem decorre, em nenhum momento, do que o legislador deixou descrito, que essa situação tenha de ocorrer previamente à actuação do agente nem, muito menos, que não tenha sido pelo mesmo provocada. A especial censurabilidade recai sobre um comportamento em que sobre alguém, que se encontra particular e especialmente indefeso, é exercida uma acção agressiva, precisamente porque, para o comum dos cidadãos, nessas situações é especialmente censurável tirar-se partido dessa indefensabilidade.

25. Cremos, pois, que não restam dúvidas que os arguidos, ao agirem, num primeiro momento, sobre as vítimas, com tal agressividade, que as fazem tombar no chão, aproveitando-se depois da situação em que estas se encontram e que ao seu agir é devido (nalguns casos, inclusive, inconscientes mas, seguramente, sem possibilidades de se poderem defender), para melhor alcançarem os seus intentos, preenchem os requisitos previstos na norma agravante.

Veja-se, aliás, no mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Processo 158/20.2GDSTS.P1, de 14-07-2021, onde se afirma: I - Pessoa particularmente indefesa para efeitos do disposto na al. d) do nº 1 do art.º 152º do CP, é aquela “que se encontra numa situação de especial fragilidade”, “é aquela que se encontra à mercê do agente, incapaz de esboçar uma defesa minimamente eficaz, em função de qualquer das qualidades previstas na norma.”

26. Em conclusão:

Não nos restam, pois, quaisquer dúvidas que, atentas as circunstâncias do caso, se mostra demonstrado que os arguidos agiram com especial censurabilidade e perversidade, demonstrando personalidades profundamente desconformes com o direito, designadamente reveladoras de um total desprezo pelo direito à vida e à saúde de terceiros.

Assim, da análise acabada de realizar, retira-se a conclusão de que a decisão tomada pelo tribunal “a quo”, quanto ao preenchimento da circunstância qualificativa agravante consignada no artº 132 nº2 al.c) do C. Penal, se mostra correcta, pelo que improcede o a esse respeito peticionado pelos arguidos.

Consequentemente, todos os pedidos formulados pelos arguidos, no que respeita à alteração da qualificação jurídica ou à sua absolvição, mostram-se fadados ao insucesso, por inexistirem fundamentos em que se suportem.

Vejamos então.

Os recorrentes voltam a colocar questões que já tinham apresentado quando recorreram do acórdão da 1ª instância e a decisão da Relação, acima transcrita, não merece correção.

Com efeito, importa ter em atenção os factos que foram dados como provados e, perante eles, não há dúvidas que (ao contrário do que afirmam os recorrentes) a conduta dos arguidos em relação à vítima EE integra a prática do crime pelo qual foram condenados, a saber, um crime de homicídio qualificado p. e p. nos artigos 131.º e 132.º, n.º 1 e n.º 2, al. c), do CP, cometido sob a forma de dolo eventual.

Ora, resulta dos factos apurados que, em 19 de março de 2022, junto à discoteca 1, depois das agressões que ocorreram no seu exterior, melhor descritas nos pontos 2.1.13 (que se iniciaram pelas 06h19m52) a 2.1.25 dos factos provados, quando os confrontos se deslocaram então para a zona adjacente à entrada da Discoteca 2, os arguidos dirigiram-se ao agente EE, que tentava igualmente fazer cessar os confrontos (consoante resulta dos pontos 2.1.26 a 2.128 provados) e, pelas 06h20m08, o arguido AA aproximou-se pela retaguarda do agente EE, o qual se encontrava numa atitude apaziguadora, e desferiu-lhe um soco na parte de trás/lateral da cabeça, fazendo-o cair de imediato no chão. Em ato contínuo o arguido AA desferiu mais um pontapé na cabeça do agente EE. E imediatamente a seguir o arguido GG desferiu três pontapés na cabeça do agente EE, que permanecia inanimado no chão.

Mais se provou que as agressões aos ofendidos/vítimas (e foram 5 os atingidos pelo arguido GG, sendo 4 deles também pelo arguido AA) nos moldes dados comos provados, tudo se tendo passado entre as 06h19 e as 06h21 (portanto em dois minutos no total) foram feitas de forma muito intensa, concentrada e sucessiva (ver ponto 2.1.41 provado), sendo manifesta a superioridade física dos arguidos atentos os especiais conhecimentos de luta adquiridos nos ... e no caso do arguido GG também o facto de ser campeão de ... (conforme resulta do ponto 2.1.41 provado) e (segundo o ponto 2.1.42 provado) a referida preparação militar e desportiva permitiu aos arguidos aplicarem intensos golpes de socos, de tal forma intensos que as vítimas caíam no chão, nalguns casos inconscientes, conforme acima descrito.

Das referidas condutas dos arguidos resultaram as lesões descritas nos pontos 2.1.58 a 2.1.64 provados que foram causa direta e necessária da morte do EE.

Mais se provou que os arguidos agiram voluntariamente, atuando de forma violenta e concertada, sabendo que com aquela sua conduta violenta (de desferirem socos e pontapés indiscriminadamente na zona da cabeça do ofendido EE, tal como foi dado como provado), poderiam provocar-lhe a morte (como sucedeu) e conformaram-se com essa eventualidade, ou seja, agiram com dolo eventual, quanto à intenção de matar.

Perante os factos dados como provados percebe-se que a Relação (tal como explicou na decisão recorrida) tenha concluído, ao contrário dos recorrentes, que os mesmos agiram com dolo eventual, quanto à intenção de matar o EE.

Os recorrentes não podem é confundir a parte da decisão que se reporta à motivação de facto (ou seja, que se refere à razão pela qual foram dados como provados os factos relativos ao dolo eventual da intenção de matar o EE) com a parte da decisão que já trata da subsunção dos factos ao direito, para depois pretenderem retirar ilações ou fazer interpretações que não encontram suporte no acórdão sob recurso.

O enquadramento jurídico-penal é feito a partir dos factos dados como provados, que foram já dados como definitivamente assentes, sendo irrelevante as considerações agora feitas a partir da motivação de facto, assim como o apelo à violação do in dubio pro reo quando se discute o invocado erro de direito (o qual, ainda que existisse, não era resolvido com o in dubio pro reo, pois, tal princípio aplica-se em sede de avaliação da prova, momento que já está ultrapassado nesta fase, em que se trata da subsunção dos factos já fixados ao direito).

Aliás, isso mesmo foi também explicado, com clareza, na decisão recorrida, não merecendo censura essa apreciação que foi feita, pelo que não tem razão os recorrentes quando alegam o contrário (nomeadamente, quando querem voltar a discutir a matéria de facto já fixada, fazendo apelo, nomeadamente, ao que consta da motivação de facto e à sua apreciação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal).

Sobre o crime de homicídio qualificado consumado p. e p. nos arts. 131.º e 132.º, n.º 1 e n.º 2, al. c), do CP, pelo qual foram condenados, ao contrário do que alegam os recorrentes, diremos que não merece censura a decisão recorrida, perante o que acima se deixou transcrito da mesma.

Com efeito, resumidamente lembremos que dispõe o Artigo 132.º (homicídio qualificado):

1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.

2 - É suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:

(…)

c) Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez;

De forma resumida, tendo em atenção o que interessa para esta decisão, recorde-se o ensinamento de Jorge de Figueiredo Dias e Nuno Brandão34, quando assinalam que “O legislador português de 1982 seguiu, em matéria de qualificação do homicídio, um método muito particular e até certo ponto, neste domínio, ori­ginal (relativamente a modelos que à primeira vista se diriam próximos, nomeadamente os utilizados pelos legisladores suíço e alemão): a combina­ção de um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa, com a técnica chamada dos exemplos-padrão (assim Figueiredo Dias, CJ 4-1987 51 e DP II § 265 ss. e Teresa Serra, cit. passim). Por outras palavras, a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos relativamente indeterminados: a "especial censurabilidade ou perversidade" do agente referida no n° 1; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplificativamente elencados no n° 2. Elementos estes assim, por um lado, cuja verificação não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; e cuja não verifica­ção, por outro lado, não impede que se verifiquem outros elementos substan­cial e teleologicamente análogos (não deve recear-se neste contexto o uso da palavra "análogos") aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador. Técnica legislativa que, com Silva Dias, Crimes Contra a Vida e a Integridade Física 2007 § 4 2, pode sintetizar-se na fórmula "não só, nem sempre", Deste modo devendo afirmar-se que o tipo de culpa supõe a realização dos elementos constitutivos do tipo orientador - o Leilbildtatbestcmd de que fala, se bem que nem sempre exactamente no sentido apontado, a doutrina alemã (cf. Teresa Serra, cit. 16, 21 ss.) - que resulta de uma imagem global do facto agravada correspondente ao especial conteúdo de culpa tido em conta no art. 132°-2 (também Teresa Serra, cit. 66 ss.; para uma situação, quanto a este último ponto, a muitos títulos próxima cf. FIGUEIREDO Dias, DP II § 444 ss. a respeito da atenuação especial da pena prevista no art. 73°).”

Mais à frente, os mesmos Autores35, quando se debruçam sobre “o especial tipo de culpa do homicídio doloso”, referem que é conformado pela verificação das “circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade”, notando que o pensamento da lei é o de pretender imputar à "especial censurabilidade" aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção, ao nível da atitude do agente, de formas de rea­lização do facto especialmente desvaliosas, e à "especial perversidade" aque­las em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documen­tação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas (…).”

Por sua vez, a propósito da circunstância prevista no art. 132.º, n.º 2, al. c), referem os mesmos Autores36 que “A estrutura valorativa deste exemplo-padrão liga-se, de forma clara, à situação de desamparo da vítima em razão da idade, deficiência (física ou/e psíquica), doença ou gravidez, independentemente do carácter insidioso ou não do meio utilizado para matar (assim TERESA SERRA, Jornadas 1998 151 ss.). É a situação de especial vulnerabilidade da vítima que poderá justificar a qua­lificação e por esse motivo um qualquer tipo de conexão deverá existir entre algum daqueles estados enunciados pelo legislador e uma menor capacidade da vítima para enfrentar o ataque à sua vida. Daí que a circunstância de a pessoa ofendida ser idosa, portadora de doença ou estar grávida não implique sem mais o preenchimento deste exemplo-padrão, designadamente, se essas condições não aumentam as possibilidades de êxito da conduta homicida (nesta direcção, Leal-Henriques / Simas Santos II 63 s., e o Ac. do STJ de 30-03-2006, CJ STJ 2006 229 ss., num caso de vítima de "provecta idade" em que não se apurou até que ponto a idade da vítima favoreceu o desfecho mortal). Nem por ser assim, todavia, se dirá ainda que a situação objectiva de fragilidade da vítima desencadeia por si a agravação: a morte infligida por razões de miseri­córdia a uma criança ou a um ancião moribundos e em sofrimento, por exem­plo, não terá a força qualificadora correspondente à estrutura valorativa desta alínea; mas já a poderá ter, porventura, uma ausência total de defesa derivada de uma situação de desamparo social profundo e irreversível.”

Tal como Paulo Pinto de Albuquerque37 refere “a especial censurabilidade da atitude do agente evidencia-se na exploração (aproveitamento) da situação de desamparo da vítima”, que pode ser por doença, deficiência, fragilidade, em razão da idade.

O homicídio qualificado pode ser cometido em qualquer modalidade do dolo, ainda que se discuta, quanto a outras circunstâncias que aqui não estão em discussão, até que ponto é ou não admissível o dolo eventual (como sucede, por exemplo, com o emprego de tortura ou crueldade)38.

Ora, considerando a imagem global dos factos, a forma como a vítima EE foi atingido pelos arguidos, a saber, quando tentava igualmente fazer cessar os confrontos que estavam a decorrer, foi agredida à traição, uma vez que foi pela sua retaguarda, pelo arguido AA que lhe deu um soco na parte de trás/lateral da cabeça, de tal forma que o fez cair de imediato no chão e, foi assim caído no chão que o mesmo arguido lhe desferiu mais um pontapé na cabeça e, enquanto permanecia inanimado no chão (o que significa que o estado de inanimado se mantinha desde que caiu ao chão), portanto, impossibilitado de esboçar qualquer gesto de defesa e, assim numa estado de total fragilidade (permanecia inanimado), o arguido GG ainda lhe desferiu 3 pontapés na cabeça, o que tudo foi feito de forma muito intensa, concentrada e sucessiva, sendo a conduta de ambos os arguidos causa direta da morte daquele.

A atitude dos arguidos, além de ser especialmente censurável, revela especial perversidade, o que é evidenciado pelo seu aproveitamento daquela situação de desamparo da vítima (os arguidos aproveitaram-se da situação de vulnerabilidade total da vítima e da sua incapacidade de reagir, por estar inanimada, ou seja, por estar particularmente indefesa, por doença), ainda que tivesse sido o arguido AA que o tivesse colocado naquela situação, quando o atacou com o soco na parte de trás/lateral da cabeça à traição, fazendo com que o EE caísse de imediato ao chão.

Portanto, o que resulta dos factos dados como provados neste caso concreto é que, em virtude da atuação conjunta dos arguidos, particularmente do arguido AA, quando o agrediu com o soco na parte de trás/lateral da cabeça (ou seja à traição), fez com que o EE caísse de imediato no chão e ainda permanecesse inanimado quando o arguido GG lhe desferiu 3 pontapés na cabeça - (sendo que a atuação do arguido GG sucedeu após o arguido AA lhe ter dado também um pontapé na cabeça, tudo conforme o que vem dado como provado), tendo a atuação dos arguidos causado na vítima as lesões referidas nos factos dados como provados que lhe vieram a determinar a morte – o que significa que atuaram sobre pessoa particularmente indefesa, em razão de doença (provocada nas circunstâncias referidas).

O facto da situação do EE, ter sido provocada nas circunstâncias referidas por um dos arguidos, sendo que ambos atuaram em conjunto, não retira à vítima a qualificação de ser pessoa particularmente indefesa, em razão de doença, quando quer o arguido AA, quer o arguido GG lhe desferiu pontapés na cabeça, nos exatos termos dados como provados.

Aliás, do que resulta dos factos provados, nada justificava uma atuação tão violenta como a que os arguidos tiveram em relação ao EE.

E foi de tal modo violenta a sua atuação e golpes que lhe aplicaram (soco e pontapés na cabeça, da forma descrita nos factos dados como provados), que as lesões que lhe causaram em breves instantes foram determinantes da sua morte, tendo atuado da forma descrita aproveitando-se do EE estar caído no chão, inanimado, completamente impossibilitado de se defender e de reagir (precisamente porque estava inanimado por aquele soco que tinha levado, aplicado pelo arguido AA), o que naturalmente era fácil de ver.

Obviamente que os arguidos quando o EE estava caído no chão, na sequência de ter levado aquele soco à traição na parte de trás/lateral da cabeça, não tinham qualquer justificação para lhe dar pontapés na cabeça com aquela violência (resultando objetivamente da atuação de cada um deles, que o arguido GG lhe deu mais pontapés na cabeça do que o arguido AA, o que evidencia que a conduta daquele foi mais grave do que a deste, apesar de ter sido o arguido AA que com o soco que lhe deu o fez cair imediatamente no chão39).

Esta forma de atuar dos arguidos, revela, sem dúvida, considerando todo o circunstancialismo apurado em que o crime de homicídio foi cometido, uma especial censurabilidade e especial perversidade, evidenciada pela sua atitude de total desprezo pela vida humana, tal como igualmente decorre da forma como tudo se passou e resultou provado (sendo elevado o desvalor da sua conduta).

Ao contrário do que alega o arguido AA, a atuação conjunta dos arguidos para com o EE (que tinha 26 anos e antes era saudável), tendo ocorrido em breves instantes (não resultando dos factos provados que tivesse sido em 2 segundos como invoca) e, em termos de golpes desferidos (todos na cabeça, sendo o soco na zona mais precisa da parte de trás/lateral da cabeça, uma vez que foi dado à traição, pela retaguarda, fazendo-o cair de imediato no chão, desferindo-lhe de seguida mais um pontapé na cabeça e permanecendo a vítima ainda inanimada quando o arguido GG desferiu os três últimos pontapés), podendo ser contabilizados em um soco e quatro pontapés (o que mostra bem a intensidade da violência imprimida - em tão pouco tempo e com tão poucos golpes desferidos - para causarem as lesões que determinaram a morte da vítima), a verdade é que revela bem como foi muito violenta e especialmente censurável e perversa a atuação de ambos (os arguidos), sendo evidente o completo desprezo pelo valor da vida humana que ambos os arguidos manifestaram com a sua conduta.

E, não se diga, como o fazem os recorrentes, que a situação de particular vulnerabilidade da vítima prevista no art. 132.º, n.º 2, al. c), do CP, tem de ser pré-existente à atuação do agente, porque esse não é um pressuposto legal sequer para a verificação desse exemplo-padrão.

A prova disso é este caso concreto, diferente dos demais que assinalam na jurisprudência particularizada nas respetivas alegações.

O facto de antes de ser atacado à traição com aquele soco na parte de trás/lateral da cabeça, o EE ter dado um soco ao arguido GG (ver ponto 2.1.89 dado como provado) também não justifica, nem legitima a atuação de qualquer dos arguidos e muito menos a do arguido AA.

Nada se provou a nível de sequelas desse soco dado pelo EE, nem sequer se provou que o arguido GG tivesse caído ou que tivesse ficado de tal forma afetado que se visse na necessidade de pedir ajuda ao arguido AA; antes o que resulta dos factos provados é que ambos os arguidos continuaram com as agressões, quer ao EE, quer logo a seguir ao DD (depois deste inicialmente ter agarrado o arguido GG), quer ao CC e, mesmo quando os arguidos, acompanhados de outros indivíduos começaram a abandonar o local, o arguido GG ainda agrediu o ofendido BB, assim como logo a seguir o arguido AA agrediu o ofendido CC, tudo nos moldes que constam dos factos provados.

Ou seja, nem resulta dos factos provados que houvesse qualquer motivo para o arguido AA desferir à traição, pela retaguarda, aquele soco na parte de trás/lateral da cabeça do EE, fazendo-o cair imediatamente no chão (tanto mais que que não resulta dos factos apurados que se verificassem os pressupostos para atuar em legitima defesa do seu co-arguido GG, nem que tivesse atuado em erro sobre a existência desses mesmos pressupostos).

Alegar que por ter dado aquele soco nas circunstâncias dadas como provadas, o EE no momento seguinte, já não podia ser colocado em situação de pessoa particularmente indefesa, em razão de doença, como foi, pelo arguido AA com aquele soco que lhe deu à traição, pela retaguarda, na parte de trás/lateral da cabeça, é esquecer a dinâmica dos acontecimentos naquela altura em que tudo se passou, fazendo uma leitura subjetiva e parcial dos factos, que não faz sentido e que não é consentida pelo que consta da decisão recorrida.

Tudo isso foi explicado na decisão recorrida, não merecendo censura a análise que aí foi feita.

O que não é lógico, nem faz sentido, nem encontra suporte na decisão recorrida, é a interpretação que o recorrente AA pretende fazer do por si alegado “soco apaziguador” da vítima, que ocorreu em momento anterior a esta ter sido agredida à traição pelo arguido AA, que a fez cair de imediato no chão, permanecendo inanimada no chão (em situação de desproteção absoluta, como acima se explicou), mesmo quando o arguido GG lhe desferiu também os pontapés na cabeça.

Ao contrário do que alegam, particularmente o recorrente AA, o que resulta dos factos dados como provados é que não houve a chamada “luta corpo a corpo” entre a vítima e os arguidos; o que antes aconteceu foi depois de ter sido colocada a vítima em estado de desamparo por um dos arguidos (ou seja, a vítima foi colocada em situação de pessoa particularmente indefesa, em razão de doença, pelo arguido AA), ambos os arguidos aproveitaram desse estado de desamparo da vítima (que estava inanimada e, portanto, sem capacidade de qualquer reação), tendo desferido pontapés (um o arguido AA e três o arguido GG) na sua (da vítima) cabeça.

E as agressões dos dois arguidos na cabeça da vítima foram de tal modo violentas, que lhe causaram as lesões (traumáticas meningo-encefálicas e raquídeas cervico-vasculares, sofrendo uma hemorragia intracraniana grave, isquemia massiva) que determinaram a sua (da vítima) morte, apesar de ter sido assistida medicamente e ainda ter estado hospitalizada cerca de 2 dias.

Portanto, não foram só um simples soco e 4 meros pontapés (sendo um deles dado pelo arguido AA) inofensivos que os dois co-arguidos desferiram na cabeça do EE; a forma como o agrediram em breves instantes, nas circunstâncias dadas como provadas, já acima explicada, causaram-lhe as lesões que determinaram a morte do EE, apesar de ter sido assistido medicamente e ainda ter estado hospitalizado cerca de 2 dias (o que mostra bem que foi muito violenta a referida agressão dos dois co-arguidos, que atuaram conjuntamente, o que se conforma com os factos provados, em leitura desinteressada e imparcial).

É preciso ter bem presente (o que parece que os recorrentes, particularmente o recorrente AA se esqueceu, pelas conjeturas que faz sem sentido), que o EE faleceu em consequência direta das lesões causadas pelas descritas condutas dos dois arguidos (o mesmo não se tendo passado com qualquer dos arguidos, o que evidencia, ao contrário do pretendido pelo recorrente AA, que o soco dado pela vítima e as agressões dos arguidos foram bem diferentes).

E, neste caso, ao contrário do que alega o recorrente AA, perante os factos dados como provados, as agressões dos dois co-arguidos na cabeça do EE foram de tal modo graves e intensas que causaram neste as lesões que lhe determinaram a morte.

A atuação dos arguidos em relação à vítima tem de ser vista em conjunto, tal como ressalta dos factos provados, pois, foi em conjunto que atuaram, e não isolada ou individualmente, como chega a pretender, por exemplo, o arguido/recorrente AA, quando pretende desvalorizar a sua conduta e considerar que não assume gravidade suficiente para ser qualificada como “especialmente censurável e perversa” ou até como um homicídio ou que tivesse agido com dolo.

Esquece, porém, que no caso concreto se trataram de golpes desferidos na vítima (seja o soco, sejam os pontapés desferidos na cabeça, nas zonas atingidas, com muita violência pelos dois arguidos nas circunstâncias apuradas) que lhe causaram as lesões referidas nos factos provados e lhe determinaram a morte.

Portanto, em face de tudo o que foi exposto, não merece censura a decisão recorrida quando confirmou a decisão da 1ª instância relativamente ao enquadramento jurídico-penal dos factos dados como provados, no que respeita ao crime de homicídio qualificado consumado aqui em apreciação.

Improcede, pois, a argumentação dos recorrentes quanto ao invocado erro na subsunção dos factos ao direito relativamente ao crime de homicídio qualificado consumado aqui em apreciação e sua pretensão de enquadramento noutras incriminações que não encontram apoio nos factos dados como provados, razão pela qual não foram violadas as normas por eles invocadas.

5ª Questão (recurso do arguido AA): perdão de penas

Invoca, ainda, o recorrente que deve ser reformulado o cúmulo jurídico e a pena única em que foi condenado, para lhe ser aplicada a Lei n.º 38-A/2023, às penas parcelares aplicadas pelos crimes de ofensa à integridade física simples, por estes estarem em condições de beneficiar do perdão.

Vejamos.

Resulta do art. 14.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto (perdão de penas e amnistia de infrações) que, neste caso, a aplicação das medidas previstas na presente lei competem ao juiz da 1ª instância, onde ocorreu a condenação.

O que se compreende até para permitir, em caso de discordância com a decisão que vier a ser proferida, que o sujeito afetado, possa recorrer para a Relação.

Portanto, não é diretamente ao STJ que a questão deve ser colocada, uma vez que a decisão sobre a eventual aplicação de tal lei pertence à 1ª instância, ao juiz da condenação (no caso, ao juiz a quem foi distribuído o processo).

Assim, por não poder ser colocada esta questão ao STJ, é a mesma julgada improcedente.

6ª Questão (recurso do arguido GG): ser excessiva e desproporcional a pena aplicada pelo crime de homicídio qualificado consumado pelo qual foi condenado.

Trata-se de uma questão nova que não foi colocada em sede de decisão recorrida, como se verifica da mesma, quando nela se fez constar, no momento em que tratou da “Tipologia e dosimetria das penas” (enunciando a argumentação apresentada pelos recorrentes MP e arguido AA), que no recurso do arguido GG “nada foi alegado ou peticionado, a respeito das penas impostas.”

Ora, o arguido GG está a recorrer para o STJ do acórdão da Relação, mas não lhe colocou qualquer questão sobre as penas.

Percebe-se, por isso, que a Relação não tivesse proferido qualquer decisão, sobre as penas que foram aplicadas ao mesmo arguido, nomeadamente, sobre a pena que lhe foi aplicada pelo crime cometido em relação à vítima EE.

Assim, não havendo decisão da Relação para sindicar nessa matéria, a questão que agora está a colocar é nova e não pode ser conhecida pelo STJ, uma vez que nem é de conhecimento oficioso.

Em face do exposto, por se tratar de questão nova que o STJ não pode sindicar nessa parte (quanto à questão relativa à medida da pena, sobre a qual não há decisão da Relação, que é a decisão recorrida), improcede o recurso ora em apreciação.

7ª Questão (recurso do arguido GG): incompetência do tribunal para julgar o pedido de indemnização civil, o que configuraria nulidade insanável, nos termos do art. 119.º, al. e), do CPP, a qual deveria ser declarada com todas as consequências legais.

Sobre essa matéria consta da decisão da Relação:

4. Restam então as quatro questões que acima referimos e que se reportam ao seguinte:

A decisão sobre os vários pedidos de indemnização deverá ser declarada nula, porque proferida pelo Tribunal do Júri, que é incompetente na matéria, ao abrigo da leitura conjugada dos artigos 2º n.º 3, do Regime do Júri em processo penal, 119º/alínea e), 368º e 369º do CPP:

Este pedido é incompreensível porque, na verdade, sendo pedido o Tribunal do Júri (requerido pelo próprio recorrente), manifestamente haverá lugar à prolação de apenas um acórdão, por expressa imposição legal, onde terão de ser decididas todas as questões postas ao tribunal “a quo”, incluindo as questões cíveis.

O princípio da adesão, previsto no art. 71.º CPPenal, comporta uma regra de fixação de competência material em matéria de pedido de indemnização fundado em crime. A violação deste preceito é sancionada com a exceção de incompetência material do tribunal cível.

Assim, por força de tal princípio, a apreciação desse pedido recai, por força das regras relativas à determinação da competência material, ao mesmo tribunal que se debruça sobre a parte criminal.

Não assiste assim qualquer razão ao recorrente, uma vez que o tribunal materialmente competente para conhecer a questão cível era o tribunal do Júri, no âmbito do acórdão final, por força do princípio da adesão.

(…)

Vejamos.

O arguido GG volta a recorrer na parte cível, colocando essa mesma questão que já colocara (entre outras) quando recorreu da decisão da 1ª instância, sendo que, nessa parte, o acórdão da Relação impugnado negou provimento ao recurso.

Ora, tendo sido garantido ao arguido um grau de recurso para a Relação, quando recorreu da parte cível da decisão da 1ª instância, apesar da decisão da Relação que agora pretende impugnar, nessa parte (cível) lhe ter sido totalmente desfavorável, não obstante se verificarem os pressupostos do art. 400.º, n.º 2, do CPP (considerando o seu valor superior à alçada da Relação, bem como o valor da sucumbência superior a metade dessa alçada - conforme artigo 400.º, n.º 2, do CPP e artigos 629.º, n.º 1, do CPC, ex vi do artigo 4.º, do CPP, e artigo 44.º, da LOSJ), a verdade é que de acordo com a jurisprudência pacífica deste STJ, para aferir da admissibilidade do recurso para este Supremo Tribunal de Justiça quanto à decisão em matéria civil da Relação há que convocar as regras processuais civis e verificar se a decisão será passível de recurso segundo tais regras, “de modo que o demandado civil no âmbito do processo penal tenha as mesmas possibilidades recursórias que teria caso a ação fosse julgada em separado”40.

Assim sendo, visto o disposto no art. 671.º, n.º 3, do CPC41, temos de concluir que não é admissível o recurso de acórdão da Relação, na parte cível, por se verificar “dupla conforme” das decisões da Relação e da 1ª instância nos estritos limites ali referidos (ver arts 434.º, 414.º, n.º 2, 420.º, n.º 1, al. b), do CPP e 671.º, n.º 3, do CPC, aplicável ex vi do art. 400.º, n.º 2 e n.º 3 do CPP).

Em face do exposto, por inadmissibilidade legal, uma vez que há “dupla conforme”, não se toma conhecimento do recurso em apreciação, quanto a tal questão colocada pelo recorrente, relativamente à condenação civil.


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III - Decisão

Pelo exposto, acordam nesta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:

- rejeitar o recurso do arguido GG, por inadmissibilidade legal, na parte em que foi impugnado o Acórdão da Relação, quanto à decisão sobre a matéria de facto, quanto à sua condenação cível e quanto aos recursos interlocutórios já decididos definitivamente (face ao disposto nos arts. 420.º, n.º 1, al. b), e 414.º, n.ºs 2 e 3, do CPP, 671.º, n.º 3, do CPC, aplicável ex vi do art. 400.º, n.º 2 e n.º 3 do CPP e, também, perante o disposto nos arts. 400.º, n.º 1, al. c) e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP);

- no mais, negar provimento aos recursos interpostos pelos arguidos AA e GG.

Custas pelos recorrentes/arguidos, fixando-se a taxa de justiça devida pelo arguido AA em 6 UC`s e a devida pelo arguido GG em 9 UC`s.


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Processado em computador e elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2, do CPP), sendo depois assinado pela própria e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos.

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Supremo Tribunal de Justiça, 17.04.2024

Maria do Carmo Silva Dias (Relatora)

Pedro Branquinho Dias (Juiz Conselheiro Adjunto)

Ana Barata de Brito (Juíza Conselheira Adjunta)

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1. Transcrição, mas sem negritos, nem sublinhados.

2. Transcrição, mas sem negritos, nem sublinhados.

3. . Da fundamentação da decisão fáctica consta o seguinte:

  Dir-se-ia que na vida judiciária há a verdade dos arguidos e ofendidos, que filtram a sua intervenção nos factos através da subjetividade inerente à qualidade humana; a verdade das testemunhas que, assistindo aos factos, não se encontram menos imunes à subjetividade e afeições do que os atores principais, quantas vezes de forma inconsciente; e a verdade do julgador, que deflui das anteriores e da sua própria perceção e experiência de vida, a designada verdade processual, a qual é, não raras vezes, o máximo denominador comum das anteriores, a única certeza obtida, quando a sua verosimilhança e consistência permite que o Tribunal as acolha, na sua busca incessante da verdade histórica, que surge como a desejada perfeição no julgamento da matéria de facto.

  Cientes desta realidade, a verdade processual apurada nos presentes autos é, não aquela que emerge da mera intuição, mas aquela que conseguimos, racionalmente, fundamentar e defender.

  Destarte, resultaram fundamentais para a formação da convicção do Tribunal no que respeita à FACTUALIDADE PROVADA E NÃO PROVADA, a prova por declarações dos arguidos, a pericial e documental juntas aos autos, concatenadas com a prova testemunhal, o que se fez tendo por fundamento, ademais, o princípio da livre apreciação da prova, firmado no disposto no art. 127.º do CPP.

  Analisemos, então, criticamente a prova recolhida.

  Os arguidos admitiram ter estado na noite dos autos na discoteca 1, e assumiram ser eles quem surge nos vídeos, identificando-se como os intervenientes do que neles se visualiza.

  Posto isto, a prova relativa à dinâmica dos factos encontrará, como abaixo melhor se analisará, sustentação no que se observa nos vídeos que se encontram junto aos autos, coadjuvados pelos depoimentos testemunhais, através dos quais se identificam os intervenientes, e se compreende, à luz dos esclarecimentos que aportam, a dinâmica dos acontecimentos.

  Por uma questão metodológica, dividiu-se a factualidade em pontos, que correspondem a momentos distintos, a fim de melhor se compreender os fundamentos que estiveram na base da formação da convicção do Tribunal.

  I

  Quanto aos factos assentes constantes deste grupo I, não foram controversos os descritos nos pontos 2.1.1. e 2.1.3, os quais foram admitidos pelos arguidos, com exceção de um segmento do facto 2.1.2, a saber, que possuíam conhecimentos de defesa pessoal.

  Com efeito, quanto ao facto 2.1.2, não obstante os arguidos terem negado possuir esses conhecimentos de defesa pessoal, tal declaração não colheu qualquer credibilidade por parte do Tribunal. Vejamos porquê.

  O arguido GG, sobre esta matéria, referiu que no Curso de ..., cuja duração é de um ano, apenas teve aulas de manuseamento de armas, e de corpo a corpo, nuns parcos um ou dois dias de formação. Acabou por dizer que há aulas de defesa pessoal, umas quatro ou cinco aulas, mas as suas declarações foram titubeantes, inseguras (o que levou a que o Tribunal chegasse mesmo a solicitar-lhe que olhasse para a frente e não sistematicamente para o lado, onde se encontravam os Defensores, deixando perceber que a estratégia da defesa passava pela negação de sustentados conhecimentos de defesa pessoal).

  De igual jaez, também o arguido AA negou ter conhecimentos de defesa pessoal, admitindo apenas que a sua preparação era acima da média.

  Esta versão não se compagina de todo com a preparação física bastante acima da média e a defesa pessoal que necessariamente as forças militares especiais possuem, como é consabido. Estamos a falar de uma tropa de elite, que como o arguido acabou por admitir, está na primeira linha do embate, se necessário corpo a corpo, e seria, no mínimo, inverosímil, para não dizer incompreensível, que os arguidos, integrando-a há já vários meses, não tivessem conhecimentos dessa natureza.

  Mas ainda que assim não fosse, o que se diz sem conceder, ficou claro pelo testemunho de ZZ, à data Capelão da Marinha, e JJ, segurança, que ambos os arguidos eram praticantes de ..., desporto que treinavam nos “P........”, na .... Ora, as técnicas de defesa pessoal são disciplina necessária nessa modalidade, na vertente que lhe é própria, como de resto se constata à evidência pela sua atuação na dinâmica dos factos visualizável nos vídeos, na respetiva postura e na supremacia que obtiveram independentemente da discrepância numérica dos intervenientes.

  Mas mais:

  - AAA, testemunha absolutamente credível e que depôs de forma desinteressada e objetiva, disse que nunca tinha visto nada assim ao vivo, era uma pessoa que estava à vontade naqueles cenários, pois as pessoas caíam na sequência dos murros, e que num momento inicial ainda deu um passo ou dois para ajudar a separar a contenda, mas quando perceberam a proporção do que se estava a passar, os seus amigos o puxaram para trás, impedindo que o fizesse;

  - BBB, cujo depoimento também foi absolutamente objetivo e credível, disse que se notava que um dos arguidos tinha treino, pela maneira como se mexia, sendo que acompanha há vários anos as artes marciais e que sabe fazer essa apreciação, mais esclarecendo que há movimentos que são próprios de quem as pratica; cada murro que desferia, a vítima caía ao chão, sendo que algumas caíram inconscientes; ficaram caídas imensas pessoas no chão; notava-se que os dois arguidos faziam equipa e a todos agrediam, mesmo os que explicitamente iam para apaziguar;

  - CCC, cujo depoimento também foi absolutamente objetivo e credível, disse que quem caiu já não se levantou;

  - SS, segurança do 1 que acompanhou BB à porta, sobre a matéria ora em fundamentação, disse de forma clarividente e desinteressada que um grupo se defendia e outro atacava, com socos, que desferiam aos que se defendiam, mas que não se sabiam defender.

  Acresce o teor dos Relatórios Sociais sobre esta matéria.

  Quanto ao arguido AA extrai-se do mesmo que mantinha como hobbys a prática de desporto – musculação, em contexto de ginásio e desportos de combate, entre os quais … e ..., mantendo hábitos de convívio com pares praticantes destas modalidades, entre os quais o coarguido GG, instrutor de ..., com quem, por vezes, treinava.

  Do Relatório Social de GG extrai-se que era praticante amador de ... desde a sua adolescência, no P....... ..... ...., em ..., e que se dedicava, desde 2022, em regime de voluntariado, uma vez que ainda não tinha concluído o curso de formação de instrutor/treinador de ... iniciado em maio de 2021, a dar aulas da modalidade na Academia de ..., em ..., a praticantes com idades compreendidas entre os dez anos e os vinte e dois anos de idade. A prática desportiva de ... amador, pela qual demonstrou empenho e investimento, veio a assumir alguma relevância na sua vida, tendo-se mesmo consagrado campeão amador da modalidade em 2021.

  Desta feita, o Tribunal não teve qualquer dúvida em levar ao acervo fático assente o teor do facto 2.1.2, na sua integralidade, não obstante a negação do segmento “possuir conhecimentos de defesa pessoal” efetuada pelos arguidos.

  No que respeita à não inclusão de RR no grupo dos arguidos, consideraram-se os depoimentos de RR, que disse ter estado na discoteca 1, mas num “privado”, e não inserido no grupo dos arguidos, sendo que quando saiu da discoteca, segundo verbalizou, já tudo tinha acontecido, motivo pelo qual se teve como assente que o mesmo ali se encontrava. Também os arguidos confirmaram que RR não se encontrava incluído no seu grupo.

  Vejamos, agora, os restantes factos.

  Os arguidos também admitiram que estiveram na discoteca 1 na noite dos autos, que houve uma altercação no primeiro piso, com o ofendido BB, e que o Segurança interveio e o conduziu à saída. Nesta parte, os factos são pacíficos.

  No que tange à dinâmica dos factos ocorridos no interior da discoteca, as versões dos arguidos não são coincidentes, nos pormenores, mas apenas na estratégia, ao dizerem que foi o ofendido BB quem assumiu uma postura desafiante, com um movimento corporal intimidador. O arguido AA disse que nada ouviu, mas viu o ofendido BB “partir para cima”, aproximando-se, e que o arguido GG o empurrou, tudo por causa do parco espaço para circularem. Já GG disse que o ofendido BB estava a olhar para o KK, que disse qualquer coisa, e que, parecendo que se estava a preparar para um confronto, pois colocou o fio de ouro para dentro da roupa, ele próprio o afastou com o braço.

  Por seu turno, o interveniente e ofendido BB veio dizer que, sem que nada o fizesse prever, absolutamente “do nada”, quando estava na pista de dança, foi agredido por dois indivíduos, com um murro e uma cabeçada. Identificou-os como sendo de raça negra, o que lhe deu a cabeçada, a quem depois se dirigiu no exterior, e de raça branca, quem lhe desferiu o murro. Fica a dúvida sobre quem foi o autor do murro, se o arguido AA, que negou essa conduta, se o KK, que também os acompanhava no interior, já que ambos são caucasianos e não houve concretização fática que ultrapassasse a dúvida.

  No essencial, e para o que ora releva, teve-se por assente que houve uma contenda entre o arguido GG, que desferiu a cabeçada. E teve-se por credível esta versão porque se encontra sustentada pelo depoimento absolutamente objetivo e desinteressado do segurança do 1, SS, que veio dizer que não conhecia nem conhece os arguidos e que estava no local dos factos, no exercício das suas funções de segurança, quando viu uma altercação entre elementos de um grupo de cerca de umas treze pessoas e um indivíduo, tendo ido pôr cobro à situação, como era seu dever. Disse que o rapaz sangrava do nariz, era alto e tinha o cabelo preto, o que é compatível com a versão do murro relatada pelo ofendido BB, que ele mesmo confirmou ter sido desferido, confirmando ter havido uma cabeçada e ou um soco. Disse ainda que foi ter com o indivíduo que crê ter desferido esse soco, o qual se encontrava alterado, tendo o mesmo dito não se ter passado nada, mas não logrou identificar se o autor do soco foi um dos arguidos.

  Desta feita, dúvidas não restaram sobre o teor do facto 2.1.5 quanto ao segmento que descreve que por motivos desconhecidos o arguido GG se envolveu com o ofendido BB e lhe desferiu uma cabeçada. Na dúvida inultrapassável, teve-se o conteúdo por não provado quanto ao autor do murro desferido sobre o ofendido BB.

  E não se alegue que, sendo o ofendido BB mais alto (porquanto possui 1, 87 cm e 78 kg de peso) do que o arguido GG (que apenas tem 1, 77 cm e 76 kg de peso), seria impossível a este cabecear aquele porquanto as técnicas de elevação frontal, próprias das artes marciais já acima referenciadas, a isso habilitam a uma diferença de altura de dez centímetros que, diga-se, no contexto, não é de forma alguma impeditiva.

  No mais, designadamente quanto ao teor do facto 2.1.7, com exceção do segmento inicial relativo aos tumultos que se geraram na pista de dança na sequência da contenda entre GG e o ofendido BB, teve-se em consideração o depoimento da testemunha SS que o confirmou, o qual se afigurou objetivo e credível, porque isento e equidistante dos intervenientes, como já acima se exarou.

  Por fim, quanto ao último facto deste grupo, 2.1.8, o tribunal não logrou obter confirmação exata da hora porquanto a visualização do vídeo Hype a não permite estabelecer, como de resto nenhum outro, mas a conjugação das imagens permite afirmar, sem dúvida, que o facto ocorreu em momento muito próximo da hora ali constante.

  II

  Que o ofendido BB permaneceu no exterior da discoteca, inconformado com o facto de ter sido retirado da mesma, o que considerou injusto e sem fundamento, resulta do seu próprio depoimento, que se teve por isento, não obstante a sua qualidade de ofendido, bem como do vídeo designado por 1 C01 que prova que o mesmo ali se encontrava e se aproximou do arguido GG quando este saiu da discoteca.

  Também os depoimentos de WW e TT, objetivos e credíveis, corroboram que assim foi.

  WW veio dizer que estava a descansar no carro quando o BB lhe ligou a dizer que tinha sido retirado da discoteca, sem motivo, e que, então, se dirigiu para junto dele. BB contou-lhe que tinha sido agredido na discoteca, com uma cabeçada e um soco e que visualizou essas marcas no rosto do amigo BB. Referiu que este se sentia exaltado e que queria perceber por que razão tinha sido expulso. Quis levá-lo para o carro, mas sem sucesso. Quando o arguido GG saiu da discoteca, BB foi de imediato na direção dele.

  TT, que também integrava o grupo do ofendido BB, disse que estava no piso zero da discoteca e viu o referido BB a ser expulso. Fez o pagamento saiu e constatou que ele estava exaltado porque um dos arguidos – o caucasiano – lhe tinha desferido um soco e o outro arguido – o de raça negra – uma cabeçada. Confirmou que o ofendido BB estava a sangrar da testa e que permaneceram junto à discoteca 1 até que dela saíram os arguidos, que pareciam ter relações de amizade com os seguranças que ali estavam na zona da porta.

  É, portanto, certo e fora de qualquer dúvida o facto descrito no ponto 2.1.9.

  Quanto à existência do jantar convívio entre agentes da PSP, os depoimentos das testemunhas agentes da PSP confirmaram-no, sendo que a testemunha UU esclareceu que encontrou os colegas na discoteca, mas não tinha estado nesse jantar, tal como o seu colega VV, motivo pelo qual se levou este facto ao elenco dos não provados e apenas se teve por assente que estas duas testemunhas apenas tinham estado no 1 onde encontrando os demais colegas presentes, com eles conviveram.

  O momento da saída da discoteca 1 pelos agentes da PSP é confirmado pelas imagens com identificação horária que está junto aos autos, sob a designação de 1 C01, pelos depoimentos das testemunhas CC, VV e FF, bem como de UU e VV, quando explicitam a ordem pela qual saíram da discoteca.

  A saída dos arguidos, de KK e QQ é captada pela mesma câmara de vídeo, confirmando-se, desta feita, a identificação horária correspondente que consta do libelo acusatório.

  III

  O depoimento do ofendido BB é claro: assim que viu o arguido GG sair da discoteca, foi na sua direção e desferiu-lhe um murro.

  No mesmo sentido vão as declarações dos arguidos ao confirmar que, quando ambos saíram da discoteca, o arguido GG, sem o esperar, foi agredido com um soco desferido pelo ofendido BB.

  A visualização das imagens não deixa dúvidas quanto a este facto, escorada que se encontra pela identificação que de si, nelas fazem, os intervenientes.

  Desta feita, no que tange ao murro desferido por BB ao arguido GG, é aquele quem o assume, justificando-o com a revolta sentida por ter sido expulso da discoteca sem que tivesse tido qualquer responsabilidade na altercação que existiu, antes sentindo-se uma vítima do comportamento agressivo e desregulado do arguido GG e do outro indivíduo que lhe desferiu o murro.

  Por seu turno, o arguido AA assumiu em audiência de julgamento que foi ele quem desferiu o murro na cabeça de BB, justificando que o fez em defesa do seu amigo GG. O murro foi de tal forma intenso, como se extrai das imagens de videovigilância, que o ofendido, com 1, 87 cm de altura e 78 kg, como já referido, caiu inerte no chão, não mais se movendo ou fazendo qualquer movimento de defesa relativo aos pontapés na cabeça que se lhe seguiram. BB assevera que ficou de imediato inconsciente. Note-se, a acrescer, que a testemunha CC disse que ouviram um barulho forte e viu uma pessoa caída no chão que associou ao ruído; WW relatou que o amigo BB ficou inconsciente, falou com ele, não se mexia, não reagia, e segurou-lhe no pescoço na esperança de uma resposta.

  O vídeo 1 C1 prova os factos como se encontram descritos, mostrando com nitidez que o arguido GG desferiu dois pontapés com muita intensidade na cabeça do ofendido BB quando este se encontrava prostrado no chão, indefeso e sem reação. O mesmo disse ter perdido os sentidos, o que foi confirmado pelo seu amigo e testemunha WW. E do que se visualiza, o mesmo encontrava-se já inerte quando o arguido GG lhe desferiu o primeiro pontapé, logo após KK ter procedido de igual forma, o que levou a que fosse protegido pelo segurança e testemunha JJ, que se colocou com os seus pés a ladear e proteger a cabeça do ofendido. Desta feliz intervenção externa da testemunha JJ, resultou, portanto, a impossibilidade de o arguido GG continuar com sucesso a sua conduta de pontapear na cabeça BB.

  GG afirma que desferiu pontapés, mas sem acertar no ofendido. Ora, o vídeo prova à evidência que lhe acertou num primeiro momento com dois pontapés, nos termos supra descritos, e só a atitude protetora de JJ pôs cobro à fúria destemperada do arguido GG impedindo outros pontapés certeiros na cabeça de BB que jazia inerte, sem sentidos, no chão.

  IV

  Importa tecer umas breves considerações acerca do testemunho que resulta de uma vivência em dinâmica emocional especialmente intensa, de medo ou pânico, estupefação ou perplexidade pelo evento propulsor desses estados de espírito, temporalmente muito condensados, que constroem as memórias do “eu”, naturalmente subjetivadas por essa intensidade emocional, quantas vezes propulsoras de interiorizações não exatamente conformes com o real evento.

  Não se espera nem surpreende, pois, antes se admite como absolutamente normal, que o que se ouve, o que se vê, o que se sente seja fruto de um momento psicologicamente uno e se sobreponha aos outros tempos da dinâmica dos eventos, e os depoimentos recaiam sobre o que mais impressiona o “eu” que os vivencia.

  Mas mais: pode haver imprecisões de factos, tempos, intensidades e perceções que decorrem da circunstância que é o efeito do tempo na memória individual. E há, ainda, a desconstrução da memória puramente individual pela sobreposição de inputs externos, em movimento recíproco com a memória coletiva, que decorre da rememoração de factos com outrem, da sobreposição de outros ou novos factos congéneres quanto ao contexto, das narrativas e recontos, da visualização de imagens dos factos ou de imagens congéneres. As perceções vão amadurecendo com o sujeito que as revive e esse processo não é neutro para a memória.

  Não perdendo de vista esta realidade do foro da psicologia do testemunho, a verdade é que há um núcleo homogéneo nos relatos que é coerente e consentâneo com a descrição dos factos ínsita no libelo acusatório, e bem assim com a prova documental junta aos autos a que abaixo se aludirá, e que encontra também respaldo em depoimentos testemunhais com caraterísticas idênticas quanto ao que a memória permite ter como clarividente, e é esse núcleo homogéneo que sustenta a convicção absolutamente segura da dinâmica factual que se teve por provada, conjugada com as imagens dos factos que instroem os autos.

  Compete ao Tribunal ler os depoimentos, conjugá-los entre si e com a demais prova, de molde a escorar a sua convicção de forma consistente e acautelada, o que equivale a dizer que os deve ler de forma crítica, através de uma análise conjugada e sustentada de toda a prova existente no processo.

  CC, não obstante a sua qualidade de ofendido, depôs com clareza, coerência, isenção e objetividade, o que se deixa sublinhado. Disse que, na sequência de ter ouvido um som forte, viu dois indivíduos a desferir pontapés de forma agressiva num individuo prostrado no chão. Relatou que quando viu a brutalidade do impacto ficou sem reação. E o que fez? O que faz um agente da PSP no cumprimento do seu dever de zelar pela segurança dos cidadãos e o que faria quem tivesse a solidariedade, o sangue-frio e a coragem de, pelo menos, tentar impedir que essa agressão continuasse – correu para o local, levantou os braços, disse “Pára, Pára, Polícia Pára”, tentando afastar com os braços quem agredia o indefeso. O que viu? O colega FF, que reagiu como ele, levar um murro na face, não logrando parar os arguidos o facto de se ter identificado como Polícia. Afastou-se, segundo disse. Não se apercebeu que foi empurrado, o que só a posteriori interiorizou, quando viu o vídeo. Pediu auxílio, ligando ao 112, mas não sabe identificar com exatidão o momento em que o fez. O que sabe é que as agressões continuaram não ficando ciente de quem a quem. Sabe que o colega DD estava a tentar levantar-se, mas levava pontapés e foi ajudá-lo, conseguindo então levantar-se e recuando ambos. E viu que os arguidos se dirigiram ao FF e ao VV, ouvindo dizer “anda mano a mano”, mantendo-se o seu colega em posição de defesa. Viu o FF ser de novo agredido com um murro na face, que já estava muito ensanguentada. Ouviu o KK gritar que que era o “Rei do Montijo”. E viu ainda os arguidos abandonarem o local, deslocando-se para o carro. Foi atrás deles para apurar “alguma coisa”. O VV chamou-o. Os arguidos apercebem-se que eles vão atrás deles e o arguido AA volta atrás e desfere-lhe um soco, provocando-lhe lesões na zona do lábio. Tudo se passou em breves minutos mas pareceu à testemunha “uma eternidade”. O que disse é que ficou atordoado. Estava em pânico, disse.

  Confrontado com as imagens 1, camaras 1 e 2, 3 e vídeo designado por Évolution, identificou os intervenientes, confirmando, no essencial e relevante para o objeto do processo, a descrição que fizera.

  O Tribunal, acompanhando essa visualização, com identificação por interveniente (sendo certo que, quer nas declarações dos arguidos, quer nos depoimentos seguintes, essa identificação pormenorizada jamais foi colocada em crise) inteirou-se objetivamente da dinâmica factual, tendo-se tido por provados e não provados os factos inclusos neste conjunto.

  O depoimento do ofendido FF afigurou-se consistente, objetivo, congruente na sua globalidade e com os demais, pelo que granjeou credibilidade por parte do Tribunal. Também ele visualizou uma pessoa completamente inanimada no solo e outras a desferir-lhe pontapés desproporcionais e violentos. Dirigiu-se ao local do confronto. Afirmou ter dito “Polícia. Pára” e ter agarrado o arguido GG para o afastar do local. De imediato, este disse-lhe que nada tinha a ver com aquilo, desferiu-lhe um soco e ele ficou a cambalear para trás e, nesse momento, três indivíduos desferem-lhe pontapés no corpo e socos na face. Continuou a recuar e a tentar proteger-se. Tombam pessoas. Desferem-lhe um soco e rasgam-lhe o sobrolho e fica com a cara cheia de sangue. Tenta afastar-se e vai em direção à Av. 24 de julho. Estava com ele a UU e o VV. Vêm de novo os três indivíduos e o arguido GG pergunta se quer “um mano a mano”. É a UU que tenta protegê-lo dos socos que o GG lhe quer desferir de novo, sendo que o VV também o ampara e tenta proteger. Esses socos já não lhe causam grande impacto, segundo relata. Os arguidos deslocam-se então no sentido de .... O CC estava mais afastado deles, tentando perceber a identificação da matrícula, e AA apercebe-se e volta atrás e desfere-lhe novo soco.

  VV estava com os colegas EE, FF e CC, já no exterior, à espera de DD e da UU que tinham permanecido por mais alguns momentos no interior da discoteca. Estava de costas e apercebeu-se da confusão. Viu o FF arrancar em direção à discoteca e ouviu-o dizer “Polícia. Pára”. Também ele se dirigiu ao local do confronto, mas não conseguiu memorizar tudo o que se passou. A partir desse momento, tudo foi pancadaria, mas não conseguiu aperceber-se de cada ato isoladamente percecionado. Quando viu o FF, este já sangrava. Nem sequer se recorda de ter sido atingido ou de ter ficado caído no chão, não obstante as imagens o demonstrarem. Recorda que o CC vai atrás dos arguidos para tentar perceber quem eram e o arguido AA voltou atrás e desferiu-lhe um soco. Nas suas próprias palavras, sobre o seu estado de espírito – “estava paralisado”.

  É verdade que os arguidos tiveram declarações contrárias ao sentido destes depoimentos.

  O arguido AA disse que viu um grande número de pessoas a rodear o coarguido GG, dando-lhe socos e pontapés, e que foi em seu auxílio, tentando afastar com pontapés pessoas que estavam em pé.

  Também o arguido GG disse que tentou pontapear, mas que falhou.

  Ambos disseram que a sua atitude foi defensiva, pois estavam a ser atacados. Aventam, portanto, uma atitude de legítima defesa. Pensavam que estavam a ser atacados e defenderam-se.

  Mas a defender-se de quem, se o único agressor inicial ficou logo inconsciente no chão?

  Como podem os arguidos estar a defender-se de quem jaz inerte no chão? A defender-se de alguém inconsciente, pontapeando-lhe a cabeça?

  Como podem os arguidos estar a defender-se, se cada murro ou soco que desferem derruba quem o sofre?

  Como podem estar os arguidos estar a defender-se se as imagens visionadas refletem uma euforia agressiva desmedida?

  Na verdade, as imagens desmentem-nos à exaustão, bem como todos, sublinha-se, todos os depoimentos prestados em audiência de julgamento Mesmo JJ, amigo do arguido GG, pretendendo firmar, no início do seu depoimento, a tese de que os arguidos estavam a ser atacados, admitiu depois que eles estavam numa atitude de “lutadores”. De resto, não fora a atitude atacante dos arguidos, desde logo sobre o primeiro ofendido BB, e JJ não teria seguido o seu instinto e impulso de o proteger com os seus pés, ladeando-lhe a cabeça inerte, à mercê dos pontapés do arguido. A partir do momento em que BB cai no chão, inconsciente, é absurdo dizer-se que foi pontapeado na cabeça numa atitude defensiva. JJ, no seu depoimento, acaba por se render à evidência factual. Aliás, se os arguidos estivessem a ser atacados ao invés de atacarem, não faria sentido JJ colocar-se ao lado do indefeso BB, mas sim de quem estava a ser atacado, tanto mais que deles era amigo, como assumiu e foi evidente.

  DDD, na descrição do que viu conforme o libelo acusatório, refere de forma isenta e irrepreensível que os ofendidos estavam numa postura de apaziguar a situação. E repete – houve quem tentasse apaziguar, no meio da confusão, com uma postura calma.

  CCC, cujo depoimento foi absolutamente credível, também fala em tentar separar, em acabar com a confusão.

  EEE também refere de forma objetiva e isenta ter-lhe parecido que havia pessoas apaziguadoras.

  Inexiste, portanto, animus defendendi, ainda que se considere a sua forma excessiva. Existe, isso sim, vontade de atacar.

  É verdade que os arguidos podem perfilhar a tese defensiva que melhor entenderem; mas não é menos verdade que o Tribunal não pode colher versões absurdas e desconformes com as regras da experiência e com a demais prova, sendo que, neste caso, havendo imagens dos factos que reproduzem a realidade, requeria mais cautela trazer a julgamento uma versão completamente contrária às mesmas.

  Vejamos os factos não provados deste segmento factual.

  Não se fez prova de que os ofendidos FF e a vítima EE tenham levantado os braços, porquanto aquele não disse que o tivesse feito. O que aquele atestou, e foi credível, foi ter dito “Polícia. Pára”. Também não se teve por provado que o tivessem feito repetidamente, pois isso não resultou dos seus depoimentos.

  De igual jaez, não se teve por assente que o arguido AA se tivesse dirigido ao agente FF, rodeando e desferindo-lhe socos na cabeça e pontapés nas costas, porquanto esse facto não resulta das imagens visualizadas; e não se provou, também por via das imagens visualizadas ou dos depoimentos recolhidos, que o arguido GG tivesse desferido pontapés nas costas do ofendido FF quando ele recuava.

  Por fim, quanto a este grupo factual, não resulta dos já aludidos vídeos ou depoimentos testemunhais que os arguidos tivessem desferido socos ao ofendido CC quando ele se aproximou com o objetivo de pôr termo à violência e acudir o colega FF. O que se apurou quanto ao ofendido CC é o que resulta dos depoimentos, conjugados com o Relatório Pericial à sua pessoa, e que foi levado à matéria assente relativamente à situação em que intervém com UU, pelas 6h 24m34s, no sentido de afastar os agressores do colega DD, conseguindo parar essa agressão que passou a ser dirigida e ele próprio, CC, e à situação final, quando os arguidos se afastaram em direção a ... e AA volta atrás.

  Uma explanação particular se impõe quanto à circunstância de os ofendidos agentes terem ou não terem assumido a sua qualidade de polícias, propalando-o de forma audível para que os arguidos o tivessem ouvido e compreendido.

  Nesta matéria, WW e TT, amigos que acompanhavam o ofendido BB, e que eram quem, para além dos arguidos, mais próximo estavam do BB e poderiam ter ouvido CC e FF dizer que eram agentes, não tiveram a noção que ali estavam polícias, sendo que o TT chega mesmo a dizer que só soube que eram polícias depois, pelas notícias. Havia muito barulho e confusão, disse TT. Estes depoimentos são absolutamente objetivos e desinteressados, tal como os que seguem.

  Também AAA só se apercebeu que havia polícia no local quando, a final, chegou a polícia devidamente identificada. Mais diz que se alguém tivesse gritado, talvez tivesse ouvido e que só soube que os ofendidos eram agentes da PSP quando esteve à espera que lhe tomassem depoimento.

  DDD não se recordava de ter ouvido alguém dizer que era da polícia.

  FFF disse que havia barulho da confusão e não se recordar de ter ouvido “Polícia”. O seu depoimento foi predominantemente vago, não se recordando com exatidão do que se passou, mas tendo retido apenas os momentos visualizados de uma situação de luta, uma pessoa no chão, junto às arcadas.

  EEE não ouviu dizer “Polícia”, mais dizendo que havia barulho de música, o que disse sem ter a certeza. O que sabe é que havia no local algum barulho.

  VV disse que ouviu uma vez o FF identificar-se como polícia quando saiu de junto dele; e que ele, VV, não se identificou como tal. Apenas ouviu o FF porque estava ao pé dele, não mais ouvindo tal afirmação.

  UU também ouviu o FF dizer que era da Polícia.

  DD não se identificou e não sabe se os colegas se identificaram.

  Quanto ao malogrado EE inexiste qualquer prova de que se tenha identificado.

  Por seu turno, os arguidos vieram dizer que nunca ouviram a palavra polícia e JJ também disse que os agentes nunca se identificaram.

  Em face de todo o exposto, o Tribunal não desconsiderou os depoimentos de CC e de FF, quando dizem que se identificaram como polícias, mas ficou com uma dúvida inultrapassável sobre se esses dizeres foram devidamente ouvidos pelos arguidos, atendendo ao contexto e barulho que se fazia ouvir. Ademais, surge como conforme às regras da experiência comum que após a queda ao chão de BB tivesse nascido um burburinho e gritos que impedissem os arguidos de compreenderem e interiorizarem essas palavras proferidas pelos referidos ofendidos, tanto mais que os mesmos vieram dizer que as não repetiram.

  Desta feita, aplicando o principio in dubio pro reo, entendeu o Tribunal que se devia levar ao acervo negativo que os arguidos ouviram tal expressão, facto por eles alegado e que no caso reverte a seu favor.

  Vejamos agora os factos respeitantes, em particular às agressões ao malogrado EE.

  Do até agora fundamentado, resulta claro que os agentes da PSP atuaram numa atitude de pôr cobro às agressões, ou seja, numa atitude apaziguadora. Não faria qualquer sentido que FF e CC tivessem agido fora desse intuito, o que se extrai não só dos seus depoimentos, como dos demais, designadamente do depoimento da testemunha SS – um grupo atacava, outro defendia-se sem se saber defender de tal ataque – mas também da visualização das imagens que revelam a postura sabedora da arte de lutar que os arguidos assumiram; e resulta, em conjugação com o acabado de expor, que o agente EE estava imbuído da mesma intencionalidade quando agiu.

  Ficou claro para o Tribunal que os agentes da PSP EE, FF e CC agiram com o intuito inicial de defender o primeiro ofendido BB das agressões brutais que sofreu, quando inerte e inconsciente, foi pontapeado na cabeça, de forma sucessiva e violenta, como os vídeos atestam, e o comportamento da testemunha JJ subscreve, e depois, quando as agressões se disseminam sobre eles próprios, de se defenderem e lhes porem cobro. Resultam, destarte, positivos os factos 2.1.24 e 2.1.25.

  AA, não obstante inicialmente negar, admitiu subsequentemente, em audiência de julgamento, que desferiu um soco na zona lateral, parte de trás, da cabeça, fazendo-o cair de imediato no chão. Disse que, após ver as imagens, se reconhecia e admitia essa sua conduta, a par de um pontapé que também lhe desferiu, na cabeça, quando o seu corpo jazia já inerte no chão.

  Não se provou pela visualização do vídeo que o arguido AA tivesse desferido mais do que esse único pontapé, pelo que se teve por não assente que tivesse desferido dois.

  A visualização do vídeo não deixa dúvidas sobre o facto de o arguido GG ter desferido três violentos pontapés, de forma sucessiva e contínua, na cabeça do malogrado EE, quando este se encontrava já prostrado no solo, sem se mexer, imobilizado, desprotegido, inanimado, à mercê da brutalidade caprichosa dos seus agressores.

  Bem pode o arguido GG propalar que não o fez, alegando que nunca acertou na cabeça de ninguém e, depois, retificando, dizendo que “eu tivesse visto, não acertei”.

  Fica por explicar como é possível alguém assumir verbalmente em audiência de julgamento que se considerou atacado e apenas se defendeu, quando as imagens revelam que o alegado “atacante” jaz inconsciente no chão e é pontapeado por quem alega estar a defender-se.

  Os depoimentos de DD e UU foram isentos, objetivos, consistentes entre si e com a demais prova, designadamente a que resulta da visualização dos vídeos, pelo que o Tribunal os teve por credíveis.

  DD saiu com a UU e viu uma grande confusão. Apercebeu-se que havia várias pessoas à volta do FF e o CC estava a tentar afastar as pessoas, estando uma pessoa caída no chão e que o GG se preparava para lhe desferir um pontapé. Então, saiu a correr e tentou agarrar o arguido GG; é de imediato agredido com um soco e caiu ao chão. Tentou levantar-se. No chão, conseguiu tentar proteger a cabeça com os seus braços, e começou a ser agredido com vários pontapés na zona da cabeça. As lesões por si sofridas e que constam do Relatório Pericial atestam a violência exacerbada dos pontapés que os arguidos lhe desferiram e a qual apenas foi mitigada por alguma proteção que logrou concretizar da forma já descrita, envolvendo a cabeça com as mãos, e ainda da intervenção dos colegas que lograram afastar os agressores, designadamente CC, que passou a ser o agredido: traumatismo craniofacial, do membro inferior esquerdo e do membro superior direito e fratura na mão direita.

  E note-se que no dia 1 de maio, ou seja, decorridos mais de 30 dias sobre o evento, o ofendido DD ainda apresentava diminuição da mobilidade da mão e punho direitos, dor na região do 5.º metacárpico e dedo correspondente da mão direita, aumento de volume local no couro cabeludo na região parietal direita, permanecendo de baixa. Mais apresentava na superfície do crânio área avermelhada, linear, obliqua para baixo e para trás na região parietal direita com 2,5cm de comprimento; no membro superior direito descamação superficial cutânea do dorso da mão e das falanges próximas do 2.º ao 4.º dedo e de todo o 5.º dedo, edema sobre a face dorsal dos 4.º e 5.º metacárpicos, mobilidade passiva do punho e dos dedos mantida e dor na mobilidade passiva. Estas lesões evidenciam a intensa violência da atuação dos arguidos que só não logrou obter um desfecho pior, designadamente ao nível das consequências no seu crânio, pelos motivos já antes enunciados.

  Segundo relatou, UU e CC vieram em seu auxílio e tentaram levantá-lo. Estava completamente desorientado. Não sabe quantos o agrediram, nem exatamente quem quando estava à mercê dos agressores, no chão. Nem sabe se foi ou não agredido com uma pedra na cabeça. Não sabia o que se estava a passar. Sabe que depois o CC e o FF estavam a ir em direção à estrada, à 24 de julho e que os arguidos foram em direção a eles.

  UU estava no grupo de EE, CC, FF, VV e DD, tendo permanecido com este, mais alguns momentos no interior da discoteca, após os restantes terem saído. Ao sair, viu o CC, o FF, o EE e o VV a correr em direção a uma confusão e disse “vamos com os nossos” e correu. Ouviu do colega FF “Polícia, afasta”. O DD também correu e ultrapassou-a. Quando este tentou afastar os arguidos levou um soco na cara e “caiu disparado no chão” e meteu as mãos à cabeça para se tentar proteger na zona da cabeça. Tudo numa fração de segundos. Nisto, quando olha para trás vê os três colegas, o FF, o VV e o CC atrás de uma viatura e os dois arguidos a desafiar para um mano a mano. Mete-se no meio e diz que já chega, que já passou dos limites. Entretanto foram-se embora. Foi ter com o colega EE que estava no chão, e nem se lembra de mais nada. Foi tudo numa fração de segundos, segundo crê.

  O depoimento de CC também inclui este segmento factual e já acima foi transcrito e analisado.

  Disse saber que o colega DD estava a tentar levantar-se, mas levava pontapés e foi ajudá-lo, conseguindo, então, por fim, levantar-se e recuando ambos.

  Desta feita, e felizmente, valeu-lhe o facto de não ter ficado inconsciente e ter logrado colocar as mãos a proteger a sua própria cabeça do número indeterminado de pontapés violentos que os arguidos lhe desferiram de forma contínua e sucessiva, e bem assim o facto de, após, terem intervindo os colegas, que afastaram os agressores. E CC ajudou-o a levantar-se e proteger-se, recuando do local.

  Não se provou que tivesse sido o soco desferido por GG que lhe provocou a queda ao solo, porquanto tal não se apreende, sem dúvida, da visualização dos vídeos.

  Igual fundamentação se exara quanto ao facto de o arguido GG lhe ter desferido um violento pontapé do lado direito, antes da sequência de pontapés que se tiveram por assentes, o que em nada colide com esse número indeterminado de pontapés que posteriormente lhe foram desferidos pelos arguidos. Obviamente que se está prostrado no chão, são-lhe desferidos pontapés e já não socos, como se extrai da visualização dos vídeos, motivo pelo qual se teve este segmento do facto por não provado.

  E também não se fez prova de que tivesse sido agredido com uma pedra na cabeça. O que JJ confirmou a este respeito é que o KK agarrou numa pedra, atirou-a e falhou, pois acertou no muro.

  Em suma, os factos relativos à dinâmica da ação que constitui o objeto dos autos e incorpora este grupo resulta da análise conjugada dos depoimentos com a visualização dos vídeos, tendo-se considerado ademais, os relatórios de danos corporal que sustentas as agressões sofridas compatíveis com as agressões descritas, quando não captadas pelos vídeos, fundamento essencial e primordial para a decisão do Tribunal.

  V

  Os factos deste segmento resultam em primeira linha da visualização dos vídeos.

  É verdade que BB, que está a ser erguido pelos seus dois amigos, disse não se recordar se voltou a ser agredido. Segundo acrescentou, já estava levantado quando recuperou.

  Porém, as imagens são evidentes e a identificação dos intervenientes também.

  O ofendido CC confirmou que seguiu os arguidos e KK e que o arguido AA, apercebendo-se, voltou para trás e desferiu-lhe um soco, provocando-lhe as lesões que a documentação clínica também atesta.

  VI

  O s Relatórios periciais e a documentação clínica atestam as lesões sofridas pelos ofendidos que receberam tratamento hospitalar e que foram sujeitos a avaliação de dano corporal.

  Os factos 2.1.41 e 2.1.42 já se encontram acima devidamente fundamentados.

  As lesões sofridas por BB resultam do seu depoimento: ficou com hematomas na cabeça, uma ferida na testa e sofreu dores, o que é conforme com a atuação dos arguidos sobre a sua pessoa, sendo que tal resultado danoso, como é consabido, provoca dores. São perfeitamente compatíveis com o que resulta da captação das imagens.

  As lesões sofridas por CC constam do Relatório da perícia de avaliação de dano corporal que lhe foi feito, de fls. 1150 a 1152, do qual se extrai que as lesões referidas terão resultado de traumatismo de natureza contundente que é compatível com a informação; que tais lesões determinaram 10 dias para a consolidação médico-legal com afetação, embora não grave, da capacidade de trabalho geral e da capacidade de trabalho profissional em 5 dias; e que do evento resultou para o examinado, como consequência permanente uma cicatriz no hemilábio inferior esquerdo, a qual, sob o ponto de vista médico-legal, não determina rebate estético.

  As lesões sofridas por FF constam do Relatório da perícia de avaliação de dano corporal ao ofendido FF, de fls. 1272 a 1274 a conjugar com fls. 1850 e 1851, do qual se extrai que as lesões referidas terão resultado de traumatismo de natureza contundente que é compatível com a informação; que tais lesões determinaram 10 dias para a consolidação médico-legal com afetação, embora não grave, da capacidade de trabalho geral e da capacidade de trabalho profissional em 5 dias; e que do evento resultou para o examinado, como consequência permanente uma cicatriz no supracílio direito, a qual, sob o ponto de vista médico-legal, não determina desfiguração grave;

  As lesões sofridas pelo ofendido DD constam do Relatório da perícia de avaliação de dano corporal que lhe foi feita, de fls.1154 a 1156, a conjugar com o de fls. 1957 a 1959, do qual resulta que as lesões referidas terão resultado de traumatismo de natureza contundente que é compatível com a informação; que tais lesões determinaram 60 dias para a consolidação médico-legal com afetação em 40 dias da capacidade de trabalho geral e profissional; e que do evento resultou para o examinado, como consequência permanente status pós fratura da base do 5º metacarpo direito, sem repercussão funcional.

  Foram ainda relevantes:

  - A documentação clínica do ofendido DD a fls. 1250 (declaração médica relativa à fratura intra-articular sofrida no dia 19.3.2022) e com 2 CD’s, de fls. 1308 a 1322, relativa a TCE e traumatismo do joelho, 2033, apresentado várias escoriações na região parietal direita;

  - A documentação clínica de FF, de fls. 1672 e 1673, do qual se extrai a ferida incisa sangrante na região supraciliar direita com cerca de 2 cm e ferida no lábio do lado esquerdo não sangrante sem indicação para suturar.

  - Os Relatórios de Admissão na Urgência do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa referente aos quatro ofendidos, EE, FF, DD e CC, de fls. 29 a 32 e 2012 -2013, todos referentes ao dia 19. 3. 2022, entre as 7:00 e as 8:05.

  Vejamos, agora, em particular, as lesões causadas pelos arguidos na vítima EE.

  Extrai-se do Relatório de Autópsia Médico-Legal efetuada a EE – Exame n.º 2022/000482/LX-P-1, de 20.05.2022, fls. 1240 a 1246, que a morte de EE foi devida às lesões traumáticas meningo-encefálicas e raquídeas cervico-vasculares descritas; tais lesões traumáticas constituem causa adequada da morte; estas lesões traumáticas denotam haver sido produzidas por instrumento de natureza contundente ou atuando como tal, podendo ter sido devidas à agressão referida na informação; as restantes lesões traumáticas descritas são próprias de atitude terapêutica e/ou diagnóstica; a análise toxicológica realizada ao sangue e urina foi negativa para drogas de abuso, tendo revelado a presença do anticonvulsivante levetiracetam, do analgésico opióide fentanilo e dos anestésicos tiopental e rocurónio, todos em concentrações consideradas terapêuticas.

  Ora, o Relatório de Autópsia é cristalino.

  Vir alegar que deixa dúvidas só pode resultar de uma desatenção à natureza, função e escopo da prova pericial e dos factos que, através dela, se provam.

  De acordo com a história clínica e o exame pos mortem, não foram detetados dados patológicos subjacentes que possam estar relacionados com a causa de morte indicada.

  De acordo o teor do Relatório, a causa de morte indicada resultou de várias lesões de natureza traumática, encefálicas e medulares cervicais, estando provado que esses traumatismos resultaram diretamente de múltiplas agressões sofridas.

  A descrição das características dessas lesões explicam, pois, sem qualquer dúvida, os achados clínicos identificados no exame objetivo e nos meios complementares de diagnóstico levados a cabo antes do óbito, bem como e, sobretudo, os encontrados na necropsia posteriormente executada.

  Dessa agressão, que se conclui ter sido consequência de traumatismos diretos na cabeça e coluna cervical, produzido por objeto contundente ou atuando como tal, como podem ser socos e pontapés, resultaram lesões de extrema gravidade e irreversíveis que causaram posteriormente, a muito curto prazo, a morte, apesar de todos os esforços clínicos possíveis no sentido de a evitar.

  Assim, sem qualquer dúvida, as agressões provadas e as lesões consequentemente relacionadas explicam o evento fatal, isto é, são a sua causa adequada e não existe outra qualquer possibilidade justificativa, tal como fica bem claro nas conclusões do médico legista.

  No mais, dir-se-á que é irrelevante, para que se estabeleça o nexo de causalidade entre a lesão e a morte, que a vítima tivesse álcool no sangue, com registo 1, 27 gr/dl, como alega o arguido.

  Em síntese:

  - EE foi sujeito às agressões/factos acima descritas, perpetrados pelos arguidos, já devidamente fundamentados e que constituem matéria que não compete ao Senhor Perito reportar ou analisar. O Perito não é testemunha dos factos.

  - Esses factos são compatíveis com as lesões que o Senhor Perito detetou no seu cadáver, e foi essa circunstância que ele exarou de forma clara no seu Relatório.

  - Mais atestou o Senhor Perito no Relatório que essas lesões foram causa direta e necessária da sua morte.

  Repete-se: não compete ao Senhor Perito atestar se foram estes factos tidos como assentes os outros. Compete-lhe isso sim identificar a lesão, atestar se os factos de que foi informado são compatíveis com essa lesão, e atestar se ela é causa direta e necessária da morte.

  E isso, sublinha-se, ressalta cristalino da autópsia e encontra-se indubitavelmente exarado no Relatório pericial.

  Ora, o que ressalta dos factos apurados é que EE era um jovem saudável, esteve sempre bem na noite a que se reportam os autos, inexistindo qualquer evento danoso, sofreu depois as agressões compatíveis com a lesão e essa lesão foi causa da morte; desde a lesão perpetrada pelos arguidos e até ao momento fatal não sofreu qualquer outra agressão, nem aconteceu qualquer evento com elas relacionado. Isso resulta da conjugação horária do evento com o momento de entrada no Hospital.

  Quanto aos demais factos constantes da acusação neste segmento, impõe-se apenas dizer que resultam da documentação clínica junta aos autos, designadamente:

  - Auto de diligência no Hospital de ... (contacto com a médica responsável pela Unidade onde se encontrava a vítima EE), de fls. 87 e 88, e de onde se extrai que foram entregues aos autos os documentos clínicos pela responsável pela unidade onde se encontrava a vítima EE, inclusos a seguir, de fls. 89 a 124:

  - Relatório de episódio de urgência, de fls. 89 a 94;

  - Diário clínico da UUM, de fls.95 a 100;

  - Análises clínicas, de fls. 101 a 108;

  - Exames complementares, relatório de exames de imagens, de fls. 109 a 124;

  - Boletim de Informação Clínica do SICO (Sistema de Informação dos Certificados de Óbito), de fls. 148 a 150, relativo à vítima EE.

  VII

  Este conjunto factual respalda-se nos autos de busca e apreensão juntos aos autos e fotogramas que os acompanham, designadamente:

  - Auto de busca e apreensão ao armário do AA na ..., de fls.194 e 195, tendo sido apreendidos ao arguido os objetos (telemóvel) que foram objeto da guia de depósito de fls. 1738;

  - Auto de busca e apreensão à residência do AA, de fls. 198 a 205, do qual resulta a apreensão de peças de vestuário (ténis, calças e t-shirt), cuja guia de depósito se encontra a fls. 701; encontram-se ainda a instruir os autos os fotogramas da residência do arguido, de fls. 199 a 206, onde se visualizam as peças apreendidas;

  - Auto de busca e apreensão ao Armário do GG na ..., de fls.211 e 212, tendo sido apreendido um Iphone e um par de ténis;

  - Auto de busca e apreensão à residência do GG, de fls. 215 e 216, do qual resulta que lhe foram apreendidas peças de vestuário (calças, “kispo”, camisa).

  VIII

  A prova do dolo e da consciência da ilicitude é aquela que deflui dos factos típicos objetivamente considerados e, a acrescer-lhes, aqueles que defluem do circunstancialismo do cometimento dos factos e dos que são inerentes ao percurso de vida e condições pessoais dos arguidos.

  Vejamos porquê.

  É, a nosso ver, irrefutável que os arguidos tinham consciência da sua superioridade física atendendo ao que se extrai dos factos 2.1.1, 2.1.2 e 2.1.3. Mas não só. Os Relatórios Sociais, devidamente sujeitos ao contraditório, trazem-nos informações importantes sobre tal circunstância de facto: traz-se à colação o teor dos pontos 2.1.94 e 2.1.102 no que tange ao arguido AA, e 1.116, 2.1.119, 2.1.1202.1.121 da matéria assente quanto a GG.

  De resto, se dúvidas houvesse quanto a essa matéria – e não as há de todo – bastaria proceder à visualização dos vídeos para perceber que a sua maneira de estar na contenda, a forma como atuaram, como se estivessem num ringue de ..., em posição atacante, sempre em movimento, e bem assim os danos que a sua atuação ia causando em todos os que agrediam a murro, com uma violência que os deixava ou caídos no chão inconscientes, ou cambaleando desorientados, é de molde a criar a convicção de que a sua superioridade física era francamente exacerbada por reporte aos que sofriam as suas agressões. Os depoimentos testemunhais de AAA, BBB, CCC e SS, já acima transcritos no ponto I, rematam a fundamentação nesta parte.

  No mais, resulta da factualidade assente que o teor do ponto 2.1.68.

  Atentemos, então, em particular no segmento final deste facto – os arguidos mostram indiferença às consequências que podiam advir de pontapearem com violência os ofendidos na cabeça quando estes se encontravam caídos no chão, designadamente a morte.

  Este segmento reporta-se a duas situações de facto: i) sabiam os arguidos que pontapear com violência a cabeça pode causar a morte? ii) Se sim, conformaram-se com essa possibilidade de facto?

  O Tribunal foi particularmente cuidadoso na análise desta questão, atendendo às suas consequências jurídico-criminais. E a sua resposta foi, convictamente, positiva.

  Com efeito, se é do conhecimento do homem médio comum que a zona da cabeça é particularmente vulnerável às agressões, para praticantes de ..., como eram os arguidos, esse conhecimento é obrigatório e eles não podiam deixar de estar cientes dessa vulnerabilidade. As regras da modalidade deste desporto são consabidas e claras: são válidos apenas golpes na frente ou na lateral da cabeça, um soco na nuca repetido três vezes leva à desclassificação; e, sobremaneira importante, é a regra de que a luta pára imediatamente quando um dos lutadores cair ao chão e se o mesmo não se levantar em 10 segundos contados, o combate está encerrado.

  E porquê? Porque o homem comum sabe, e o lutador de ... sabe-o melhor por dever de modalidade, que no crânio encontra-se o cérebro que é o principal órgão do nosso sistema nervoso e responsável pelo comando de todos os outros órgãos vitais para a sobrevivência; numa palavra - é o maestro dos demais órgãos vitais, sendo que as lesões cerebrais são, por regra, de alto risco para a vida.

  O cérebro está relacionado com diferentes funções do nosso corpo, sendo responsável, por exemplo, pela memória, motricidade, entrada de informações sensoriais e controle da respiração e batimentos cardíacos. Trata-se de um órgão nobre, uma estrutura fundamental para a sobrevivência, sendo que a paragem irreversível das suas funções é causa da morte.

  O crânio é fechado e, em equilíbrio, encontram-se o cérebro, o líquido cefalorraquidiano e o sangue, inexistindo espaço para que um deles aumente sem tirar espaço aos outros, o que pode suceder quando há hemorragias difusas e edemas. Mesmo quando os ossos não são quebrados, a mera contusão cerebral pode levar à morte.

  Ainda que todos estes detalhes não sejam conhecidos pelo homem médio, podendo apenas saber que o cérebro (cabeça) é um órgão vital, o que toda a está ciente é que uma forte pancada nela pode ser fatal e é por isso que é obrigatório o uso de capacete como fator de proteção quer em determinados desportos, quer em alguns trabalhos, quer na condução de veículos motorizados. E ainda assim, mesmo com capacete a proteger a cabeça, a morte é causa amiúde de acidentes.

  A vulnerabilidade da cabeça é, portanto, do saber comum e tinha de o ser acrescidamente dos arguidos, pelos fundamentos que encimam esta parte da fundamentação.

  Não pode, pois, vir alegar-se que não previram o desfecho mais funesto, porque qualquer homem médio o preveria. E conformaram-se com ele, pois desferiram um ou mais pontapés e, quando mais do que um, de forma contínua e sucessiva. Fizeram-no com violência, sobre quem jazia prostrado no chão, inerte, e no caso de dois dos ofendidos, inconscientes, e só mais pontapés não desferiu GG em BB porque JJ o evitou; e só não desferiram mais pontapés em DD porque UU e CC os afastaram.

  Como bem referiu a testemunha JJ, também ele praticante de ..., quando o adversário está no chão, não se agride.

  Malogradamente, assim não sucedeu com a vítima EE, não se logrando pôr termo às agressões que lhe foram fatais.

  Quanto às demais situações que não contemplam violentos pontapés na cabeça, resulta dos factos objetivamente analisados e objetivamente apurados que a intenção dos arguidos, ao perpetrá-los, era a de molestar fisicamente os ofendidos.

  O facto 2.1.72 resulta da análise da factualidade objetiva a que se reportam as condutas dos arguidos.

  O Tribunal deu como não provado o facto 2.24 porquanto entendeu que a mera apresentação da queixa e demais documentos que compõem a certidão do NUIPC 1331/21.1..., de fls.1542 a 1551, que investiga as ofensas à integridade física praticadas pelo arguido GG e pelo seu irmão contra o ofendido GGG, militar da GNR, no estabelecimento de diversão noturna L... .. ... no dia 12.11.2021, não permitem, antes de um julgamento com decisão transitada em julgado, concluir em conformidade com o teor do mesmo.

  Relevou, ainda, de forma transversal a todos os factos, a seguinte prova pericial:

  - Relatório de exame pericial da UPTI com o n. º.....96.2022, de fls. 669 (pedido) e 1730 a 1737, relativo à extração de todo o conteúdo dos telemóveis apreendidos, e exame pericial ao telemóvel do arguido GG a fls. 2328 a 2331;

  - Relatório de Exame Pericial Área de Criminalística, fls. 692 a 700, relativo a relatório da reportagem fotográfica de diversas peças de vestuário;

  - Relatório de Exame Pericial Área de Criminalística ........74 - CLC, fls. 817 a 832, relativo a relatório de exame – inspeção judiciária efetuada no dia 19.3.2022, ao estabelecimento 1, no âmbito da investigação;

  - Relatório de Exame Pericial Área de Criminalística ........81 - CLC, fls. 1171 a 1177, relativo às recolhas de amostras referência através de zaragatoa bucal realizadas a DD, CC e FF;

  - Relatório de Exame Pericial Área de Biotoxicologia .......25 - BBG - CLC, fls. 1350 a 1352, referente a ténis e amostra referência de EE, DD, FF e CC, e exame pericial de comparação com o ofendido BB (fls. 1740, 2151 e 2162).

  E a seguinte prova documental:

  - Auto de inspeção judiciária da PJ, de fls. 1 a 16, do qual se extraem fotogramas sobre o local da ocorrência dos factos e das lesões apresentadas pelos ofendidos FF e CC;

  - Auto de apreensão de vestígios, de fls. 26, relativo aos vestígios que se encontravam na via pública, numa bracelete em metal, num lenço de papel, e numa máscara de cor preta;

  - Auto de apreensão de Pen Drive com as imagens do estabelecimento 1, de fls. 27;

  - Auto de apreensão de Pen Drive com as imagens do estabelecimento 2, de fls. 28;

  - Autos de reconhecimentos pessoais realizados pelos ofendidos e testemunhas aos arguidos:

  • Auto de reconhecimento pessoal pela testemunha UU ao arguido GG, que resultou positivo, de fls. 250 a 252;

  • Auto de reconhecimento pessoal pela testemunha UU ao arguido AA, que resultou positivo, de fls. 253 a 256;

  • Auto de reconhecimento pessoal pela testemunha VV ao arguido GG, que resultou positivo, de fls. 257 a 259;

  • Auto de reconhecimento pessoal pela testemunha VV ao arguido AA, que resultou positivo, de fls. 260 a 263;

  • Auto de reconhecimento pessoal ofendido DD ao arguido GG, que resultou positivo, de fls. 264 a 267;

  • Auto de reconhecimento pessoal ofendido DD ao arguido AA, que resultou positivo, de fls. 268 a 271;

  • Auto de reconhecimento pessoal ofendido FF ao arguido GG, que resultou positivo, de fls. 272 a 274;

  • Auto de reconhecimento pessoal ofendido FF ao arguido AA, que resultou positivo, de fls. 275 a 278;

  • Auto de reconhecimento pessoal efetuado pela testemunha AAA ao arguido GG, que resultou negativo, fls. 279 a 281

  • Auto de reconhecimento pessoal pela testemunha AAA ao arguido AA, que resultou positivo, de fls. 282 a 285;

  • Auto de reconhecimento pessoal pelo ofendido CC ao arguido GG, que resultou positivo, que resultou positivo, de fls. 286 a 288;

  • Auto de reconhecimento pessoal pelo ofendido CC ao arguido AA, de fls. 289 a 292;

  • Auto de reconhecimento pessoal pela testemunha HHH ao arguido GG, que resultou positivo, de fls. 296 a 298;

  • Auto de reconhecimento pessoal pela testemunha HHH ao arguido AA, que resultou negativo, de fls. 299 a 302;

  • Auto de reconhecimento pessoal pela testemunha III ao arguido GG, que resultou positivo, de fls. 306 a 308;

  • Auto de reconhecimento pessoal pela testemunha III ao arguido AA, que resultou positivo, de fls. 309 a 312;

  Quanto às imagens de videovigilância, indicam-se as mesmas pelo registo horário que nelas se encontra aposto:

• Imagens /fotogramas registadas pelas câmaras da Discoteca 2, sitas na ..., em ..., auto de visionamento a fls. 82-86, suporte constante da contracapa do 2.º volume do presente inquérito;

  • Imagens registadas pelas câmaras instaladas na Estação da CP ..., ... – constantes de fls. 1233, e auto de visionamento a fls. 1714;

  • Imagens registadas pelas câmaras interiores e exteriores da discoteca 1, sita na Av. ..., que constituem o Apenso 1 - auto de visionamento a fls. 1676-1708, relativas ao dia 19.03.2022, entre as 5:29:11 e 6:36:37;

  • Auto de visionamento de imagens de fls. 319 a 344, relativas ao circuito de vigilância da discoteca 1, relativas ao dia 19.03.2022, entre as 5:58:21 e as 6: 20:15; e de fls. 1636 a 1644, entre as 5:29:11 e as 5:58:24;

  • Imagens registadas pela câmara exterior do estabelecimento “E........ ...........”, sito na ..., em ..., auto de apreensão do respetivo suporte informático (DVD) a fls. 345-436 e auto de visionamento a fls. 347-353.

  • APENSO I – Imagens registadas pelas câmaras instaladas na discoteca 1, na madrugada do dia 19.03.2022, gravadas em 22 DVDs, termo de apensação a fls. 666.

  Deve dizer-se que os depoimentos testemunhais de OO, Inspetora da PJ, JJJ, Diretor Nacional da PJ, KKK, Diretor da PSP, e LLL, jornalista, não foram relevantes para o apuramento dos factos.

  Com efeito, a primeira trouxe à audiência o relato das diligências efetuadas na investigação, coadjuvando à respetiva compreensão procedimental; o segundo e terceiro, arrolados pela Defesa do arguido GG, não tinham qualquer conhecimento dos factos e, ipso facto, as perguntas a que foram sujeitos não se revelaram úteis para o apuramento dos mesmos, não passando de generalidades em casos de detenções, no que tange a JJJ; por fim, LLL, também arrolado pelo arguido GG, não tinha conhecimento direto dos factos.

  Ouviram-se, ainda, ZZ, capelão, arrolado pela defesa do arguido GG, que não tinha conhecimento direto dos factos, trazendo de útil o seu depoimento o que sabia da vida dos arguidos – que eram praticantes de ..., que tinham treino pessoal para situações de conflito enquanto ..., relatando o que se passou após os mesmos terem ido para o ... na tarde seguinte ao cometimento dos factos; assumiu uma atitude complacente para com os arguidos, dizendo que os mesmos foram atacados, se defenderam e que perderam o controlo, sendo certo que tal convicção da testemunha resulta do que lhe foi dito pelos arguidos e respetivos amigos, tendo admitido que não falou nem ouviu a versão dos ofendidos.

  MMM foi também chamado a depor pelo arguido GG e relatou o que sucedeu no ... após os factos, o que lhe foi contado – que atuaram em legítima defesa – e os sentimentos então vivenciados de preocupação e ansiedade. No mais, disse que GG sempre foi um militar sobre o qual nada havia a dizer em seu desfavor e bem assim que os arguidos ficaram psicologicamente abatidos e que chamaram a psicóloga.

  Pela mão defensiva de AA ouviu-se NNN, militar ..., que relatou o que se passou segundo o que lhe contaram, pois não tinha conhecimento dos factos. Veio dizer que lhe foi dito, ao que crê, com verdade, que se tratou de uma rixa em que houve agressões mútuas. No mais, disse que nos ... não se trabalha com agressividade.

  E veio ainda depor OOO, antiga professora do arguido AA, que atestou a sua personalidade afável, a sua correção e disciplina, mais dizendo que é um jovem protetor, meigo, carinhoso e verdadeiro.

  O Tribunal compreende que cada um traga a faceta obtida a partir da interação com o “outro”, que dele guardou e que é a sua verdade. Porém, cada um tem várias facetas que emergem nos diversos contextos em que se move.

  E se GG foi um militar sem que houvesse algo em seu desfavor, isso em nada colide com a prática dos factos dos autos.

  E se AA foi um jovem meigo e protetor em algum momento ou em vários do seu tempo de escola, o que se admite, não foi essa a qualidade que resultou evidente da sua conduta na madrugada dos autos e que os vídeos comprovam.

  No que respeita às condições pessoais dos arguidos relevaram os Relatórios Sociais juntos aos autos (Ref. 35683641 e 35696465) os CRC’ s de AA, de fls. 2323 verso e de GG, de fls. 2320 a 2322 verso.

  O facto tido como assente extraído da contestação do arguido GG resulta da visualização do vídeo. Importa sublinhar que dele não se extrai qualquer contradição com o teor dos factos 2.1.25 e 2.1.26, na esteira do já acima fundamentado, de que os ofendidos agentes da PSP intervieram para pôr cobro às agressões e que, nessa medida, atuaram, nos termos descritos na matéria assente, em conformidade. Tentar neutralizar o agressor é uma forma de apaziguar as agressões que por este estavam a ser levadas a cabo. E não colhe o argumento de que tendo álcool no sangue cujo valor era de 1,27 gr /dl, tal o impeliu a intervir na contenda. Apurou-se que seguiu os seus colegas, que verbalizaram ser polícias, com vista a pôr cobro à contenda, tendo uma atitude apaziguadora, como já fundamentado. Na verdade, o facto de a vítima ter o referido valor de álcool no sangue não obsta ao que acabou de se exarar, nem tem a virtualidade de colocar em causa todos os factos a atinentes a EE que se tiveram por assentes.

  O facto não provado encontra suporta na fundamentação que acima se exarou a propósito da versão dos arguidos que estavam a ser atacados e se defenderam, no ponto IV. Apenas se acrescenta que ainda que se estivesse no início da contenda, não há fundamento para sustentar a ideia de um ataque por parte dos ofendidos, que a eles se dirigiram de braços no ar (e no pressuposto tido como não provado, a seu favor, que não perceberam e não interiorizaram que estes eram agentes da PSP). A resposta à aproximação dos ofendidos é de tal forma intensa e brutal, sobre todos eles, e repetida, que se não compagina com a alegação de temor ou de que pensaram estar a ser atacados. De resto, se as testemunhas perceberam a atitude apaziguadora dos ofendidos agentes da PSP, não colhe que os arguidos a tivessem percecionado como agressora. Não tem sustentação probatória que a conduta dos ofendidos indiciasse uma agressão iminente, o que se sublinha.

  Vejamos de seguida os pedidos de indemnização civil.

  i) Em particular, quanto ao pedido de indemnização civil formulado pelo Estado, relativo aos danos patrimoniais, relevaram:

  - a participação e qualificação do acidente em serviço de EE, de fls. 1814 a 1835 e 1838;

  - a participação e qualificação do acidente em serviço, referente a DD, fls. 1839;

  - a participação e qualificação do acidente em serviço, referente a FF, fls.1840;

  - a participação e qualificação do acidente em serviço, referente a CC, fls. 1841;

  - o pedido de indemnização cível do Diretor Nacional da PSP, de fls. 1836 a 1848;

  - a fatura do funeral, no valor de valor 4 423 €, a fls. 1974 e 1842;

  - a fatura dos cuidados hospitalares prestados a DD, a fls. 1787, valor de 25,28 €; despesas hospitalares, relativamente a DD, fls. 1847-v e 1848;

  - a fatura do Hospital relativa a DD, fls. 1787 verso (35, 00 €), fls. 1788 (69, 10 €), fls. 1789, de despesas em serviço (129, 38 €);

  - Comunicação de serviço, referente às despesas suportados pelo Estado, relativamente a DD, fls. 1847, no montante de 3634,60 €;

  -Aviso e autorização de pagamento da Secretaria Geral do Ministério das Finanças, fls. 1843 a 1845; o comprovativo do pagamento a HH, efetuado pelo Ministério das Finanças, no valor 176 250 €, indemnização compensação especial por morte, a fls. 1975,1 976 e 1977;

  - Despacho n.º 7870-C/2022, de 27 de junho, do DR, compensação especial por morte de EE por acidente sofrido em serviço, fls. 1845-v;

  Importa considerar que o peticionado pelo Estado quanto aos montantes de 104, 10 € e 28, 28 € não colide com as que o demandante Centro Hospitalar veio reclamar, com valores distintos.

  Nesta sede, consideraram-se ainda os Relatórios Periciais de avaliação do dano efetuados aos ofendidos, de onde se extraem a contabilização dos dias em que ficaram incapacitados para o trabalho.

  ii) No que tange ao PIC apresentado pelos demandantes II e HH.

  - Documento Clínico de Psicologia relativo à pessoa de II com a Ref. 35720166, do qual se extraem as patologias de que sofre e que são causa direta e necessária da morte do seu filho EE.

  A testemunha UU descreveu com objetividade e consistência as caraterísticas da personalidade do ofendido EE que se levaram ao acervo positivo.

  No mais, relevaram para a formação da convicção do Tribunal o que é do saber comum e das regras da vida:

  - que no contexto dos factos - a saber, a agressão desferida sobre o ofendido BB, que caiu inconsciente no chão e foi pontapeado de forma violenta na cabeça pelo arguido GG; que o seu colega FF, ao aproximar-se dos arguidos, levou um soco na cabeça; e de seguida, já combalido, tentou afastar-se e o arguido GG continuou a desferir-lhe socos e pontapés; e que o colega CC foi também ele vítima de um soco - a vítima EE, que a tudo isto assistiu e se viu obrigado a intervir na sua qualidade de agente da autoridade e por dever de ofício, não pode deixar de perceber o risco que a sua própria vida corria, tanto mais que resulta do Relatório da Autópsia, a fls. 1241, que tinha uma compleição franzina (1, 72 cm e 55 kg)

  - que a perda de um filho, para qualquer progenitor que viva e sinta de acordo com as naturais afeições, é irreparável do ponto de vista psicológico, e compromete a felicidade e a alegria em prosseguir a caminhada da vida, que se transforma na da sobrevivência; a dor é intensificada pelas circunstâncias especialmente dramáticas da morte e a idade da vítima.

  iii) Do Centro Hospital ar Universitário de Lisboa Central, EPE:

  O prejuízo patrimonial funda-se nas

  - faturas DD, fls. 2104 (330, 88 €), a fls. 2105 (69, 10 €), e a fls. 2106 (35 €);

  - faturas relativas a FF, a fls. 2107 (179, 07 €);

- faturas relativas a CC, a fls. 108 (112, 07 €);

  - faturas relativas a EE, a fls. 2103, (23 730, 14 €).↩︎

4. Ver, entre outros, o mais recente Ac. do STJ de 11.10.2023 (Sénio Alves), processo n.º 813/22.2JABRG.G1.S1, no site do ITIJ, bem como jurisprudência e demais argumentação aí citada, com a qual se concorda e aqui se dá por reproduzida.

5. Artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (ex-artigo 234.º TCE)

  O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial:

  a) Sobre a interpretação dos Tratados;

  b) Sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.

  Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie.

  Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal.

  Se uma questão desta natureza for suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional relativamente a uma pessoa que se encontre detida, o Tribunal pronunciar-se-á com a maior brevidade possível.

6. E, mesmo assim, nem sempre existe essa obrigação de reenvio, pois se a questão até já foi decidida a título prejudicial noutro caso, passa a impor-se aos outros órgãos jurisdicionais dos restantes Estados-membros. Prevalecem assim as decisões anteriores do TJUE sobre as mesmas questões. (assim, também, Ac. do STJ de 17.03.2016, relatora Ana Paula Boularot).

7. Ver, entre outros, acórdão deste STJ de 15.02.2023 (Ana Barata Brito) e de 21.02.2024 (Lopes da Mota), ambos publicados no site da dgsi.

8. Assim, entre outros, Ac. do STJ de 13.07.2005, proferido no processo nº 2122/05, relatado por Henriques Gaspar (consultado no site da dgsi).

9. Ibidem.

10. Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de Inimputáveis e «In Dubio Pro Reo», Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 65.

11. Jorge Figueiredo Dias, Direito Processual Penal (lições coligidas por Maria João Antunes), Secção de Textos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1988-89, p. 103.

12. Como dizem J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, 4ª edição revista, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pp. 205 e 206, o princípio do acusatório “é um dos princípios estruturantes da constituição processual pena” e “uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial”, significando no essencial que “só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento” e o princípio do contraditório impõe o dever “de o juiz ouvir as razões das partes (da acusação e da defesa), em relação a assuntos sobre os quais tenha de proferir uma decisão”, a que acresce “o direito de audiência de todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afectados pela decisão” e “o direito do arguido de intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os testemunhos, depoimentos ou outros elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo”, abrangendo o princípio “todos os actos susceptíveis de afectar a sua posição” (cf. também Ac. do TC nº 674/99, DR II Série de 25/2/2000).

13. Frederico Isasca, Alteração substancial dos factos e sua relevância no processo penal português, Coimbra, Almedina, 1992, p. 54.

14. José Manuel Damião da Cunha, O Caso Julgado Parcial, Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção num Processo de Estrutura Acusatória, Porto, Publicações da Universidade Católica, 2002, p. 399, nota 188.

15. Ibidem.

16. Ac. do TC nº 674/99, DR II Série de 25/2/2000.

17. Assim, Acórdão do STJ de 6/5/2004, proferido no processo nº 04P908, relatado por Santos Carvalho e, bem assim, entre outros, Ac. do STJ de 27/5/2009, proferido no processo nº 09P484, relatado por Raul Borges, ambos consultados no site do ITIJ. Refere-se neste último acórdão do STJ de 27/5/2009 (embora no caso estivesse em causa o crime de tráfico de estupefacientes): “Como vem sendo afirmado pela jurisprudência dominante do STJ, as imputações genéricas, designadamente no domínio do tráfico de estupefacientes, sem qualquer especificação das condutas em que se concretizou o aludido comércio e do tempo e lugar em que tal aconteceu, por não serem passíveis de um efectivo contraditório e, portanto, do direito de defesa constitucionalmente consagrado, não podem servir de suporte à qualificação da conduta do agente - neste sentido podem ver-se os acórdãos de 06-05-2004, processo n.º 908/04-5ª; de 04-05-2005, processo n.º 889/05; de 07-12-2005, processo n.º 2945/05; de 06-07-2006, processo n.º 1924/06-5ª; de 14-09-2006, processo n.º 2421/06 - 5.ª; de 17-01-2007, processo n.º 3644/06-3ª; de 24-01-2007, processo n.º 3647/06-3ª; de 21-02-2007, processos n.ºs 4341/06 e 3932/06, ambos da 3ª secção; de 02-05-2007, processo n.º 1238/07-3ª; de 16-05-2007, processo n.º 1239/07-3ª; de 04-07-2007, processo n.º 2303/07-3ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 234; de 15-11-2007, processo n.º 3236/07-5ª; de 02-04-2008, processo n.º 4197/07-3ª e n.º 578/08-3ª (neste afirmando-se que a dúvida sobre a quantidade de droga vendida a vários consumidores, e apresentada de forma indeterminada e em jeito de imputação genérica, tem de ser equacionada de acordo com o princípio in dubio pro reo); de 02-07-2008, processo n.º 3861/07-3ª. Sem a individualização concreta e clara dos actos integrantes da actividade do arguido, a referência vaga e indeterminada não relevará para efeitos de enquadramento de tráfico com a amplitude temporal certificada nas instâncias, ou seja, durante cerca de 4 anos e 5 meses. Não pode ser conferida toda essa amplitude, a extensão da conduta, pois não se concretiza o modo de execução, os locais onde tiveram lugar as vendas, a periodicidade da sua realização, se os compradores eram revendedores ou meros consumidores, e quanto a qualidade, o que foi efectivamente vendido, se haxixe, ou heroína. Tal imprecisão da matéria de facto provada impede que se considere respeitado o princípio do contraditório, dado que o arguido não poderá validamente nestes casos pronunciar-se sobre a afirmação genérica em causa, uma vez que não concretizada ou individualizada noutros pontos da matéria de facto, no que respeita a alguns períodos. Nesta conformidade, cumpre concluir que a imprecisão inviabiliza a sua aceitação para efeitos penais (…) designadamente, para efeitos de consideração da indicada delimitação temporal da prática do crime, dado que tal constituiria uma violação do direito de defesa do arguido constitucionalmente consagrado.”

18. Neste sentido, José Souto de Moura, «notas sobre o objecto do processo (a pronúncia e a alteração substancial dos factos)», RMP ano 12º, nº 48, p. 48.

19. Jorge Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra: Coimbra Editora, 1981, pp. 429 e 430.

20. Assim, também, Frederico Isasca, ob. cit., p. 197.

21. Cf. Acórdão do TC nº 463/2004, DR II série de 12/8/2004.

22. José Manuel Damião da Cunha, ob. cit., 2002, pp. 442 e 443.

23. Sobre esta matéria ver Ireneu Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, anotada, 2ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1999, pp. 164 e 165. Ac. do TEDH de 25/3/1999, no caso Pélissier et Sassi c. França. Acrescenta-se, nessa decisão (transcrevemos em francês para não deturpar o pensamento daquele Tribunal): “La Cour considère qu´en matière pénale, une information precise et complete des charges pesant contre un accusé, et donc la qualification juridique que la juridiction pourrait retenir à son encontre, est une condition essentielle de l`équité de la procédure”.

24. Assim, entre outros, Ac. do TEDH de 25/7/2000, no caso Mattoccia c. Itália.

25. Assim, entre outros, Ac. do TC n.º 463/2004, DR II Série de 12/8/2004.

26. Publicado no site do www.tribunalconstitucional.pt. Com interesse, também, Acórdão do TC n.º 72/2005, consultado no mesmo site.

27. Ac. do TC n.º 544/2006, DR II série de 6/11/2006.

28. Ver citado Acórdão n.º 173/92, DR II série de 18/9/1992, onde também se escreve (“a propósito da norma ínsita no n.º 2 do art. 418.º do Código de Justiça Militar e na parte em que permite que o tribunal condene por infracção diversa daquela pela qual o arguido foi acusado, ainda que seja mais grave, desde que os factos que subsumem o tipo se encontrem descritos no libelo acusatório”, citando o Ac. do Plenário do mesmo Tribunal n.º 445/97, DR I-A de 5/8/1997): “(…) A acusação, libelo, ou requerimento acusatório, bem como o despacho judicial que os aprecia, representam a síntese da pretensão punitiva do Estado-Administração face ao arguido. São o coroar de todo um trabalho de investigação e de análise jurídica tendente à apresentação da causa ao tribunal do julgamento. Ora, assim como parece perfeitamente razoável que a defesa, na fase do julgamento, possa beneficiar, em princípio, de quaisquer deficiências da acusação em matéria de descrição dos factos, assim também não repugnará que a defesa beneficie de quaisquer deficiências da acusação em matéria de qualificação jurídico-penal desses mesmos factos, principalmente quando sobre a acusação recaiu uma pronúncia feita por um juiz, pronúncia que, ao fim e ao cabo, constitui um primeiro crivo de apreciação dos fundamentos factuais e jurídicos de tal acusação. Pelo menos, essa solução não parece menos razoável do que permitir a possibilidade de uma condenação que manifestamente exceda a pretensão punitiva constante da acusação e recebida na pronúncia.”

29. Ver ainda Ac. do TC n.º 463/2004 e n.º 356/05 (DR II série de 20/10/2005), aqui se escrevendo: “O aditamento do n.º 3 ao artigo 358.º do Código de Processo Penal efectuado pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto veio expressamente impor, no seguimento daquela jurisprudência [refere-se, entre outros, ao Ac. do TC n.º 518/98, DR II série de 11/11/98], a audição do arguido quando o tribunal altera a qualificação dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.”

30. Alterar significa modificar, abrangendo, portanto, o complemento da qualificação jurídica constante da acusação, que seja relevante.

31. Cf. art. 358.º, n.º 3, do CPP e ver, também, por exemplo, Ac. do STJ nº 7/2008, DR I Série de 30/7/2008, fixando a seguinte jurisprudência: «Em processo por crime de condução perigosa de veículo ou por crime de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, não constando da acusação ou da pronúncia a indicação, entre as disposições legais aplicáveis, do n.º 1 do artigo 69.º do Código Penal, não pode ser aplicada a pena acessória de proibição de conduzir ali prevista, sem que ao arguido seja comunicada, nos termos dos nºs 1 e 3 do artigo 358.º do Código de Processo Penal, a alteração da qualificação jurídica dos factos daí resultante, sob pena de a sentença incorrer na nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 379.º deste último diploma legal.»

32. Direito Processual Penal, lições do Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, coligidas por Maria João Antunes, 1988-9, p. 111.

33. Ac. STJ/FJ n.º 11/2013, de 12 de Junho de 2013, que fixou a seguinte jurisprudência: «A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358.º n.os 1 e 3 do CPP».

34. AAVV, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 2ª edição, 2012, anotação ao artigo 132.º de Jorge de Figueiredo Dias e Nuno Brandão, p.49.

35. Jorge de Figueiredo Dias e Nuno Brandão, ob. cit., pp. 54 e 55.

36. Jorge de Figueiredo Dias e Nuno Brandão, ob. cit., pp. 60 e 61.

37. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2ª edição, 2010, p. 401.

38. Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., p. 405.

39. De todo o modo, apesar dessa diferença de atuação, em termos de dosimetria da pena pelo crime de homicídio qualificado consumado, cuja moldura abstrata é de 12 a 25 anos de prisão, o arguido AA foi condenado na pena de 15 anos e 9 meses de prisão e o arguido GG na pena de 16 anos de prisão.

40. Ver, entre outros, Ac. do STJ de 9.06.2023 (Helena Moniz) e ac. do STJ de 18.11.2020 (Nuno Gonçalves), consultados no site do ITIJ.

41. Artigo 671.º (art.º 721.º CPC 1961) Decisões que comportam revista

  1 - Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos.

  2 - Os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual só podem ser objeto de revista:

  a) Nos casos em que o recurso é sempre admissível;

  b) Quando estejam em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.

  3 - Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.

  4 - Se não houver ou não for admissível recurso de revista das decisões previstas no n.º 1, os acórdãos proferidos na pendência do processo na Relação podem ser impugnados, caso tenham interesse para o recorrente independentemente daquela decisão, num recurso único, a interpor após o trânsito daquela decisão, no prazo de 15 dias após o referido trânsito.