EXECUÇÃO
INSOLVÊNCIA
PROSSEGUIMENTO DOS AUTOS
Sumário


1. Em processo executivo declarado suspenso por virtude da declaração de insolvência do executado, pode vir a ser decretado o prosseguimento da instância em certos casos de encerramento do processo de insolvência, não se formando caso julgado formal quanto ao despacho que suspendeu a instância executiva.
2. Quando o insolvente for uma pessoa singular, o artigo 233º,1,c) prevê como um dos efeitos do encerramento do processo de insolvência que os credores recuperam a possibilidade de fazer seguir acções executivas e instaurar novas execuções, com as restrições constantes do eventual plano de insolvência e plano de pagamento.
3. O fim do processo de insolvência pode ocorrer em variadas circunstâncias e com variados efeitos jurídicos. Nem sempre faz sentido a extinção da execução suspensa como efeito automático do encerramento do processo de insolvência.
4. No nº 3 do art. 88º CIRE o legislador disse mais do que pretendia dizer, sendo legítima uma interpretação restritiva do seu alcance.
5. Deve caber a cada processo executivo em concreto a decisão sobre se há motivos e condições para prosseguir com a execução ou não, atendendo ao que tenha ocorrido no processo de insolvência. A decisão deve ser casuística / jurisprudencial e não legal / abstracta (art. 277º,e CPC).
6. Quando numa acção executiva pendente existe uma penhora de um direito de usufruto, com registo predial efectuado, e esse direito não foi apreendido para o processo de insolvência, e o credor em causa não obteve pagamento do seu crédito no processo de insolvência, nem foi decretada a exoneração do passivo restante, não deve ser julgada extinta a execução sem mais.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

No Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo de Execução de Guimarães - Juiz ..., corre termos processo de execução em que é exequente EMP01..., S.A., e executados EMP02..., S.A. e AA.
Nesta acção executiva intentada em 14.5.2019 é título executivo uma letra de câmbio, no valor de € 342.027,79, sacada e aceite pela executada EMP02..., S.A. com o pagamento garantido por aval prestado pela executada AA.
A aquisição do usufruto sobre os prédios identificados no auto de penhora, por doação, a favor da executada AA encontra-se registada desde ../../2012.
Em 17.2.2020 foi penhorado o direito de usufruto dos imóveis descritos nas verbas de 1 a 5 do respectivo auto, para o qual se remete (fls. 731 a 733 do histórico).
Entretanto, a executada AA renunciou ao usufruto (renúncia registada a 2.4.2020).
Com data de 13.6.2022 o agente de execução determinou a realização da venda do bem constante do auto de penhora elaborado na data de 17/02/2020, na modalidade de leilão electrónico.
Foram citados os credores com garantia real registada sobre esses bens imóveis.
Por sentença de 9.5.2019 (no processo nº 7271/18....) foi declarada a insolvência da executada EMP02..., S.A., decisão essa que transitou em julgado em 03.06.2019 (fls. 563 e seguintes), e por despacho de 20-09-2019, foi determinado o prosseguimento dos autos com vista à liquidação do activo, tendo já sido realizado o rateio final, encontrando-se os autos findos, a aguardar a oportuna remessa ao arquivo geral.
Em 13.6.2022 o Agente de Execução determinou a venda na modalidade de leilão electrónico, dos bens penhorados.
Por sentença de 19.08.2022, foi declarada a insolvência da executada AA (fls. 421 e seguintes).
A exequente reclamou o seu crédito nos autos de insolvência.
Foi determinado o encerramento do processo, por insuficiência da massa insolvente (art. 230º,1,d do CRE) para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente.
Ainda não temos conhecimento da solução dada ao incidente de exoneração do passivo restante, encontrando-se os autos a aguardar o resultado de diligências ordenadas.
O direito de usufruto não foi apreendido para a massa insolvente da executada AA.
Em 14.10.2022 foi proferido o seguinte despacho: “apercebemo-nos que, pese embora o conhecimento da pendência de processo de insolvência relativamente a ambas as executadas, não se encontra suspensa a instância, como se impõe.
Assim, determina-se nos termos do disposto no art. 88º, nº 1, do CIRE, a suspensão dos termos da presente execução”.
Este despacho foi notificado às partes e transitou em julgado.

Em 24.10.2023 foi proferida a seguinte sentença:
Nos termos do art. 88º, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas “A declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva intentada pelos credores da insolvência; porém, se houver outros executados, a execução prossegue contra estes.”
Dispõe ainda o nº 3 do mesmo art. 88º que “As acções executivas suspensas nos termos do n.º 1 extinguem-se, quanto ao executado insolvente, logo que o processo de insolvência seja encerrado nos termos previstos nas alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 230.º, salvo para efeitos do exercício do direito de reversão legalmente previsto.”
O processo é encerrado, de acordo com o previsto nas alíneas a) e d) do nº 1, do art. 230º do CIRE, após a realização do rateio final e quando o administrador constate a insuficiência da massa para satisfazer as custas do processo e restantes dívidas da massa insolvente (cfr. art. 232º do CIRE).
Resulta das certidões juntas que as executadas foram declaradas em estado de insolvência, tendo sido encerrado o processo:
-por insuficiência da massa relativamente à executada AA, e
-após rateio final, relativamente à executada EMP02..., Lda.
Verifica-se, pois, in casu, uma impossibilidade superveniente do prosseguimento da lide, nos termos da supra citada disposição legal (art. 88º do CIRE) conjugada com a alínea e) do art. 277º do Cód. Proc. Civil.
Pelo exposto, declaro extinta a presente execução.
Fixa-se à causa o valor dado à execução no requerimento executivo.
As custas serão suportadas em partes iguais por Exequente(s) e Executada(o)(s) insolvente(s) – cfr. art. 536º, nº 1 e nº 2, al. e) do CPC e sem prejuízo da isenção prevista no art. 4º, nº 1, al. u), do RCP.
Registe e notifique”.

Inconformada com esta decisão, a exequente dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo (arts. 852º, 853º,2,b), 627º,1,2, 629º,1, 631º,1, 637º,1,2, 638º,1, 639º, 644º,1,a, 645º,1,a e 647º,1 todos do CPC.

Termina a respectiva motivação com as seguintes conclusões:
1. O presente recurso vem interposto da decisão do Tribunal “a quo” que declarou extinta a execução por impossibilidade superveniente do prosseguimento da lide, nos termos do artigo 88º do CIRE conjugado com a alínea e) do artigo 277º do Código de Processo Civil.
2. Fê-lo com base no facto de o processo de insolvência da executada ter sido encerrado por insuficiência da massa insolvente.
3. Na perspectiva da Recorrente, com o devido respeito, andou mal o Tribunal a quo na inteleção do direito aplicável.
4. Porquanto, a penhora dos direitos de usufruto sobre os imóveis supra identificados foi registada em 17/02/2020.
5. À data da penhora, os direitos de usufruto eram património da executada.
6. Posteriormente ao registo da penhora veio a executada a renunciar aos usufrutos, o que veio a ser registado em 02/04/2020.
7. Por força da prioridade do registo de penhora, como o registo de renúncia ao usufruto foi posterior ao registo de penhora, tal renúncia é inoponível à exequente.
8. Em 19/08/2022 a executada foi declarada insolvente.
9. Por força da renúncia, os direitos de usufruto não foram apreendidos para a massa insolvente da executada.
10. O processo de insolvência foi encerrado por insuficiência da massa insolvente.
11. A suspensão e extinção da instância executiva previstas no artigo 88.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, só é aplicável relativamente a diligências executivas que atinjam os bens integrantes da massa insolvente.
12. O que, na presente execução não aconteceu, pois os bens que se encontravam penhorados no presente processo executivo não integraram a massa insolvente.
13. Pela que a presente execução manteve a sua utilidade.
14. E não podia ser extinta com fundamento no artigo 88º do CIRE.
15. Pelo que a decisão recorrida viola o disposto no artigo 85º, nº 2, artigo 88º, nº 1 e 3, 230 n.º 1, alínea a) e d) do CIRE e artigo 277º, alínea e) do Código de Processo Civil.

A executada AA apresentou as suas contra-alegações, terminando com as seguintes conclusões:

Primeira: A executada / recorrida subscreve o conteúdo da sentença recorrida ao qual adere e dá por reproduzido.
Sem prescindir,
Segunda: Ainda que se considerasse que a sentença recorrida fez uma errada aplicação do Direito – hipótese que apenas se equaciona por mera cautela de patrocínio – o recurso interposto pela exequente não poderia proceder, sob pena de violação do caso julgado formal.
Terceira: A exequente não interpôs recurso do despacho proferido em 14 de Outubro de 2022, que determinou a suspensão da execução – sendo certo que o poderia fazer (artigo 627.º, n.º 1 e 629.º, n.º 1 do Código de Processo Civil) -, pelo que a decisão proferida de suspensão da execução, com os fundamentos constantes do despacho, transitou em julgado – artigo 628.º do Código de Processo Civil.
Quarta: Os fundamentos invocados pelo Tribunal recorrido no despacho proferido em 14 de Outubro de 2022 para suspender a execução são, na parte que releva, exactamente os mesmos que os invocados pelo Tribunal recorrido na sentença que determinou a extinção da instância; fundamentos esses que se inserem no processo lógico, necessário e imprescindível da mesma.
Quinta: Porque assim é, o caso julgado da referida decisão de suspensão estende-se aos seus fundamentos.
Sexta: Face a tudo o que antecede, a procedência do recurso sempre violaria o caso julgado formal e, concretamente, o preceituado nos artigos 620.º e 625.º, n.º 2 do Código de Processo Civil – cf. o decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em situação análoga, no âmbito do Acórdão proferido nos autos que com o n.º 271/14.5TTCBR.C1.S1, correram termos pela sua 4.ª Secção, que teve como Relator o Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Mário Belo Morgado, disponível para consulta em www.dgsi.pt e em que, para além do mais, se escreveu: “Quando uma decisão judicial que deveria ter sido objecto de recurso autónomo não o foi, tendo consequentemente transitado em julgado, não pode o tribunal superior, em sede de recurso da decisão final, contrariar a decisão anteriormente proferida e transitada, sob pena de violação do caso julgado formal.”

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, as questões a decidir consistem em saber se:

a) ocorre caso julgado formal que impede a reapreciação da questão suscitada
b) foi correcta a decisão de declarar extinta a execução

III
Conhecendo do recurso.

Os factos relevantes para a decisão são os que constam do relatório supra.

A) A recorrida veio dizer, nas suas contra-alegações que, ainda que se considerasse que a sentença recorrida fez uma errada aplicação do Direito – hipótese que apenas se equaciona por mera cautela de patrocínio – o recurso interposto pela exequente não poderia proceder, sob pena de violação do caso julgado formal.
Assim, antes de apreciar a questão central colocada pela recorrente devemos apreciar primeiro a excepção dilatória de caso julgado (arts. 278º,1,e, e 577º,i), que logicamente a precede, e, caso seja procedente, impede que essa reapreciação seja feita.

Vejamos o conceito de caso julgado.

Nada como ir buscar auxílio aos clássicos. Ensinava Alberto dos Reis, in CPC anotado, anotação ao art. 672º, que “com o trânsito da sentença em julgado, facto processual definido no § único do art. 677º, produz-se este fenómeno: a formação do caso julgado. O art. 671º propõe-se determinar a autoridade e o valor desta formação. E determina-os assim: a decisão proferida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele. Se confrontarmos este ditame com o que se lê no art. 672º, ficamos logo advertidos de que a decisão transitada em julgado nem sempre tem o mesmo valor ou a mesma eficácia: ao passo que o art. 671º fala de força obrigatória dentro do processo e fora dele, o art. 672º só atribui à decisão força obrigatória dentro do processo.
Estamos, pois, em presença de duas figuras diferentes, de duas realidades perfeitamente distintas. À que o art. 671º considera dá-se o nome de caso julgado material ou substancial: à que o art. 672º desenha cabe a designação de caso julgado formal ou processual. Quando é que o caso julgado reveste a primeira ou a segunda modalidade? A aproximação dos dois artigos habilita a dar a resposta. Se a decisão recai unicamente sobre a relação jurídica processual, temos o caso julgado formal. Se recai sobre o mérito da causa, e portanto sobre a relação jurídica substancial, temos o caso julgado material”.
O conceito de caso julgado emerge actualmente dos arts. 580º e 581º CPC.
No primeiro pode ler-se que “1 - As excepções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à excepção do caso julgado. 2 - Tanto a excepção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior”.
Com particular clareza escreve Lebre de Freitas em anotação ao art. 580º CPC o seguinte: “não faria, efectivamente sentido que, proferida e transitada em julgado uma decisão, o tribunal (o mesmo ou outro), fora dos casos excepcionais em que tal é permitido (recurso extraordinário de revisão, e na actual -embora estranha- configuração da lei, recurso para uniformização da jurisprudência: arts. 696º e 698º-1), fosse de novo ocupar-se, perante as mesmas partes, do mesmo objecto, reapreciando-o, quer para reproduzir a decisão anterior (o que seria inútil), quer para a contradizer, decidindo diversamente (o que desfaria a sua eficácia). Havendo já caso julgado, a decisão, que o nº 2 proíbe de reproduzir ou contradizer, está já adquirida: quando há ainda mera litispendência, trata-se de evitar que duas decisões sejam proferidas ou que se tenha de aguardar o momento em que a decisão seja proferida e transite numa das causas para que a outra seja impedida de prosseguir[1].”
Como escrevem Abrantes Geraldes e outros (CPC anotado, vol. I, anotação ao art. 580º), “a litispendência e o caso julgado são pressupostos processuais de índole negativa, na medida em que a sua verificação gera uma excepção dilatória e conduz à absolvição da instância (arts. 278º,1,e, e 577º,i)”.
Não desconhecemos que, como acrescentam os mesmos autores acabados de citar, “vem surgindo com alguma frequência em arestos dos diversos tribunais o recurso à figura da “autoridade do caso julgado” (ou efeito positivo do caso julgado), com vista a extrair de algumas decisões o mesmo efeito impeditivo que emerge da verificação da excepção dilatória de caso julgado.
Pensamos que a melhor ajuda para aplicar devidamente este regime aos casos concretos pode vir do art. 580º CPC: depois de, no nº 1, explicar em que consistem as excepções de litispendência e de caso julgado, o nº 2 põe o dedo na ferida: “tanto a excepção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior”.
A violação do caso julgado formal não dá origem a uma decisão nula, mas sim a uma decisão ineficaz. E o remédio a adoptar, perante uma decisão ainda não transitada em julgado, errada e contraditória com outra já transitada em julgado, é o recurso. Como escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa (CPC anotado, anotação ao art. 625º), “a excepção dilatória de caso julgado visa impedir a existência de duas decisões contraditórias nos limites objectivos e subjectivos definidos pelo artigo 581º. Apesar da oficiosidade de conhecimento de tal excepção (art. 578º) e da recorribilidade sem dependência do valor da causa (art. 629º,2,a), que visam evitar a consumação da violação do caso julgado, os seus efeitos são remediados a posteriori através de uma medida que concede prevalência à decisão que transitou em julgado em primeiro lugar (valendo para o efeito o critério que consta do art. 628º). Essa prevalência redunda na ineficácia da sentença coberta por trânsito em julgado posterior, constituindo ainda fundamento de oposição à execução que venha a ser instaurada com base em tal decisão (art. 729º,f). Semelhante solução é prevista para os casos em que o conflito se estabeleceu entre duas decisões de natureza adjectiva proferidas no âmbito do mesmo processo”.
Dispõe o art. 620º,1 CPC que “as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo”.
Despacho que recai sobre a relação processual é todo aquele que, em qualquer momento do processo, aprecia e decide uma questão que não seja de mérito (Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. II, 3ª edição, fls. 753).
Ora bem.
O que afirma a recorrida é que a exequente não interpôs recurso do despacho proferido em 14 de Outubro de 2022, que determinou a suspensão da execução – sendo certo que o poderia fazer (artigo 627º,1 e 629º,1 CPC) -, pelo que a decisão proferida de suspensão da execução, com os fundamentos constantes do despacho, transitou em julgado – artigo 628º CPC. Isto porque, acrescenta, os fundamentos invocados pelo Tribunal recorrido no despacho proferido em 14 de Outubro de 2022 para suspender a execução são, na parte que releva, exactamente os mesmos que os invocados pelo Tribunal recorrido na sentença que determinou a extinção da instância; fundamentos esses que se inserem no processo lógico, necessário e imprescindível da mesma. Porque assim é, o caso julgado da referida decisão de suspensão estende-se aos seus fundamentos.
Porém, não podemos acompanhar este raciocínio. As duas decisões em causa são totalmente diversas nos seus fundamentos e na sua eficácia. O despacho de 14.10.2022 limitou-se a declarar suspensa a execução, com fundamento em os executados terem sido declarados insolventes. Já a sentença de 24.10.2023 declarou extinta a execução com o fundamento em que o processo de insolvência tinha sido encerrado por insuficiência da massa, relativamente à executada AA, e após rateio final, relativamente à executada EMP02..., Lda. Não só a ordem judicial é diversa (suspensão da instância num lado, extinção da instância no outro), como os pressupostos de cada uma delas são diferentes. Finalmente, o argumento quanto a nós definitivo para afastar a possibilidade de haver aqui potencial violação de caso julgado formal emerge do facto de a segunda decisão não ser uma repetição da primeira, não ser sobreponível à primeira, e ter um efeito jurídico totalmente diverso da primeira. Para haver caso julgado formal seria preciso defender que uma vez suspensa a instância executiva, o destino dessa execução teria de ser, em qualquer cenário e em qualquer circunstância, a extinção. Já não poderia em circunstância alguma a execução retomar o seu andamento, finda a causa que tinha levado à suspensão.
Ora, é óbvio que tal coisa não se pode afirmar. Quando uma instância, executiva ou declarativa é suspensa, o seu destino nunca é forçosamente a extinção; caso contrário o despacho a declarar a suspensão seria um acto inútil, antes se devendo decretar logo a extinção. Uma acção executiva suspensa pode retomar o seu andamento, ou pode ser declarada extinta. Tudo depende das ocorrências processuais e substantivas.
Menezes Leitão escreve em anotação ao art. 88º CIRE que “face ao disposto no nº 3, não pode ser decretada a extinção da instância executiva por impossibilidade superveniente da lide em virtude da insolvência do executado, ocorrendo apenas a suspensão da mesma, enquanto durar o processo. Cfr. Acórdão RG 5/6/2008 (Antero Veiga), em CJ,33 (2008), 3 pp 274-275; Acórdão RC 22/9/2009 (Emídio Santos), em CJ 34 (2009, 4, pp. 27-28; e Acórdão RP 10/1/2012 (Vieira e Cunha), em CJ, 37 (2012) 1, pp 163-165. Esta situação veio, aliás, a ficar definitivamente esclarecida com o aditamento dos nºs 3 e 4 do art. 88º pela Lei 16/2012, segundo a qual só com o encerramento do processo nos termos previstos nas alíneas a) e d) do art. 233º, se extinguem as execuções suspensas”.
Finalmente, existe inúmera jurisprudência dos Tribunais superiores a constatar que execuções suspensas devido à declaração de insolvência do executado podem retomar o seu andamento (Acs. TRL de 21.09.2006, processo n.º 0826304 e de 10.7.07, Proc. 6414/2007-6; Ac. TRG de 05.06.2008, proc.º n. 825/08.1; Acs. do TRC de 26.10.2010, procº nº 169/08.6TBVLF-F.C1 e de 3.11.09, Proc. 68/08.1TBVLF-B.C1; e Ac. do TRP de 21.06.2010, procº 1382708.1TJVNF.P1, todos in www.dgsi.pt.) Ver ainda o Acórdão TRP de 7/5/2013 (Francisco Matos), e jurisprudência aí citada).
Em conclusão, não se verifica aqui uma situação de caso julgado formal.

B- Cumpre agora averiguar se foi correcta a decisão de declarar extinta a execução.
Recordemos que a sentença recorrida considerou que se verificava no caso uma impossibilidade superveniente do prosseguimento da lide, nos termos do art. 88º do CIRE, conjugado com a alínea e) do art. 277º CPC.

Comecemos por ver o que estabelece o art. 88º CIRE:
1- A declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva intentada pelos credores da insolvência; porém, se houver outros executados, a execução prossegue contra estes. (…)
3- As acções executivas suspensas nos termos do n.º 1 extinguem-se, quanto ao executado insolvente, logo que o processo de insolvência seja encerrado nos termos previstos nas alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 230.º, salvo para efeitos do exercício do direito de reversão legalmente previsto.

O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (art. 1º,1).
Entende-se o regime dos nºs 1 e 3 citados, pois a lógica diz-nos que uma execução universal esvazia ou neutraliza execuções parciais. Na base desta solução está o princípio da igualdade entre os credores, que constitui a pedra angular do processo de insolvência, e que impede a instauração de novas acções executivas contra o devedor ou o prosseguimento das pendentes, sob pena de serem favorecidos apenas alguns credores. Repare-se que o art. 793º CPC dispõe que “qualquer credor pode obter a suspensão da execução, a fim de impedir os pagamentos, mostrando que foi requerida a recuperação de empresa ou a insolvência do executado”.
E como se decide no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ, nº 1/2014, de 25 de Fevereiro, “declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência”. Ergo, transitada em julgado a declaração de insolvência do devedor e aberta a fase da reclamação de créditos, todos os créditos terão de ser ali reclamados.
E sendo seguro que a liquidação do activo, no processo de insolvência, visa a satisfação dos créditos que tenham ali sido reclamados e verificados, compreende-se que a lei determine a prévia suspensão das execuções pendentes contra o insolvente, pois essa é a melhor forma de garantir que os credores concorrem em condições de igualdade ao património do devedor (massa insolvente), assim respeitando o princípio par conditio creditorum.

Como se escreve no Acórdão TRP de 28/2/2023 (Anabela Miranda), “o rateio final pelos credores que incide sobre o que remanesce do produto da liquidação e não é necessário para suportar as custas apuradas na conta [Fernandes, Luís A., Labareda, João, Código da Insolvência e da Recuperação das Empresas Anotado, QJ, 3.ª edição, pág. 670, nota 3] constitui, como é evidente, a fase final do processo com o pagamento dos credores, compreendendo-se, por esse motivo, que não teria qualquer efeito útil o prosseguimento da acção executiva. No pressuposto (normal) de que foram apreendidos, no processo de insolvência, todos os bens existentes no património do devedor, mal se compreende, como se observa no Acórdão da Relação do Porto de 26/10/2017, que os bens da massa insolvente, sendo insuficientes para satisfazer as custas do processo e as dívidas da própria massa, permitam o pagamento de um qualquer outro crédito, dentro ou fora do contexto daquela execução universal”.
Este é um regime há muito consagrado no sistema jurídico português, pois, além do CPEREF, constava também já do art. 1198º CPC. A justificação é dada pelo acórdão do STJ de 25.3.2010, segundo o qual “durante a pendência do processo de insolvência, os credores só podem exercer os seus direitos nesse processo e segundo os meios processuais regulados no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o que consubstancia um verdadeiro ónus posto a cargo dos credores". E acrescenta-se: "na verdade, … o artigo 128º prescreve que, dentro do prazo fixado para o efeito na sentença declaratória da insolvência, devem os credores da insolvência, incluindo o Ministério Público na defesa dos interesses das entidades que represente, reclamar a verificação dos seus créditos por meio de requerimento, acompanhado de todos os documentos probatórios de que disponham (n.º 1) e que a verificação tem por objecto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento, e mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento (n.º 3)".

Porém, aqui chegados, cremos que se impõe fazer uma distinção consoante a natureza do insolvente:
a) nos casos em que o insolvente é uma sociedade comercial, se o encerramento do processo de insolvência tiver lugar por insuficiência da massa insolvente, compreende-se que o encerramento do processo de insolvência após o rateio final importe a extinção da execução pois o registo de tal encerramento acarreta a extinção da própria sociedade (artigo 234º,4 CIRE).
E cumpre ainda notar que de acordo com o procedimento administrativo de extinção da pessoa colectiva, a sociedade em liquidação mantém a personalidade jurídica até ao encerramento da liquidação, só se considerando extinta com o registo do encerramento da liquidação – artigos 146º,2 e 160º,2 do Código das Sociedades Comerciais, e art. 3º, al. s) do Código Registo Comercial. E, como escreve Artur Dionísio de Oliveira, “Os efeitos externos da insolvência”, in Revista Julgar, nº 9, 2009, fls. 180, “a mera pendência deste procedimento, ao contrário do que sucede com o processo de insolvência, não impede a instauração nem o prosseguimento das execuções contra o insolvente, pois, à semelhança do que sucedia com o anterior regime do Código das Sociedades Comerciais, o regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e liquidação de sociedades comerciais, aprovado pelo DL nº 76-A/2006, de 29 de Março, não contém regra análoga à do art. 154º, nº 3 do CPEREF, ou do artigo 88º,1 do CIRE”.

b) Mas que sentido faz a mesma solução quando o insolvente é uma pessoa singular ?
A pergunta quanto a nós justifica-se inteiramente, pois decorre directamente do art. 233º,1,a,c,d CIRE que encerrado o processo de insolvência cessam todos os efeitos que resultam da declaração de insolvência, recuperando designadamente o devedor o direito de disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios, sem prejuízo dos efeitos da qualificação da insolvência como culposa e do disposto no artigo seguinte; e os credores da insolvência poderão exercer os seus direitos contra o devedor sem outras restrições que não as constantes do eventual plano de insolvência e plano de pagamentos e do nº 1 do artigo 242.º, constituindo para o efeito título executivo a sentença homologatória do plano de pagamentos, bem como a sentença de verificação de créditos ou a decisão proferida em acção de verificação ulterior, em conjugação, se for o caso, com a sentença homologatória do plano de insolvência; e ainda, os credores da massa podem reclamar do devedor os seus direitos não satisfeitos.
O Acórdão TRC de 7 de Março de 2017 (Maria João Areias) elabora sobre tal questão, dizendo: “no caso de insolvência de pessoa singular, não se percebe por que motivo, num caso ou no outro, o encerramento do processo de insolvência acarretará automaticamente a extinção das execuções pendentes: não implicando a declaração da insolvência a extinção da pessoa singular, com o encerramento do processo de insolvência o devedor recupera o direito de disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios (art. 230º, nº1, al. a), CIRE). E, a não ser que tenha sido abrangido pelo decretamento da exoneração do passivo restante [Se tiver sido proferido despacho de exoneração do passivo restante, cessado o processo de insolvência e durante o período da cessão, manter-se-á a suspensão das execuções, por força do nº 1 do art. 242º, CC (segundo o qual, durante o período da cessão não são permitidas quaisquer execuções sobre os bens do devedor)], o credor que não tenha obtido satisfação integral do seu crédito no processo de insolvência poderá fazê-lo nos termos gerais (artigo 233º, nº 1, al. c), CIRE). E, apesar do fim do processo de insolvência, podem existir ou vir a ser gerados bens ou rendimentos, susceptíveis de penhora, que permitam ao exequente a satisfação do crédito. Assim sendo, não faz qualquer sentido que se decrete, sem mais, a extinção da execução pendente quando, no momento seguinte, lhe é facultada a instauração de uma execução para cobrança dos créditos não satisfeitos”.
Este último argumento é quanto a nós irrespondível e merece ser reafirmado: qual a lógica de impor, sem mais, a extinção da execução pendente quando, no momento seguinte, é permitido ao então exequente instaurar uma nova execução para cobrança dos créditos não satisfeitos ? Tal solução seria um atentado gratuito ao princípio da economia processual.
Daqui decorre que, salvo melhor opinião, se o que está em causa é a eventual impossibilidade ou inutilidade do prosseguimento da lide no processo de execução, só da avaliação das circunstâncias do caso concreto tal impossibilidade ou inutilidade se poderá aferir.
Como escreve Maria do Rosário Epifânio, in Manual de Direito da Insolvência, 2013, 5ª edição, pág. 248, “a massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo», pelo que pode ser definida como «o conjunto de bens actuais e futuros do devedor, os quais, a partir da declaração de insolvência, formam um património separado, adstrito à satisfação dos interesses dos credores”.
Nada impede que, após a liquidação da massa insolvente, sobrevenham ainda rendimentos ao insolvente. E desde que os devedores não beneficiem da exoneração do passivo restante, ou venha entretanto a ser revogada tal concessão, podem então os credores que não obtiveram no processo de insolvência o ressarcimento integral do seu crédito, prosseguir a execução relativamente a esse novo e autónomo património. O mesmo é dizer que o processo de execução pode continuar a ser possível, e que, até por uma razão de economia processual, deve a execução manter-se até que o processo de insolvência se encerre, de forma a obviar que tenha, por vezes, que se iniciar um processo novo.

Veja-se o art. 233º CIRE, que, sobre os efeitos do encerramento do processo de insolvência, dispõe:

1- Encerrado o processo, e sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 217.º quanto aos concretos efeitos imediatos da decisão de homologação do plano de insolvência:
a) Cessam todos os efeitos que resultam da declaração de insolvência, recuperando designadamente o devedor o direito de disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios, sem prejuízo dos efeitos da qualificação da insolvência como culposa e do disposto no artigo seguinte;
b) Cessam as atribuições da comissão de credores e do administrador da insolvência, com excepção das referentes à apresentação de contas e das conferidas, se for o caso, pelo plano de insolvência;
c) Os credores da insolvência poderão exercer os seus direitos contra o devedor sem outras restrições que não as constantes do eventual plano de insolvência e plano de pagamentos e do nº 1 do artigo 242.º, constituindo para o efeito título executivo a sentença homologatória do plano de pagamentos, bem como a sentença de verificação de créditos ou a decisão proferida em acção de verificação ulterior, em conjugação, se for o caso, com a sentença homologatória do plano de insolvência;
d) Os credores da massa podem reclamar do devedor os seus direitos não satisfeitos.

Como escrevem Carvalho Fernandes e João Labareda, em anotação a este artigo, “nesta matéria, para mais perfeito esclarecimento do regime contido nesta norma, importa começar por atender novamente às limitações que decorram da existência de um plano de insolvência ou, também, de um plano de pagamentos, neste caso expressamente salvaguardadas no texto legal; além disso, há que levar em conta as restrições resultantes de um pedido de exoneração do passivo restante, em função, nesta hipótese, do disposto no nº 1 do art. 242º.
Se não se verificar nenhuma dessas situações, os credores da insolvência podem exercer livremente os seus direitos contra o devedor; nas demais, podê-lo-ão fazer em conformidade com o plano aprovado.

Para este efeito, a alínea c) do nº 1 do art. 233º atribui o valor de título executivo a várias decisões proferidas no âmbito do processo de insolvência, a saber:

a) sentenças homologatórias do plano de insolvência e do plano de pagamentos;
b) sentença de verificação de créditos ou decisão proferida em acção de verificação ulterior, conjugadas, quando necessário, com a sentença homologatória do plano de insolvência”.
Assim o artigo 233º, n.º 1, al. c) prevê como um dos efeitos do encerramento do processo de insolvência que os credores recuperam a possibilidade de fazer seguir acções executivas e instaurar novas execuções, com as restrições constantes do eventual plano de insolvência e plano de pagamento (cf. neste sentido Menezes Leitão, CIRE Anotado, pág.129).

Ainda no mesmo sentido, afirma-se no Acórdão TRG de 10 de Abril de 2014 (Purificação Carvalho) que “na grande maioria dos casos, as execuções poderão retomar o seu rumo, podendo ser instauradas novas execuções contra o insolvente, assim como novas acções declarativas. De facto, com o encerramento do processo o devedor recupera o direito de disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios – cf. art.º 233º nº1 a)”.
E veja-se ainda, com particular clareza, o que se escreve no Acórdão TRP de 20 de Fevereiro de 2017 (Alberto Ruço): “como o processo de insolvência é uma execução universal, todos os créditos sobre o falido são invocados e discutidos neste processo perante o insolvente e todos os restantes credores, não o podendo ser em outro processo. De igual modo, todos os bens do insolvente são apreendidos para o processo de insolvência, com vista a dar pagamento aos credores através deles. Daí que quaisquer pretensões patrimoniais sobre o insolvente não sejam possíveis fora do processo de insolvência. Tratou-se de uma opção do legislador, que certamente considerou ser a mais adequada aos fins do processo de insolvência. Para conseguir este objectivo, o legislador não pode permitir que durante a pendência do processo de insolvência um credor faça valer os seus direitos fora deste processo. Porém, este regime pressupõe a pendência do processo de insolvência; se já não existir processo de insolvência, claro está que este escopo (execução universal) também não existe”.
Após a liquidação da massa insolvente podem ainda sobrevir rendimentos e, desde que o devedor não beneficie da exoneração do passivo restante ou venha, entretanto, a ser revogada tal concessão, podem os credores que não obtiveram no processo de insolvência o ressarcimento integral do seu crédito, prosseguir a execução relativamente a esse novo e autónomo património. A lide executiva poderá continuar a ser possível, sendo que o princípio da economia processual aconselha a que a execução se aproveite de forma a obstar a que haja necessidade de se iniciar um processo novo (cfr. acórdão da Relação de Guimarães de 11.7.2013, acórdão da Relação de Lisboa de 4.3.2010, proc. 119-A/2001.L1-2, acórdão da Relação de Coimbra de 26.10.2010 e acórdão da Relação de Évora de 21.12.2017, proc. 1607/16.0T8STR-H.E1, in www.dgsi.pt).
O encerramento do processo que se segue ao termo da liquidação (art. 230º,1,a) não obsta a que os credores que não tenham obtido o ressarcimento integral no processo de insolvência, venham posteriormente a atacar o novo património adquirido pelo devedor, susceptível de penhora (neste sentido, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª ed., Quid juris Lisboa 2013, pág. 709). Nesta hipótese, desde que o crédito não tenha sido extinto por força da concessão do benefício da exoneração do passivo restante, uma vez encerrado o processo de insolvência, o seu titular é livre de intentar ou fazer prosseguir execuções para cobrança do passivo não satisfeito.
Esta questão que estivemos a analisar entronca com o conceito de inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide. Como refere o Supremo Tribunal de Justiça no acórdão de 21.2.2013 (Proc.º 2839/08.0YXLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt) “a inutilidade superveniente da lide é uma realidade absoluta, não se podendo extinguir a instância nos casos em que a utilidade existe, ainda que mínima ou pouco provável. Emanação da proibição da prática de actos inúteis que, por sua vez, está relacionada com o princípio da economia processual, o que é proibido é a prática de actos que, não tendo utilidade para a “realização da função processual”, o único efeito que tenham é o de “complicar o processo, impedindo-o de rapidamente atingir o seu termo”.
Já Alberto dos Reis explicava que “uma coisa são actos absolutamente inúteis, outra actos supérfluos ou desnecessários, mas que podem ter alguma utilidade” (Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, pág. 268).
A questão, assim, consiste em saber que vicissitudes ocorridas no processo de insolvência podem levar a uma situação de impossibilidade ou inutilidade superveniente da execução que ficou suspensa por causa da declaração de insolvência.
Pode ler-se no Acórdão do TRP de 10 de Novembro de 2022 (Filipe Caroço) o seguinte: “está subjacente ao art. 88º a ideia de que os credores virão reclamar os seus créditos ao processo de insolvência, neste processo sendo reconhecidos e graduados para lhes ser dado pagamento, pelo menos na medida do possível. Deste modo, sendo o processo de insolvência um processo de execução universal, nos termos definidos pelo n.º 1 do art. 1º, a sua finalidade é coincidente com a da acção executiva. Daí que o encerramento do processo de insolvência determine a extinção das acções executivas nas situações a que se refere o art.º 230º,1,a)  d). O caso em análise tem contornos peculiares. Se bem que o Administrador da Insolvência constatou a insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente, o que, em princípio, só por si, justificaria a extinção da execução, nada nos diz que a mesma perdeu a sua utilidade, podendo tê-la. Na realidade, foi julgada extinta, na insolvência, a instância de graduação de créditos, sem sentença, de onde resulta não ter perdido validade e eficácia o título executivo pré-existente ao processo de insolvência e que serviu de base à execução. Por que não aproveitar toda a utilidade e economia de meios que emergem da cessação da suspensão da execução? E por que não evitar uma nova execução que sempre teria que repetir o esforço e o desempenho entretanto desenvolvidos, quando continua a estar em causa o mesmo título executivo e as mesmas partes na execução, tendo sido já penhorados rendimentos da executada no processo de execução que não foram atendidos no processo de insolvência (como resultas da análise do processo)? Trata-se de uma situação especial em que uma interpretação teleológica do art. 88º,3 e o respeito pelo princípio da economia processual e aproveitamento dos actos processuais hão de conduzir, na nossa perspectiva, à possibilidade de levantamento da suspensão da execução, sem extinção, para que prossiga a sua tramitação”.
A lógica subjacente a todo o regime que temos estado a analisar é a de que a instauração do processo de insolvência, e sobretudo a declaração de insolvência, tem efeitos imediatos e drásticos sobre as acções executivas parcelares pendentes, as quais ficam paralisadas. Podemos dizer que são sujeitas a um “travão” legal. Ao invés, a mesma lógica determina que o encerramento do processo de insolvência tenha o efeito oposto, de “destravar” o seu andamento. Desaparece o constrangimento que tinha sido imposto por lei e as acções executivas que tinham ficado suspensas podem retomar o seu andamento.
Se o insolvente for pessoa singular e tiver havido exoneração do passivo restante, existe um constrangimento imposto pela alínea c) do n.º 1 do art. 233º: deve observar-se o disposto no art. 242º,1, nos termos do qual durante o período da cessão (os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo), “não são permitidas quaisquer execuções sobre os bens do devedor destinadas à satisfação dos créditos sobre a insolvência".
O credor que não tenha obtido a satisfação integral do seu crédito no processo de insolvência, e caso não tenha sido decretada a exoneração do passivo restante, poderá ainda fazê-lo nos termos gerais (art. 233º,1,c); ou seja, em acção executiva.
Para o exercício judicial dos direitos dos credores da insolvência constitui título executivo a sentença homologatória do plano de pagamentos (art. 259º), bem como a sentença de verificação de créditos (art. 141º), conjugada com, se necessário, a sentença homologatória do plano de insolvência (art. 214º).
Em resumo, o fim do processo de insolvência pode ocorrer em variadas circunstâncias e com variados efeitos jurídicos. Nuns casos os credores podem ver os seus créditos satisfeitos, noutros não. Pode ocorrer exoneração do passivo restante, ou não.
A esta luz cremos ser legítimo afirmar que no nº 3 do citado art. 88º CIRE o legislador disse mais do que pretendia dizer, e que, de certa forma, o nº 3 entra em contradição com o nº 1, exigindo-se ao aplicador uma interpretação restritiva do seu alcance. Com efeito, se a declaração de insolvência determinou a suspensão das acções executivas pendentes, o encerramento do processo de insolvência deveria ter o efeito de abolir o dito travão, permitindo que as acções prosseguissem, sendo deixado a cada processo executivo em concreto a decisão sobre se há motivos e condições para prosseguir com a execução ou não, atendendo ao que tenha ocorrido no processo de insolvência. A decisão deveria ser casuística / jurisprudencial e não legal / abstracta.
Ao invés, veio a letra da lei impor nesses casos, de forma cega, a extinção dessas execuções. Daí a contradição.
Claro que se percebe a ideia do legislador, dentro da lógica de que, exaurido o património do devedor no processo de insolvência, verifica-se em relação a todas as execuções parcelares suspensas um fenómeno de impossibilidade superveniente da lide.
Mas como ficou demonstrado nem sempre assim é. E o património é uma realidade dinâmica, a todo o momento entram e saem bens e direitos.
Mais valia ao legislador não ter determinado expressamente de forma cega a extinção das execuções parcelares pendentes, deixando isso para ser decidido em cada uma delas, através da regra geral do art. 277º,e CPC.

Aqui chegados, e tendo presente este quadro legal e jurisprudencial, resta perceber que no caso destes autos cremos estar perante uma situação igualmente peculiar. É que, como vimos, nesta acção executiva pendente existe uma penhora de um direito de usufruto, com registo predial efectuado, sendo que esse direito não foi apreendido para o processo de insolvência, e a decisão recorrida foi proferida -tanto quanto do histórico resulta- sem ser conhecida a decisão final do incidente de exoneração do passivo restante. E sendo certo que a executada AA renunciou ao usufruto, e essa renúncia está registada, a data do registo da penhora é anterior à data do registo da renúncia.
Por tudo isto, cremos que assiste razão à recorrente quando afirma que não se podia afirmar, como fez a sentença recorrida, que ocorria uma situação de impossibilidade superveniente da lide executiva. Isto porque a extinção da execução não era imposta pelo CIRE neste caso concreto, interpretado restritivamente da forma que vimos ser a melhor.
Donde, a sentença que julgou extinta a execução não se pode manter, havendo ainda que ouvir a exequente sobre o que fazer quanto ao bem penhorado e não apreendido para a massa insolvente, e averiguar ainda qual a decisão final do incidente de exoneração do passivo restante. Isto porque o encerramento do processo de insolvência não determina ope legis , de forma universal, a extinção da instância da acção executiva em causa.

V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso procedente, e em consequência revoga a sentença recorrida.

Custas pela recorrida (art. 527º,1,2 CPC).

Data: 11.4.2024

Relator (Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto (Joaquim Boavida)
2º Adjunto (Alexandra Rolim Mendes)


[1] CPC anotado, 3ª edição.