LOCAÇÃO FINANCEIRA
INSOLVÊNCIA DO LOCATÁRIO
ENTREGA JUDICIAL DE IMÓVEL
Sumário

I. Tendo sido declarada a insolvência de sociedade que celebrara contrato de locação financeira tendo por objecto bens imóveis, o qual se encontrava em vigor aquando da declaração de insolvência da locatária, é aplicável a regra geral do artigo 102.º do CIRE.
II. Tendo a Sr.ª AI recusado o cumprimento do negócio e estando em causa bens de terceiro, nunca apreendidos para a massa, a devedora, sociedade locatária que mantém personalidade jurídica e judiciária até à sua extinção nos termos do n.º 3 do artigo 234.º do CIRE, tem legitimidade para ser demandada no âmbito do procedimento cautelar de entrega judicial previsto e regulado no artigo 21.º do DL 145/95, de 24 de Julho.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Processo n.º 21534/23.3T8LSB.E1[1]
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém
Juízo Central Cível de Santarém - Juiz 1


I. Relatório
A Caixa Geral de Depósitos, SA deu entrada no Juízo Central Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa dos presentes autos de procedimento cautelar de entrega judicial de bem locado, sendo requerida a Farmácia (…), Lda., pedindo a final que fosse ordenada a apreensão judicial das fracções autónomas que identificou e, uma vez decretada a providência requerida, fosse antecipado o juízo sobre a causa principal nos termos do disposto no n.º 7 do artigo 21.º do DL 149/95, de 24 de Junho.
Em fundamento alegou, em síntese, ter celebrado com a requerida em 7 de Março de 2006 contrato de locação financeira imobiliária tendo por objecto as aludidas fracções, que adquiriu sob proposta da locatária e que lhe cedeu em locação mediante o pagamento de uma renda mensal, tendo as partes previsto como prazo de vigência 180 meses, tendo aquela opção de compra dos imóveis.
Mais alegou que a requerida veio a ser declarada insolvente por sentença proferida em 13 de Julho de 2021, tendo notificado a Sr.ª administradora nomeada para comunicar qual a opção que tomava em relação ao contrato em vigor, vindo esta a declarar que não pretendia cumprir o contrato, o que fez mediante comunicação datada de 18 de Maio de 2023. Na sequência de tal comunicação foi o contrato declarado resolvido, com a consequente obrigação de entrega das fracções locadas livres de pessoas e bens, o que não se verificou até ao presente e fundamenta o pedido aqui formulado.
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Citada, a requerida veio arguir a excepção da incompetência em razão do território do juízo central cível da comarca de Lisboa, defendendo a competência do tribunal da situação dos bens, nos termos do artigo 78.º do CPC.
Mais alegou que apesar das fracções locadas não terem sido apreendidas para a massa, têm vindo a sê-lo as rendas pagas pelos respectivos (sub)arrendatários. Acrescentou que as fracções têm milhares de euros em benfeitorias, tendo a Sr.ª AI procedido ao pagamento de parte do valor reclamado pela requerente, de modo que as rendas actualmente em dívida não ultrapassam os € 35.000,00, sendo por isso intenção da oponente manter o contrato ou liquidá-lo, conforme foi oportunamente comunicado à CGD, SA, pelo que deve a providência requerida ser julgada improcedente.
A requerente respondeu, defendendo a improcedência da excepção.
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Foi proferida decisão que, na procedência da excepção, decretou a incompetência do Juízo Central Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa e determinou a remessa dos autos do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo Central Cível.
Presentes os autos ao Sr. Juiz titular, proferiu decisão em 12/12/2023 [Ref.ª 95114138], nos termos da qual julgou a requerida parte ilegítima, decretando a sua absolvição da instância[2].

Inconformada, apelou a requerente e, tendo desenvolvido na alegação apresentada os fundamentos da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões:
“1.ª A Recorrente considera que a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo ao julgar a requerida parte ilegítima para a presente causa, padece de erro de julgamento na análise dos factos e aplicação do correspondente direito.
2.ª Sendo que fundamenta a sua decisão no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08-06-2022, o qual trata de situação diversa em termos de matéria de facto daquela que ocorre nos presentes autos.
3.ª Ora, a situação retratada no Acórdão citado na douta sentença recorrida compreende a opção pelo cumprimento do contrato celebrado sobre o qual existia hipoteca registada, tendo o imóvel sido apreendido para a massa insolvente.
4.ª Acontece que no nosso caso, as frações autónomas locadas não foram apreendidas para a massa insolvente, dado que sempre foram propriedade da requerente e a Sra. Administradora de Insolvência, devidamente notificada nos termos do disposto no artigo 102.º do CIRE, optou pelo não cumprimento do contrato de locação financeira que se encontrava em execução ao tempo da declaração de insolvência da requerida.
5.ª Ora, a Recorrente apenas veio requerer a restituição das frações de que é proprietária.
6.ª As quais, repita-se, não foram apreendidas para a massa insolvente, e, portanto, não estão na disposição desta, nem da Exma. Senhora Administradora de insolvência.
7.ª Logo, continuando a ser detidas pela requerida.
8.ª Ora, o diploma que regula o contrato de locação financeira é o Decreto-Lei 149/95, de 24 de junho.
9.ª A Locação Financeira é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa mediante o pagamento de uma retribuição.
10.ª De salientar que a propriedade do locador sobre o bem é garantia de um possível incumprimento do locatário.
11.ª Assim, estabelece o n.º 1 do artigo 21.º do Decreto-Lei 149/95 que “Se, findo o contrato por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra, o locatário não proceder à restituição do bem ao locador, pode este, após o pedido de cancelamento do registo da locação financeira, a efetuar por via eletrónica sempre que as condições técnicas o permitam, requerer ao tribunal providência cautelar consistente na sua entrega imediata ao requerente.”
12.ª O regime do Decreto-Lei 149/95, de 24 de junho é um regime especial que foge ao regime regra dos procedimentos cautelares pelo que não lhe é aplicável o regime previsto para os procedimentos cautelares comuns, mas tão só o que não estiver especialmente regulado naquele diploma.
13.ª Nomeadamente as regras relativas aos requisitos de decretamento (artigo 362.º do CPC), mas tão só o que não estiver especialmente regulado no DL 149/95, de 24 de junho, é esse o sentido da remissão do n.º 8 do artigo 21.º deste diploma.
14.ª Nesta medida cautelar especial, a lesão do direito é presumida pela lei, não sendo necessária a demonstração do periculum in mora, bastando que seja demonstrado que o contrato de locação financeira já cessou a sua vigência e o locatário não devolveu o bem.
15.ª Releva, também, que o bem locado e cuja apreensão é pedida nos autos não é bem penhorável e, portanto, não foi apreendido para a massa insolvente.
16.ª Com efeito, a declaração de insolvência limita a capacidade patrimonial da requerida, esta perde os poderes sobre os bens integrantes da massa insolvente que passaram a competir ao Administrador da Insolvência.
17.ª Contudo, quanto aos bens não incluídos na massa insolvente, a requerida mantem os seus poderes de administração e de disposição.
18.ª No nosso caso, a Sra. Administradora de Insolvência optou pelo não cumprimento do contrato, pelo que, desse modo, nenhum direito se constitui para a massa insolvente sobre as frações locadas.
19.ª Logo, a entidade que continua obrigada à restituição do bem locado é a requerida.
20.ª A insolvência da requerida não conduziu à sua imediata extinção, a requerida continua, ainda, a deter personalidade jurídica e, portanto, personalidade judiciária nos termos do n.º 2 do artigo 11.º do CPC, podendo os presentes autos correr os seus termos contra a mesma.
21.ª Estabelece o n.º 3 do artigo 234.º do CIRE que a sociedade comercial declarada insolvente só se extingue com o encerramento do processo após o rateio final.
22.ª Ora, a requerida não está extinta, o processo de insolvência encontra-se em fase de liquidação do ativo.
23.ª Logo, nos termos do artigo 30.º do CPC é a entidade com legitimidade passiva para os termos da presente demanda.
24.ª Neste sentido veja-se o Acórdão da Relação de Lisboa de 30/11/2011: “ I - A declaração de insolvência de uma sociedade comercial não conduz à sua imediata extinção, mas, apenas, à sua dissolução, considerando-se a sociedade dissolvida extinta com o registo do encerramento da liquidação – até então continuará a deter personalidade jurídica e, logo, personalidade judiciária.
II – Tem legitimidade passiva para o procedimento cautelar previsto no artigo 21.º do D-L 149/95 a sociedade comercial com a qual a requerente da providência celebrou um contrato de locação financeira que cessou anteriormente à declaração de insolvência da locatária, uma vez que o bem objecto do contrato e cuja entrega é pretendida não foi apreendido para a massa insolvente.” (Sumário do Relator)” – Cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 30/11/2011 in www.dgsi.pt.
25.ª Não se verifica, portanto, a ilegitimidade da requerida, sendo que não está extinta e o bem locado cuja apreensão é pedida nos autos não é bem penhorável não tendo sido apreendido para a massa insolvente.
26.ª O presente procedimento cautelar é o único meio de a requerente assegurar o seu direito.
27.ª Conclui-se que a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo nega à requerente o direito de acesso à tutela jurisdicional, violando, entre outras os artigos os artigos 11.º e 30.º do CPC, 81.º, 234.º, n.º 3, do CIRE e 20.º, n.º 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa”.
Com os fundamentos assim sintetizados concluiu pela procedência do recurso e consequente revogação da decisão recorrida, devendo os autos prosseguir com vista à prolação da decisão de mérito.
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Não foram oferecidas contra alegações.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, constitui única questão submetida à apreciação deste Tribunal determinar se a requerida é, conforme foi decidido, parte ilegítima.
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II. Fundamentação
À decisão importam os factos ocorridos no processo e relatados em I., dos quais resulta que, tendo a sociedade Farmácia (…), Lda. celebrado com a ora apelante em 7 de Maio de 2006 contrato de locação financeira tendo por objecto as fracções autónomas nele identificadas, tal contrato encontrava-se ainda em vigor aquando da declaração da insolvência da locatária.
Encontra-se ainda adquirido nos autos que, tendo a Sr.ª AI sido notificada pela locadora para declarar nos autos se pretendia ou não cumprir o contrato, respondeu negativamente, não tendo nenhuma das fracções ali identificadas sido apreendida, desde logo porque não pertenciam à devedora, não tendo portanto integrado a massa insolvente que, conforme resulta do artigo 46.º do CIRE[3] “(…) salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo”[4]. Integram assim a massa insolvente todos os bens -e direitos- que, por determinação substantiva, possam ser chamados a responder pelas dívidas do devedor, incluindo portanto a expectativa de aquisição dos bens locados, que é susceptível de penhora nos termos do artigo 778.º do CPC.
Da declaração de insolvência resulta ainda a privação dos poderes de administração e disposição do devedor em relação aos bens – e direitos – apreendidos para a massa, os quais passam para o AI, que assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessam à insolvência (cfr. o na sentença invocado artigo 81.º, impressivamente epigrafado de “Transferência dos poderes de administração e disposição”).
No que respeita aos negócios em curso, como era o caso do contrato celebrado com a apelante e que se encontrava em execução consoante a definição que consta do artigo 102.º, este mesmo preceito consagra o princípio da suspensão do cumprimento: declarada a insolvência, o cumprimento dos negócios em curso suspende-se até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou pela recusa do cumprimento. Trata-se de um direito potestativo concedido ao AI e que lhe permite escolher, atendendo ao melhor interesse para a massa que representa, entre cumprir o contrato ou antes recusar o seu cumprimento.
No caso ora sujeito a apreciação, estando em causa um contrato de locação financeira, diverso do contrato de locação, teve lugar, correctamente, a aplicação da regra geral do artigo 102.º e, tendo o AI recusado o seu cumprimento, é ainda aplicável a disciplina do n.º 3 do preceito no que respeita aos efeitos da recusa, por força da remissão feita pelo n.º 5 do artigo 104.º (cfr., neste preciso sentido, o acórdão do STJ de 1/10/2023, no processo n.º 431/23.8T8LSB.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt), crédito da locadora que, no entanto, não está aqui em causa.
Mas se tudo se passa ao nível da intervenção do Sr. AI como descrito, resolvido o contrato pela locadora na sequência da declaração de recusa de cumprimento por banda do AI em exercício, a quem cabe proceder à restituição dos bens locados, rectior, a quem pode ser pedida a restituição dos bens locados, nunca chamados a integrar a massa insolvente?
Já se disse que a privação dos poderes de administração e disposição do devedor e sua transferência para o AI, efeito que decorre directamente da sentença declaratória da insolvência, respeita aos bens e direitos que integram o património deste à data (e hora) da declaração de insolvência, incluindo ainda os adquiridos na pendência do processo, como prevenido no citado artigo 46.º, o que exclui os bens que se encontrem em poder do devedor por título não translativo, como é o caso dos bens locados. Daqui resulta, pois, que extinto o contrato, e mantendo a aqui requerida personalidade jurídica e judiciária, o que não vem contestado[5], tem legitimidade passiva no procedimento cautelar de entrega judicial, instaurado ao abrigo do regime previsto no artigo 21.º do DL 145/95, de 24 de julho, com as alterações introduzidas pelo DL 265/97, de 02 de Outubro, DL 285/2001, de 3 de Novembro e DL 30/2008, de 25 de Fevereiro, encontrando-se obrigada a restituir os bens locados (neste preciso sentido, v. acórdão do TRP de 27 de Setembro de 2017, no processo 2222/16.3T8VFR.P1, entendimento reiterado no aresto do mesmo TR de 10 de Janeiro de 2022, no processo 1091/21.6 T8STS.P1, e também de 27/9/2017, no processo 1374/15.4 T8STS.P1, embora com diferente solução, face à constatação que o bem locado havia sido, ainda que indevidamente, apreendido para a massa).
Em face do que vem de se expor, impõe-se concluir que o presente procedimento cautelar foi instaurado contra quem tem legitimidade para contraditar (artigo 30.º, n.º 2, do CPC), não podendo subsistir a decisão recorrida.
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III. Decisão
Acordam as Juízas da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar procedente o recurso, revogando em consequência a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos.
Sem custas.
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Sumário: (…)
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Évora, 11 de Abril de 2024
Maria Domingas Simões
Ana Margarida Leite
Eduarda Branquinho
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[1] Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos:
1.ª Adjunta - Sr.ª Juíza Desembargadora Ana Margarida Leite;
2.ª Adjunta- Sr.ª Juíza Desembargadora Eduarda Branquinho.
[2] É o seguinte o teor integral da decisão:
“Da legitimidade passiva.
CGD SA, com sede na Av. João XXI, n.º 63, Lisboa, veio propor contra Farmácia (…), Lda., com sede na Rua (…), n.º 1, r/c, (…), Abrantes, a presente providência cautelar de entrega de bem locado ao abrigo do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24/6.
Foi ordenada a citação da requerida, tendo esta apresentado oposição.
Como resulta dos autos, a requerida foi declarada insolvente por sentença de 13/7/2021, já transitada em julgada, proferida no processo n.º 1812/21.7T8STR a correr termos pelo juízo do comércio de Santarém – J3.
De acordo com o n.º 4 do artigo 81.º do CIRE, após a declaração de insolvência o administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência, pelo que é ele, e não a requerida/insolvente, que deve intervir do lado activo ou do lado passivo da lide (cfr. Ac. da RP de 8/6/2022, in www.dgsi.pt).
Nestes termos, julgo a requerida parte ilegítima e absolvo-a da instância (artigos 576.º, n.º 1 e 2 e 577.º, alínea e), do CPC).
Custas pela requerente.
Fixo a esta providência o valor de € 54.702,99.
Notifique.”
[3] Diploma a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem
[4] Cfr., ainda, o artigo 36º.º, n.º 1, alínea g), nos termos do qual “na sentença que declarar a insolvência, o juiz […] decreta a apreensão, para imediata entrega ao administrador da insolvência, dos elementos da contabilidade do devedor e de todos os seus bens, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos, sem prejuízo do disposto no artigo 150.º/1”.
[5] Nos termos do n.º 3 do artigo 234.º CIRE só com o registo do encerramento do processo após o rateio final a sociedade se considera extinta.