AVERIGUAÇÃO OFICIOSA DE PATERNIDADE
PROCESSOS TUTELARES
COMPARÊNCIA SOB CUSTÓDIA
Sumário

I. O regime das averiguações oficiosas de paternidade e maternidade sofreu profunda alteração com a entrada em vigor do DL n.º 141/2015, de 8 de Setembro, que aprovou o regime geral do processo tutelar cível, tendo o legislador, de forma inovadora, excluído o juiz da fase de decisão, única em que já intervinha (cfr. o artigo 62.º).
II. No entanto, o artigo 3.º do RGPTC continua a incluir as averiguações oficiosas da paternidade e da maternidade nas providências tutelares cíveis (cfr. alínea i)) e o artigo 6.º, alínea i), do mesmo diploma atribui a competência para a elas proceder às Secções de Família e Menores da Instância Central do Tribunal de Comarca em matéria tutelar cível, harmonizando-se com o artigo 123.º, n.º 1, alínea l), da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto.
III. Considerando os critérios interpretativos consagrados no artigo 9.º do Código Civil, nomeadamente no seu n.º 3, conclui-se ter o legislador mantido a natureza jurisdicional das AO atendendo a que a determinação da filiação constitui matéria de interesse público e à prática judicial consolidada, reconhecendo que a realização das diligências necessárias ao desfecho das averiguações não prescinde do uso de mecanismos que representam constrangimentos a direitos e liberdades.
IV. Correndo termos AOP e requerendo o MP ao juiz da secção de família e menores a condenação em multa e emissão de mandados de comparência sob custódia da progenitora de criança que, regular e pessoalmente notificada, faltou sem justificação na data anteriormente marcada para a sua inquirição, deve o assim requerido ser objecto de despacho favorável.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Processo 1787/23.8Y2STR-A.E1[1]
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém
Juízo de Família e Menores de Santarém - Juiz 2


*
I. Relatório
Encontrando-se pendentes na Procuradoria da República da Comarca de Santarém uns autos de averiguação oficiosa da paternidade, requereu a D. Magistrada do MP à Mm.ª juíza do Juízo de Família e Menores de Santarém do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém que fosse aplicada multa à progenitora da criança e emitidos os competentes mandados de condução aos serviços da Procuradoria, a fim de lhe serem tomadas declarações no dia e hora que indicou, uma vez que aquela, pessoalmente notificada para comparecer no dia 9 de janeiro de 2024 e apesar de advertida de que a falta injustificada daria lugar à sua condenação em multa, podendo ser ordenada a sua comparência sob custódia, não compareceu nem justificou a sua ausência.

Presentes os autos à Sr.ª juíza, proferiu despacho [Ref.ª 95626429] com o seguinte teor:
“A nosso ver e s.m.o., a partir da entrada em vigor do RGPTC, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 8 de Setembro, os processos de averiguação oficiosa de paternidade passaram a ser titulados pelos Senhores Magistrados do Ministério Público e a correr termos nos Serviços do Ministério Público. Ou seja, não são processos judiciais.
Por tal motivo, não se vislumbra fundamento legal para o pretendido no despacho com a ref.ª 95548066, pois que inexiste fundamento para a intervenção de juiz nestes processos.
Assim, nada importa ordenar.
Devolva os autos aos Serviços do Ministério Público”.

Inconformada, interpôs a D. Magistrada do MP o presente recurso e, tendo desenvolvido na alegação os fundamentos da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões:
“1ª- O processo de averiguação oficiosa de paternidade encontra-se previsto nos artigos 1864.º do Código Civil e 60.º a 64.º da Lei n.º 141/2015, de 08.09 (RGPTC).
2ª- Do artigo 33.º desse diploma legal resulta que, nos casos omissos, se aplicam subsidiariamente as regras do processo civil.
3ª- O artigo 417.º do Código de Processo Civil prevê que as pessoas que têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade e recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis.
4.ª- A referida norma, sendo aplicável à averiguação oficiosa da paternidade por força do disposto no artigo 33.º do RGPTC, permite a emissão de mandados de detenção para condução da progenitora aos Serviços da Procuradoria do Juízo de Família e Menores de Santarém a fim de prestar declarações.
5ª- A lei prevê a intervenção do juiz nos processos de averiguação oficiosa da paternidade, quando faz menção à fase de recurso no artigo 61.º, n.º 2, do RGPTC.
6ª- O despacho recorrido violou, assim, o disposto nos artigos 33.º e 61.º, n.º 2, do RGPTC e 417.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
7ª- Deste modo, deverá esse despacho ser revogado e substituído por outro que condene a progenitora em multa e ordene a emissão de mandados de detenção para condução da mesma aos serviços da Procuradoria do Juízo de Família e Menores de Santarém, para que lhe sejam tomadas declarações”.
*
Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, constitui única questão a decidir determinar se o juiz deve condenar em multa e ordenar a emissão de mandados de condução da progenitora que faltou injustificadamente a diligência antes marcada no âmbito de averiguação oficiosa da paternidade, a fim de a fazer comparecer nos serviços da Procuradoria, conforme foi requerido pela D. Magistrada do MP e ora recorrente.
*
II. Fundamentação
De facto
Relevam para a decisão os seguintes factos, que resultam documentalmente demonstrados nos autos:
1. (…) nasceu em 20 de Setembro de 2023, constando do seu assento de nascimento (n.º … da Conservatória do Registo Civil de … ) ser filho de (…), solteira, sendo omisso quanto à menção da paternidade (doc. fls. 4).
2. A mãe da criança foi notificada pessoalmente para comparecer nos serviços do Ministério Público no dia 9 de Janeiro de 2024, pelas 9:30 horas, com a cominação de que “A não comparência e a não justificação da falta em audiência nos cinco dias imediatos à realização da mesma, pode implicar a condenação em multa, podendo ainda ser ordenada a sua comparência sob custodia” (certidão de fls. 12-13 dos autos).
3. (…) não compareceu e não justificou a sua ausência.
*
De Direito
Como resulta da transcrição do despacho recorrido, fundamento do indeferimento do requerimento apresentado pela D. Magistrada do MP foi o reconhecimento de que o processo de averiguação oficiosa de paternidade não tem hoje, face ao figurino consagrado no DL 141/2015, de 8 de Agosto, natureza jurisdicional, não estando prevista a intervenção do juiz seja em que fase e para que efeitos for. Entendimento diverso tem, como vimos, a D. recorrente, fazendo apelo às regras dos artigos 33.º e 61.º, n.º 2, daquele diploma, a convocar a aplicação do artigo 417.º do CPC.
A natureza, jurisdicional ou não, da nominada providência de averiguação oficiosa da paternidade (e também da maternidade, de que aqui não se cura) é questão que não concita consensos. Vejamos porquê.
A averiguação oficiosa da paternidade vem prevista nos artigos 1864.º e seguintes do Código Civil, dispondo-se naquele preceito que “Sempre que seja lavrado registo de nascimento de menor apenas com a maternidade estabelecida, deve o funcionário remeter ao tribunal certidão integral do registo, a fim de se averiguar oficiosamente a identidade do pai”.
O preceito seguinte, dispondo sobre a tramitação a seguir, prevê, no seu n.º 1, a audição da mãe, “sempre que possível”, devendo igualmente ser ouvido o pretenso pai. No caso deste confirmar a paternidade, será lavrado termo de perfilhação; negando ou recusando-se a confirmar a paternidade, “o tribunal procederá às diligências necessárias para averiguar a viabilidade da acção de investigação e concluindo pela existência de provas seguras, “ordenará a remessa do processo ao agente do Ministério Público junto do tribunal competente, a fim de ser intentada a acção de investigação”, regime que emerge dos n.ºs 2, 3, 4 e 5.
Na vigência da OTM (DL 314/78, de 27 de Outubro), a averiguação oficiosa de maternidade ou paternidade constituía um processo tutelar cível, da competência dos tribunais de família e menores em matéria tutelar cível (artigo 146.º, alínea j)), a cuja tramitação eram dedicados os artigos 202.º a 205.º.
Assim, e harmonizando-se com a lei substantiva, o artigo 202.º incumbia o curador da instrução dos processos, no âmbito da qual podia “usar de qualquer meio de prova legalmente admitido e recorrer a inquérito”. Sendo então controvertida a questão de saber quais os serviços competentes para movimentar, durante a instrução, tais processos, se os serviços privativos do MP, se as secções de processos, competia sem dúvida ao magistrado do MP, finda a instrução, emitir parecer sobre a viabilidade da acção de investigação de paternidade, conforme previa o artigo 204.º.
Finalmente, dispunha o artigo 205.º que:
“1 - O juiz proferirá despacho final mandando arquivar o processo ou ordenando a sua remessa ao magistrado do Ministério Público junto do tribunal competente, a fim de ser proposta a acção de investigação ou de impugnação.
2 - Antes de decidir, o juiz pode efectuar as diligências que tenha por convenientes.
(…)”.
Sendo embora discutível a natureza de verdadeira acção das averiguações oficiosas, estavam, sem controvérsia, sujeitas a distribuição na 1.ª instância nos termos do artigo 211.º, n.º 1, alínea a), do anterior Código de Processo Civil, por se considerar que importavam começo de causa, decorrendo a sua natureza jurisdicional do facto de competir ao juiz o proferimento da decisão final, da qual cabia recurso em matéria de direito (vide artigo 206.º, n.º 1, da OTM), sendo-lhe ainda reconhecida a possibilidade de determinar a realização de diligências instrutórias complementares.
O descrito regime veio a sofrer profunda alteração com a entrada em vigor do DL n.º 141/2015, de 8 de Setembro, que aprovou o regime geral do processo tutelar cível, tendo o legislador, de forma inovadora, excluído o juiz da fase de decisão das averiguações oficiosas da maternidade e paternidade (cfr. o artigo 62.º), única em que intervinha. Trata-se de uma solução que não constava da proposta de Lei n.º 338/XII, que mantinha nos seus artigos 61.º e 62.º o regime que vinha da OTM, e que veio a ser adoptada na sequência do parecer emitido pelo Conselho Superior do Ministério Público, do qual constava expressamente considerar-se que se devia “(…) alterar o regime processual desta providência, através da respectiva desjudicialização, passando a pertencer ao MP a competência decisória quanto à viabilidade ou não e após intentar a acção oficiosa da paternidade”[2]. Acolhendo a referida proposta, não atentou, todavia, o legislador na necessidade de harmonizar a alteração introduzida com os demais preceitos, deixando para trás um anacrónico n.º 2 do artigo 61.º, estatuindo que “No processo não há lugar a intervenção de mandatários judiciais, salvo na fase de recurso”, quando no artigo 63.º, sugestivamente epigrafado de “Reapreciação hierárquica”, se prevê que o controlo da decisão de inviabilidade é feito, como não podia deixar de ser, uma vez que o proferimento da decisão final é da competência do magistrado do MP, por via de reapreciação hierárquica, mediante reclamação para o seu superior. Não havendo lugar a recurso, como inequivocamente não há, e ao invés do que sustenta o D. recorrente, não se pode retirar do preceito qualquer argumento com valia no sentido de sustentar a natureza jurisdicional do processo.
É certo que o artigo 206.º do actual CPC prevê, na alínea a) do n.º 1, e à semelhança do que previa o seu antecessor, a distribuição dos actos processuais que importem começo de causa, tal como o artigo 123.º da Lei 62/2103, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário), sob a epígrafe “Competência relativa a menores e filhos maiores”, continua a atribuir competência aos juízos de família e menores para “Proceder à averiguação oficiosa da maternidade e da paternidade e preparar e julgar as ações de impugnação e de investigação da maternidade e da paternidade” (cfr. alínea l). No entanto, observa-se, trata-se de leis que iniciaram a sua vigência em data anterior à entrada em vigor do citado 141/2015, de 8 de Setembro, ao tempo em que, como vimos, a competência para a prolação da decisão final no âmbito das averiguações oficiosas se encontrava ainda deferida ao juiz. Deste modo, e reconhecendo-se embora que o legislador teve já diversas oportunidades para proceder às devidas adaptações, se entendesse dever fazê-lo, mas sendo conhecida a sua inércia e dada a solução que vigorava ao tempo em que, quer o novo CPC, quer a nova lei de organização do sistema judiciário iniciaram a sua vigência, afigura-se que nenhum argumento decisivo em favor da natureza jurisdicional da AOP se pode colher das ditas disposições legais[3].
Sem embargo, o artigo 3.º do RGPTC continuou a incluir as averiguações oficiosas da paternidade e da maternidade nas providências tutelares cíveis (cfr. alínea i) e o artigo 6.º, alínea i), do mesmo diploma atribui a competência para a elas proceder às Secções de Família e Menores da Instância Central do Tribunal de Comarca em matéria tutelar cível, harmonizando-se com o já citado artigo 123.º, n.º 1, alínea l), da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, disposições que, no entanto, constavam da proposta antes da alteração introduzida e que permaneceram imodificadas.
Sendo assim incontornável que a lei continua a identificar as averiguações oficiosas como uma providência tutelar cível da competência dos juízos de família e menores, a verdade é que não se encontra prevista a intervenção do juiz em nenhuma fase do processo, decorrendo desde o seu início até à decisão final sob a égide do magistrado do MP e sendo tramitado pelos respectivos serviços (cfr. artigo 7.º do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei 68/2019, de 27 de Agosto), o que não pode deixar de causar complexidade. Todavia, ou se conclui que, à semelhança do que se verifica com o antes mencionado n.º 2 do artigo 61.º, estamos perante disposições que o legislador, descuidadamente, não curou de adaptar à radical alteração de fisionomia do processo que introduziu numa fase adiantada do processo legislativo do RGPTC ou, fazendo uso da presunção consagrada no n.º 3 do artigo 9.º do CC, há que buscar o sentido útil das aludidas normas, delas fazendo interpretação harmonizadora.
E a solução, apesar das muitas dúvidas que a questão enunciada suscita, poderá encontrar-se, como se sugere em “Questões do Regime Geral do Processo Tutelar Cível”[4], na consideração de que a determinação da filiação constitui matéria de interesse público e na prática judicial consolidada, reconhecendo o legislador que a realização das diligências necessárias para o desfecho da averiguação oficiosa não prescinde, conforme será aqui o caso, do uso de mecanismos que constituem uma limitação a direitos e liberdades. Como ali se refere, “A condução forçada, sob custódia, a determinado ato apenas pode fundar-se em decisão judicial, motivo pelo qual terá que ser proferida no âmbito de processo judicial ou havendo norma expressa que preveja a competência para tal decisão, fora de um processo judicial. Assim sucede, por exemplo, em processo penal, no caso de falta injustificada a ato de inquérito. Ora, não estando prevista tal norma especial, apenas a natureza judicial do processo permite a emissão de mandados, garantindo a exequibilidade da investigação. De outra forma, não havendo meios para fazer comparecer, por exemplo, a progenitora, a fim de ser ouvida e indicar a identidade do pai, a averiguação ficaria destituída de qualquer efeito prático”.
A manutenção da natureza jurisdicional visa assim permitir, na ausência de norma especial – cuja previsão legal, em todo o caso, seria bem-vinda –, a intervenção do juiz por força da remissão operada para o CPC pelo n.º 1 do artigo 33.º do RGPTC, como via de acesso aos mecanismos coercitivos e sancionatórios previstos no artigo 417.º, n.º 1, daquele diploma, sob pena de se frustrarem as finalidades visadas com as averiguações oficiosas[5].
Transpondo quanto vem de se dizer para o caso dos autos, verificando-se que a mãe da criança, tendo sido pessoal e regularmente notificada para comparecer, não o fez nem justificou a sua ausência, impõe-se a intervenção da Sr.ª juíza, conforme vem requerido pelo D. recorrente, para que aplique a correspondente multa e emita os pertinentes mandados de comparência sob custódia nos termos das disposições conjugadas dos artigos 33.º do RGPTC, 417.º, n.º 2 e 508.º, n.º 4, pertencendo estes últimos ao CPC.
*

III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar procedente o recurso, revogando em consequência o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que condene a faltosa em multa e determine a sua comparência sob custódia na data que vier a ser designada para a sua inquirição.
Sem custas.
*
Sumário: (…)

Évora, 11 de Abril de 2024
Maria Domingas Simões
Mário João Canelas Brás
Anabela Luna de Carvalho

__________________________________________________
[1] Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos:
1.º Adjunto: Sr. Juiz Desembargador Canelas Brás;
2.ª Adjunta: Sr.ª Juíza Desembargadora Anabela Luna de Carvalho. [2] Proposta e parecer acessíveis em https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=39542
[3] Defendendo a natureza puramente administrativa das AOP´s, vide o acórdão do TRL de 8 de Março de 2018, proferido no processo n.º 4386/17.0T8VFX-A.L1-8, acessível em www.dgsi.pt, no qual se decidiu que “Tratam-se, apenas, de processos administrativos de apuramento da viabilidade da acção, não podendo ser aceites, mesmo implicitamente, como uma verdadeira acção, com valor jurisdicional, o que constitui obstáculo à sua distribuição na 1ª instância, segundo o artigo 206.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil”.
[4] CEJ 2019, Jurisdição de Menores e Famílias, pág. 208, acessível em https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=wpeLi5nKGq0%3D&portalid=30
[5] Permitindo a aplicação dos meios sancionatórios previstos no artigo 417.º ainda que por via do preenchimento de lacuna, o aresto do TRP de 12/10/2021, no processo 2275/21.2T9GDM-A.P1, acessível em www.dgsi.pt., solução que, todavia, suscita algumas dívidas atendendo a que os mandados de condução sob detenção contendem com direitos, liberdades e garantias.