ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
DESTITUIÇÃO DO ADMINISTRADOR
REMUNERAÇÃO
REDUÇÃO
Sumário

I. Destituído o AI nomeado pelo juiz e substituído por outro, igualmente nomeado pelo juiz, inexiste fundamento legal para proceder à redução a 1/5, nos termos do n.º 2 do artigo 24.º do EAJ (com as alterações introduzidas pela Lei 9/2022, de 11 de Janeiro), da remuneração variável apurada nos termos dos n.ºs 4, 6 e 7 do precedente artigo 23.º, se à data em que cessou funções haviam revertido para a massa insolvente valores resultantes da venda dos bens apreendidos correspondentes a 87% do resultado da liquidação.
II. O n.º 11 do artigo 23.º do EAJ não distingue entre as causas que determinam a cessação de funções por banda do AI substituído.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Processo n.º 920/09.7TBTMR.E1[1]
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém
Juízo de Comércio de Santarém – Juiz 3


I. Relatório
No Juízo do Comércio de Santarém, por onde correm termos os presentes autos de insolvência de “(…), Lda.”, notificado do despacho proferido em 04/07/2023 com a referência 93285295, que fixou a sua remuneração no valor de € 26.277,36, e com ele inconformado, veio (…), que exerceu funções de AI, interpor o presente recurso, tendo rematado a sua alegação com as seguintes conclusões:
I) Vem o presente recurso do despacho, com que se não concorda, da Mma. Juiz a quo datado de 04/07/2023 (com a referência 93285295) que incidiu sobre os Requerimentos de 03/02 e 13/04 (de 2023) dos autos, que determinou que a remuneração variável do ora Recorrente, no montante de e 131.386,80, enquanto anterior Administrador de Insolvência, seja reduzida a 1/5 por aplicação do disposto no artigo 24.º/2, do CIRE (valores a que deve acrescer IVA nos termos legais aplicáveis).
II) O Recorrente não questiona no presente recurso que o apuramento da remuneração variável seja efetuado, como resulta do Requerimento de 03/02 do Sr. AI que sucedeu ao Recorrente, ou seja, calculada tendo por base as vendas por este efetuadas em liquidação de € 8.101.926,21, sendo, assim, o âmbito do presente recurso, nos termos do disposto no artigo 635.º do CPC, a questão da redução a 1/5 da remuneração variável devida ao ora Recorrente, tal implicando que quanto ao restante decidido “os efeitos do julgado, na parte não recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso” nos termos do n.º 5 do indicado preceito legal.
III) Questão, aliás, que pode ser resolvida por reforma do despacho recorrido, face ao manifesto erro na determinação da norma aplicável e na qualificação jurídica dos factos, sendo que ao invés do disposto no n.º 2 do artigo 24.º da Lei 22/2013, de 26/02 como o considerou a Juiz Recorrida, seria e será aplicável o n.º 11 do artigo 23.º da mesma Lei, na redação introduzida pela Lei 9/2022, de 11/1 (entrada em vigor em 11/04/2022 e aplicável aos presentes autos nos termos do disposto nos seus artigos 12.º e 10.º/1), e artigo 23.º/11, que consigna que: “No caso de o administrador judicial cessar funções antes do encerramento do processo, a remuneração variável é calculada proporcionalmente ao resultado da liquidação naquela data”.
IV) Sendo que a questão a decidir no presente recurso é uma só:
Se a remuneração do administrador de insolvência, não destituído pela Assembleia de Credores, nem destituído por justa causa, é proporcional ao resultado da liquidação até à data em que cessou funções (artigo 23.º/11 da Lei n.º 22/2013, de 26/02, na redação da Lei n.º 9/2022, de 11/1) ou se este montante proporcional da remuneração variável, calculado e assente no despacho recorrido, é de reduzir a 1/5 (aplicando o artigo 24.º/2, do mesmo diploma legal).
V) O atual AI propôs que fosse aplicável à repartição do montante de € 150.000,00, relativo à remuneração variável, no seu requerimento de 03/02, o disposto no artigo 24.º/2, da Lei 22/2013, de 26/02, contrapondo o anterior AI e ora Recorrente no seu requerimento de 13/04 – reafirmando o que nos autos havia já dito em requerimento de 20/07/2022 – que a repartição proposta era ilegal face ao ínsito no n.º 11 do artigo 23.º da mesma Lei 22/2013, na redação em vigor a partir 27/05/2022 e aplicável aos autos, da Lei 9/2022, de 11/01, devendo, consequentemente, ser-lhe atribuída a verba correspondente a 87,59% do montante da remuneração variável total, sem qualquer redução.
VI) O despacho recorrido faz errada aplicação à repartição da remuneração variável fixada, de € 150.000,00 mais IVA, aplicando o disposto no artigo 24.º/2 e não o artigo 23.º/11, como devia, da Lei n.º 22/2013, de 26/2, na redação da Lei n.º 9/2022, de 11/1, aplicável aos presentes autos e em vigor desde 11 de Abril de 2022.
VII) Os critérios legais de distribuição da remuneração variável são distintos consoante a remuneração seja devida a administrador nomeado por iniciativa do juiz, ou seja devida a administrador nomeado ou substituído pela assembleia de credores nos termos legais, não sendo este o caso do ora Recorrente, pelo que nenhuma redução haverá que ter lugar.
VIII) Tanto mais que o legislador da Lei 9/2022, de 11/1, expressamente quis fixar o modelo de repartição da remuneração variável na nova redação do artigo 23.º/11, da Lei 22/2013, de 26/02, não se verificando outra situação de cessação de funções que tenha expressa previsão legal, como a decorrente de substituição em Assembleia Geral (artigo 24.º da Lei 22/2013), ou justa causa (artigo 56.º do CIRE) sendo que se “um administrador cessar funções antes do encerramento do processo, a remuneração variável é calculada proporcionalmente ao resultado da liquidação naquela data”.
IX) Não existindo na legislação aplicável, depois da entrada em vigor das referidas alterações decorrentes da Lei 9/2022 na Lei 22/2013, qualquer lacuna que careça de ser preenchida nesta matéria, até porque nessa Lei 9/2022 (diploma que veio estabelecer medidas de apoio e agilização dos processos de reestruturação das empresas e dos acordos de pagamento, transpondo a Diretiva (UE) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, introduziu no próprio Estatuto, quer o valor da remuneração fixa, quer a fórmula de cálculo da remuneração variável, sendo pertinente observar que a Diretiva transposta assinalando em vários considerandos as funções do administrador e realçando sem dúvida a sua relevância no contexto dos processos ali contemplados), o legislador aproveitou o ensejo para colmatar lacuna que há anos se verificava, como a questão que está em causa no presente recurso.
X) Sendo que – até porque é justo face ao trabalho em qualidade e quantidade pelo mesmo desenvolvido em beneficio dos credores, bem maior a ter em conta nos termos do disposto no artigo 1.º do CIRE – é devida ao anterior AI e ora Recorrente a remuneração variável de € 131.386,80, acrescida de IVA legalmente devido, nos termos do artigo 23.º/11, da Lei 22/2013, de 26/02, na redação da Lei 9/2022, de 11/1, sem qualquer redução, sendo inaplicável o disposto no artigo 24.º do mesmo diploma legal.
XI) Decorrendo a aplicação do disposto no artigo 23.º/11, da Lei 22/2013, na redação referida da Lei 9/2022, da sã aplicação dos critérios de interpretação e hermenêutica jurídica do artigo 9.º do CC.
XII) Constituindo o despacho recorrido claramente uma interpretação revogatória ou ab-rogante da lei aplicável, esta que expressamente fornece um critério e que não se encontra em conflito com outro aplicável a situação diversa, violando até o princípio da separação de poderes que resulta do nosso estado de direito democrático, com expressão nomeadamente nos artigos 2.º, 3.º e 202.º a 204.º da CRP.
XIII) Deve considerar-se procedente o presente recurso e ser substituído o despacho recorrido por outro que estabeleça que ao abrigo do artigo 23.º/11, da Lei n.º 22/2013, de 26/02, na redação da Lei 9/2022, de 9/1, deve fixar-se a remuneração variável do anterior Sr. AI e ora Recorrente em função dos valores obtidos fruto das diligências por si efetuadas proporcionalmente até à data da sua destituição, ou seja, ascendendo o produto das vendas por si realizadas a uma remuneração de € 131.386,80 (vide requerimento de 03/02), é-lhe devida essa remuneração, acrescida de IVA, correspondente a 87,59% do total da receita arrecadada de € 9.249.703,26, sendo da responsabilidade do anterior administrador o montante de receita de € 8.101.926.21, à qual haverá que deduzir quantias eventualmente já recebidas previamente.
XIV) A aplicação ao caso dos autos do disposto no artigo 24.º/2, da citada Lei 22/2013, em afastamento do regime legal próprio que é o artigo 23.º/11, da mesma lei, na redação da Lei 9/2022, constitui a violação do principio da interpretação do direito interno em desconformidade com o direito comunitário, inscrito, nomeadamente no artigo 8.º da CRP, bem como do estabelecido nos artigos 2.º, 3.º e 202.º a 204.º da mesma CRP, e do artigo 5.º do Tratado da União Europeia, visto que aquela Lei 9/2022 constitui a transposição da Diretiva (UE) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019.
XV) A aplicação do aludido artigo 24.º/2 da Lei 22/2013 aos presentes autos e à questão que estava em apreciação para prolação do despacho de que ora se recorre, viola ainda claramente o estabelecido nos artigos 59.º/1, a) e 61.º/1, da CRP em matéria de direito à retribuição do trabalho e liberdade de iniciativa económica privada no quadro previamente definido pela constituição e pela lei.
XVI) Pelo que, salvo melhor opinião, o despacho recorrido proferido pela Mm.ª Juiz a quo viola, nomeadamente, os artigos 23.º/11 e 24.º do Estatuto do Administrador Judicial instituído pela Lei 22/2013, de 26/2, na redação da Lei 9/2022, de 11/1, o artigo 9.º do CC, a Diretiva (UE) 2019/1023, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019 e os artigos 8.º, 59.º/1, a) e artigos 2.º, 3.º e 202.º a 204.º, 61.º/1, todos da CRP, e o artigo 5.º do Tratado da União Europeia, devendo este ser alterado por douto Acórdão no sentido propugnado.

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Contra alegaram a massa insolvente e o D. Magistrado do MP, tendo-se ambos pronunciado no sentido da manutenção do decidido.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são as seguintes as questões suscitadas:
i. determinar se o Sr. AI substituído tem direito a ser remunerado nos termos do n.º 11 do artigo 23.º do CIRE ou a remuneração variável assim apurada sofre uma redução de 80% nos termos do n.º 2 do artigo 24.º;
ii. determinar se a interpretação normativa do artigo 24.º, n.º 2 feita na sentença recorrida, aplicando a redução à situação dos autos, viola o princípio da interpretação do direito interno em desconformidade com o direito comunitário, inscrito, nomeadamente no artigo 8.º da CRP e do artigo 5.º do Tratado da União Europeia e ainda o estabelecido nos artigos 59.º/1, a) e 61.º/1 da CRP em matéria de direito à retribuição do trabalho e liberdade de iniciativa económica privada no quadro previamente definido pela constituição e pela lei.
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II. Fundamentação
De facto
Com relevo para a decisão, resulta dos autos a seguinte factualidade, que se tem por assente:
1. Por sentença proferida em 19 de Agosto de 2009, há muito transitada em julgado, foi o ora apelante António José Matos Loureiro nomeado Administrador Judicial.
2. Por despacho proferido em 26 de Fevereiro de 2014 proferido pelo Mm.º JIC do então Tribunal de Instrução Criminal de Coimbra, foi aplicada ao aqui recorrente, então arguido, no âmbito do processo comum 47/13.7TASEI, a medida coactiva de proibição do exercício de funções de administrador judicial.
3. Com data de 30 de Maio de 2014 o MP deduziu acusação contra o aqui recorrente no âmbito do processo comum com intervenção do tribunal singular que correu termos sob o n.º 402/10.4TATMR, imputando-lhe a prática em autoria material de um crime de peculato, p. e. p. nos termos das disposições conjugadas dos artigos 375.º, n.º 1 e 386.º, n.º 1, alínea d), do CP, por se ter apropriado indevidamente da quantia de € 32.266,74 pertença da massa insolvente da devedora (…), Lda., requerendo a aplicação da medida de coação de proibição do exercício de função de administrador judicial.
4. Em 16 de Junho de 2014 foi proferido nestes autos despacho com o seguinte teor:
“Tendo em conta a medida de coação aplicada ao Sr. Dr. (…) no processo comum singular n.º 47/13.7TASEI, e a acusação proferida no processo 402/10.4TATMR, ambos do DIAP de Coimbra, destituo o referido Sr. Dr. (…) das funções de administrador de insolvência nestes autos e, em sua substituição, nomeio o Sr. Dr. (…), com domicílio na Rua (…), Apartado 20, (…).
No prazo de 10 dias deverá o Exmo. Sr. AI (…) reunir com a Comissão de Credores e informar o Tribunal do estado da liquidação.
Notifique.”
5. Em 15 de Julho de 2015 foi proferida decisão de não pronúncia no processo n.º 402/10.4TATMR, a qual se mostra transitada em julgado.
6. O produto da massa ascende a € 9.249.703,10, tendo sido fixada a remuneração do Sr. AI em € 150.000,00 por despacho de 15 de Julho de 2022 [Ref.ª 90699145].
7. Do resultado total da liquidação € 8.135.902,41 correspondem a receita obtida pela venda de bens móveis e imóveis efectuada pelo recorrente durante o exercício das suas funções de AI.
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De Direito
Da redução da remuneração devida ao Sr. AI substituído
Não estando em causa a fórmula de cálculo da remuneração devida ao AI nem, tão pouco, o valor total apurado, dissente o aqui recorrente da redução a 1/5 do montante encontrado e que entende ser-lhe integralmente devido, sustentando ser aplicável ao caso quanto dispõe o n.º 11 do artigo 23.º do EAM, ao invés do aplicado n.º 2 do artigo 24.º do EAJ, o qual, argumenta, rege para situação diversa daquela que se configura nos presentes autos. Vejamos se lhe assiste, ou não, razão.
Conforme resulta claro do disposto nos artigos 36.º, n.º 1, alínea d) e 52.º do CIRE[2] compete ao juiz nomear na sentença (ou cautelarmente em momento anterior – vide artigo 31.º), o administrador da insolvência, dentre entidade inscrita na lista oficial de administradores da insolvência, com indicação do seu domicílio profissional, devendo todavia ter em conta as indicações que sejam feitas pelo próprio devedor ou pela comissão de credores, quando exista, ou pelos credores (n.º 2 do artigo 52.º).
Nos termos do n.º 1 do artigo 60.º, os AJ nomeados pelo juiz têm direito à remuneração prevista no seu estatuto e ao reembolso das despesas que razoavelmente tenha considerado úteis ou indispensáveis. Diversamente, e como resulta do n.º 2 do preceito, quando eleito pela assembleia de credores, a remuneração do administrador da insolvência é a que for prevista na deliberação respectiva.
No caso dos autos o ora apelante foi nomeado pelo Sr. Juiz titular do processo aquando da prolação da sentença, tendo a sua remuneração sido fixada a final “em função dos valores obtidos fruto das diligências por si efectuadas”, cujo resultado foi reduzido a 1/5 por força da aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 24.º. Dissente, como vimos, o apelante, alegando não ter sido destituído, sendo antes aplicável o n.º 11 do artigo 23.º.
A destituição dos administradores da insolvência vem prevista no artigo 56.º, preceito nos termos do qual
“1. O juiz pode, a todo o tempo, destituir o administrador da insolvência e substitui-lo por outro, se, ouvidos a comissão de credores, quando exista, o devedor e o próprio administrador de insolvência, fundadamente considerar existir justa causa.
2. Salvo o disposto no n.º 3 do artigo 53.º, deverá ser designada como substituto a pessoa que para o efeito tenha sido eventualmente indicada pela assembleia de credores, mediante deliberação aprovada nos termos do n.º 1 do mesmo artigo”.
Antes de mais, e tendo em vista determinar qual a causa efectiva da cessação de funções do apelante, importa interpretar o despacho transcrito em 4, o qual se mostra há muito transitado em julgado.
Visto o seu teor, e pese embora a ausência de menção a qualquer preceito legal, designadamente o acima transcrito artigo 56.º do CIRE, é clara a referência a destituição do Sr. AI então em exercício. É certo, dir-se-á, que a invocada sujeição do Sr. AI à medida de coação de proibição do exercício da actividade de administrador judicial, perfilando-se como uma causa superveniente de impossibilidade do exercício de funções, obrigava por si à sua substituição nos termos do artigo 16.º, n.ºs 3 e 4, do EAJ na versão em vigor ao tempo, ainda que aplicáveis por analogia, bem podendo coexistir com uma actuação irrepreensível no âmbito do processo em causa por banda do Sr. AI inibido e, portanto, com a ausência de qualquer causa justificativa da destituição (cfr., no sentido de serem situações distintas, o aresto do TRC de 3 de Março de 2020, processo 1646/12.0TJCBR-L.C1, acessível em www.dgsi.pt, citado pelo apelante). Acresce que, não resultando claro da lei se a substituição prevista nas citadas disposições do Estatuto é em si a causa da cessação de funções ou exige antes a prévia destituição do administrador em exercício[3], na ausência de referência a uma concreta disposição legal, na circunstância o artigo 56.º do CIRE, que prevê a destituição por justa causa, poderá entender-se, conforme sustenta o recorrente, que o fundamento invocado não constitui justa causa, tendo operado mera substituição sem imputação de qualquer actuação nos autos passível de censura.
Não obstante quanto vem de se dizer, resulta do despacho que ora se aprecia ter sido também invocada a dedução de acusação contra o administrador em exercício pela imputação de actos de apropriação de dinheiros pertencentes à massa insolvente. Tal facto, naturalmente idóneo a colocar em causa a relação de confiança que é pressuposto da sua continuidade no cargo, afigura-se ter sido indicada como fundamento de destituição por justa causa. Com efeito, se a destituição do administrador exige a verificação da violação dos deveres por parte do nomeado, parece ser de admitir que a previsão legal cobre ainda as situações em que “atentas as circunstâncias concretas, é inexigível a manutenção da relação com ele e infundada a possível pretensão (…) de se manter em funções”[4]. Deste modo, não cabendo aqui apreciar se a mera dedução de acusação -que veio a revelar-se infundada, não tendo sequer passado o crivo da instrução- poderia, só por si, fundamentar a destituição do Sr. Administrador, a verdade é que o despacho em causa transitou em julgado, impondo-se concluir que o ora apelante foi efectivamente destituído. Assim tendo concluído, cabe agora indagar em que termos deve -se é que deve- ser remunerado.
Não se encontrando controvertida nos autos a aplicação ao caso do EAJ na redacção resultante da Lei n.º 9/2022, de 9 de Janeiro, verifica-se não haver referência específica à remuneração devida ao administrador da insolvência destituído, discutindo-se, antes das alterações introduzidas, se estávamos perante lacuna a resolver com recurso à analogia, sendo aplicável o regime previsto no n.º 2 do artigo 24.º para a substituição levada a cabo pelos credores reunidos em assembleia, ou antes a lei nada dizia porque aquele a nenhuma remuneração teria direito. Após a entrada em vigor da Lei 9/2022, verifica-se que, não só a questão não foi objecto da atenção do legislador, como face à previsão do n.º 11 do artigo 23.º surge como defensável uma terceira alternativa, podendo sustentar-se, conforme faz o apelante, que o administrador substituído na sequência da sua destituição do cargo deve ser pago nos termos aqui previstos e em pé de igualdade com o seu substituto, posto que nenhuma distinção se faz quanto à causa de cessação de funções e consequente substituição do administrador em exercício[5].
No que se refere à primeira alternativa, nada prevendo a lei nesse sentido e afigurando-se que a perda de remuneração assume uma natureza sancionatória, teria de se encontrar expressamente prevista. Não está e pensamos que se trata de uma adequada opção legislativa, uma vez que surgiria em muitos casos como uma solução excessiva e desadequada, sendo certo que se encontra excluída do objecto do recurso, já que o apelante foi remunerado[6].
Por outro lado, impõe-se reconhecer que, como observa o apelante, apesar de o n.º 2 do artigo 56.º prever a nomeação de substituto indicado pela assembleia, e remeter para o regime do artigo 24.º, tal não ocorreu no caso vertente. Mas não só – ou não por esse motivo – entendemos que é de afastar a aplicação deste preceito. Vejamos:
Cabendo ao juiz, conforme se referiu já, a nomeação do administrador de insolvência (n.º 1 do artigo 52.º), prevê-se no n.º 1 do artigo 53.º do CIRE a possibilidade de, após tal nomeação, os credores reunidos em assembleia virem a eleger para o cargo diversa pessoa, caso em que o juiz a deverá nomear como administrador de insolvência em substituição do administrador em funções. No entanto, é diferente a forma de cálculo da remuneração de cada um.
Sob a epígrafe “Remuneração do administrador judicial provisório ou do administrador da insolvência nomeado por iniciativa do juiz”, dispõe o artigo 23.º do EAJ (diploma para que remete o n.º 3 do citado artigo 52.º do CIRE) que
“1. O administrador judicial provisório em processo especial de revitalização ou em processo especial para acordo de pagamento ou o administrador da insolvência em processo de insolvência nomeado por iniciativa do juiz tem direito a ser remunerado pelos atos praticados, sendo o valor da remuneração fixa de 2000 (euro).
(…)
4 - Os administradores judiciais referidos no n.º 1 auferem ainda uma remuneração variável em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente, cujo valor é calculado nos termos seguintes:
(…)
11 - No caso de o administrador judicial cessar funções antes do encerramento do processo, a remuneração variável é calculada proporcionalmente ao resultado da liquidação naquela data.”
O artigo 24.º, por seu turno, sugestivamente epigrafado de “Remuneração do administrador da insolvência nomeado ou substituído pela assembleia de credores”, dispõe que:
“1. - Sempre que o administrador da insolvência for nomeado pela assembleia de credores, o montante da remuneração é fixado na mesma deliberação que procede à nomeação.
2. O administrador da insolvência nomeado pelo juiz que for substituído pelos credores, nos termos do n.º 1 do artigo 53.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, tem direito a receber, para além da remuneração determinada em função dos atos por si praticados, remuneração variável, em função do resultado (…) do produto percebido pela massa insolvente fruto das diligências por si efetuadas, proporcionalmente ao montante total apurado para satisfação de créditos recuperados, sendo o valor assim calculado reduzido a um quinto.”
Face à estatuição das normas em confronto argumenta-se que se o administrador substituído por iniciativa dos credores – por qualquer causa ou sem ela – sofre uma redução na remuneração variável que lhe é devida, por maioria de razão o administrador destituído não deve receber remuneração superior[7]. O argumento é razoável mas cremos que se queda sem aplicação, desde logo porque entendemos que a previsão deste n.º 2 se destina a remunerar o administrador judicial substituído que não chega a praticar actos de liquidação, daí a referência “[a]o produto percebido pela massa insolvente fruto das diligências por si efetuadas, proporcionalmente ao montante total apurado para satisfação de créditos recuperados”, diferente da fórmula usada no precedente artigo 23.º, que referencia o apuramento da remuneração variável ao “resultado da liquidação da massa insolvente” que, conforme se explica no n.º 6, corresponde “ao montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com exceção da remuneração referida no n.º 1 e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência”. Do entendimento exposto resulta que, tendo efectuado operações de liquidação, valerá, também para os administradores substituídos por iniciativa dos credores, a regra geral do n.º 11, sendo remunerados em função do estado da liquidação à data em que cessarem as suas funções, sem redução, assim se eliminando uma fonte de previsíveis iníquas injustiças.
Parece pertinente invocar, no esforço interpretativo que empreendemos, o antecedente do artigo 24.º. Está em causa a norma constante do artigo 21.º da Lei 32/2004, de 22 de Julho que, contendo idêntico n.º 1, dispunha com maior clareza no n.º 2 “O administrador da insolvência nomeado pelo juiz, que for substituído pelos credores nos termos do n.º 1 do artigo 53.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, tem direito a receber, para além da remuneração determinada em função dos actos praticados, o valor resultante da aplicação da tabela referida no n.º 2 do artigo anterior, na proporção que o produto da venda de bens por si apreendidos, ou outros montantes por si apurados para a massa, representem no montante total apurado para a massa insolvente, reduzido a um quinto.”
Relevará aqui recordar que ao tempo vigorava a versão inicial do artigo 53.º do CIRE[8], nos termos do qual o momento apropriado para os credores procederem à escolha de uma pessoa para o exercício das funções de administrador era a primeira reunião da assembleia de credores, geralmente marcada na própria sentença declaratória e a ter lugar entre os 45 e os 60 dias seguintes (cfr. artigo 36.º, alínea n), pelo que o administrador judicial nomeado pelo juiz estaria um curto período de tempo em funções. Não obstante, não deixou o legislador de prever remuneração pela actividade desenvolvida, ainda que não tivesse dado início à liquidação. Como se sabe, por força das alterações introduzidas pela Lei n.º 16/2012, passou a permitir-se no artigo 53.º que a substituição do administrador se verifique em qualquer assembleia de credores, sem limitação de prazo, mas parece defensável o entendimento que aqui se perfilha no sentido de o actual n.º 2 do artigo 24.º abarcar na sua previsão as mesmas situações (cfr. neste sentido o acórdão do TRG de 7/12/2023, processo n.º 2898/14.6TBBTG-W.G1, acessível em www.dgsi.pt).
Importa no entanto referir que o entendimento que aqui se perfilha, não negando ao administrador substituído e mesmo destituído por justa causa a remuneração variável que lhe for devida em função do resultado da liquidação obtido – note-se que no caso em apreço, sem deixar de reconhecer o muito trabalho que veio a ser desenvolvido pelo Sr. AI que substituiu o recorrente, a verdade é que aquando da cessação de funções este tinha garantido mais de 80% do produto da liquidação, tendo inclusivamente tramitado o apenso de reclamação de créditos até à sentença – não contende, obviamente, com eventual responsabilidade civil que lhe possa ser assacada pelos prejuízos causados nos termos prevenidos no artigo 59.º.
Resulta de todo o exposto que, conforme defende o apelante, inexiste fundamento para que o trabalho por si efectuado no âmbito destes autos não seja remunerado nos termos gerais previstos no n.º 11 do artigo 23.º, sem a redução aplicada, com a consequente procedência do recurso.
Prejudicado fica o conhecimento das alegadas inconstitucionalidades (artigos 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do CPC).
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar procedente o recurso e revogam o despacho recorrido, na parte em que reduziu a 1/5 a remuneração variável apurada devida ao Sr. AI substituído, a qual deverá ser liquidada, após dedução de eventuais quantias já recebidas pelo Sr. AI e que possam ser imputadas a este título.
Custas a cargo da massa insolvente (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
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Sumário: (…)
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Évora, 11 de Abril de 2024
Maria Domingas Simões
Mário João Canelas Brás
Anabela Luna de Carvalho
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[1] Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos:
Sr. Juiz Desembargador Canelas Brás;
Sr.ª Juíza Desembargadora Anabela Luna de Carvalho.
[2] Diploma a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem.
[3] Cfr., sobre o ponto, Soveral Martins, “Um curso de direito da Insolvência”, pág. 210, Almedina 2015.
[4] Cfr. Carvalho Fernandes/J Labareda, CIRE Anotado, 2.ª edição, comentário ao artigo 56.º, pág. 349.
[5] Cfr., alertando para este aspecto, Nuno Marcelo Freitas Araújo, “A remuneração do Administrador Judicial e a sua apreciação jurisdicional depois de Abril de 2022 uma primeira apreciação às alterações introduzidas no CIRE e no EAJ pela Lei n.º 9/2022, de 11-1, acessível em https://www.apaj.pt/noticias/anexos/A%20REMUNERA%C3%87%C3%83O%20DO%20AJ%20DEPOIS%20DE%20ABRIL%20DE%202022%20(COM%20CAPA).pdf: realçando ainda que o diploma “(…) não resolveu inteiramente a questão de saber se a remuneração variável é devida ao administrador que seja destituído de funções, sendo certo que, para a resolver em definitivo, bastaria dizer no nº 3 “à sua substituição ou à destituição” ou, no n.º 11, “cessar funções, qualquer que seja o motivo da cessação”. Todavia, como o preceito legal em causa refere a cessação de funções, sem distinguir o fundamento, é possível vislumbrar aqui um argumento ponderoso no sentido de entender que a remuneração variável proporcional é devida mesmo em caso de destituição por justa causa.”
[6] Fazendo referência ao facto de no n.º 2 do artigo 56.º do Ante-projecto estar prevista a devolução à massa dos valores recebidos a título de remuneração pelo administrador destituído e aplaudindo a sua eliminação da lei, cfr. Profs. Carvalho Fernandes e J. Labareda, CIRE Anotado, 2.ª edição, pág. 352.
[7] Neste sentido, ainda que se trate de decisão proferida antes das alterações introduzidas pela Lei 9/2022, de 11 de Janeiro, o acórdão do TRL de 1374/2021, no processo n.º 964/10.6TYLSB-Y.L1, acessível em www.dgsi.pt.
[8] Com a seguinte redacção: “1 - Sob condição de que previamente à votação se junte aos autos a aceitação do proposto, os credores podem, na primeira assembleia realizada após a designação do administrador da insolvência, eleger para exercer o cargo outra pessoa, inscrita ou não na lista oficial, e prover sobre a remuneração respectiva, por deliberação que obtenha a aprovação da maioria dos votantes e dos votos emitidos, não sendo consideradas as abstenções”.