CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
NULIDADE POR FALTA DE FORMA
RESPONSABILIDADE CIVIL
Sumário

I – Nos contratos de prestação de serviços de contabilidade celebrados entre os contabilistas certificados e as entidades a quem prestam serviços, a lei prescreve a forma escrita para a declaração negocial, não se tratando apenas de um dever deontológico, resultante do Código Deontológico dos Contabilistas Certificados, aprovado por decreto-lei e a receção da norma no Estatuto da Ordem, tanto no regime dos artigos 7.º e 52.º, como no subsequente dos artigos 11.º e 70.º.
II – Não tendo o contrato de prestação de serviços de contabilidade celebrado entre a autora e as rés sido reduzido a escrito, o mesmo é nulo por falta de forma.
III – Por falta de factualidade para se conhecer de direito, quer no que tange à restituição das prestações objeto do contrato, quer no que respeita aos factos integradores dos alegados danos morais e patrimoniais, mostra-se prejudicada a aplicação do direito ao caso concreto.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

RECURSO n.º 1347/22.0T8PTG-B.E1

Tribunal recorrido: Juízo de Local Cível ... – J...
Apelante: F..., Unipessoal, Lda.
Apelada: E... Unipessoal, Lda.
AA
Companhia de Seguros (...), S.A.

Sumário (elaborado pela relatora - artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil): (…)

Acordam os Juízes que integram a 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
I – RELATÓRIO
1.1. F..., Unipessoal, Lda. veio propor a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra E... Unipessoal, Lda., AA e Companhia de Seguros (…), S.A., com fundamento na responsabilidade civil contratual, por parte das rés, decorrente de um contrato de prestação de serviços celebrado com a autora, sendo as segundas rés seguradas da 3.ª ré.
Conclui pedindo a condenação solidária das rés a pagar-lhe:
a) A quantia de € 10.937,20, a título de danos emergentes e prejuízos sofridos, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal em vigor desde a citação até integral e efetivo pagamento;
b) Uma indemnização por danos não patrimoniais sofridos, em montante não inferior a € 5.000,00, num total de € 15.937,20, acrescidos dos juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento;
c) Todos os juros de mora, penalizações e demais acréscimos legais em que venha a incorrer no âmbito do processo executivo tributário em curso no serviço de finanças do ... (processo número ...59), ou qualquer outro para cujos termos seja citada, valores a apurar e liquidar em execução de sentença.

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1.2. Regularmente citadas, as rés contestaram, defendendo-se por impugnação, sendo que a ré Companhia de Seguros arguiu a sua ilegitimidade passiva para ser demandada na presente ação.
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1.3. A autora respondeu pugnando pela improcedência das exceções invocadas pela ré.
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1.4. Foi realizada audiência prévia, no âmbito da qual foi facultada às partes a discussão de facto e de direito da causa, nos termos do artigo 591.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, dado que o tribunal pretendia conhecer imediatamente, em sede de saneador-sentença, em parte, do mérito da causa, relativamente à alínea a), e no seu todo quanto às alíneas b) e c) do petitório, sem que qualquer das mesmas tivesse vindo alegar mais nenhum argumento, para além do que constava já dos articulados.
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1.5. Proferiu-se despacho saneador no qual se julgou improcedente a exceção de ilegitimidade passiva arguida pela ré Companhia de Seguros (…).
Foi proferido saneador sentença, no qual se decidiu:
Pelo exposto, de facto e de direito, decide-se o seguinte:
A) Julga-se parcialmente improcedente, por não provado, o pedido formulado na alínea a) do petitório, e em consequência, absolvem-se todas as Rés do pagamento à Autora da quantia de € 6.509,20 (seis mil, quinhentos e nove euros, e vinte cêntimos), relativamente quer à devolução das quantias que foram pagas pela A. à 1ª Ré, a título de honorários, quer ao valor do apoio financeiro da Câmara Municipal ..., prosseguindo os autos para a apreciação do remanescente do pedido formulado na alínea a) do petitório.
B) Julga-se improcedente, por não provado, o pedido formulado na alínea b) do petitório, dele absolvendo todas as Rés.
C) Julga-se improcedente, por não provado, o pedido formulado na alínea c) do petitório, dele absolvendo todas as Rés.
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Custas, nesta parte, pela A., na proporção de € 11.509,20, nos termos do artigo 527.º, n.º 1, do NCPC e artigo 6.º, n.º 1 e Tabela I-A do Regulamento das Custas Processuais.
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1.6. Inconformada com a decisão, dela apela a autora, extraindo da motivação do recurso as seguintes conclusões (transcrição):
1. Vem o presente recurso da circunstância da aqui Apelante não se conformar com o douto Despacho Saneador Sentença proferido nos presentes autos que:
A) julgou parcialmente improcedente, por não provado o pedido formulado na alínea a) do petitório, e em consequência, absolveu todas as Rés do pagamento à Autora da quantia de 6.509,20 euros, relativamente quer à devolução das quantias que foram pagas pela autora à 1ª Ré, a título de honorários, quer ao valor do apoio financeiro da Câmara Municipal ..., prosseguindo os autos para apreciação do remanescente do pedido formulado na alínea a) do petitório.
B) julgou improcedente por não provado o pedido formulado na alínea b) do petitório, dele absolvendo todas as Rés.
C) julgou improcedente por não provado o pedido formulado na alínea c) do petitório, dele absolvendo todas as Rés.
2. No que respeita ao segmento decisório constante do ponto A) do dispositivo da decisão recorrida, com o devido respeito, o Tribunal a quo errou o julgamento da matéria de facto consolidada e da matéria de direito, consequentemente, efetuou uma errada aplicação do direito ao caso, violando os artigos 219.º, 220.º, 286.º, 289.º, 294.º do Código Civil e artigos 70.º, n.º 5, do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados (doravante EOCC) aprovado pela Lei n.º 139/2015, de 7 de setembro, e do artigo 9.º do Código Deontológico dos Contabilistas Certificados, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 310/2009, de 26 de outubro, com a redação constante do anexo II à supra mencionada lei e da qual faz parte integrante, como se passará a explicar.
3. Da matéria de facto que o Tribunal a quo considera provada (pontos 6 e 7 da decisão recorrida) não consta que entre as Rés e a Autora tenha sido celebrado entre ambas um acordo escrito, contrato escrito, de prestação de serviços de contabilidade.
4. Nenhuma das partes juntou aos autos com os respetivos articulados acordo escrito, contrato escrito e assinado tendo por objeto a prestação pelas Rés de serviços de contabilidade à Autora, sociedade por quotas unipessoal, obrigatoriamente sujeita a contabilidade organizada nos termos do disposto no artigo 5.º do Código do IRC.
5. E não foi junto aos autos porque não existe!
6. Entre as partes não foi celebrado contrato escrito de prestação de serviços de contabilidade pelas Rés, onde constasse explicitamente a sua duração, a data de entrada em vigor, a forma de prestação de serviços a desempenhar, o modo, o local e o prazo de entrega da documentação, os honorários a cobrar e a sua forma de pagamento.
7. E a exigência de forma escrita para contratos desta natureza e objeto é imposta diretamente por lei, mormente, pelos supra indicados artigos 70.º, n.º 5, do EOCC aprovado pela Lei n.º 139/2015, de 7 de setembro, e artigo 9.º do Código Deontológico dos Contabilistas Certificados, com a redação constante do anexo II à supra mencionada lei e da qual faz parte integrante, cujo teor vai transcrito no corpo das motivações.
8. A obrigação de forma escrita para o contrato de prestação de serviços de contabilidade resulta de uma Lei da República Portuguesa que aprovou o Estatuto dos Contabilistas Certificados e Código Deontológico que vai anexo, logo, trata-se aqui de uma exceção à regra da liberdade de forma prevista no artigo 219.º do Código Civil, e pelo mesmo normativo ressalvada, implicando a sua inobservância a nulidade dessa declaração negocial, como determina o artigo 220.º do Código Civil, o que sucedeu in casu.
9. Esta Lei n.º 139/2015, de 7 de setembro entrou em vigor 30 dias após a sua publicação, pelo que, à data do início do exercício de funções por parte das Rés (setembro de 2018, como provado no ponto 7 da matéria de facto), a mesma já estava em vigor no ordenamento jurídico nacional e as Rés vinculadas aos seus normativos, o que não podiam desconhecer ou ignorar.
10. Por conseguinte, ao abrigo do disposto nos artigos 220.º, 286.º e 289.º do Código Civil, vai expressamente invocada a nulidade do acordo de prestação de serviços celebrado entre Autora e Rés em setembro de 2018, por violação da forma escrita legalmente imposta pelos artigos 70.º do EOCC e 9.º do Código Deontológico dos Contabilistas Certificados, conjugados com o artigo 219.º do Código Civil, nulidade que é de conhecimento oficioso e que a douta decisão recorrida não conheceu como se impunha em violação dos supracitados normativos.
11. A inobservância da forma escrita para esse acordo não derivou de ato ou omissão da Autora, pelo que nenhuma responsabilidade lhe pode ser assacada pela não verificação dessa formalidade, já que não contribuiu de forma alguma para esse resultado, não lhe sendo oponível o regime da inalegabilidade ou da boa fé, na vertente do venire contra factum proprium.
12. A obrigação de celebração de contrato escrito de prestação de serviços de contabilidade não é uma mera faculdade, mas antes, um dever geral imposto por lei, pelos Estatutos da Ordem dos Contabilistas Certificados, a que estão vinculados todos contabilistas certificados no ativo, lei que necessariamente tem um campo de aplicação externo ou geral, como decidiu o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 6 de Dezembro de 2018, no processo n.º 343/17.4T8ALR.E1, a propósito de um caso semelhante, mas com factos anteriores à entrada em vigor da lei que aprovou EOCC, e, o proficientemente elaborado douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15-12-2022, proferido no processo n.º 6864/18.4T8ALM.L1-6 ambos disponíveis para consulta em linha em www.dgsi.pt.
13. A consequência jurídica que tem de ser retirada da conjugação dos citados normativos com a teleologia própria das funções dos contabilistas certificados na sua vertente de colaboradores da Administração Fiscal, em representação dos contribuintes para quem prestam serviços, é a de que a não celebração de um contrato escrito, como sucedeu nos autos, e decorre dos elementos existentes nos mesmos que a douta decisão recorrida não valorou, como deveria ter feito, gera a invalidade/nulidade do acordo de prestação de serviços de contabilidade por banda das Rés.
14. A douta decisão recorrida omite qualquer referência aos normativos supra citados que determinam a obrigatoriedade de forma escrita para o contrato de prestação de serviços de contabilidade, sob pena de nulidade nos termos do disposto nos artigos 219.º e 220.º do Código Civil, pelo que errou na apreciação dos factos consolidados nos autos e, na aplicação do direito aos mesmos, violando os citados normativos, bem como o disposto no artigo 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil que impõe que o juiz deve resolver todas as questões submetidas pelas partes e conhecer oficiosamente de outras.
15. Por outro lado, a nulidade sendo de conhecimento oficioso e invocável a todo o tempo por qualquer interessado, tem ainda efeito retroativo, com a consequente obrigação de restituição de tudo quanto foi prestado – conforme decorre dos artigos 220.º, 286.º, 289.º, n.º 1, do Código Civil que a douta decisão recorrida não respeitou.
16. No caso que nos ocupa, pese embora conste da douta decisão recorrida que quem cumpriu inteiramente a sua obrigação foi a Autora, pagando mensalmente às Rés os honorários acordados pelos serviços de contabilidade que – afinal – estas não fizeram, sendo nulo o contrato, por inobservância de forma legal, deveria a douta decisão recorrida condenar as Rés a restituir à Autora todos os montantes que esta lhes pagou, a título de honorários mensais e cujos comprovativos de pagamento se encontram nos autos, no valor de 2.509,20 euros, pedido este de restituição formulado na petição inicial, nos artigos 8º a 11º, e que integra uma parcela do valor do pedido formulado na alínea A) a título de danos emergentes e prejuízos sofridos com a atuação das Rés.
17. Assim, vai invocada a NULIDADE do contrato de prestação de serviços de contabilidade convencionado entre Autora e Rés, por violação da forma legal, com a consequente restituição do que foi pago pela Autora, como peticionado, pelo que, deverá ser revogado o douto despacho saneador ora recorrido, quando decide julgar parcialmente improcedente, por não provado, o pedido formulado na alínea a) do petitório.
18. Em face da nulidade invocada, a matéria factual terá de passar a ser qualificada à luz das regras da responsabilidade civil extracontratual dada a inexistência de contrato de prestação de serviços entre as partes, porque nulo.
19. Esta qualificação jurídica não representa nenhuma alteração do pedido ou da causa de pedir, porque se integra nos poderes/deveres de cognição que ao julgador assistem, de interpretação e aplicação das normas jurídicas ao caso, como sufragado no artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
20. Ao não proceder a este enquadramento jurídico dos factos, ao omitir a aplicação das normas fiscais que impõem deveres regulares aos contabilistas certificados na qualidade de representantes das empresas junto da AT e, bem assim, ao persistir na tese de que, pese embora, a conduta ilícita das Rés, a Autora podia e devia ter submetido as declarações omitidas por estas, todo o juízo decisório da douta decisão recorrida está inquinado, equivocado, fazendo uma errada aplicação das normas ao caso.
21. As Rés confessaram a sua culpa e que não executaram as funções profissionais que lhe foram solicitadas pela Autora, como, de resto, decorre da douta decisão ora recorrida, que contudo, não conheceu erradamente, que esse não cumprimento de funções por parte das Rés é ilícito, porque contrário aos deveres impostos por lei, nomeadamente, pelos artigos 9.º, n.º 1 e 10.º, n.º 1, alínea a), do EOCC e artigos 5.º, 17.º e 123.º, entre outros, do Código do IRC.
22. A Autora esperou das Rés competência e diligência no exercício das suas funções técnicas e qualificadas.
23. A Autora é uma sociedade unipessoal por quotas sujeita a contabilidade organizada e, por esse motivo, carece obrigatoriamente de ser assistida tecnicamente por um contabilista certificado nas suas interações com o Fisco – vide nomeadamente, artigos 5.º do Código do IRC e artigo 72.º e 73.º do EOCC, pelo que, não poderia suprimir por meios próprios as falhas das Rés.
24. O Tribunal a quo erra de forma inexplicável na valoração da conduta e culpa das Rés, que está consolidada nos autos, sendo que a ilicitude do comportamento destas está confessada, assumida na contestação e provada pela informação que a Ordem dos Contabilistas Certificados aportou aos autos, pois as Rés assumem que não executaram as suas funções profissionais de forma regular, diligente e competente, quando o deveriam ter feito, e este comportamento corresponde à pratica de um ato ilícito, porque contrário ao que impõe desde logo, o Código do IRC (artigos 5.º, 17.º, 123.º, entre outros), relativamente à obrigatoriedade de manter a contabilidade da Autora em dia, regular e exata, para se poder apurar o lucro tributável.
25. A falta de execução da contabilidade da Autora nos anos de 2018 (meses de setembro e seguintes) e 2019, levou a que não houvesse regularidade técnica da contabilidade da Autora, por razões diretamente imputáveis às Rés, a qual só foi reposta após uma recuperação extraordinária desses anos, por outros profissionais contabilistas certificados e, após, larga demora das Rés em procederem à entrega das pastas e de toda a documentação completa desses períodos, recuperação extraordinária que só findou em Março de 2022.
26. Em face da qualificação jurídica que deve ser efetuada à conduta negligente e ilícita das Rés, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual uma vez que estão verificados todos os respetivos pressupostos (artigos 483.º, 486.º, 487.º e 496.º do Código Civil), constata-se errada a convicção e argumentação jurídicas explanadas na douta decisão recorrida, que não faz a aplicação das normas fiscais supra, ao caso vertente, verificando-se, outrossim, que a douta decisão recorrida desconsidera, erradamente, o caráter publico e imperativo das normas fiscais supra citadas, e dos prazos legalmente impostos pelas mesmas, assim como da obrigação de dispor de um Contabilista Certificado para assegurar a contabilidade organizada de uma empresa como a Autora, acabando por desresponsabilizar, pretendendo tornar indemne a grave conduta das Rés, o que com o devido respeito não se aceita.
27. Nos autos estão verificados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual que recai sobre as Rés, com a respetiva obrigação de indemnizar a Autora nos termos peticionados, pois que se verifica:
a) o facto voluntário das mesmas, conduta humana, que no caso traduz-se numa omissão, dominada ou dominável pela vontade;
b) a ilicitude desse facto, que pode revestir a modalidade de violação de direito alheio (direito subjetivo) ou de violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios, que as Rés assumem e confessam;
c) está estabelecido o nexo de imputação do facto ao lesante, ou culpa do agente, em sentido amplo, que se traduz num juízo de censura ou reprovação da sua conduta, e que pode revestir a forma de dolo ou de negligência, que as Rés assumem e confessam, não apresentando qualquer causa de justificação para a sua conduta.
d) o dano ou prejuízo resultante para a Autora, que é integrado, no caso dos autos, pelos valores que pagou às Rés sem contrapartida, pela perda da possibilidade de se ter candidatado a um apoio município ... no valor de 4.000,00 euros, porque não tinha a contabilidade do ano de 2018 e 2019 regularizada, por omissão das Rés, e pelo facto, de por esse motivo, por não terem as Rés submetido as declarações de IRC de 2019 da Autora, a AT ter efetuado uma liquidação oficiosa que culminou na reclamação do pagamento de mais de 56.000,00 euros à Autora, apurados com base em estimativas e elementos dos anos anteriores, sem se tomarem em conta as perdas e quebras de faturação, que levaram a que os resultados nesse exercício fossem negativos, instaurando subsequentemente o respetivo processo executivo fiscal para cobrança dessa quantia, o qual se encontra em curso e pendente, estando a Autora a pagar prestações mensais até decisão final da impugnação judicial do mesmo que apresentou no Tribunal Administrativo e Fiscal ..., como documentado nos autos.
28. Portanto, ao contrário do que parece ser o entendimento do tribunal a quo, que não se aceita e se impugna, eram as Rés que tinham o dever funcional de efetuar em nome e por conta da Autora as obrigações declarativas nos prazos legais para o efeito, não era a Autora que tinha a obrigação de usar de qualquer expediente irregular, contrário aos procedimentos legais (nomeadamente, violando os artigos 17.º, 117.º, 120.º, 121.º, 123.º do Código do IRC e 32.º da Lei Geral Tributária), e fora dos prazos impostos pelo Estado, para suprimir a falta destas.
29. Reforça este entendimento, o facto de a Ré pessoa singular ter sido condenada em multa no valor de 800,00 euros que lhe foi aplicada pela Ordem dos Contabilistas Certificados, por infração disciplinar motivada pelos factos constantes dos presentes autos.
30. O Tribunal a quo não valorou, como se impunha, a condenação da Ré no citado processo disciplinar, condenação que evidencia a existência de infração às normas disciplinares a que está sujeita e que estão diretamente relacionadas com o exercício de funções que se esperava competente e diligente.
31. Impugna-se, outrossim, o segmento da decisão recorrida que julga improcedente o pedido formulado pela Autora referente ao apoio financeiro da Câmara Municipal ....
32. Como dito, à data do termo do prazo para candidatura ao apoio da Câmara Municipal ... (que findou no final do ano de 2021), a Autora ainda não tinha a sua contabilidade regularizada e recuperada, uma vez que as RR apenas procederam à entrega de parte das pastas e documentação da Autora no dia 19 de Maio de 2021, e o serviço extraordinário de recuperação da contabilidade da Autora apenas findou em março de 2022,
33. Pelo que não poderia a Autora submeter a candidatura a esse apoio desacompanhada dos documentos instrutórios exigidos pelo município, conforme respetivo formulário de candidatura junto como documentos n.º... e ... da p.i.
34. Está provado o nexo de causalidade entre o dano resultante da perda de chance da Autora a esse apoio municipal e a conduta omissiva das Rés, por responsabilidade civil extracontratual das Rés.
35. Neste particular, a responsabilidade das Rés tem de ser analisada sob a perspetiva do dano resultante da perda de chance, o que a decisão recorrida desconsiderou, omitiu, por erro ou inadvertência, pese embora todos os elementos constantes dos autos, sendo esta uma das soluções plausíveis da questão de direito submetida à apreciação do julgador e que deveria ter sido equacionada na douta decisão recorrida.
36. O dano da perda de chance é um dano em si mesmo, como propugna a generalidade da jurisprudência citada nas motivações.
37. Havia a real chance de a Autora obter o citado apoio financeiro, no valor de 4.000,00 euros atribuído pelo município às empresas da região, para mitigar as perdas de lucros motivadas pela Covid 19, uma vez que tal dependia da apresentação da respetiva candidatura devidamente instruída com os documentos fiscais e contabilísticos exigidos, que a Autora, ao termo do prazo de candidatura não possuía, pelas razões já indicadas.
38. Concluímos que os juízos valorativos e convicções pessoais plasmados na douta decisão recorrida estão, com o devido respeito, inquinados de vícios de interpretação e erros sobre as normas legais ao caso aplicáveis, transparecendo a impunidade das Rés pelas consequências que ilicitamente, por omissão dos seus deveres, boas práticas profissionais e obrigações de índole fiscal a que estavam sujeitas como profissionais certificadas, causaram à recorrente.
39. O juízo valorativo da douta decisão ora impugnada demonstram uma interpretação errónea dos factos e das normas aplicáveis, já atrás indicadas, das quais decorrem obrigações legais que as Rés não respeitaram, sendo essa omissão causal dos danos invocados pela Autora e que se impõem ressarcir.
40. Nesta medida, o ponto A) do dispositivo da douta decisão recorrida, violou por erro de interpretação e aplicação, entre outros, os artigos 219.º, 220.º, 286.º, 289.º, 294.º do Código Civil; artigos 70.º, n.º 5, do EOCC, aprovado pela Lei n.º 139/2015, de 7 de setembro, e do artigo 9.º do Código Deontológico dos Contabilistas Certificados, anexo II à supra mencionada lei; assim como os artigos 17.º, 117.º, 120.º, 121.º, 123.º do Código do IRC e 32.º da Lei Geral Tributária.
41. No que respeita ao segmento decisório constante do ponto B) do dispositivo da decisão recorrida o Tribunal a quo errou, de igual forma e pelas mesmas razões, o julgamento da matéria de facto e de direito, consequentemente efetuou uma errada aplicação do direito ao caso, pelo que deve ser revogado e subsistido por outro que julgue o pedido formulado na alínea b) do petitório totalmente procedente, por provado, ou, em alternativa, que se determine a notificação da Autora para proceder ao aperfeiçoamento da petição inicial relativamente a essa matéria.
42. A petição inicial não foi julgada inepta, tendo as Rés apreendido toda a amplitude da causa de pedir e do pedido, exercendo plenamente o seu direito ao contraditório.
43. A Autora cumpriu o ónus de alegar os essenciais do seu pedido que, vista a nulidade invocada, assenta ne responsabilidade civil das Rés.
44. Foi cumprido o artigo 483.º do Código Civil.
45. Estão alegados e demonstrados os pressupostos de que depende o direito da Autora, plasmados no citado artigo 483.º do Código Civil, tendo as Rés confessado que por sua culpa não executaram os serviços de contabilidade solicitados e pagos pela Autora.
46. A conduta das Rés corresponde a uma violação ilícita do direito da Autora, porque as Rés tinham o dever (legalmente imposto nomeadamente pelos artigos 123.º do CIRC, 32.º da LGT, 72.º do EOCC) e funcional (de acordo com as normas do respetivo Estatuto e Código Deontológico) de executar as funções solicitadas e, não o fizeram, sem motivo válido ou justificado, ao arrepio dos seus deveres legais, profissionais e deontológicos, tendo a Autora cumprido a sua parte.
47. A conduta das Rés causou danos patrimoniais na esfera da Autora, na medida em que teve de recorrer a outro profissional para recuperar e reorganizar a sua contabilidade, vendo-se a braços com uma liquidação oficiosamente determinada pela AT, com base em métodos indiretos, culminando na notificação para pagamento de imposto IRC do exercício de 2019, de valor superior a mais de 56.000,00 euros, quando os resultados foram negativos, e, pese embora as reclamações graciosas e a impugnação judicial no Tribunal Administrativo e Fiscal ..., o processo executivo fiscal prosseguiu seus termos até ser prestada garantia bancária pela Autora, com as inerentes custas e encargos evitáveis.
48. Nos artigos 7º,11º, 12º, 14º,16º, 19º, 20º, 21º, 22º, 23º, 24º, 25º, 26º, 27º, 28º, 29º, 30º, 31º, 32º, 33º, 34º, 36º, 37º, 38º, 40º, 41º, 42º, 53º, 55º da petição inicial são alegados os factos essenciais que sustentam o pedido da Autora, sendo que alguns dos quais foram confessados pelas Rés na contestação, estando assim confessada/provada a sua culpa pela verificação dos mesmos.
49. Os artigos 63º, 64º, 65º, 66º comportam a alusão aos prejuízos não patrimoniais motivados pela conduta das Rés, nomeadamente, o facto de a Autora ter sido incluída na listagem de devedores ao fisco.
50. Esta inclusão é adequada a provocar uma má imagem comercial da Autora, diminuindo a sua confiabilidade e idoneidade, causando danos de natureza patrimonial que merecem a tutela do direito e, que não teria não fosse a conduta ilícita das Rés aqui em análise.
51. Com o devido respeito, carece de fundamentação a douta decisão recorrida, que deverá ser revogada em conformidade, quando julga improcedente o pedido formulado na alínea B) do petitório, uma vez que a Autora cumpriu o ónus de alegação dos factos essenciais que suportam o pedido.
52. Não obstante, antes de julgar improcedente determina o princípio da cooperação previsto no artigo 7.º, n.º 2, do CPC, que o Tribunal ordenasse o aperfeiçoamento do articulado, nos termos do disposto no artigo 590. , n. 2, alíneas a) e b), do Código de Processo Civil.
53. O juiz deve proferir despacho de convite ao aperfeiçoamento dos articulados, se detectar insuficiências, incongruências ou imprecisões na petição inicial.
54. No caso vertente, tal despacho convite não foi dirigido à Autora.
55. A falta desse despacho configura omissão de um acto que a lei prescreve e influiu decisivamente no exame e decisão da causa, posto que o Tribunal a quo julgou manifestamente improcedente o pedido formulado pela Autora, por insuficiência de factos que poderiam ter sido invocados em cumprimento do convite ao aperfeiçoamento.
56. Assim, deve este segmento B) do dispositivo da douta decisão recorrida ser revogado e substituído por outro que julgue o pedido formulado na alínea b) do petitório totalmente procedente, por provado, ou, em alternativa, que determine a notificação da Autora para proceder ao aperfeiçoamento da petição inicial relativamente a essa matéria.
57. No que respeita ao segmento decisório constante do ponto C) da decisão recorrida o Tribunal a quo errou, de igual forma, o julgamento da matéria de facto e de direito, fazendo uma incorreta aplicação do direito.
58. Veja-se que, nos artigos 48º e 49º da petição inicial, com respaldo no documento nº...5 junto com a mesma, a Autora refere que se reserva de liquidar contra as Rés em eventual execução de sentença, todos os juros de mora, penalizações e acréscimos legais em que venha a incorrer no âmbito do processo executivo tributário em curso no serviço de finanças do ... (processo número ...59 – cuja cópia se junta como documento n.º...5) por via do qual é cobrada à Autora a quantia de 56.619,50 euros, a título de IRC do ano de 2019, apurado oficiosamente pela AT com recurso a métodos indiretos, por falta da entrega atempada da respetiva declaração de IRC pelas 1ª e 2ª Rés.
59. No artigo 64º da petição inicial reforça-se que a Autora se vê a braços com vários processos e procedimentos tributários, nomeadamente, o supra indicado processo executivo.
60. O documento nº...5 junto e que completa os mencionados artigos 49º e 64º da petição inicial, e a alínea c) do petitório, é a nota de citação da Autora para os termos do referido processo executivo, com certidão do valor em dívida que corresponde sem dúvidas ao IRC de 2019.
61. Não há motivos válidos para julgar imediatamente a improcedência deste pedido ilíquido formulado pela Autora.
62. Este pedido da alínea C) assenta no facto de o imposto de 2019 ter sido alvo de liquidação oficiosa por parte da AT, pelo facto de a referida declaração de rendimentos desse ano, não ter sido cumprida no tempo certo, por motivo das relatadas omissões das Rés contabilistas certificadas, que determinaram um processo de recuperação extraordinária da contabilidade da Autora, que finalizou em março de 2022.
63. Como dito e decorre dos vários emails juntos aos autos e cartas registadas expedidas pela Autora, que as Rés não impugnaram, estas retiveram, sem motivo, as pastas contendo a documentação contabilística da atividade da Autora, dos anos de 2018 e 2019, impedindo que a nova empresa de contabilidade reorganizasse e regularizasse a contabilidade atempadamente.
64. Não está correta a aplicação do artigo 278.º, n.º 3, do CPC que vai invocada nesse segmento da douta decisão recorrida, porquanto não foi dado cumprimento ao disposto no n.º 2 do artigo 6.º do mesmo diploma, uma vez que para poder fazer uso do 278.º, n.º 3, competia ao Tribunal convidar a Autora a efetuar essa concretização, o que não sucedeu.
65. Foi alegada e documentada a existência de um processo executivo fiscal que importa custos e acréscimos para a Autora, por ora desconhecidos, mas cuja existência deriva da conduta omissiva das Rés.
66. A Autora não consegue provar, por ora, o montante da condenação pedida na alínea C) do petitório, que decorre da conduta omissiva das Rés, já sobejamente exposta, pelo que por esse motivo, tem de ser admitida a operar a respetiva liquidação – n.º 2 do artigo 609.º do CPC.
67. Ante as motivações e conclusões supra, ao decidir como decidiu, constata-se que a douta decisão recorrida incorreu na violação, por erro de aplicação e de interpretação, entre outras, as normas dos artigos 5.º, 6.º, n.º 2, 7.º, 278.º, n.º 3, 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, 219.º, 220.º, 286.º, 289.º, 483.º, 487.º, 496.º, 562.º, 563.º, 569.º do Código Civil, artigos 9.º, n.º 1 e 10.º, n.º 1, alínea a), 72.º do EOCC, 9.º do Código Deontológico anexo, e 17.º, 117.º, 120.º, 121.º, 123.º do Código do IRC e 32.º da Lei Geral Tributária.”
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1.7. Nenhuma das rés contra-alegou.
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1.8. Por despacho proferido em 15 de novembro de 2023, o recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo.
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1.9. Efetuada a apreciação liminar, colhidos os vistos legais e realizado o julgamento, nos termos do artigo 659.º do Código de Processo Civil, cumpre apreciar e decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Âmbito do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 3 e 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Por outro lado, ainda, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o tribunal de recurso não pode conhecer de questões não antes suscitadas pelas partes em 1.ª instância e ali apreciadas, sendo que a instância recursiva, tal como configurada no sistema de recursos vigente na nossa lei adjetiva, não se destina à prolação de novas decisões judiciais, mas ao reexame ou à reapreciação pela instância hierarquicamente superior das decisões proferidas pelas instâncias [Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de processo Civil, págs. 92-93].
No seguimento desta orientação, no caso em apreço, são as seguintes a questões a decidir:
1.ª O acordo estabelecido entre a autora e as rés AA e E... Unipessoal, Lda., a sua (in)validade por falta de observância de forma legal e as consequências daí advenientes;
2.ª Sendo nulo o acordo celebrado entre a autora e as rés AA e E... Unipessoal, Lda., determinar se a matéria de facto provada permite conhecer parcialmente, nesta fase processual, do mérito da ação.
3.ª Na afirmativa, determinar se devem as rés ser condenadas nos pedidos formulados nas alíneas a), b) e c) do petitório.
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2.2. No saneador-sentença objeto do presente recurso foram considerados provados os seguintes factos:
1. A A. é uma sociedade unipessoal por quotas, com contabilidade organizada.
2. A A. dedica-se à exploração de cafés; restaurantes tipo tradicional; comércio por grosso de outros produtos alimentares não especificados; outras actividades de serviços pessoais não especificados; comércio por grosso de perfumes e produtos de higiene.
3. A 2.ª Ré, AA, é contabilista certificada com o n.º ...40, atividade que exerce por meio da 1ª Ré, sociedade unipessoal por quotas.
4. A 1.ª Ré, sociedade, dedica-se à prestação de serviços nas áreas de gestão, contabilidade, fiscalidade, consultoria, auditoria, marketing, recursos humanos, informática, formação e projetos de viabilidade económico-financeiras.
5. O gabinete de contabilidade onde as Rés exercem a sua atividade profissional situa-se na Rua ...., ... ....
6. A Autora solicitou às RR. a prestação dos serviços de contabilidade e fiscalidade, com caráter mensal e regular, mediante o pagamento de uma contrapartida mensal.
7. O referido acordo teve início em Setembro de 2018, e termo em meados de Outubro de 2019, tendo a A. liquidado todas as contrapartidas mensais vencidas nesse período.
8. Durante esse período de tempo, nem a 1.º Ré, nem a 2.ª Ré, procederam à entrega de qualquer declaração fiscal junto da Autoridade Tributária, pese embora a A lhe tivesse facultado a devida documentação.
9. Em sequência, a A. viu-se forçada a acordar com outra empresa de contabilidade a entrega das declarações fiscais referentes a esse período, tendo tido bastantes dificuldades na devolução, por parte das RR., da documentação referida no ponto anterior.
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2.3. Apreciação do recurso
1.ª Questão
O acordo estabelecido entre a autora e as rés AA e E... Unipessoal, Lda., a sua (in)validade por falta de observância de forma legal e as consequências daí advenientes
Na petição inicial, a autora apelante baseou a sua pretensão em as rés AA e E... Unipessoal, Lda. terem incumprido o contrato de prestação de serviços entre elas celebrado, incorrendo em responsabilidade contratual, por omissão do cumprimento da obrigação contabilística da prestação das contas anuais relativas aos anos de 2018 e 2019.
Em sede de recurso, a autora apelante arguiu a nulidade do acordo que qualifica como um contrato de prestação de serviços de contabilidade, por falta de observância de forma legalmente prescrita – a forma escrita.
Resultou provado que:
- A 2.ª ré, AA, é contabilista certificada com o n.º ...40, atividade que exerce por meio da 1.ª ré, sociedade unipessoal por quotas.
- A 1.ª ré, sociedade, dedica-se à prestação de serviços nas áreas de gestão, contabilidade, fiscalidade, consultoria, auditoria, marketing, recursos humanos, informática, formação e projetos de viabilidade económico-financeiros.
- A autora solicitou às rés a prestação dos serviços de contabilidade e fiscalidade, com caráter mensal e regular, mediante o pagamento de uma contrapartida mensal.
- O referido acordo teve início em setembro de 2018, e termo em meados de outubro de 2019.
Da factualidade assente resulta que foi celebrado entre a autora e as rés AA e E... Unipessoal, Lda., um contrato de prestação de serviços pelo qual as rés se obrigaram a prestar à autora serviços de contabilidade.
Considera a autora que o contrato é nulo porquanto não revestiu a forma escrita.
A nulidade do contrato não foi arguida perante o tribunal de 1.ª instância, mas trata-se de uma questão de conhecimento oficioso que o mesmo poderia ter conhecido, podendo este tribunal superior igualmente conhecer oficiosamente desta questão da nulidade, sendo que foi invocada em sede de recurso pela recorrente autora.
Conhecendo.
Como é sabido, vigora na nossa ordem jurídica o princípio da liberdade contratual, que permite que, dentro dos limites da lei, as partes possam fixar livremente o conteúdo dos contratos, possam celebrar contratos diferentes dos previstos no Código Civil, possam incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver, podendo ainda, por último, reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou parcialmente regulados na lei (artigo 405.º, nºs 1 e 2, do Código Civil).
Ao contrato de prestação de serviços que a lei não regule especialmente são aplicáveis as disposições relativas ao contrato de mandato, por força do disposto no artigo 1157.º do Código Civil.
Nos termos dessas disposições, o contrato de prestação de serviços tem como efeitos essenciais a obrigação de praticar os atos compreendidos no contrato, por parte de quem presta os serviços, e a obrigação de pagar a retribuição acordada, por parte de quem os recebe (artigos 1161.º e 1167.º da Lei Civil).
Trata-se, pois, assim, de contrato bilateral, sinalagmático, oneroso e tendencialmente consensual.
Sucede que, no caso concreto, prescreve o artigo 9.º do Código Deontológico dos Contabilistas Certificados, na redação dada pela Lei n.º 139/2015, de 7 de setembro, que o contrato entre os contabilistas certificados e as entidades a quem prestam serviços deve ser sempre reduzido a escrito.
Ou seja, nos contratos de prestação de serviços de contabilidade celebrados entre os contabilistas certificados e as entidades a quem prestam serviços, a lei prescreve a forma escrita para a declaração negocial, excecionando a forma consensual dos contratos de prestação de serviços.
E não se trata apenas de um dever deontológico, resultante do Código Deontológico dos Contabilistas Certificados (artigo 70.º, n.º 5).
Como se lê no acórdão do TRL, de 15.12.2022, disponível em www.dgsi.pt:
Importa saber se tais normas estabelecem uma obrigatoriedade de redução do contrato à forma escrita fora do contexto dos deveres deontológicos dos contabilistas certificados, ou seja, se podem considerar-se como incorporando a prescrição legal de forma escrita do contrato, para os efeitos do artigo 220.º do CC. Ou seja, cumpre apreciar se por estas normas o legislador afastou o regime geral de liberdade de forma ou se consagrou apenas um dever de uma classe profissional que apenas aos seus membros vincula.
(…)
No caso presente o código deontológico foi aprovado por decreto-lei, com o que entendemos que não pode excluir-se a sua aplicabilidade externa, para além do universo dos contabilistas certificados.
(…)
A interpretação da lei deve tomar em atenção o conjunto do sistema em que se insere, mantendo sempre um mínimo de correspondência verbal – artigo 9.º do CC.
No caso em apreciação é patente de todas as normas a menção ao dever do contabilista de celebrar o contrato por escrito, sendo nesse contexto específico que a norma do Código Deontológico é elaborada.
A finalidade de um código deontológico e a previsão da inobservância da forma escrita como infracção disciplinar, podem inculcar a conclusão de que a questão da forma do contrato é encarada apenas no âmbito dos deveres deontológicos do contabilista e não instituída como influindo na validade substancial do contrato ou na sua prova.
Todavia, em sentido contrário milita a aprovação do código deontológico por decreto-lei e a recepção da norma no Estatuto da Ordem tanto no regime dos artigos 7.º e 52.º como no subsequente dos artigos 11.º e 70.º.
Embora essas normas encarem a redução a escrito na perspectiva do dever profissional do contabilista, não na da validade do contrato, certo é que se referem à forma deste e, no que respeita ao artigo 9.º do Código Deontológico o acento é colocado na forma do contrato e não no dever do profissional.
Concluímos, assim, como faz o citado aresto, que está legalmente prescrita a forma escrita do contrato.
Por sua vez, dispõe o artigo 220.º do Código Civil, que quando a declaração negocial careça de forma legalmente prescrita, a mesma é nula se não for observada essa forma, nulidade da qual o tribunal pode conhecer mesmo oficiosamente, nos termos do artigo 286.º do Código Civil, pois estamos perante interesses de ordem pública, de regulamentação de uma determinada profissão que visa a proteção dos clientes, mas também a dos interesses do Estado na vertente fiscal e de proteção da legalidade da atuação contabilística das empresas com contabilidade organizada.
Dúvidas não restam que o contrato de prestação de serviço de contabilidade é nulo, o que será declarado.
Assim, e de acordo com os artigos 289.º e 290.º do Código Civil:
A nulidade do negócio tem efeito retroativo e implica a restituição do prestado em espécie ou, na impossibilidade, em valor.
Deve, em primeiro lugar, ser restituído tudo o que tiver sido prestado.
Se ainda possível, a restituição deve ser feita em espécie; se já não for possível, deve ser restituído o valor correspondente.
Se da nulidade resultarem obrigações de restituição que sejam recíprocas, devem ser cumpridas simultaneamente, podendo cada uma das partes sustar a restituição que lhe incumbe, enquanto a outra não cumprir.
No caso concreto, embora a autora tenha pedido a condenação das rés no pagamento da quantia de € 2.509,20 correspondentes às avenças de 12 meses, que lhes pagou como contrapartida dos serviços contratados, tal pedido teve por base a validade do contrato e à luz da responsabilidade civil contratual, e tal quantia é peticionada a título de danos patrimoniais emergentes e prejuízos sofridos.
Não desconhecemos o teor o teor do assento n.º 4/95, com o valor de uniformização de jurisprudência nos termos do disposto no artigo 17.º, n.º 2, do Decreto – Lei n.º 329-A/95, de 12 de dezembro (in Diário da República n.º 114/1995, Série I-A de 17 de maio), que fixou a seguinte jurisprudência:
Quando o Tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade, e se na acção tiverem sido fixados os necessários factos materiais deve a parte ser condenada na restituição do recebido com fundamento no n.º 1 do artigo 289.º do Código Civil”.
Os factos fixados na decisão recorrida a tal respeito são que a autora solicitou às rés a prestação dos serviços de contabilidade e fiscalidade, com caráter mensal e regular, mediante o pagamento de uma contrapartida mensal, tendo a autora liquidado todas as contrapartidas mensais vencidas nesse período. Tais factos não permitem fixar qualquer restituição em espécie ou em valor.
Na verdade, as rés impugnaram a factualidade relativa aos valores pagos e daí o tribunal recorrido não os ter dado como assentes.
Nestes termos, e por ser necessário apurar em termos probatórios os referidos valores, impõe-se que prossiga a ação para a fase de julgamento.
Assim, em relação aos danos peticionados nas alíneas b) e c), do pedido, existe matéria de facto controvertida, a necessitar de produção de prova (quiçá, previamente, a justificar um convite ao aperfeiçoamento) para, depois de fixada a matéria de facto, equacionar a decisão em termos das possíveis soluções de direito, ficando, assim, prejudicada a apreciação de tais pedidos.
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III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes que integram a 1.ª secção cível deste Tribunal da Relação de Évora, em julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, revogar a sentença recorrida nos seguintes termos:
- Declaram a nulidade do contrato de prestação de serviços e ordenam o prosseguimento dos autos para apuramento da factualidade referente aos valores a restituir, nos termos do artigo 289.º do Código Civil, bem como para serem apurados os demais danos invocados pela autora, sem prejuízo de a 1.ª instância, se assim o entender necessário, proferir despacho de aperfeiçoamento em relação aos factos ainda em apuramento, e, ainda, sem prejuízo dos factos já dados como assentes.
A responsabilidade pelas custas será determinada a final, em conformidade com o vencimento que se vier a apurar.
Notifique.
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Évora, 11 de Abril de 2024
(o presente acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelas suas signatárias)
Maria José Cortes (Relatora)
Maria Adelaide Domingos (1.ª Adjunta)
Maria João Faro (2.ª Adjunta)