PROCESSO ESPECIAL DE RECUPERAÇÃO DE EMPRESA
ADMINISTRADOR JUDICIAL PROVISÓRIO
REMUNERAÇÃO
Sumário

I - Para efeitos da remuneração do administrador judicial provisório em processo de recuperação [artigo 23.º do EAJ, aprovado pela Lei n.º 22/2013, de 26/2, com as alterações da Lei n.º 9/2022, de 11/1] entende-se por situação líquida a diferença entre o valor dos créditos reclamados e admitidos e o valor dos créditos a pagar pelo devedor aos credores em execução do plano de revitalização aprovado.
II - A majoração [artigo 23.º, n.º 7, do EAJ] é calculada sobre a percentagem do valor dos créditos reclamados e admitidos que, de acordo com a previsão do plano, obtêm satisfação.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

173/23.4T8OLH.E1

Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Évora:

I. Relatório
1. No processo especial de revitalização em que é devedora V... Unipessoal, Lda., aprovado e homologado o plano de revitalização, o Exm.º Administrador judicial provisório veio requerer a atribuição da quantia de € 25.966,20, a título de remuneração variável, para além da quantia de € 2.000,00 a título de remuneração fixa e de € 124,40 a título de despesas.

2. Seguiu-se despacho assim concluído:
(…) o Tribunal decide:
a) Fixar o valor da remuneração fixa do Senhor Administrador Judicial Provisório em € 2.000,00, acrescido de IVA à taxa legal;
b) Fixar o valor da remuneração variável do Senhor Administrador Judicial Provisório em € 228,76, acrescido de IVA à taxa legal;
c) Indeferir o reembolso das despesas peticionadas; e
d) Determinar o pagamento da remuneração do Senhor Administrador Judicial Provisório pela Devedora.”

3. O Administrador judicial provisório recorre deste despacho, motiva o recurso e conclui:
“1. Vem o presente recurso interposto da decisão proferida em 12/01/2024 e notificada ao recorrente em 18/01/2024.
2. O recorrente impugna a mencionada decisão, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 639.º do CPC, por considerar que o Tribunal a quo interpretou e aplicou erradamente as normas de direito relevantes para o caso, pugnando, nomeadamente, pela respetiva revogação na parte em que indeferiu, por entender não ser devido, o pagamento da quantia de € 23.788,89 (acrescida de IVA) ao recorrente a título de remuneração variável, fixando esta em apenas € 228,76 (acrescida de IVA).
3. Pretende o recorrente a substituição da decisão, na referida parte, por outra que conclua ser devida ao recorrente uma remuneração variável, da responsabilidade da devedora, no montante de € 23.788,89 (acrescido de IVA).
4. Nos termos da alínea a) do n.º 4 do artigo 23.º do EAJ, os administradores judiciais auferem ainda uma remuneração variável em função do resultado da recuperação do devedor, cujo valor é calculado nos termos seguintes: 10% da situação líquida, calculada 30 dias após a homologação do plano de recuperação do devedor, nos termos do n.º 5.
5. O n.º 5 do artigo 23.º do EAJ positiva o seguinte: “Para os efeitos do disposto no número anterior, em processo especial de revitalização, em processo especial para acordo de pagamento ou em processo de insolvência em que seja aprovado um plano de recuperação, considera-se resultado da recuperação o valor determinado com base no montante dos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano”.
6. O n.º 7 do artigo 23.º do EAJ acrescenta que: “O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5% do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles”.
7. À data de admissão da devedora a PER a situação líquida da mesma ascendia a € 67.516,00, resultante de um ativo de € 261.768,00 e passivo de € 194.252,00 – cfr. valores que constam no Balanço apresentado pela Devedora no Plano de Recuperação junto aos autos em 06/07/2023 (n.º 2 do Ponto Pressupostos Financeiros – Págs. 9/25), com a referência Citius ...40.
8. Foram reconhecidos, na lista provisória de credores junta aos autos, créditos que ascendem ao montante de € 348.402,88 – cfr. lista provisória de créditos junta aos autos em 20/03/2023, com a referência Citius ...52.
9. O valor total que a devedora pagará aos credores ascende a € 348.174,14, cifrando-se o montante dos créditos perdoados em € 228,74 – cfr. lista provisória e plano de recuperação.
10. O Plano de Recuperação prevê que os pagamentos aos credores sejam realizados ao longo de 10 anos, o que impõe que se proceda à atualização do valor do seu passivo para o momento atual, atendendo a que é diferente proceder ao pagamento de € 348.174,14 no imediato ou durante 10 anos.
11. Calculado o custo do capital amortizado do passivo da devedora, obtemos um passivo reestruturado a pagar em 10 anos (€ 348.174,14) que tem o valor atual de somente € 281.114,25, tendo sido considerada, para o efeito, uma taxa de atualização igual à taxa do custo médio do capital suportada pela devedora para o pagamento dos créditos de cada classe de credores, que é de 9,729%.
12. Os montantes anuais a pagar pela devedora, como resultado do Plano de Recuperação, são os que constam da tabela infra:
Plano de Pagamentos …AT… Seg. Social …Bancos …Outros Comuns
Pagamento Ano 1 2 343,87 € …2 544,16 € …0,00 € ... 0,00 €
Pagamento Ano 2 14 063,20 € …15 264,95 € …78,33 € ... 2 284,41 €
Pagamento Ano 3 14 063,20 € ...15 264,95 € …470,00 € ...13 706,48 €
Pagamento Ano 4 14 063,20 € …15 264,95 € …470,00 € ...13 706,48 €
Pagamento Ano 5 14 063,20 €… 15 264,95 € …470,00 € ...13 706,48 €
Pagamento Ano 6 14 063,20 € …12 720,79 € …470,00 € ...13 706,48 €
Pagamento Ano 7 14 063,20 € …………….. 470,00 € …. 13 706,48 €
Pagamento Ano 8 14 063,20 € ……………..470,00 € … 13 706,48 €
Pagamento Ano 9 14 063,20 € …………… 470,00 € … 13 706,48 €
Pagamento Ano 10 14 063,20 € ……………..470,00 € …...13 706,48 €
Pagamento Ano 11 1 171,93 € ………………470,00 € …...13 706,48 €
Pagamento Ano 12 …………………………391,67 € …...11 422,06 €
TOTAL 130 084,62 € …76 324,76 € …4 700,00 €... 1374,76 €
13. O cálculo do custo do capital amortizado é obrigatório nas normas de relato contabilístico, atendendo a que NCRF 27 (NCRF = Normas Contabilísticas e de Relato Financeiro) refere, expressamente, no seu n.º 11, que os ativos e passivos financeiros são mensurados, em cada data de relato, quer: i) ao custo ou custo amortizado menos qualquer perda por imparidade; ou ii) ao justo valor com as alterações de justo valor a ser reconhecidas na demonstração dos resultados – cfr. informação disponível em https://www.cnc.min-financas.pt/Instrumentos_snc2016.html.
14. Foi calculado o Valor Atual Líquido (VAL) do passivo da devedora (€ 348.174,14), mediante atualização dos montantes anuais a pagar, determinando-se, como já referido, que aquele ascende a € 281.114,25.
15. A situação líquida da devedora após a homologação do Plano de Recuperação ascende a € 164.847,75, atendendo ao ativo de € 445.962,00 que consta da análise financeira previsional (cfr. Balanço junto na página 23/25 do Plano de Recuperação) e ao passivo de € 281.114,25, sendo a equação a considerar a seguinte: Situação Líquida (€ 164.847,75) = Ativo Total (€ 445.962,00) – Passivo Total atualizado (€ 281.114,25).
16. Uma vez que a situação líquida da devedora à data de admissão a PER se fixava em € 67.516,00 e, em virtude do Plano de Recuperação aprovado e homologado, a mesma se fixa, agora, em € 164.847,75, ocorreu uma variação positiva em € 97.331,75.
17. A primeira parte da remuneração variável do AJP deveria ter sido fixada em 10% da variação da situação líquida da devedora, ou seja, € 9.733,18 (10% de € 97.331,75), acrescidos de IVA à taxa legal em vigor (23%), o que perfaz € 11.971,81.
18. Ainda que não fosse de considerar a atualização do valor do passivo reestruturado, o que só por mera hipótese académica se admite, sempre haveria direito à remuneração variável calculada com base na situação liquida pós homologação do Plano de Recuperação que resulta do próprio documento, i.e., a diferença entre o total do ativo (€ 446.962,00) e o total do passivo (€ 339.652,00), que se reconduz ao capital próprio (ou situação líquida) de € 106.310,00 – cfr. página 23 do Plano de Recuperação.
19. O valor total que a devedora pagará aos credores ascende a € 348.174,14, o qual, atualizado para o presente momento, corresponde – como já se disse – a € 281.144,25, sendo esse, portanto, o montante dos créditos satisfeitos.
20. À luz do n.º 7 do artigo 23.º do EAJ a remuneração variável do AJP é majorada em 5% do montante dos créditos satisfeitos, pelo que tal majoração deveria ter sido fixada no valor de € 14.055,71 (5% de € 281.114,25), acrescido de IVA à taxa legal em vigor (23%), o que perfaz € 17.288,53.
21. A remuneração variável global do AJP deveria ter sido fixada em € 23.788,89 (€ 9.733,18 + € 14.055,71), acrescida de IVA à taxa legal em vigor (23%), para um total de € 29.260,33 – e não em € 228,76, acrescidos de IVA à taxa legal em vigor, como veio a acontecer.
22. O Tribunal a quo fez uma interpretação distinta e, a nosso ver, manifestamente errada, dos números 4, 5 e 7 do artigo 23.º do EAJ, que não tem, de resto, a menor correspondência com a letra da lei.
23. Não se conhece outro significado (seja contabilístico ou jurídico) para o conceito de “situação líquida” (ou Capitais Próprios) do que, de forma sintética, a diferença entre o ativo e o passivo.
24. Sendo a “situação líquida” a diferença entre o ativo e o passivo, trata-se de um conceito suscetível de aplicação a pessoas coletivas ou singulares, pois que ambas podem deter ativo e passivo.
25. Não é concebível nem lógico, de todo, que o legislador tivesse querido usar a expressão “situação líquida” para se referir a outra coisa que não a diferença entre o ativo e o passivo, nomeadamente, à diferença entre o valor total dos créditos reconhecidos e o valor dos créditos a satisfazer com o Plano de Recuperação.
26. A 2.ª parte da alínea a) do n.º 4 do artigo 23.º do EAJ faz cair por terra, sempre salvo o devido respeito por melhor opinião, a interpretação defendida pelo Tribunal a quo, já que da mesma resulta que a situação líquida é “calculada 30 dias após a homologação do plano de recuperação do devedor”, pelo que, face à suscetibilidade de variação do ativo e do passivo dos devedores, é compreensível, à luz da interpretação do recorrente, o cuidado que o legislador teve de, na própria lei, determinar o momento a que se reporta o cálculo da “situação líquida”.
27. Contudo, já não se vislumbra a menor utilidade em fixar o momento para o cálculo da “situação líquida” do devedor se a mesma quiser reportar-se à diferença entre o valor total dos créditos reconhecidos e o valor dos créditos a satisfazer com o Plano de Recuperação.
28. Tendo em conta que o valor total dos créditos reconhecidos fica determinado, definitivamente, na sequência da apresentação da lista de créditos reconhecidos e do conhecimento das eventuais impugnações da mesma; e que o valor dos créditos a satisfazer com o Plano de Recuperação fica determinado, definitivamente, com a aprovação e homologação do mesmo; mostra-se irrelevante, de todo, a fixação de um momento para o cálculo da “situação líquida” tal como definida pelo Tribunal a quo.
29. A intenção do legislador nunca poderá ter sido a de estabelecer que o cálculo dos 10% da situação líquida do devedor deve ter por medida a diferença entre o valor total dos créditos reconhecidos e o valor dos créditos a satisfazer com o Plano de Recuperação.
30. O Tribunal a quo, erradamente e sem que se perceba bem porquê, decide assumir que apenas se pode entender como “resultado da recuperação” um qualquer perdão efetivo de dívidas, desconsiderando como tal, por exemplo, um alargamento (por mais significativo que seja) do prazo de pagamento das mesmas.
31. É ilógico concluir (como concluiu o Tribunal a quo) que, em abstrato, a obtenção de um perdão de € 1,00 é mais importante para a recuperação de um qualquer devedor do que, por exemplo, a obtenção de condições para pagamento, em 10 anos, sem juros, de uma dívida que ascende a € 348.174,14.
32. A decisão recorrida faz tábua rasa do facto de cada devedor ter diferentes circunstâncias de vida (aí se incluindo a societária) e, por isso, poder ser tão importante para a recuperação de uns obter um perdão parcial das suas dívidas como, para a de outros, conseguir um alargamento do(s) prazo(s) para a(s) pagar.
33. O legislador pretendeu, no n.º 4 do artigo 23.º do EAJ, alertar para uma especificidade (prevista no n.º 5) a ter em conta para efeitos do cálculo da “situação líquida”, i.e., o esclarecimento de uma das suas variáveis (o passivo).
34. O n.º 5 do artigo 23.º do EAJ visa esclarecer que o passivo a considerar para o cálculo da “situação líquida” é o dos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano e não o apurado em momento anterior (na lista de créditos) e considerado, por exemplo, para efeitos de votação do plano.
35. Veja-se, de resto, no referido sentido e apenas a título de exemplo, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07/02/2023, proferido no processo n.º 1210/22.5T8AVR.P1”.
36. Além de a decisão recorrida interpretar erradamente o conceito de “situação líquida”, erra, também, quando se propõe aplicar a majoração a que alude o n.º 7 do artigo 23.º do EAJ: primeiro, porque fala e calcula um “grau de recuperação” a que, note-se, a lei nunca alude; depois, porque fala e calcula uma majoração de “10%” a que a lei também nunca alude, pois que o percentual definido na citada norma é de “5%”; e, finalmente, porque ignora/desconsidera que esses “5%” são a calcular sobre o montante dos créditos satisfeitos (€ 281.114,25), sendo o respetivo valor pago, no entanto, previamente à satisfação daqueles.
37. O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.ºs 5 e 6 do artigo 23.º do EAJ não é uma variável a considerar para o cálculo do valor da majoração, pois que o n.º 7 da dita norma apenas pretende referir que aquele é o valor a que será adicionado um outro (o da majoração, portanto).
38. A decisão recorrida violou, interpretou e/ou aplicou erradamente os números 4, 5 e 7 do artigo 23.º do EAJ, aprovado pela Lei n.º 22/2013 (de 26/12) e alterado pela Lei n.º 9/2022 (de 11/01); e o artigo 9.º do Código Civil.
39. A alínea a) do n.º 4 e o n.º 5 do artigo 23.º do EAJ devem ser interpretados, conjugadamente, no sentido de a remuneração variável dos administradores judiciais em processo especial de revitalização, em processo especial para acordo de pagamento ou em processo de insolvência em que seja aprovado um plano de recuperação, dever corresponder a 10% da situação líquida do devedor, entendida como a diferença entre o ativo e o passivo, este último determinado com base no montante dos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano, calculada 30 dias após a homologação do plano de recuperação.
40. O n.º 7 do artigo 23.º do EAJ deve ser interpretado no sentido de a remuneração variável dos administradores judiciais em processo especial de revitalização, em processo especial para acordo de pagamento ou em processo de insolvência em que seja aprovado um plano de recuperação, dever ser majorada em 5% do montante dos créditos satisfeitos, entendidos como os créditos que, nos termos plano, se antevê que o(a) devedor(a) venha a pagar aos credores.
41. Deve ser revogada a decisão recorrida na parte em que fixou a remuneração variável do recorrente em € 228,76, acrescida de IVA à taxa legal em vigor, a qual deverá ser substituída por outra que fixe a referida remuneração variável, da responsabilidade da devedora, em € 23.788,89 (€ 9.733,18 + € 14.055,71), acrescida de IVA à taxa legal em vigor (23%).”
Observados os vistos legais, cumpre decidir.

II. Objeto do recurso
Considerando que o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso (artigos 635.º, n.º 4 e 608.º, n.º 2 e 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), nos recursos apreciam-se questões e não razões ou argumentos, os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido e vistas as conclusões do recurso, importa decidir se é devida ao administrador judicial a remuneração de € 23.788,89, acrescida de IVA.

III. Fundamentação
1. Factos
Releva considerar o seguinte:
1) O Recorrente foi nomeado administrador judicial provisório por despacho de 16/2/2023 e em 20/3/2023 veio juntar aos autos a lista provisória de créditos, com a indicação de haverem sido reclamados créditos no montante global de € 348.402,88.
2) A lista provisória de créditos foi publicada no portal citius e, na ausência de impugnações, converteu-se em definitiva [cfr. despacho de 29/3/2023].
3) A devedora apresentou plano de revitalização prevendo o pagamento fraccionado dos créditos no montante de € 348.174,14 [110 prestações à Autoridade Tributária; 60 prestações à Segurança Social; 120 prestações aos demais credores] no montante de € 348.174,14.
4) Concluídas as negociações, o plano foi aprovado por uma maioria de credores e veio a ser homologado por sentença de 3/8/2022.


2. Direito
No processo especial de revitalização, o administrador provisório é nomeado pelo juiz e tem direito a remuneração e ao pagamento das despesas decorrentes do exercício de funções, ambas constituindo um encargo compreendido nas custas do processo, a suportar pela empresa ou pelo organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça nos casos em que a empresa beneficie de proteção jurídica na modalidade da dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos do processo (artigo 17.º-C, n.º 6, do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, doravante CIRE).
Sobre a remuneração do administrador judicial nomeado por iniciativa do juiz, o artigo 23.º do Estatuto do Administrador Judicial (EAJ), aprovado pela Lei n.º 22/2013, de 26/2, com as alterações da Lei n.º 9/2022, de 11/1[1], dispõe, designadamente, o seguinte:
1 - O administrador judicial provisório em processo especial de revitalização ou em processo especial para acordo de pagamento ou o administrador da insolvência em processo de insolvência nomeado por iniciativa do juiz tem direito a ser remunerado pelos atos praticados, sendo o valor da remuneração fixa de 2000 (euro).
(…)
4 - Os administradores judiciais referidos no n.º 1 auferem ainda uma remuneração variável em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente, cujo valor é calculado nos termos seguintes:
a) 10% da situação líquida, calculada 30 dias após a homologação do plano de recuperação do devedor, nos termos do n.º 5;
b) 5% do resultado da liquidação da massa insolvente, nos termos do n.º 6.
5 - Para os efeitos do disposto no número anterior, em processo especial de revitalização, em processo especial para acordo de pagamento ou em processo de insolvência em que seja aprovado um plano de recuperação, considera-se resultado da recuperação o valor determinado com base no montante dos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano.
(…)
7 - O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5% do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles.
(…)”
A remuneração do administrador judicial provisório em processo especial de revitalização compreende uma parte fixa – € 2.000,00 – e uma parte (duplamente) variável: 10% da situação líquida, calculada 30 dias após a homologação do plano de recuperação do devedor [n.º 4, alínea a) e n.º 5, do cit. artigo 23.º] e uma majoração, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5% do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles [n.º 7 do cit. artigo 23.º].
A remuneração varia em função do resultado da recuperação do devedor (n.º 4) e o valor deste resultado é determinado com base no montante dos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano [n.º 5].
O administrador judicial provisório em processo de recuperação tem – pretende-se que tenha - uma intervenção relevante na elaboração e conclusão do plano de recuperação, pois que participa, orienta e fiscaliza as negociações entre a empresa e os credores e, na falta de acordo, define as próprias regras das negociações [artigo 17.º-D, nºs 10 e 11, do CIRE], dispondo assim de um espaço privilegiado para, de acordo com o seu empenho, saber e experiência contribuir de forma relevante para a conclusão de um plano de recuperação “viável e credível”.[2]
A remuneração variável cumpre, entre outros, o propósito de incentivar o desempenho administrador nas negociações e na concretização do plano[3] e, assim, será tanto maior quanto melhor for o previsível resultado da recuperação.
E compreende-se que o montante dos créditos a satisfazer – e não o montante dos créditos satisfeitos – constitua a base referencial do resultado da recuperação; o plano de recuperação, em regra, não satisfaz créditos, estabelece um programa para o seu cumprimento e os tempos da recuperação e do pagamento da remuneração não coincidem.
A remuneração variável relativa ao resultado da recuperação é paga em duas prestações: a primeira no momento da aprovação do plano de recuperação e a segunda dois anos após a aprovação do referido plano, caso o devedor continue a cumprir regularmente o plano aprovado [artigo 29.º, n.º 3, da Lei n.º 22/2013, de 26/2] e a satisfação dos créditos integrados no plano, admitindo o sucesso deste, apenas se verificará em prazo muito mais alargado.
O tempo da recuperação e o tempo do pagamento da remuneração não coincidem razão pela qual a remuneração há-de ter por base de cálculo o montante dos créditos a satisfazer e não o montante dos créditos satisfeitos por efeito da boa execução do plano da recuperação.
De notar ainda que o resultado da recuperação corresponde, no dizer da lei, a um “valor determinado com base no montante dos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano” (n.º 5) o que não é, necessariamente, sinónimo de corresponder a um valor diretamente calculado sobre os créditos a satisfazer nos termos do plano, isto é, o valor dos créditos a satisfazer concorre para o cálculo do resultado da recuperação mas este não se afere diretamente por ele, o resultado da recuperação não varia na razão direta dos créditos a satisfazer.
Defender o contrário passaria por admitir, se bem vemos, que aos maiores devedores (mais créditos a satisfazer) corresponderia sempre um melhor resultado da recuperação e as coisas não se passam necessariamente assim.
Os credores desempenham no PER um papel fundamental: ou consentem (pelo menos momentaneamente) no sacrifício dos seus direitos e viabilizam o plano de recuperação ou então mantêm-se irredutíveis, caso em que o plano de recuperação não é aprovado e o perigo de a empresa ser declarada insolvente com toda a probabilidade se concretizará”.[4]
É o âmbito do sacrifício consentido pelos credores que nos dá a medida do resultado da recuperação e não o valor dos créditos a satisfazer nos termos do plano.
Enunciações que enquadram a ratio da remuneração, mas são insuficientes para a realizar.

2.1. Remuneração variável
A regra de cálculo está nos 10% da situação líquida [n.º 4, alínea a)] e a lei, de facto, não diz o que deve entender-se por situação líquida no processo de revitalização, situando-se aqui um dos pontos de divergência colocado no recurso; a decisão recorrida considerou corresponder a situação liquida à diferença entre os créditos reconhecidos e os créditos a satisfazer por efeito da execução do plano de recuperação [(348.402,88 – 348.174,14) x 10% = € 22,87[5]] e o Recorrente defende que a situação líquida para efeitos de cálculo da remuneração corresponde à diferença entre a situação líquida da devedora à data da admissão do PER e a situação líquida que lhe resulta do plano de recuperação a qual se cifra, segundo alega, em € 97.331,75.
Grosso modo a situação líquida de uma empresa representa a relação entre o ativo e o passivo, de tal forma que se o ativo for superior ao passivo a situação líquida terá um determinado valor positivo, se o ativo for inferior ao passivo a situação líquida terá um determinado valor negativo e, enfim, se o ativo for igual ao passivo a situação líquida da empresa será igual a zero.
Claramente não é este o sentido de situação líquida em vista da alínea b) do n.º 4 do artigo 23.º do EAJ, dada a expressa remissão para o n.º 5, onde se dispõe que para os efeitos do disposto no número anterior, e, assim, designadamente, para efeitos de situação líquida, “em processo especial de revitalização (…) em que seja aprovado um plano de recuperação, considera-se resultado da recuperação o valor determinado com base no montante dos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano”.
Maiores dificuldades suscitaria a interpretação defendida no recurso de acordo com a qual, se bem apreendemos, situação líquida para efeitos do cálculo da remuneração do administrador judicial provisório, corresponde a uma diferença entre situações liquidas – a situação liquida que resulta do plano de recuperação no caso, segundo se alega, € 164.847,75 e a situação liquida existente à data de admissão do PER, segundo se alega, € 67.516,00; ora, independentemente, das considerações que viessem a merecer os pressupostos de cálculo de tais situações líquidas [v.g. o aumento contabilístico do activo da devedora de € 261.768,00 para € 445.962,00, entre 2022 e 2023, ano em apresentou o processo de revitalização, apesar de se afirmar no plano de recuperação que “os activos da V... tem um valor muito residual (aprox. € 18.000,00), dividido entre uma viatura, vitrines, camaras frigorificas e outros equipamentos essenciais à atividade”], a lei reporta-se a situação líquida – 10% da situação líquida – e não a diferenças entre situações líquidas, o que significa que os cálculos do Recorrente, assentes em pressupostos ou conceitos sem o mínimo de correspondência com a letra da lei, não merecem ser considerados [artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil].
Para efeitos de cálculo da remuneração do administrador judicial provisório em processo de recuperação, a situação líquida da empresa não se afere pela relação entre o seu ativo e passivo, mas pelo resultado da recuperação documentado num plano aprovado e é sobre este resultado que deverão recair os 10% que realizarão a remuneração do administrador.
Situação liquida que corresponderá assim, também ela, a uma relação ou diferença: a diferença entre a situação económica do devedor antes e depois da aprovação do plano de recuperação, diferença que pode ser positiva ou nula; positiva nas situações em que as dívidas que resultam do plano aprovado são inferiores (em capitais e juros) àquelas que resultavam para o devedor antes da aprovação do plano e nula nos casos em que tais dívidas se mantêm na íntegra, embora com dilação dos tempos de cumprimento, caso em que inexistirá qualquer situação líquida resultante da recuperação.
A situação líquida para efeitos do cálculo da remuneração do administrador judicial provisório em processo de recuperação vem a corresponder à diferença entre o valor dos créditos reclamados e admitidos e o valor dos créditos a pagar pelo devedor aos credores na execução do plano de revitalização por estes aprovado ou mais diretamente, já se escreveu, ao valor do perdão dos créditos.[6]
Foi o que se decidiu em 1ª instância e, a nosso ver, bem.

2.2. Fórmula de cálculo da majoração
Para efeitos de cálculo da majoração, a decisão recorrida fez corresponder o grau de satisfação dos credores à percentagem dos créditos perdoados por referência aos créditos reconhecidos, ou seja, a 0,066% (228,74x100/348402.88) e fixou a majoração em € 0,02 [228,74x0,066%x10%]; o Recorrente defende que a percentagem da majoração deve incidir sobre a quantia de € 281.114,25, quantia esta, segundo alega, correspondente ao valor actualizado dos créditos a satisfazer por efeito da aprovação do plano.
Segundo o n.º 7 do artigo 23.º do EAJ: o valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5% do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles.
A interpretação da norma não se mostra isenta de dificuldades, uma vez que grau de satisfação dos créditos e créditos satisfeitos são realidades de expressão económica distintas, cuja coincidência apenas se verificará em casos marginais de plena satisfação dos créditos admitidos – 100% de grau de satisfação dos créditos e 100% de créditos satisfeitos – e não expressar a norma, ao menos com clareza, corresponder a majoração a 5% do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos ou corresponder a majoração a 5% do montante dos créditos satisfeitos.
A solução defendida no recurso – dever incidir a majoração sobre o montante (actualizado) dos créditos satisfeitos – apresenta, se bem vemos, uma intransponível dificuldade hermenêutica que decorre da ablação de um dos seus segmentos necessariamente significativos da norma – o grau de satisfação dos créditos – uma vez que transporta, em si, a ideia que a remuneração, em qualquer caso, corresponde a 5% do montante dos créditos satisfeitos e transforma em letra morta o grau de satisfação dos créditos.
Na fixação do sentido e alcance da lei o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, o que significa que a forma de expressão do legislador – a letra da lei – não pode ser ignorada pelo intérprete.
Se se prescinde totalmente do texto já não há interpretação da lei, pois, já não estaremos a pesquisar o sentido que se alberga em dada exteriorização.”[7]
A solução preconizada pela decisão recorrida, ao fazer incidir a percentagem da majoração sobre o grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, pese embora o lapso em que incorreu na indicação da percentagem [10% quando a lei prevê 5%], não tem idênticos reveses interpretativos e confere sentido útil, embora corretivo, a todo o texto da norma, uma vez que encontra o grau de satisfação dos créditos admitidos e faz incidir sobre ela a percentagem de majoração, o que significa que esta incide – a final e ainda – sobre o montante dos créditos satisfeitos.
O elemento histórico apoia esta leitura.
A majoração em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos estava presente na solução pregressa.
O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 3 e 4 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, pela aplicação dos fatores constantes da portaria referida no n.º 1” – artigo 23.º, n.º 5, do EAJ, aprovado pela Lei n.º 22/2013, sem as alterações da Lei n.º 9/2022.
A Portaria n.º 51/2005, de 20/1 – publicada na vigência do Estatuto do Administrador da Insolvência, aprovado pela Lei n.º 32/2004, de 22/7, e aplicada na vigência do referido n.º 5 do artigo 23.º do EAJ, sem as alterações da Lei n.º 9/2022, de 11/1 – estabelecia vários escalões progressivos do fator aplicável para cálculo da remuneração em função da percentagem dos créditos admitidos que foi satisfeita, quanto maior fosse a percentagem dos créditos satisfeitos maior seria a remuneração do administrador.
O n.º 7 do artigo 23.º do EAJ, vigente, deixou cair o cálculo da majoração por aplicação dos fatores constantes da portaria (anterior n.º 5), introduziu um factor constante do cálculo da majoração – 5% – e deixou inalterada a primeira parte da previsão da norma – “majoração, em função do grau de satisfação dos créditos reclamadoso que significa que o grau de satisfação dos créditos reclamados se manteve enquanto critério para cálculo da remuneração.
Solução de que resulta, aliás, a progressividade da remuneração – quanto maior for a base de aplicação dos 5%, ou seja, o grau de satisfação dos créditos, maior a remuneração – presente nos escalões da portaria.
Com ganhos de previsibilidade, a majoração não resulta de portaria a publicar, resulta da aplicação do critério previsto na própria lei.
Em conclusão, a majoração de 5% da remuneração variável do administrador de insolvência nomeado pelo juiz – n.º 7 do artigo 23.º do EAJ – calcula-se por referência ao grau de satisfação dos créditos e não por aplicação direta de 5% ao montante dos créditos satisfeitos.[8]
O grau de satisfação dos créditos expressa-se aritmeticamente pela proporção ou percentagem entre o montante dos créditos admitidos a pagamento e o montante dos créditos pagos aos credores.
Havendo sido este o sentido da decisão recorrida, resta confirmá-la.
Improcede o recurso.

3. Custas
Vencido no recurso, incumbe ao Recorrente pagar as custas (artigo 527.º, nºs 1 e 2, do CPC).

Sumário (da responsabilidade do relator – artigo 663.º, n.º 7, do CPC): (…)

IV. Dispositivo
Delibera-se, pelo exposto, na improcedência do recurso, em confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente.
Évora, 11/4/2024
Francisco Matos
Isabel Maria Peixoto Imaginário
Rui Manuel Machado e Moura

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[1] Alterações, ao caso, aplicáveis, uma vez que a Lei n.º 9/2022, de 11/1, entrou em vigor em 11/4/2022 (artigo 12.º), é imediatamente aplicável aos processos pendentes na data da sua entrada em vigor (artigo 10.º, n.º 1) e os presentes autos mostravam-se pendentes em 11/4/2022.
[2] Cfr. décimo princípio do anexo à Resolução do Conselho de Ministros 43/2011, de 25/10.
[3] Cfr. Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 107/XII – que veio a dar origem ao Estatuto do Administrador Judicial (aprovado pela Lei n.º 22/2013) – onde se lê:
“No domínio das remunerações dos administradores judiciais, há a referir algumas alterações que importa sublinhar. Assim, passa a dispor-se que à remuneração fixa a que têm direito, acresce uma remuneração variável para os administradores judiciais provisórios e para os administradores da insolvência que almejem a aprovação de plano de recuperação.
Mais uma vez, estamos perante uma alteração que radica no pressuposto em que assenta toda a reforma do regime de insolvências e de recuperação de empresas operada pelo XIX Governo Constitucional, que procura privilegiar a recuperação de empresas em detrimento da sua liquidação, sendo notória a necessidade de se estimularem os administradores judiciais a promoverem, na medida do que lhes seja possível, a referida recuperação, também por via de incentivos remuneratórios que o potenciem”.
[4] Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, pág. 332.
[5] Embora por manifesto lapso (material) conste do dispositivo da sentença a atribuição da remuneração de € 228,76.
[6] Cfr., neste sentido, Ac. RG de 17/11/2022 (processo n.º 3592/21.3T8GMR.G1) e Ac. RL de 24/1/2023 (processo n.º 26107/20.0T8LSB.L1-1), ambos disponíveis em www.dgsi.pt
[7] Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e Teoria Geral, 2ª ed., pág. 354.
[8] Neste sentido, o recente acórdão do STJ de 16/01/2024 (processo n.º 345/17.0T8OLH-F.E1.S1) e v.g. o Ac. RE de 08/02/2024 (processo n.º 5301/12.2TBPTM-M.E1) e demais jurisprudência, respetivamente, indicada em tais arestos.