PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
CONTRADITÓRIO
ARTICULADO SUPERVENIENTE
Sumário

1 - Viola o princípio da confiança a recusa de pronúncia sobre os fundamentos de uma resposta que o tribunal despoletou, convidando o respondente ao exercício do contraditório.
2 - É da natureza de um despacho liminar, que pressupõe o exercício de um contraditório ulterior, não formar caso julgado sobre questões que vão ainda ser objeto de pronúncia.
3 - O tribunal está obrigado a reanalisar os pressupostos de admissibilidade de um articulado superveniente, depois de a parte contrária, tendo sido notificada para se pronunciar, fazê-lo, alegando a sua inadmissibilidade.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Apelação n.º 2524/21.7T8PTM-G.E1
2ª Secção

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:


I

Nos presentes autos de processo comum em que é Autor Banco 1..., S.A., e Réus C... S.A., H..., Lda., e AA, revelam os autos o seguinte:

1 - Em 24-03-2023 os Réus vieram apresentar articulado superveniente (ref....33)

2 - Em 30-03-2023 foi proferido nos autos o seguinte despacho (ref. ...11)

«Admito liminarmente o articulado superveniente (referência CITIUS ...33).

Notifique a Autora, para, sob a cominação aplicável aos restantes articulados, responder no prazo de dez dias (artigos 588.º, n.º 3, 2.ª parte, 587.º, n.º 1 e 574.º, do CPC). Notifique.”

3 - Em 27-04-2023 o Autor Banco 1..., S.A., deduziu resposta (ref....18) onde invocou entre o mais a inadmissibilidade e extemporaneidade do referido Articulado Superveniente, peticionando que fosse “desentranhado o Articulado Superveniente sob resposta, por inadmissível e, em qualquer caso, extemporâneo”.

4 - Em 28-09-2023, e em pronuncia a tal requerimento-resposta do Autor, foi nos autos principais proferido o seguinte despacho (ref. ...46):

“Reqs. ref.ª n.º ...33 e ref.ª n.º ...18: Por despacho proferido a 30.03.2023 já foi admitido o articulado superveniente apresentado pelos Réus e sendo certo que é antes da sua admissão que deve ser ponderada a sua admissibilidade e tempestividade (artigo 588.º, n.º 4, 1.ª parte, do CPC), o Tribunal não se pode pronunciar novamente sobre estas questões levantadas pelo Autor na sua resposta, encontrando-se o poder jurisdicional esgotado nesta matéria (artigo 613.º, n.ºs 1 e 3, do CPC).

Quanto à prova apresentada no articulado superveniente/resposta, admite-se a prova documental junta pelos Réus (artigo 423.º, n.º 1, do CPC) e indefere-se a prova por depoimento de parte requerida pelo Autor, uma vez que os factos 34º e 35º da resposta são conclusivos. (…)»

5 - O Autor interpôs recurso de apelação do Despacho antecedente alegando nomeadamente que tal despacho não dá provimento ao “legítimo e fundado… pedido de desentranhamento do Articulado Superveniente deduzido pelo Autor”, “ficando definitivamente admitido o Articulado Superveniente que apenas liminarmente o fora”, havendo, assim, lugar à aplicação do disposto no artigo 644.º, n.º 2, alínea d), do CPC, no sentido do recurso autónomo e imediato de tal decisão.

6 - Em 22/11/2023 a MMª Juíza decidiu não admitir o recurso interposto pela Autora, por a decisão apenas poder ser impugnada no recuso que venha a ser interposto com a decisão final.

7 - Na sequência de tal despacho Autor e Recorrente, Reclamou, na parte em que o Tribunal a quo entendeu não poder conhecer dos fundamentos de inadmissibilidade alegados pelo Autor a respeito do Articulado Superveniente apresentado pelos Réus, assim o admitindo definitivamente na primeira instância.

8 - Na sequência de tal Reclamação o recurso foi admito, importando ora conhecê-lo.

9 - A reação do recorrente Banco 1..., S.A., contém-se nas seguintes conclusões de recurso:

1ª. Vem o presente recurso interposto, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 631.º, n.º 1, 637.º, 638.º, n.º 1, 644.º, n.º 2, alínea d), 645.º, n.º 2 e 647.º, n.º 1, do CPC, do Despacho com a ref. CITIUS n.º ...46, na parte em que o Tribunal a quo rejeitou conhecer dos fundamentos de inadmissibilidade alegados pelo Autor a respeito do Articulado Superveniente apresentado pelos Réus, assim o admitindo definitivamente, decisão com a qual não pode o Recorrente conformar-se.

2ª. A pronúncia sobre a inadmissibilidade e extemporaneidade do Articulado Superveniente apresentado pelos Réus, deduzida na Resposta com a ref. CITIUS n.º ...12 apresentada na sequência do Despacho com a ref. CITIUS n.º ...11 pelo qual o Tribunal, na pessoa da anterior Mma. Juíza titular dos autos, que admitiu liminarmente tal articulado, é inteiramente lícita e deve ter lugar, não se tendo esgotado o poder jurisdicional a respeito de tais questões.

3ª. É da natureza de um despacho liminar, que pressupõe o exercício de um contraditório ulterior, não formar caso julgado sobre questões que vão ainda ser objeto de pronúncia.

4ª. É também claro que, na situação em presença, nunca poderia em qualquer caso ter-se formado caso julgado sobre a admissibilidade do Articulado Superveniente em virtude da prolação do Despacho com a ref. CITIUS n.º...11, na medida em que este não corporiza qualquer concreta pronúncia sobre quaisquer causas de inadmissibilidade, designadamente as invocadas pelo Autor, tratando-se de um despacho meramente tabelar.

5ª. Em momento algum anterior à Resposta ao Articulado Superveniente pôde o Autor alegar tais fundamentos de inadmissibilidade, não lhe tendo sido permitido qualquer contraditório prévio.

6ª. Essa circunstância mais demonstra a completa ausência de bondade do Despacho recorrido, porquanto, a aceitar-se o aí decidido a respeito do esgotamento do poder jurisdicional na sequência do despacho liminar, tal implicaria uma manifesta preterição do contraditório que tem de ser assegurado às partes, nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC.

7ª. Uma interpretação do disposto no artigo 588.º, n.º 4, do CPC no sentido de que a admissão liminar do Articulado Superveniente precludiria que, na Resposta apresentada, fossem invocados todos os fundamentos possíveis de defesa, incluindo a inadmissibilidade do Articulado, deixando uma parte processual sem momento no qual fazer valer essa sua defesa, sempre seria manifestamente inconstitucional, por violação do princípio do direito ao contraditório cristalizado no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.

8ª. Ao decidir diversamente, fez o Tribunal a quo errada interpretação e aplicação do disposto no artigo 588.º, n.º 4, 613.º, n.ºs 1 e 3 e 3.º, n.º 3, do CPC, em clara violação do disposto no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, devendo ser revogado o Despacho recorrido e ordenada a baixa dos autos à Primeira Instância para que sejam apreciados e julgados os fundamentos de inadmissibilidade e extemporaneidade invocados pelo Autor, ora Recorrente, na sua Resposta ao Articulado Superveniente.

A final requer que seja revogado o Despacho recorrido e ordenada a baixa dos autos ao Tribunal a quo para apreciação e julgamento dos fundamentos de inadmissibilidade invocados pelo Autor, ora Recorrente, na sua Resposta ao Articulado Superveniente.

Não foram deduzidas contra-alegações.

II

Na consideração de que o objeto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações (artigos 635.º, 3 e 639.º, 1 e 2, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 608.º, in fine), é a seguinte a questão a decidir:

- Se deve o tribunal a quo conhecer dos fundamentos de inadmissibilidade do articulado superveniente, por não esgotado o poder jurisdicional quanto a tal conhecimento.


III

A factualidade a considerar resulta exposta no relatório antecedente.

Cumpre apreciar.


IV

Fundamentação:

Dispõe o artigo 588.º do Código de Processo Civil o seguinte:

«1 - Os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes podem ser deduzidos em articulado posterior ou em novo articulado, pela parte a quem aproveitem, até ao encerramento da discussão.

2 - Dizem-se supervenientes tanto os factos ocorridos posteriormente ao termo dos prazos marcados nos artigos precedentes como os factos anteriores de que a parte só tenha conhecimento depois de findarem esses prazos, devendo neste caso produzir-se prova da superveniência.

3 - O novo articulado em que se aleguem factos supervenientes é oferecido:

a) Na audiência prévia, quando os factos hajam ocorrido ou sido conhecidos até ao respetivo encerramento;

b) Nos 10 dias posteriores à notificação da data designada para a realização da audiência final, quando não se tenha realizado a audiência prévia;

c) Na audiência final, se os factos ocorreram ou a parte deles teve conhecimento em data posterior às referidas nas alíneas anteriores.

4 - O juiz profere despacho liminar sobre a admissão do articulado superveniente, rejeitando-o quando, por culpa da parte, for apresentado fora de tempo, ou quando for manifesto que os factos não interessam à boa decisão da causa; ou ordenando a notificação da parte contrária para responder em 10 dias, observando-se, quanto à resposta, o disposto no artigo anterior.

5 - As provas são oferecidas com o articulado e com a resposta.

6 - Os factos articulados que interessem à decisão da causa constituem tema da prova nos termos do disposto no artigo 596.º.» (sublinhado nosso).

Trata-se de uma norma que visa dar concretização ao princípio consignado no artigo 611.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, nos termos do qual “sem prejuízo das restrições estabelecidas noutras disposições legais, nomeadamente quanto às condições em que pode ser alterada a causa de pedir” a decisão da causa deve corresponder à situação existente no momento do julgamento.

O n.º 4 do citado artigo 588.º do CPC estabelece como obrigatório o despacho liminar pelo juiz.

O qual apreciando (liminarmente) o articulado deverá tomar uma de duas atitudes:

Numa 1ª situação, analisando o articulado superveniente, profere, necessária e imediatamente, despacho liminar de rejeição, se concluir que se verifica qualquer um dos dois fundamentos taxativamente previstos no n.º 4 do artigo 588.º, a saber: a)- ter sido apresentado fora de tempo, por culpa da parte apresentante; ou, b)- ser manifesta a sua inviabilidade, isto é, ser manifesta a sua impertinência, por os factos alegados não interessarem à decisão da causa;

Ou, numa 2ª situação, analisando o articulado superveniente, profere despacho liminar de admissão, ordenando, de imediato a notificação das demais partes que relativamente a ele tenham direito ao exercício do contraditório, para, sob a cominação aplicável aos restantes articulados, responderem no prazo de dez dias (artigos 588.º, n.º 3, 2.ª parte, 587.º, n.º 1 e 574.º) [13]; na resposta podem ser alegados todos os meios de defesa cabíveis contra o novo articulado, incluindo a alegação de que ele deveria ter sido objeto de rejeição liminar por qualquer um dos fundamentos referidos na 1ª situação.

Verificada esta situação, em que o articulado superveniente é liminarmente admitido, as partes são notificadas para em 10 dias responderem, e, se uma parte responde e, na resposta alega que ele deveria ser objeto de rejeição liminar por ter sido apresentado fora de tempo ou ser manifesta a sua inviabilidade, o juiz deverá proferir despacho apreciando os fundamentos de rejeição invocados, apreciando de forma e de mérito, consoante se esteja perante o primeiro ou o segundo daqueles fundamentos.

No caso dos autos o Tribunal a quo entendeu não haver lugar a esta pronúncia, com o argumento de que “admitido o articulado superveniente apresentado pelos Réus e sendo certo que é antes da sua admissão que deve ser ponderada a sua admissibilidade e tempestividade (artigo 588.º, n.º 4, 1.ª parte, do CPC), o Tribunal não se pode pronunciar novamente sobre estas questões levantadas pelo Autor na sua resposta, encontrando-se o poder jurisdicional esgotado nesta matéria (artigo 613.º, n.ºs 1 e 3, do CPC).”

Posição que a ser aceite violaria o princípio da confiança, uma vez que se o tribunal notifica as partes para responderem e estas respondem, não pode depois ignorar a reação que o próprio despoletou.

Na verdade o tribunal está obrigado a reanalisar os pressupostos de admissibilidade em que assentou a sua decisão liminar.

A decisão do tribunal ao recusar-se a decidir por “não dever existir nova pronuncia sobre uma questão já decidida, a qual foi de admissão de um articulado superveniente”, converteu uma decisão liminar em decisão definitiva, sendo esta de admissibilidade do recurso.

Como bem refere o apelante “é da natureza de um despacho liminar, que pressupõe o exercício de um contraditório ulterior, não formar caso julgado sobre questões que vão ainda ser objeto de pronúncia”.

Deve, por isso tal decisão ser revogada, devendo o tribunal a quo pronunciar-se sobre o requerimento do Recorrente e Autor que suscitou a inadmissibilidade do articulado superveniente.

Procedendo o recurso.

Em suma: (…)


V

Termos em que, acorda-se em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida, ordenando-se ao tribunal a quo que se pronuncie sobre o requerimento do Recorrente e Autor que suscitou a inadmissibilidade do articulado superveniente.

Sem custas.

Évora, 11 de abril de 2024

Anabela Luna de Carvalho (Relatora)

José Tomé de Carvalho (1º Adjunto)

Eduarda Branquinho (2ª Adjunta)