PROCESSO DE EXECUÇÃO
CITAÇÃO DO EXECUTADO
RESIDÊNCIAS ALTERNADAS
PENHORA DE SALÁRIOS
Sumário


I - Considerando, vg. a importância da imediação e da oralidade, que melhor permitem uma apreciação ética dos depoimentos, a convicção do julgador em sede de matéria de facto, máxime quando alcandorada em prova pessoal,  ademais especialmente relacionada com a parte,  apenas pode ser censurada se os depoimentos forem corroborados por outra prova, e se todos os meios probatórios aduzidos não apenas sugiram, mas antes imponham tal censura.
II - Cumpre ao interessado ilidir a presunção do artº 230º nº1 do CPC.
III - Tendo o executado residências alternadas, pessoais ou profissionais – artºs 82º e 83º do CC -  ele pode ser citado em qualquer uma delas.
IV - A penhora de salários, nos termos do artº 779º do CPC, emerge com a notificação da entidade que os deva pagar, não sendo necessário, para a sua existência, a efetiva dedução e depósito dos mesmos.
V – Destarte, a citação do executado após tal notificação, é efetivada após a penhora cumprindo-se assim o artº 856º nº1 do CPC.
VI – Em todo o caso, a citação ante penhora no processo executivo sumário não implica necessariamente a nulidade da  mesma, porque, em princípio, até dá mais tempo ao executado para se defender, e, assim, não influi, negativamente para ele, no exame e decisão da causa – artº 195º do CPC.

Texto Integral




Relator: Carlos Moreira
1.º Adjunto: Vitor Amaral
2.º Adjunto: Albeto Ruço

ACORDAM OS JUIZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

1.

AA instaurou contra BB, processo de execução.

O executado arguiu a nulidade da sua citação, quanto à sua oportunidade e omissão.

 A exequente  opôs-se e conclui pela respetiva intempestividade e improcedência.

Por despacho de 30 de junho de 2023 concluiu-se pela oportunidade do ato de citação e pela regularidade da sua concretização no domicilio profissional do Executado.

O processo prosseguiu, neste particular da (i)legalidade da citação, para apreciar se o expediente de citação não foi oportunamente entregue ao executado.

Após produção de prova foi proferida sentença na qual se decidiu, que também nesta vertente inexistiu ilegalidade, pelo que julgou, em definitivo,  improcedente o incidente de nulidade/falta de citação.

O executado recorreu dos dois despachos não tendo sido admitido o recurso quanto à decisão de 30.06.2023.

Inconformado, reclamou, nos termos do artº 643º, tendo a  Exma Colega Relatora, revogado a decisão de não admissão do recurso da primeira decisão, e, assim, tendo admitido o mesmo.

Cumpre apreciar.

2.

Conclusões do recorrente.

I) Em 25/05/2023, e tendo até então a execução ocorrido à sua revelia, o recorrente suscitou nos autos o incidente, onde invocou a nulidade da citação que lhe foi efetuada, numa dupla vertente:

a) oportunidade, em face do disposto no artigo 851º, nº 1, primeira parte, do CPC e

b) omissão/falta, à luz da segunda parte desse preceito, conjugado com os artigos 187º, al a) e 188º, nº 1, al.s a) e e), do mesmo preceito legal.

II) Cumprido o contraditório, sobre tal incidente recaíram duas decisões: a primeira proferida por despacho liminar de 30/06/2023, onde foi logo decidido que a citação foi feita em momento oportuno e que o respetivo acto não foi omitido.

III) Nesse despacho foi ainda determinada a produção da prova oral, tendente a apurar apenas se o expediente de citação foi pontualmente entregue ao citando.

IV) Após a audição da testemunha arrolada - terceiro que recebeu o expediente de citação - foi proferida a segunda decisão, por sentença que julgou totalmente improcedente o incidente de nulidade/falta de citação, e onde se concluiu que o recorrente não logrou comprovar que as cartas que lhe foram dirigidas pelo Sr. Agente de Execução, não lhe foram oportunamente entregues.

V) No que concerne à matéria de facto decidida nessa sentença, o histórico do processo não permite dar como provado o que o foi nas alíneas ii) e iii), pelo menos nos termos redigidos, pois no que à alínea ii) diz respeito, a relação entre o executado e a sociedade lá mencionada não é de natureza laboral, e quanto ao facto iii), só resulta demonstrado no processo que foi emitido um ofício de notificação e não que esta tenha sido efetivada,

VI) A prova oral produzida em julgamento, cruzada com os documentos que instruíram o requerimento de nulidade da citação, bem como com a informação colhida pela Agente de Execução delegada na diligência referida no ponto ix. dos factos provados, impõe igualmente que se dê como provado os factos que o não foram sob os pontos i) e iii), ou seja que o recorrente, pelo menos até ao ano 2020, residia e trabalhava, com caráter habitual, em França, só vindo a Portugal esporadicamente e, mais precisamente à sede da sociedade para onde foi expedida a citação, cerca de uma vez por ano.

VII) O depoimento prestado contribuiu também para que se dar como assente a matéria fatual alegada no ponto 20. e 21. do requerimento de incidente de nulidade (e que o Tribunal “a quo” omitiu da decisão), pois a testemunha, recetora do expediente de citação, foi perentória em afirmar e reafirmar que, na morada da sede da sociedade A..., L.da nunca lhe foi entregue qualquer correspondência (nomeadamente o expediente de citação em causa nestes autos), acompanhada das advertências a que alude a parte final do nº 1, e nº 4 do artigo 228º, do C.P.C.

VIII) Seguindo a execução a forma sumária, com dispensa de despacho prévio, a citação para a execução só tem lugar após a penhora, com a efetiva apreensão de bens do executado, nos termos do disposto no artigo 856º, nº 1, do CPC. Não sendo feita qualquer apreensão de bens no prazo de três meses, a citação do executado é feita após esse prazo, conjuntamente com a sua notificação para indicar bens à penhora (artigo 750º, nºs 1 e 3, do C.P.C).

IX) Pese embora constar dos autos um auto de penhora de vencimento do executado, a mesma nunca foi concretizada com a efetiva apreensão desse vencimento, nunca tendo sido concretizada tal penhora.

X) E tanto assim é que o histórico do processo revela que, em 02/10/2018, foi emitido ofício para notificação do aqui executado nos termos e para efeitos do apontado artigo 750º, nº 1 do C.P.C., o que pressupõe que até então não foi efetuada qualquer penhora nos autos.

XI) Assim, o ato de citação para a execução do aqui executado deveria ter ocorrido: ou aquando da notificação nos termos do artigo 750º, do C.P.C.; ou nos termos do referido artigo 856º, nº 1, do CPC, aquando da penhora da mencionada conta bancária, que corresponde a primeira apreensão de bens do executado efetuada no processo.

XII) Assim, a citação antes da realização de qualquer penhora, é prematura e como tal nula ao abrigo do disposto na primeira parte do nº 1, do artigo 851º, do CPC.

XIII) De todo o modo, essa citação, efetuada na pessoa de terceiro, será sempre nula à luz dos artigos 187º, nº 1 e 188º, nº 1, al.s a) e e) do mesmo diploma legal, estando o processo munido de factos que impedem o funcionamento da presunção prevista no nº 1, do artigo 230º, do CPC.

XIV) O funcionamento dessa presunção não dispensa a verificação cumulativa e cabal dos pressupostos de validade da citação, nomeadamente a demonstração de que a citação é dirigida ao local de residência ou de trabalho do citando e que, sendo recebida por terceiro, este declare expressamente estar em condições de a entregar ao destinatário e seja devidamente advertido de que incorre em responsabilidade se o não fizer,

XV) Estes pressupostos, no caso dos autos, não foram minimamente preenchidos, uma vez que a citação não só não foi dirigida à morada do local (físico) de trabalho do citando (que à data residia e trabalhava em França), como ao terceiro que a recebeu não foram tomadas as declarações e feitas as advertências impostas pelo artigo 228º, do C.P.C.

XVI) O não preenchimento destes requisitos obsta ao funcionamento da presunção a que alude o artigo 230º, nº 1, do C.P.C. e desonera o citando (aqui recorrente) de demonstrar que a citação pessoal não chegou ao seu conhecimento, por facto que não lhe seja imputável.

XVII) Não podendo assim, dar-se por assente, por presunção, que a citação tenha chegado ao conhecimento do executado.

XVIII) Deve pois revogar-se a sentença proferida que recaiu sobre a arguição de nulidade, julgando-se nula, por total omissão, a citação dirigida ao executado em 09/fevereiro/ 2018 para a sede da sociedade A..., L.da.

XIX) Ao decidir como decidiu o Tribunal “a quo” violou, ou pelo menos fez incorreta interpretação ou aplicação, entre outras, das normas constantes dos artigos 851º, 856º, 748º, 750º, 779º, 773º, 225º, 228º, 230º, 187º e 188º, do CPC.

3.

Conclusões da recorrida/exequente.

1) O 2.º Executado (BB) veio arguir incidente de nulidade de citação com o fundamento de que nunca lhe foi dado conhecimento do expediente de citação, tendo sido decidido, e bem, por Sentença de fls., julgar-se improcedente o incidente de nulidade / falta de citação, vindo agora interpor Recurso de Apelação, não só do Despacho de 30.06.2023, bem como da Sentença de 03.10.2023, o qual não poderá ser concedido provimento;

2) I – Da intempestividade do Recurso sem pagamento da Taxa de Justiça: As notificações das decisões recorridas ocorreram a 30.06.2023 e a 04.10.2023, respetivamente, porém, o Recurso de Apelação foi agora interposto no dia 26.10.2023;

3) As decisões em causa são recorríveis no prazo de 15 dias, pois trata-se de uma decisão que não corresponde a alguma das previstas no artigo 644.º, n.º 1, do CPC, por referência ainda aos seus artigos 852.º, 853.º, 1 e 638.º, 1 CPC, sendo os incidentes processados autonomamente apenas aqueles a que a lei atribui tal processado, independentemente do que é próprio das ações em que se possam suscitar, encontrando-se regulados nos artigos 296.º a 361.º do CPC;

4) O incidente processado na ação, nos termos gerais dos artigos 292.º a 295.º do CPC, não é um incidente processado autonomamente;

5) A decisão em crise também não pôs termo à causa e o recurso foi interposto sem o devido pagamento da taxa de justiça;

6) Tal prazo suprarreferido foi ultrapassado pelo Executado/Recorrente, logo, deve o Recurso motivar a prolação do competente Despacho de rejeição, dada a sua inadmissibilidade legal;

7) Caso assim não se entenda, e sem prescindir, devem as decisões ora recorridas manter-se no que diz respeito à matéria especificamente em causa, requerendo-se assim a prolação de Acórdão que determine a improcedência do Recurso interposto caso, sem conceder, o mesmo venha a ser admitido, o que se requer;

8) II – Do incumprimento dos ónus previstos no artigo 640.º do CPC: Caso assim não se entenda, e sem prescindir, atente-se agora no facto de que o Executado/Recorrente, no Recurso de Apelação, vem impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, pese embora, não cumprindo com o disposto no artigo 640.º, n.º 2, alínea a), do CPC;

9) Da lei resulta que a exata indicação das passagens da gravação, que se exigia, quer no artigo 685.º-B, n.º 2, e que se exige agora no artigo 640.º, n.º 2, alínea a), do CPC, não se identifica com a mera indicação do local, no suporte de registo áudio disponibilizado ao Tribunal de recurso, onde começa e termina cada um dos depoimentos em causa e não se entender assim, equivaleria a ter-se como exigida um indicação exata dos depoimentos e não, propriamente, das passagens;

10) Ao Executado/Recorrente, para indicar com exatidão, o que a lei exige no artigo 640.º, n.º 2, alínea a), do NCPC, seja mister a indicar, por referência ao suporte em que se encontra gravado o depoimento que pretende utilizar, o início e o termo da passagem ou das passagens desse depoimento, em que se funda o seu recurso;

11) Esta exigência da indicação exata das passagens do depoimento em que se funda o recurso, não é substituível pela simples transcrição das mesmas, ou de excertos destas, transcrição esta que constitui uma faculdade do recorrente, que, querendo-a utilizar, terá, ainda assim, de satisfazer a apontada exigência legal;

12) Não basta, que o Executado/Recorrente se limite a dizer – ainda que proceda à transcrição do respetivo depoimento ou de excertos do mesmo –, que determinada testemunha fez certas declarações, ou indicar início e o fim da duração da gravação, para que se considere que assim se impugna, cabalmente, a decisão proferida sobre a matéria de facto;

13) O Executado/Recorrente, ao indicar que o depoimento foi prestado e registado entre x tempo e x tempo, não cumpriu como resulta do exposto o legalmente estabelecido no artigo 640.º do NCPC, anterior 685.º-B, quanto à efetiva impugnação da matéria de facto;

14) Deve ser indeferida a impugnação da matéria de facto por violação do disposto no artigo 640.º, n.º 2, alínea a, do CPC e ser rejeitado o recurso quanto à matéria de facto, o que, desde já e aqui se requer;

15) III – Ainda do Recurso: A Meritíssima Juiz a quo interpretou bem as normas aplicáveis ao caso concreto, tendo em conta a translúcida prova testemunhal e documental junta aos autos, sendo certo que a Sentença recorrida não viola as disposições legais que o Executado/Recorrente invoca nas suas Alegações e sendo certo que a convicção da Meritíssima Juiz a quo não se formou apenas e só com base no depoimento da testemunha, mas também em toda a prova documental oficial constante do próprio histórico do processo, designadamente todas as pesquisas efetuadas pelo Exmo. Sr. Agente de Execução, quer junto da identificação civil, quer da Segurança Social ou da Autoridade Tributária;

16) No âmbito da presente ação executiva, em 19.01.2018, o Exmo. Sr. Agente de Execução efetuou pesquisas nas bases de dados, das quais resultou que o Executado tem morada na Rua ..., ... (vide histórico do processo), logo, no dia 09.02.2018 foi remetido expediente de citação do Executado BB para “Rua ..., ... ...” (vide histórico do processo);

17) No dia 26.06.2018 a Senhora Agente de Execução delegada CC deslocou-se à Rua ..., ..., a fim de realizar a diligência de penhora de bens móveis não sujeitos a registo existentes no local; o local encontra-se fechado e com aspeto de não se encontrar habitado; o vizinho informou que é irmão do Executado e que ele lá não vive, pois era a casa dos seus pais, mas já a venderam e encontra-se desocupada desde então; (vide histórico do processo) e esta informação não foi colocada em causa pelo Executado;

18) O Executado falta à verdade quando alega, sem nunca demonstrar, que a morada constante no Requerimento Executivo (Rua ..., ...) é a sua, quando está em Portugal;

19) Em 19.01.2018, o Exmo. Sr. Agente de Execução efetuou pesquisas nas bases de dados das quais resultou que o Executado tem como entidade empregadora a A... Unipessoal, Lda., com NISS ...20, constando como última remuneração em dezembro de 2017, no valor de 1.114 € e em março de 2023 de 761,48 € (vide histórico do processo);

20) A sociedade A... é uma sociedade unipessoal, sendo o Executado o seu único sócio e gerente, sendo que, tanto em 2018, como em 2023, o Executado apresenta, como única remuneração, a proveniente da identificada sociedade, identificada como sua entidade patronal, pelo que é falso que o Executado nunca tenha tido como local de trabalho a sede desta sociedade;

21) Em 19.01.2018 a referida entidade patronal foi notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 779.º do CPC (vide histórico do processo) e em 16.02.2018 foi remetido expediente de citação do Executado BB para “A..., Lda., Rua ..., sala ..., ... ...”, sendo que o respetivo aviso de receção referente ao expediente de citação foi assinado por “DD” (vide histórico do processo), sendo que no dia 27.02.2018 foi remetida notificação nos termos do artigo 233.º do CPC (vide histórico do processo);

22) A testemunha DD, sendo programador informático da sociedade A..., descreveu o Executado como sendo o seu patrão, e afirmou que, até final de 2018, início de 2019, a correspondência que era recebida era entregue ao chefe de escritório, ou seja, ao EE, que depois a encaminhava para os seus destinatários, se for o caso, o Executado;

23) Na data em questão, dúvidas não existem de que a testemunha DD entregou a referida carta a EE que, à data dos factos, era o responsável do escritório e estava encarregue de encaminhar a correspondência aos destinatários, e que EE encaminhou a carta em causa para o Executado;

24) Não foi produzida qualquer prova de que este não tenha sido o procedimento adotado, ou seja, que o expediente de citação e o expediente de notificação a que alude o artigo 233.º do CPC, mencionados nos factos provados, não tenham sido, ambos, encaminhados para o Executado, não se tendo por ilidida, de forma nenhuma, a presunção a que alude o artigo 230.º, n.º 1 do CPC;

25) Das pesquisas efetuadas não resulta qualquer outra morada ao Executado, para além da morada da ... e do domicílio profissional em ..., sendo certo que, por momento algum, surge associada ao Executado uma morada no estrangeiro e nem do depoimento da testemunha DD, nem tão pouco dos documentos juntos pelo Executado resulta que tivesse ou tenha domicílio, muito menos formalizado junto das entidades públicas, em França;

26) Entendeu bem o Tribunal a quo em julgar improcedente o incidente de nulidade / falta de citação, carecendo totalmente de fundamento a motivação alegada pelo Executado/Recorrente quanto a todas as questões suscitadas;

27) Face a todos os motivos supra explanados, sobre os quais também o Tribunal a quo já se pronunciou, devem as decisões recorridas manter-se na íntegra e deverá o Recurso de Apelação interposto pelo Executado/Recorrente motivar a prolação do competente Acórdão de total improcedência do mesmo, o que se requer, com todas as consequências legais daí resultantes.

Nestes termos, e sempre com o douto suprimento de V. Exas., assim se requer:

1) Deve o presente Recurso de Apelação ser objeto de Despacho de rejeição, em virtude da sua intempestividade e do não pagamento da Taxa de Justiça devida, com todas as consequências daí resultantes;

2) Caso assim não se entenda, deve o presente Recurso de Apelação, quanto à impugnação da matéria de facto, ser objeto de Despacho de rejeição, uma vez que foi cumprido o estipulado no artigo 640.º, n.º 2, alínea a) do CPC;

3) Caso assim não se entenda, devem as decisões recorridas manter-se na íntegra, requerendo-se a prolação de Acórdão que determine a improcedência do Recurso interposto, com todas as consequências daí resultantes.

4.

Sendo que, por via de regra: artºs  635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, as questões essenciais decidendas  são  as seguintes:

1ª – Alteração da decisão sobre a matéria de facto.

2ª – Nulidade da citação.

5.

Apreciando.

5.1.

Primeira questão.

5.1.1.

No nosso ordenamento vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização, e fixa a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido -artº607 nº5  do CPC.

Perante o estatuído neste artigo, exige-se ao juiz que julgue conforme a convicção que a prova determinou e cujo carácter racional se deve exprimir na correspondente motivação cfr. J. Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, 3º, 3ªed. 2001, p.175.

O princípio da prova livre significa a prova apreciada em inteira liberdade pelo julgador, sem obediência a uma tabela ditada externamente; mas apreciada em conformidade racional com tal prova e com as regras da lógica e as máximas da experiência – cfr. Alberto dos Reis, Anotado, 3ª ed.  III, p.245.

Acresce que há que ter em conta que as decisões judiciais não pretendem constituir verdades ou certezas absolutas.

Pois que às mesmas não subjazem dogmas e, por via de regra, provas de todo irrefutáveis, não se regendo a produção e análise da prova por critérios e meras operações lógico-matemáticas.

Assim: «a verdade judicial é uma verdade relativa, não só porque resultante de um juízo em si mesmo passível de erro, mas também porque assenta em prova, como a testemunhal, cuja falibilidade constitui um conhecido dado psico-sociológico» - Cfr. Ac. do STJ de 11.12.2003, p.03B3893 dgsi.pt.

Acresce que a convicção do juiz é uma convicção pessoal, sendo construída, dialeticamente, para além dos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, nela desempenhando uma função de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais – AC. do STJ de 20.09.2004 dgsi.pt.

Nesta conformidade - e como em qualquer atividade humana - existirá sempre na atuação jurisdicional uma margem de incerteza, aleatoriedade e erro.

Mas tal é inelutável. O que importa é que se minimize o mais possível tal margem de erro.

O que passa, como se viu, pela integração da decisão de facto dentro de parâmetros admissíveis em face da prova produzida, objetiva e sindicável, e pela interpretação e apreciação desta prova de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.

E tendo-se presente que a imediação e a oralidade dão um crédito de fiabilidade acrescido, já que por virtude delas entram, na formação da convicção do julgador, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova, e fatores que não são racionalmente demonstráveis.

Sendo que estes princípios permitem ainda uma apreciação ética dos depoimentos - saber se quem depõe tem a consciência de que está a dizer a verdade– a qual não está ao alcance do tribunal ad quem - Acs. do STJ de 19.05.2005  e de 23-04-2009  dgsi.pt., p.09P0114.

Nesta conformidade  constitui jurisprudência sedimentada, que:

«Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas, a respectiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e só deve o tribunal de 2.ª instância alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando efectivamente se convença, com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança muito elevada, que houve errada decisão na 1.ª instância, por ser ilógica a resposta dada em face dos depoimentos prestados ou por ser formal ou materialmente impossível, por não ter qualquer suporte para ela. – Ac. do STJ de.20.05.2010, dgsi.pt p. 73/2002.S1.

5.1.2.

Por outro lado estatui o artº 640º do CPC:

«1 — Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;»

Destarte, é comummente  pelo menos os requisitos do nº1 – porque as alegações definem o objeto do recurso e por razões de cooperação para a celeridade -  devem nestas constar.

Assim:

«Para efeitos do disposto nos artigos  640º e 662º, nº1, ambos do Código de Processo Civil, impõe-se distinguir, de um lado, a exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir,  previstas nas alíneas a), b)  e c) do nº1 do citado artigo 640º, que integram um ónus primário, na medida em que têm por  função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto.

E, por outro lado, a exigência da  indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada  na alínea a) do nº 2 do mesmo artigo 640º, que integra um  ónus secundário, tendente a possibilitar  um acesso mais ou menos  facilitado aos meios de prova gravados relevantes  para a apreciação da impugnação deduzida.

Nesta conformidade, enquanto a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº1, alíneas a), b) e c)  do referido artigo 640º implica a imediata rejeição do recurso…» - Ac. do STJ de  21.03.2019, p. 3683/16.6T8CBR.C1.S2.

De tudo o referido decorre que  o recorrente não pode limitar-se a invocar, mais ou menos abstrata, genérica e indiferenciadamente, a prova que aduz em abono da alteração dos factos.

Antes ele devendo efetivar uma análise concreta, discriminada – por reporte de cada elemento probatório a cada facto probando -  objetiva, crítica, logica e racional, do acervo probatório produzido, de sorte a convencer o tribunal ad quem da bondade da sua pretensão.

Se assim não for, e:

«Limitando-se o impugnante a discorrer sobre os meios de prova carreados aos autos, sem a indicação/separação dos concretos meios de prova que, relativamente a cada um desses factos, impunham uma resposta diferente da proferida pelo tribunal recorrido, numa análise crítica dessa prova, não dá cumprimento ao ónus referido na al. b) do nº 1 do artº 640º do CPC.

 Ou seja, o apelante deve fazer corresponder a cada uma das pretendidas alterações da matéria de facto o(s) segmento(s) dos depoimentos testemunhais e a parte concreta dos documentos que fundou as mesmas, sob pena de se tornar inviável o estabelecimento de uma concreta correlação entre estes e aquelas.» - Ac. do STJ de   14.06.2021, p. 65/18.9T8EPS.G1.S1.(sic).

E só quando se concluir que  a  natureza e a força da  prova produzida é de tal ordem e magnitude que inequivocamente contraria ou infirma tal convicção,  se podem censurar as respostas dadas.– Cfr. Ac. do STJ de 15.09.2011, p. 1079/07.0TVPRT.P1.S1.

Porque, afinal, quem  tem o poder/dever de apreciar/julgar é o juiz e não a parte, e atento o supra aludido em 5.1.1, a  lei  apenas permite a censura da convicção do julgador  se os meios probatórios invocados impuserem (não basta  apenas que sugiram) decisão diversa da recorrida.

Ora tal censura apenas pode advir desde logo com cumprimento dos ónus formais legais que não somente da apriorística e subjetiva irresignação do recorrente, não cabal, concreta, discriminada  e inequivocamente  substanciada, e pelo modo legal exigido.

5.1.3.

O caso vertente.

5.1.3.1.

Atento o teor das conclusões, as quais, como se viu, definem, podendo restringir, o objeto do recurso, pretende o recorrente a não  prova dos factos ii e iii e a prova dos factos não provados i e iii e dos factos por ele alegados nos pontos 20 e 21 do  seu requerimento inicial.

Têm eles o seguinte teor.

Dos provados:

ii. Mais resultou que o Executado tem como entidade empregadora a A... Unipessoal, Lda., com NISS ...20, constando como última remuneração em dezembro de 2017, no valor de 1.114 €uros.

iii. Em 19 de janeiro de 2018 a referida entidade patronal foi notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 779.º do CPC.

Dos não provados:

i. O Executado reside habitualmente em França.

iii. O Executado nunca teve como local de trabalho a sede da sociedade A... Lda.

Ponto 20.

A DD nunca lhe foi entregue qualquer correspondência com a menção de que a teria fazer chegar ao executado, com as advertências referidas  na parte final do nº1 e no nº 3 do artº 228º do CPC.

Ponto 21.

Se assim fosse tal funcionário recusaria receber essa correspondência, na medida em que se passam meses, até anos, que não tem contacto pessoal e direto com o executado.

A julgadora fundamentou a decisão factual nos seguintes, sinóticos e essenciais, termos:

«Os pontos i) a vi), viii) e ix) dos factos provados foram assim considerados em face do que consta do histórico do processo, nomeadamente, das pesquisas efetuadas pelo Senhor Agente de Execução junto da identificação civil, da segurança social e da autoridade tributária das quais resulta como sendo morada do Executado a Rua ..., ..., ....

Esta é a morada que o Executado identifica como sendo a sua, quando está em Portugal.

Por momento algum surge associada ao Executado uma morada no estrangeiro, nomeadamente aquelas que se mostram identificadas nos documentos que juntou aos autos a fls. 29 v.º a 33.

Porém, como consignado em anterior despacho, resulta do auto de diligência para penhora de bens móveis não sujeitos a registo, datado de 26 de junho de 2018, que a Senhora Agente de Execução delegada, CC, deslocou-se à mencionada morada - Rua ..., ... - e verificou que a habitação estava fechada e com aspeto de não se encontrar habitada; mais: a Senhora Agente de Execução confirmou, junto de um vizinho, que se identificou como irmão do Executado, que ninguém vive naquela casa, pois aquela era a casa dos seus pais, que a venderam e encontra-se desocupada desde então.

Esta informação não foi colocada em causa pelo Executado.

Afigura-se-nos, assim, que o Executado falta à verdade quando diz residir, em Portugal, na morada constante do requerimento executivo e, pelo acabado de referir, conclui-se nos termos que constam do ponto ii) dos factos não provados.

Das mesmas pesquisas resulta que o Executado tinha e tem como entidade patronal a sociedade A... Unipessoal, Lda., com NISS ...20, sendo a sua remuneração em dezembro de 2017 de 1114 €uros e em março de 2023 de 761,48 €uros.

A testemunha DD é programador informático da sociedade A... e descreveu o Executado como sendo o seu patrão, nesta empresa, desde 2017; porém, já trabalha com o Executado desde 2014.

Referiu que desde 2016/2018 têm umas instalações em ... e, desde então, o Executado passa mais tempo em Portugal; antes deslocava-se uma vez a Portugal porque estava em França.

O Executado era contactado por via digital.

Até final de 2018, início de 2019, a correspondência que era recebida era entregue ao chefe de escritório, ou seja, ao EE, que depois a encaminhava.

Assim, na data em questão entregou a carta em causa ao EE e este terá encaminhado para o Executado.

O EE saiu da sociedade e, desde essa data, quem trata da correspondência é a testemunha.

Questionado, esclareceu que quando as (cartas) são dirigidas ao BB dá-lhe conhecimento, pergunta-lhe se a pode abrir e depois envia-lhe.

Nem do depoimento da testemunha, nem tão pouco dos documentos juntos pelo Executado resulta que tivesse ou tenha domicilio, muito menos formalizado junto das entidades públicas, em França – ponto i) dos factos não provados.

De facto, os documentos juntos pelo Executado apenas atestam que declara rendimentos em França.

… a sociedade A... é uma sociedade unipessoal, ou seja, o Executado é o seu único sócio e gerente. Mais: tanto em 2018, como em 2023, o Executado apresenta, como única remuneração, a proveniente da identificada sociedade, identificada como sua entidade patronal.

Em face do que se considerou, como não provado o ponto iii) dos factos não provados.

Segundo a testemunha DD, à data dos factos, a correspondência era entregue a EE; nessa altura, tal como atualmente, a correspondência era /é encaminhada para os seus destinatários, nomeadamente, se for o caso, para o Executado.

Não foi produzida qualquer prova de que este não tenha sido o procedimento adotado.

Ou seja: que o expediente de citação e o expediente de notificação a que alude o artigo 233.º do CPC, mencionados nos factos provados, não tenham sido, ambos, encaminhados para o Executado.»

Já o recorrente pugna pela sua presente pretensão em função da diferente apreciação que opera da prova produzida, nos termos alegatórios e conclusivos supra.

5.1.3.2.

Foi apreciada a prova.

Perscrutando.

Ponto ii dos provados.

A referência à «entidade empregadora» tem de entender-se como sendo empregue, «lato sensu», ou seja, não com o sentido técnico jurídico oriundo do direito do trabalho,  isto é,  como referente a uma situação do executado enquanto assalariado sujeito aos poderes de direção do empregador.

Mas antes devendo ser entendido como  atinente a uma situação do executado em que ele  labora para a empresa identificada na  qualidade que os autos provam, isto é, como seu único sócio.

Aliás, tal diferenciação – trabalhador por conta de outrem ou sócio – é inócua para o que ora releva, já que o que urge apurar é a residência ou local de trabalholato sensu – do executado, e estes não são afetados pela situação ou qualidade jurídica laboral do mesmo.

Ponto iii dos provados.

Clama o recorrente que «só resulta demonstrado no processo que foi emitido um ofício de notificação e não que esta tenha sido efetivada.».

Mas tal não basta para se concluir que a sociedade não foi notificada para o efeito do artº 779º do CPC.

Isto em função do que dimana do regime geral das citações e notificações – cfr., vg. artºs 246º e 251º do CPC.

Assim, é de notar que enviada a carta, a citação/notificação tem-se por efetivada, mesmo que seja recusada a assinatura do aviso de receção ou o seu recebimento, desde que o distribuidor postal lavre nota do incidente antes de a devolver  - nº3 do artº 246º e nº 3 do artº 251º.

E que: « Nos restantes casos de devolução do expediente, é repetida a citação, enviando-se nova carta registada com aviso de receção à citanda e advertindo-a da cominação constante do n.º 2 do artigo 230.º, observando-se o disposto no n.º 5 do artigo 229.º » - nº 4 do artº 246º.

No caso vertente não há notícia de recusa de recebimento do aviso de notificação, nem que este tenha, por qualquer motivo, sido devolvido.

Há, pois, no mínimo, que presumir que tal notificação se  efetivou e que foi do conhecimento da sociedade notificanda, não tendo o recorrente ilidido tal presunção, como lhe competia – cfr. ao menos mutatis mutandis, artº 230º nº1 do CPC.

Quanto aos factos não provados que o recorrente pretende provados.

Desde logo o ponto iii.

É meridianamente evidente que não se provou que o executado nunca teve como local de trabalho a sede da sociedade A... Lda.

No atinente ao conceito de «trabalho» vale aqui o sentido lato que supra se referiu, pelo que tanto releva o trabalho assalariado como o trabalho que o executado presta para a sociedade, enquanto seu, aliás único, sócio.

Assim, dar-se como provado que ele nunca trabalhou para a empresa, não apenas vai contra a prova produzida, como fere as mais elementares regras da lógica e o senso e experiência comuns.

Quanto ao mais.

Inexiste prova bastante para se concluir que, pelo menos a partir de 2018, o executado tivesse a sua residência habitual, em França.

O local/lugar da  residência habitual é aquele em que a pessoa tem o seu centro de vida.

E, ademais, sendo de notar e relevar que uma pessoa pode não ter apenas uma residência habitual, mas várias, pois que «se residir alternadamente, em diversos lugares, tem-se por domiciliada em qualquer deles.» - artº 82º nº1 do CC.

Acresce que releva também in casu, o conceito de domicílio profissional.

Assim, nos termos do artº  83.º do CC:

1. A pessoa que exerce uma profissão tem, quanto às relações que a esta se referem, domicílio profissional no lugar onde a profissão é exercida.

2. Se exercer a profissão em lugares diversos, cada um deles constitui domicílio para as relações que lhe correspondem.

Ora na espécie não se provou que o executado tenha, ao menos apenas e somente, a sua residência habitual/domicílio  em França.

A prova documental não é bastante pois que, como expendido pela Julgadora, ela se atém, essencial e determinantemente, à prova dos rendimentos do executado neste país.

E o certo é que um cidadão contribuinte pode fornecer uma morada para efeitos de notificações fiscais, sem que na mesma efetivamente resida habitualmente.

Ademais, a prova pessoal tem de ser apreciada cum granno sallis, ie. cautelosa e comedidamente.

Na verdade, e sem se querer denegrir a testemunha inquirida na sua honestidade e probidade, há que ter em consideração que ele labora para o executado, aqui sim, num regime de trabalho subordinado.

 Pelo que, direta ou indiretamente, poderá ter interesse, material ou até moral, em que a causa seja favorável ao seu empregador.

Assim, não é de descartar a possibilidade de ele, consciente ou sub conscientemente, apresentar uma versão idónea à consecução de tal desiderato.

Já o teor dos pontos 20 e 21 vai também contra as regras da lógica e do senso comum.

Na verdade, recebida a carta por terceiro, tal recebimento coloca-o, ipso facto, na obrigação de a entregar oportunamente ao notificando.

Se o terceiro não puder ou não quiser cumprir tal dever, então informa o distribuidor ou recusa-se a receber a carta.

Assim, a exigência do artº 228º nº4 do CPC «Quando a carta seja entregue a terceiro, cabe ao distribuidor do serviço postal adverti-lo expressamente do dever de pronta entrega ao citando.» alcança-se algo pleonástico e quasi como um excesso de zelo legal.

 Pelo que a postergação da mesma pode não acarretar, só por si, de um modo necessário e inexorável, a invalidade da citação, tudo dependendo das circunstâncias de cada caso.

No caso vertente tal invalidade não emerge dos autos nem foi provada pelo recorrente.

Primus, porque não está provado que tal requisito não tivesse sido cumprido, ónus probatório este que impendia sobre o recorrente, atenta a presunção de que a carta foi entregue oportunamente ao citando – artº 230º nº1 do CPC.

Secundus, porque, para além do que supra se disse quanto ao dever que, em geral, qualquer normal e diligente cidadão tem de cumprir quando aceita receber uma carta enviada pelo tribunal que não é dirigida a si mas a terceiro, qual seja, entregar a missiva a este, neste caso concreto tal dever é acrescido ex vi da situação laboral  do DD e do EE.

Na verdade, esta situação inculca,  mais uma vez pelas regras da lógica e do senso comum, que ele certamente diligenciou pela entrega ou, ao menos, pelo dar conhecimento, ao seu «patrão».

 Afinal tratava-se de uma carta dirigida pelo tribunal, o que, seguramente, indiciava ser assunto sério e certamente do magno interesse do executado.

 Pelo que o não cumprimento da entrega, ou a entrega tardia, poderia colocá-los em crise perante o seu empregador, até com possíveis consequências  negativas na relação laboral.

E nem colhendo que não receberia a missiva porque não poderia entregá-la ao executado, já que não tinha contacto pessoal e direto com ele.

Pessoal poderia não ter, mas direto certamente que poderia ter, já que, hodiernamente, os meios informáticos eliminam qualquer obstáculo nas comunicações, podendo  assim a missiva ser enviada ao empregador  por via eletrónica.

E, destarte, não sendo a possível distância entre eles, obstáculo e, assim, justificação, para que ele se recusasse a receber a carta.

 Nesta sequência se alcançando a final conclusão que os meios probatórios invocados pelo recorrente, e a exegese que ele deles opera, não são os bastantes para impor, como exige a lei, a censura da convicção da julgadora.

5.1.4.

Decorrentemente, os factos a considerar são os apurados na 1ª instância, a saber:

i. No âmbito da ação executiva n.º 211/18...., em 19 de janeiro de 2018, o Senhor Agente de Execução efetuou pesquisas nas bases de dados das quais resultou que o Executado tem morada na Rua ..., ....

ii. Mais resultou que o Executado tem como entidade empregadora a A... Unipessoal, Lda., com NISS ...20, constando como última remuneração em dezembro de 2017, no valor de 1.114 €uros.

iii. Em 19 de janeiro de 2018 a referida entidade patronal foi notificada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 779.º do CPC.

iv. No dia 09 de fevereiro de 2018 foi remetido expediente de citação do Executado BB para “Rua ..., ... ...”.

v. No dia 16 de fevereiro de 2018 foi remetido expediente de citação do Executado BB para “A..., Lda., Rua ..., sala ..., ... ...”.

vi. O aviso de receção referente ao expediente de citação referido em v) foi assinado por “DD”.

vii. DD entregou a referida carta a EE que, à data dos factos, era o responsável do escritório e estava encarregue de encaminhar a correspondência aos destinatários.

viii. No dia 27 de fevereiro de 2018 foi remetida notificação nos termos do artigo 233.º do CPC.

ix. No dia 26 de junho de 2018 a Senhora Agente de Execução delegada CC deslocou-se à Rua ..., ..., a fim de realizar a diligência de penhora de bens móveis não sujeitos a registo existentes no local; o local encontra-se fechado e com aspeto de não se encontrar habitado; o vizinho informou que é irmão do Executado e que ele lá não vive, pois era a casa dos seus pais, mas já a venderam e encontra-se desocupada desde então; não tem conhecimento do paradeiro do Executado, mas ouviu que tinha ido trabalhar para França.

5.2.

Segunda questão.

A Srª Juíza decidiu, de jure, aduzindo o seguinte discurso argumentativo:

«A citação de pessoa singular por via postal faz-se por meio de carta, registada com aviso de receção, dirigida ao citando e endereçada para a sua residência ou local de trabalho – Art. 228.º, n.º 1 do CPC.

Assim, tratando-se de pessoa singular, a carta postal será remetida, em alternativa, para a respetiva residência ou local de trabalho.

“A pessoa que exerce uma profissão tem, quanto às relações que a esta se referem, domicilio profissional no lugar onde a profissão é exercida” – n.º 1 do Art. 83.º do CC.

“Se exercer a profissão em lugares diversos, cada um deles constitui domicilio para as relações que lhe correspondem” – n.º 2 do Art. 83.º do CC.

Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa em Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2.ª Ed., pág. 278, “O facto de o réu trabalhar fora da área do seu domicilio pode ser um bom elemento no sentido de se optar pela citação no local de trabalho, com benefícios para este para a celeridade processual”.

No caso em apreço, o Senhor Agente de Execução enviou expediente de citação quer para a para “Rua ..., ... ...”, quer para “A..., Lda., Rua ..., sala ..., ... ...”…

O aviso de receção referente ao expediente de citação enviado para “A..., Lda., Rua ..., sala ..., ... ...” foi assinado por “DD” e por este entregue a EE que depois encaminhava a correspondência aos respetivos destinatários.

Uma vez que a citação foi efetuada em pessoa diversa do citando, o Senhor Agente de Execução enviou carta registada ao Executado, comunicando-lhe: a) a data e o modo por que o ato se considera realizado; b) o prazo para o oferecimento da defesa e as cominações aplicáveis à falta desta; c) o destino do duplicado; e, d) a identidade da pessoa em quem a citação foi realizada – tudo em conformidade com o disposto no Art. 233.º do CPC.

A citação postal efetuada ao abrigo do disposto no Art. 228.º do CPC considera-se feita no dia em que se mostre assinado o aviso de receção e tem-se por efetuada na própria pessoa do citando, mesmo quando o aviso de receção haja sido assinado por terceiro, presumindo-se, salvo demonstração em contrário, que a carta foi oportunamente entregue ao destinatário – tudo cfr. Art. 230.º, n.º 1 do CPC.

No caso em apreço, o Executado não logrou demonstrar que as cartas que lhe foram dirigidas pelo Senhor Agente de Execução, no âmbito destes autos, não lhe foram oportunamente entregues.».

Atentemos.

No atinente à invalidade da citação por dela não ter sido dado conhecimento pelo terceiro que a recebeu, é óbvio que, como se expende na decisão supra, o recorrente não logrou ilidir, como lhe competia, a presunção legal de que a carta foi entregue atempadamente ao destinatário pelo por terceiro que a  recebeu – artº 230º nº1 do CPC.

Esta presunção tem aqui maior força, pois que, como supra se mencionou, os terceiros que a receberam tinham um dever acrescido -   e toda a conveniência pessoal -  atenta a sua qualidade de trabalhadores do executado, no cumprimento da entrega.

Não sendo, pois, minimamente  crível que não tenham cumprido tal obrigação de entrega.

Relativamente à sua invalidade por não ter sido efetivada na residência do citando, a mesma outrossim improcede, pois que se provou que o executado, senão exclusivamente, tinha, ao menos alternadamente com a sua residência em França, a sua residência pessoal na ... e o seu domicílio profissional em ....

Ora tal alternatividade é suficiente, máxime porque se trata de dívida contraída em Portugal, com partes portuguesas, para que a citação possa ser efetivada, como o foi, com o cumprimento dos legais requisitos – ao menos em ... - em qualquer destas moradas nacionais.

Finalmente a pretensão da invalidade por intempestividade também  fenece.

Certo que no processo sumário, a citação do executado é efetivada depois de ser decretada a penhora – artº 856º do CPC.

Tal diferença em relação ao processo ordinário – que se traduz, em abono da celeridade, na concentração temporal de certos atos processuais -  prende-se com o menor valor da causa e, consequente, diminuída relevância da execução sumária.

E, bem vistas as coisas, é até prejudicial para o executado, pois que com tal  concentração de  atos processuais – penhora, citação e notificação – o executado fica com menos tempo para preparar a sua defesa, por reporte ao processo ordinário em que ele é  citado préviamente à penhora.

Assim, se o ora executado tivesse sido citado antes da penhora, até seria beneficiado,  porque com mais tempo para preparar a sua defesa.

 Pelo que a aventada  nulidade ou irregularidade seria irrelevante, já que sem influência negativa para ele na ulterior tramitação do processo – cfr. artº 195º nº 1 do CPC.

Mas não foi, pois que como ressuma dos factos provados, a citação efetivou-se depois da penhora.

Efetivamente, tal como também mencionado no despacho de Junho de 2023, e versus o entendido pelo recorrente, a penhora efetivou-se em 19 de janeiro de 2018 com a notificação da sua  «entidade patronal»  - que, no fundo, é ele próprio -  nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 779.º do CPC.

Estatui este preceito:

1 - Quando a penhora recaia sobre rendas, abonos, vencimentos, salários ou outros rendimentos periódicos, incluindo prestações sociais e pensões, é notificado o locatário, o empregador ou a entidade que os deva pagar para que faça, nas quantias devidas, o desconto correspondente ao crédito penhorado e proceda ao depósito em instituição de crédito.

Vemos assim que o ato da penhora se satisfaz com a notificação para o efeito previsto em tal segmento normativo.

Se a penhora se vem a revelar, ou não, materialmente consubstanciada, é outro aspeto que se prende exatamente com a sua efetividade e utilidade prática, mas não com a sua existência, a qual se verifica a partir da realização da notificação  da entidade para a mesma.

A prova de que a citação do executado antes da penhora é possível, sem que de tal advenham, em princípio, consequências invalidades, dimana de que mesmo no processo ordinário, e nos casos de dispensa da citação prévia, o executado pode ser citado  logo após o início das diligências para a penhora - ou seja ainda antes da penhora e da efetiva apreensão de bens -,  e no caso de não terem sido encontrados bens penhoráveis no prazo de três meses a contar da notificação prevista no n.º 1 do artigo 748.º - cfr. artº 750º do CPC

Assim sendo, e volvendo ao caso vertente,  provando-se que a citação ocorreu em 09 de fevereiro de 2018, ela verificou-se após a penhora, a qual já tinha sido realizada em 19 de janeiro de 2018.

A pretensão do recorrente é tanto mais de desatender – legal e éticamente -  quanto é certo que quer fazer-se valer de um incumprimento seu.

 Pois que, sendo ele único sócio e gerente da sociedade notificada, não efetuou os descontos e o depósito da remuneração que auferia naquela sua qualidade,  o que, no seu entendimento – mas mal como se viu - não permitiu a existência da penhora, e, consequentemente, a sua citação.

Improcede o recurso.

(…)

7.

Deliberação.

Termos em que se acorda julgar o recurso improcedente, e, consequentemente, confirmar as decisões.

Custas pelo recorrente.

Coimbra, 2024.04.09