INTERESSE EM AGIR
JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL DE PRÉDIO INSCRITO COMO FAZENDO PARTE DE OUTRO ARTIGO MATRICIAL
NULIDADE DA JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
DESTAQUE
INVOCAÇÃO DA USUCAPIÃO CONTRA “DISPOSIÇÃO EM CONTRÁRIO”
Sumário


I – Verifica-se o pressuposto processual de interesse em agir sempre que o direito do demandante careça de tutela judicial.
II – O artigo 92º, nº1 do Código de Notariado, ao estabelecer que “a justificação de direitos que, nos termos da lei fiscal, devam constar da matriz, só é permitida em relação aos direitos nela inscritos”, constitui norma com carácter imperativo, pelo que a sua violação importa a nulidade do ato.
III – Se o prédio fizer parte de outro artigo matricial, não tendo ainda uma inscrição própria e autónoma na matriz, a escritura de justificação notarial que seja efetuada nessas circunstâncias é nula (arts. 294º e 295º do C.Civil).
IV – A “divisão” de um prédio urbano, operada fora do quadro processual da divisão de coisa comum, traduz-se material e juridicamente num “destaque”.
V – Foi formulação expressa do legislador, no art. 1287º do C.Civil, ao definir a usucapião, a previsão de que esta forma de aquisição originária não pode ser invocada quando exista “disposição em contrário”.
VI – Face às normas do R.J.U.E. [“Regime Jurídico da Urbanização e Edificação”], a “divisão”/“destaque” só é viável desde que as duas parcelas resultantes do destaque confrontem com “arruamentos públicos”.
VII – Assim, na ausência de demonstração da verificação desse requisito, não podem os atos de posse baseados num facto proibido por essas leis permitir uma aquisição por usucapião na medida em que contrários a uma disposição de carácter imperativo e aos interesses públicos que o direito do urbanismo prossegue (art. 294º do C.Civil).

Texto Integral


Apelações em processo comum e especial (2013)                                                                                                                          *

            Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

                                                                       *

            1 – RELATÓRIO

AA e cônjuge BB interpuseram ação declarativa de simples apreciação com processo comum contra CC e cônjuge DD peticionando que a ação seja declarada procedente e provada, e, consequentemente[2]:

«I - declarar-se que o antigo prédio, a que correspondia a inscrição matricial e descrição predial referidas no artigo 6º da petição inicial, foi fracionado em dois, por efeitos da sua divisão material e subsequente usucapião autónoma de cada uma das parcelas resultantes do referido fracionamento, assim descritas:

− parcela A, constituída por casa de habitação, barracões, pátio, galinheiro e eira, a confrontar do norte com o réu, do sul com caminho, nascente com herdeiros de EE e poente com FF, com a área global de 1.032,53m2;

 − parcela B, constituída por casa de habitação, barracões e eira, a confrontar do sul com a autora, do norte com caminho, nascente com herdeiros de EE e poente com FF, com a área total de 678,53m2;

II – declarar-se, para todos os efeitos legais e inclusive para efeitos de correção matricial e registral que aos autores pertence, com exclusão de outrem, o direito de propriedade plena sobre a parcela A e aos réus com os mesmos fundamentos o direito de propriedade plena sobre a parcela B.»

Para o efeito alegaram, em síntese, o seguinte:

- que o prédio urbano que é casa de habitação de r/c com seis divisões e andar com 8 divisões e eira anexa, denominado ..., da freguesia ..., a confrontar do norte e sul com caminho, do nascente com herdeiros de EE, poente com FF, inscrita na matriz urbana da indicada freguesia ... sob o artigo ...40 e descrita na Conservatória do Registo Predial ... sobre o n.º 1228 (certidão de registo predial a fls. 17-18 /189 e caderneta predial a fls. 15) mostra-se, desde 1979 (art. 3.º da Petição Inicial), dividido materialmente em duas parcelas com a seguinte constituição:

Parcela A - constituída por casa de habitação, barracões, pátio, galinheiro e eira, a confrontar do norte com a Parcela B, do sul com caminho, nascente com herdeiros de EE e poente com FF, com a área global de 1.032,53m2, a qual foi atribuída (em 1979) a GG.

Parcela B - constituída por casa de habitação, barracões e eira, a confrontar do sul com a parcela A, do norte com caminho, nascente com herdeiros de EE e poente com FF, com a área total de 678,53m2, a qual foi atribuída ao réu (por doação com a data de 04-10-1980 de metade indivisa do prédio).

- que essas parcelas têm absoluta e completa autonomia, sem existência de partes comuns, encontrando-se materialmente dividas uma da outra e cada uma com acesso à “via pública”.

- que essa divisão de facto existe há mais de 30 anos, donde, quer a autora e a sua antepossuidora (GG a quem foi doada em 1979 metade indivisa do prédio), quer os réus vêm habitando cada qual a parcela que lhes coube, utilizando os releixos, eiras e todos os seus espaços com arrumações, de forma pacífica, à vista de toda a gente, na convicção de que possuíam um bem próprio, razão pela qual, concluíram os autores, adquiriram o respectivo direito de propriedade sobre as parcelas A e B por usucapião.

Isto é, entendem os autores que «por usucapião operou-se o fracionamento do aludido imóvel ao abrigo do disposto no art. 1287.º do Código Civil, uma vez que o mesmo deixou de existir como bem único e no seu lugar passaram a existir dois prédios autónomos, cada um correspondente às parcelas referidas no art. 6.º da Petição Inicial» (art. 14.º da Petição Inicial).  

Juntaram documentos.

*

Citados, os réus não deduziram qualquer contestação, apenas juntando aos autos uma procuração com poderes forenses.

                                                           *

Por requerimento apresentado em juízo a 14/10/2019, os AA. e os RR. requereram a homologação de uma transação celebrada entre eles, com as seguintes cláusulas:

                                               «PRIMEIRA

AA. e RR. reconhecem que o antigo prédio urbano (casa de habitação - “mãe”), inscrito na matriz predial urbana da então freguesia ... sob o art. ...40 (art. 1º da p.i.) corresponde hoje à inscrita na matriz predial sob o art. ...92, da União das freguesias ... (doc. nº 1 ora junto) e está descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...28 (art. 1º da p.i.).

SEGUNDA

Outrossim, AA. e RR. reconhecem que aquele prédio foi fraccionado em dois, por efeitos da sua divisão material e subsequente autonomização, por USUCAPIÃO, de cada uma das parcelas resultantes do referido fraccionamento.

TERCEIRA

AA. e RR., todavia, mais reconhecem que aquelas duas fracções autonomizadas – A e B -, referidas no art. 6º da p.i. e no nº I do pedido, têm confrontações diferentes das que ali se referem e, assim:

a) O prédio dos AA. (fracção autonomizada A) é constituído por casa de habitação, barracões, pátio, galinheiro e eira, sito no lugar ... (...) do concelho ..., a confrontar do norte com os RR., do sul com a Rua ..., do nascente com herdeiros de EE e do poente com o caminho.

b) O prédio dos RR. (fracção autonomizada B) é constituído por casa de habitação, barracões, pátio e eira, sito ao mesmo lugar de ..., a confrontar do nascente e norte com HH, do sul com os AA., AA e marido e do poente com o caminho.

QUARTA

AA. e RR. corrigem, pois, na parte referida, o art. 6º da p.i. e I do pedido.

QUINTA

Doravante, AA. e RR. ficam reciprocamente autorizados a proceder às respetivas correções matriciais e no registo predial, requerendo para tanto a substituição do atual artigo matricial por dois artigos, de harmonia com os dois prédios autonomizados e que acima se identificam, o mesmo se passando no que diz respeito ao registo predial, onde deve ser requerida a eliminação do nº 1228, constituindo-se um número autónomo para cada um dos prédios também mencionados na cláusula terceira.

SEXTA

Os pagamentos a efectuar para requerer estas alterações, devidamente documentados pelas repartições competentes serão suportados em partes iguais por autores e réus.

SÉTIMA

As custas serão suportadas em partes iguais por autores e réus, com dispensa recíproca de custas (gastos) de parte.»

                                                           *

Com vista à apreciação da validade da transação apresentada, as partes foram notificadas para esclarecer «(…) se o prédio foi objecto de respetiva divisão (nomeadamente divisão judicial de coisa comum, e, nessa, constituída propriedade horizontal – cfr. art. 1417º do Código Civil), e, bem assim, se as identificadas «duas fracções autonomizadas A e B» foram objecto de eventual apreciação e licenciamento administrativo.»

Por requerimentos entrados em juízo em 31/10/2019 e 05/11/2019 vieram as partes esclarecer que não correu ação de divisão de coisa comum e porque construído em 1950, estava o prédio isento de licença, pugnando pela homologação da transação junta aos autos.

Foi ainda junta aos autos uma declaração emitida pela Junta de Freguesia da qual consta, além do mais, que o prédio objeto dos autos foi construído antes de 1950. 

                                                           *

Na sequência, com data de 25/11/2019, foi proferida sentença a concluir que dúvidas não restavam de que a transação judicial, nos moldes em que foi celebrada, constituía um negócio contrário à lei, logo ilícito, na medida em que violava uma concreta disposição legal de conteúdo proibitivo (o artigo 1417º do C.Civil), não sendo admissível por força deste artigo em conjugação com o artigo 1249º do mesmo código.

Em face disso, decidiu-se que, com fulcro nos artigos 280º, 1249º e 1417º do C.Civil e dos artigos 284º, 289º e 290º do n.C.P.Civil, não considerar válida a transação apresentada, não se homologando a mesma.

                                                           *

Ambas as partes interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, no qual foi proferido acórdão em 13/07/2020, no sentido de julgar a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida.

Foi requerida a reforma deste acórdão, pretensão que foi julgada improcedente.

E tendo sido interposto recurso de revista excecional do dito acórdão, o STJ rejeitou a mesma.

*

            Prosseguiram então os autos na 1ª instância, designadamente com a efetivação de prova pericial, cujo Relatório se mostra junto de fls. 201-239.

            De referir que se pronunciou aí o Exmo. Sr. Perito pela possibilidade de divisão do prédio, arredando a figura do destaque pois que a fração B (dos réus) não confina com caminho público (mas sim com um caminho particular) (fls. 213 , 235 a 239), mostrando-se, contudo, reunidos os requisitos para a constituição da propriedade horizontal na medida em que as duas frações constituem unidades independentes, são distintas e separáveis «através da linha com orientação poente nascente que as divide e o seu acesso à via pública efectua-se através de duas partes comuns», sendo que a fls. 233, efetua mesmo proposta de implantação das frações A e B e dos espaços comuns, mas sendo certo ter consignado, a fls. 216 «que as partes comuns são constituídas pelo caminho de acesso privado a poente, com 119m2 e o caminho de acesso privado a nascente com 53m2. O caminho de acesso privado a poente inclui ainda direitos de passagem a terceiros. Alerta-se ainda para o facto de que, para a Fração B usufruir do caminho a nascente tem de atravessar, na parte final, uma área pertencente a terceiros e que se estima seja de 16m2».

Diversamente, entendeu o Município ... – ofício de 09-11-2022 a fls. 253-254 – que a constituição da propriedade horizontal não se mostra viável porquanto o prédio em causa não confronta a poente com o arruamento público, lendo-se, todavia, naquele ofício que tal constatação se baseia nas confrontações patentes na caderneta predial, tanto assim é que ali se concluiu que promovida a correção necessária (na matriz) poderá ser pedida a constituição do prédio em duas frações distintas e até, em alternativa, a operação de destaque.

No mesmo sentido de classificação do acesso a poente como “caminho particular” encontra-se junta aos autos “Declaração” da União de freguesias ...”, a saber, atestando que «(…) não é reconhecido, por esta Junta de União de Freguesias como caminho público. Informo ainda que o dito caminho se encontra fechado com portão, não colocado pela Junta de União de Freguesias, o que demonstra que aquele espaço terá um proprietário.»

                                                           *

Após a realização da dita prova pericial, os AA., através de requerimento de 05-07-2022, esclareceram que era sua vontade não qualquer solução pela via da constituição da propriedade horizontal (ou de qualquer destaque), antes que devia ser desconsiderado o teor do relatório pericial e ser proferida decisão no sentido de ser reconhecida a divisão do prédio em discussão em dois novos prédios A e B, e bem assim ser declarada a propriedade dos AA. e RR. através do instituto da usucapião tudo conforme primitivamente peticionado.

Neste contexto sustentaram muito concretamente que «Na verdade, e tal qual resulta do requerimento dos réus, datado de 05.07.2022, com a referência citius 42769311, os réus possuem acesso privado ao prédio “B”, através de um caminho sito a poente e, por seu turno, os autores acesso privado à fração “A” através de um caminho sito a nascente.»

Esta posição veio a ser reiterada após a suspensão da instância que fora entretanto decretada na sequência da audiência de partes.

*

Na sequência, pelo Exmo. Juiz de 1ª instância foi facultado às partes pronunciarem-se acerca da existência da «(…) eventual incompetência em razão da matéria deste Juízo (art. 96.º, n.º 1, al. a), 97.º, n.º 1 e n.º 2 e 98.º todos do Código de Processo Civil) e bem ainda da sua falta de interesse em agir (art. 278.º, n.º 1, al, e), 576.º, n.º 1 e n.º 2, 577.º e 578.º todos do Código de Processo Civil)», sendo que quer os AA., quer os RR. sustentaram a sua não verificação através dos requerimentos de fls. 258-261 e fls. 262-264, respetivamente, em concretos termos que aqui se dão por reproduzidos.

                                                           *

Em sede de despacho saneador, passou então o Exmo. Juiz de 1ª instância a apreciar e decidir a pretensão material dos AA., no contexto do que veio a entender que era inexistente o interesse em agir dos AA., o que «(…) consubstancia uma exceção dilatória inominada de conhecimento oficioso, que determina, consoante os casos, o indeferimento liminar ou a absolvição da instância, nos termos conjugados dos artigos 278.º, n.º 1, al. e), 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, todos do Código de Processo Civil», acrescendo que, em termos de apreciação do mérito da causa, sempre haveria fundamentação para improcedência da ação, conducente à “absolvição do pedido”, vindo, a final, a concluir pela absolvição dos RR. da instância.

                                                           *

Inconformados com esse despacho-saneador, apresentaram os AA., recurso de apelação contra o mesmo, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

«1. A presente ação é meramente declarativa de simples apreciação, na qual os autores pretendem ver declarada a divisão por usucapião de um prédio anteriormente comum em dois prédios autónomos.

2. Não existe qualquer parte comum entre estes dois prédios.

3. Não se verifica assim qualquer justificação para a constituição da propriedade horizontal.

4. A Câmara Municipal, com competência exclusiva para a matéria de constituição de propriedade horizontal, nos termos do art 60.º do DL n.º 207/95, de 14 de Agosto, pronuncia-se neste sentido.

5. O Tribunal, ao fim de 4 anos decorridos desde a instauração da ação (e uma perícia realizada por decisão do mesmo Tribunal), descobriu agora que o facto de as Conservatórias do Registo Predial terem competência para apreciarem e decidirem sob justificação de aquisição de prédios por usucapião retira a tais competências aos Tribunais.

6. Mas tal competência já competia aos Notários e nunca tal competência pôs em causa a competência dos Tribunais para o reconhecimento de direitos de propriedade por usucapião.

7. Nem as normas invocadas pela decisão recorrida retiram tal competência que pode ser exercida através da ação meramente declarativa através dos Tribunais Judiciais.

8. Por outro lado, e ao contrário da decisão do Tribunal, existe interesse em agir, consubstanciado na compropriedade dos réus relativamente ao prédio do qual se pretende a divisão.

9. O Tribunal, ao recusar-se a dar procedência aos pedidos formulados, homologando a transação alcançada pelas partes, viola o princípio do direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva.

10. O Tribunal a quo violou as normas contidas nos arts. 20.º da Constituição da República Portuguesa, 60.º do Código do Notariado, 117.º F e H do Código de Registo Predial e 30.º do Código de Processo Civil.

Nos termos expostos deve ser julgado procedente o presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e homologando-se a transação que as partes alcançaram.»

                                                                       *

Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.

                                                           *

Por despacho preliminar e singular do ora Relator nesta instância de recurso, adiantou-se/perspetivou-se poder vir a revogar-se a decisão final de absolvição da instância”, face ao que seria então caso deste tribunal de recurso apreciar e decidir do fundamento para “absolvição do pedido” consignado igualmente na decisão [cf. art 665º, nº2 do n.C.P.Civil], mas  porque o recurso interposto não se debruçara sobre esta última questão, e para evitar decisões-surpresa, determinou-se a audição das partes «(…) nos termos e para os efeitos do disposto no nº3 do normativo citado».

Sendo que ambas as partes corresponderam a tal nos termos que tiveram por mais convenientes, a saber, por parte dos AA. no sentido do «(…) reenvio dos autos a 1ª instância para homologação da transação (…) Ou, quanto muito para a realização da audiência prévia ou com o consequente julgamento do fundo da questão», e, por parte dos RR. no sentido de que «(…) a decisão da 1ª instância, de absolvição da instância, não colhe e está prejudicada, devendo, isso sim, este Venerando Tribunal, revogar a decisão recorrida e conhecer do fundo, por dispor dos elementos necessários, elencados nos autos e acima resumidos e reiterados, para a realização da costumada Justiça».

                                                           *

            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

                                                                       *

            2 – QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelos Recorrentes nas conclusões das suas alegações (arts. 635º, nº4 e 639º, ambos do n.C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608º, nº2, “in fine” do mesmo n.C.P.Civil), face ao que é possível detetar o seguinte:

            - desacerto da decisão de considerar que se verificava a exceção dilatória da inexistência do interesse em agir por parte dos AA. (em consequência do que absolveu os RR. da instância)?

            - conhecimento de fundo da questão?

                                                                       *

3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A matéria de facto a ter em conta para a decisão do presente recurso é a que consta do relatório que antecede.

                                                                       *

4 – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A questão basilar objeto do recurso é precisamente a do invocado desacerto da decisão de considerar que se verificava a exceção dilatória da inexistência do interesse em agir por parte dos AA. (em consequência do que absolveu os RR. da instância).

Que dizer?

Será correta a decisão do Tribunal a quo assente no entendimento da desnecessidade da ação judicial para conferir tutela à pretensão dos AA., isso porque não existiria litígio entre as partes, donde dever a questão ser dirimida através de escritura de justificação notarial ou do processo de justificação consagrado no Código do Registo Predial?

Em nosso entender – e releve-se o juízo antecipatório! – não pode nem deve ser sancionado o entendimento perfilhado na decisão recorrida, na medida em que não apreciou adequadamente a situação.

Senão vejamos.

Desde logo porque nos parece perfeitamente legítimo o entendimento dogmático sobre o pressuposto processual inominado do interesse em agir segundo o qual, figurando como figura o art. matricial urbano existente (art. 440º) formalmente como uma casa de habitação, com distintas divisões e anexos, mas sendo desde 1980 anos a esta parte substancialmente possuída pelos AA. apenas e mais concretamente uma parcela da mesma (a parcela “A”, com a composição e características que especificam) do ponto de vista objectivo estamos perante uma situação de incerteza objectiva.

Isto é, como sustentado pelos AA./recorrentes, que «(…) ainda não havia o reconhecimento jurídico do fracionamento do prédio por efeitos da usucapião, que agora é formulado».

E nem se argumente que essa carência de tutela para o direito dos AA., tinha que ser grave e objectiva – enquanto natural reflexo de um estado de incerteza objectiva que possa comprometer o valor ou negociabilidade da própria relação jurídica.

É que, em nosso entender, importa perscrutar o verdadeiro sentido de uma tal afirmação, o que, salvo o devido respeito, nos é dado na lição de ilustre processualista, ao discorrer a propósito do interesse em agir nas ações de simples apreciação positiva [como é a ajuizada] traduzida no seguinte:

«A interposição da acção de simples apreciação requer um real interesse em agir, consubstanciando-se num estado de incerteza objectiva que possa comprometer o valor ou negociabilidade da própria relação jurídica (…) Terá de tratar-se de um facto prejudicial de relações jurídicas já existentes ou dum facto que sirva de base a várias relações jurídicas concretas (…) A acção de mera declaração desempenha, assim, uma relevante função social, na medida em que previne possíveis litígios e garante a certeza do direito e das relações jurídicas, contribuindo assim para o incremento dos negócios jurídicos. E como tal de per si garantindo um bem digno de tutela».[3]

A esta luz, os AA./recorrentes alegaram na p.i. um estado de incerteza sobre a existência ou inexistência do direito a apreciar, mais concretamente que ainda não ocorreu o reconhecimento jurídico do fracionamento do prédio por efeitos da usucapião.

Neste conspecto, cremos ser perfeitamente defensável o entendimento de que os AA. são portadores de interesse em agir processualmente atendível.

Esta linha de entendimento, com data venia, já foi sustentada em aresto desta mesma 2ª Secção do TRC, mais concretamente no acórdão de 9.04.2013, no proc. nº 3494/11.5TBLRA.C1[4], onde se aduziu, inter alia, o seguinte:

«O pedido de declaração de existência de um direito deve decorrer da alegação de uma determinada situação de conflitualidade entre as partes ou da alegação de um estado de incerteza objectivamente determinado, passível de comprometer o valor da relação jurídica. O interesse em agir consiste em o demandante estar carecido de tutela judicial.

(...)

Do ponto de vista processual, o interesse em agir – interesse processual - traduz-se na necessidade de o autor utilizar o processo por a sua situação carecer da intervenção dos tribunais, devendo, todavia, essa necessidade ser justificada, razoável e fundada (Ac. STJ, de 20.10.1999: BMJ, 490.º-238).

(…)

o interesse em agir não se pode ter como verificado com a constatação de qualquer situação subjectiva de dúvida ou incerteza acerca da existência do direito ou do facto, exigindo-se que seja objectiva e grave a incerteza relativamente à qual o autor pretende reagir e que, a proceder, a acção se revista de utilidade prática (Ac. STJ de 8.3.2001: col. Jur.TSTJ, 2001, 1º, -150).»

Ademais, tenha-se presente que, paralelamente à designação de interesse em agir, já foram referidas outras designações[5], como causa legítima de acção (ou motivo justificativo dela) e necessidade de tutela jurídica (designação utilizada pela doutrina alemã).

De referir que na definição que doutrinariamente já foi proposta[6], o interesse em agir consiste em o direito do demandante estar carecido de tutela judicial; é o interesse em “utilizar a arma judiciária”, em recorrer ao processo, sendo que não se trata de uma necessidade estrita, nem tão-pouco de um qualquer interesse por vago e remoto que seja; trata-se de algo de intermédio: de um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, por isso tornando legítima a sua pretensão a conseguir por via judiciária o bem que a ordem jurídica lhe reconhece.[7]

 

O que tudo serve para dizer que, a esta luz, existia insofismável interesse em agir por parte dos AA. ora recorrentes.

Acrescendo que, decisivamente, esse interesse em agir decorre até da inviabilidade prática do recurso a outros meios processuais por parte dos mesmos.

Com o que já estamos a afrontar/discordar com a outra grande linha de argumentação da decisão recorrida, a saber, o entendimento de que podia/devia a questão ser dirimida através de escritura de justificação notarial ou do processo de justificação consagrado no Código do Registo Predial.

Senão vejamos.

Com efeito, a tentativa de inscrição na matriz de parcelas integradas em matrizes no regime da compropriedade sofre restrições práticas que impedem essa mesma inscrição e em consequência estava vedado aos aqui AA. de aceder ao mecanismo das justificações para obtenção do título para registo.

Mais concretamente, temos que o recurso à via da escritura de justificação notarial estaria sempre vedado pelas restrições à admissibilidade da justificação, consagradas no art. 92º, nº1 do Código de Notariado (CN), assentes na obrigatoriedade de inscrição na matriz da parcela em causa (em regime formal de compropriedade), quando é certo que tal carece de autorização administrativa que os AA. não detêm nem conseguem obter face aos dados conhecidos nos autos.[8]

Atente-se que se nos termos do artº 117-A nº1 do Código Predial sob o título “Restrições à admissibilidade de Justificação” se encontra estabelecido que é permitido dar início ao processo de Justificação apenas com o pedido de inscrição da parcela na matriz, contudo ocorre uma impossibilidade na autoridade tributária que nem sequer aceita um tal requerimento.

Senão vejamos.

O nº1 do art. 92º do Código do Notariado, sob a epígrafe “restrições à admissibilidade da justificação” preceitua que «a justificação de direitos que, nos termos da lei fiscal, devem constar da matriz, só é admissível em relação aos direitos nela inscritos».

Coerentemente, a alínea b) do nº 1 do art. 98º do mesmo código indica, como um dos documentos obrigatórios de instrução da escritura de justificação para fins de registo predial, a “certidão de teor da correspondente inscrição matricial”.

Segundo o nº 1 do art. 12º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis «as matrizes prediais são registos de que constam, designadamente, a caracterização dos prédios, a localização e o seu valor patrimonial tributário, a identidade dos proprietários e, sendo caso disso, os usufrutuários e superficiários».

A inscrição na matriz é efectuada com base numa declaração apresentada pelo sujeito passivo de imposto – nº 1 do art. 13º do mesmo código.

Atente-se que do conteúdo do registo dos imóveis da matriz, consta obrigatoriamente a caracterização dos prédios e a sua localização, elementos fundamentais como é bom de ver, sendo que essa segurança inexiste, quando, o justificante, ao invés de apresentar um documento que comprova a efectiva inscrição do prédio na matriz, oferece, em ordem a identificar o mesmo imóvel, uma declaração unilateral, por si produzida, com a composição que ele entende dar ao prédio, seguida de um requerimento a pedir a retificação dessa mesma composição.

Escreveu-se, a este propósito, no parecer nº R.P 112/2010 SJC-CT do Conselho Técnico do Instituto dos Registos e do Notariado: «A ratio da exigência de que a escritura de justificação apenas se possa celebrar quando exista inscrição matricial do prédio objecto do direito alegadamente usucapido releva com efeito da necessidade sentida pelo legislador de se assegurar da real existência do bem, e de que portanto o ingresso e definição da identidade dele no registo, designadamente na sua mais elementar e radical configuração, enquanto porção delimitada de solo (com a área que tiver) não fica inteiramente confiada à declaração «interessada» do justificante, e isto pese embora a intervenção no acto de três outros sujeitos unissonamente confirmando a veracidade de tal declaração. (…) A segurança propiciada pela prévia inscrição matricial advém da possibilidade que os serviços fiscais têm de, no terreno, e designadamente para efeitos de avaliação, procederem às inspecções e vistorias se justifiquem. E se é certo que nem sempre (e porventura nem sequer maioritariamente) a inscrição na matriz será precedida de tal de verificação in loco, a simples possibilidade de que ela se tenha realizado ou venha a realizar, através dos meios técnicos e humanos de que para isso os serviços de finanças estão dotados, garante aos olhos da lei aquele mínimo de certeza acerca da existência e identidade do prédio de que se não quis prescindir e que a mera declaração verbal por parte do justificante se tem por incapaz de produzir».

Temos, assim, que a escritura de justificação notarial para efeitos de registo, hoje disciplinada nos artigos 89º a 101º do Código do Notariado, é um título de natureza excecional, cujo aparecimento resultou da necessidade de colmatar a falta ou insuficiência dos títulos normais, consagrando um mecanismo apto à resolução prática de situações outrossim difíceis, quando não impossíveis de solucionar, permitindo-se assim por este meio:

- obter a primeira inscrição, ou seja, estabelecer o trato sucessivo, estando em causa prédios omissos ou descritos conquanto, neste caso, sem inscrição de aquisição ou equivalente;

- reatar ou estabelecer um novo trato sucessivo, tratando-se de prédios descritos com inscrição de aquisição, reconhecimento ou mera posse, com vista ao suprimento da ausência de intervenção do respectivo titular, imposta pela regra do nº2 do artigo 34º do Código do Registo Predial (cfr. art. 116º do mesmo Código do Registo Predial).

Sucede que, como já foi doutamente observado, «na génese do sistema em que assenta a justificação notarial está o princípio do trato sucessivo./ Partindo da ideia de que, respeitando este princípio se poderia criar um documento que substituísse, para efeitos de registo, títulos faltosos, criou-se um sistema em que nos aparece a nova escritura, de natureza excepcional, para apoiar e servir as necessidades do registo obrigatório, que se pretendia estabelecer./ O novo título foi buscar ao princípio do trato sucessivo a sua razão de ser, servindo não só o registo obrigatório como o registo predial em geral, ao possibilitar registos que de outro modo seriam impossíveis”.[9]

Assim, «quando o interessado pretende promover o registo de qualquer um destes factos [v.g., usucapião] está obrigado a providenciar um título escrito para ele (art. 43.º, n.º 1, do CRgP).

Ora, dentro dos meios dispostos pela ordem jurídica portuguesa para este efeito, das três uma:

 - Recorre a juízo para obter a declaração judicial do facto a registar;

- Promove a celebração de uma escritura pública de justificação notarial;

- Instaura processo de justificação registal, nos termos do Código do Registo Predial (arts. 116.º e segs.)»[10]

Contudo, não basta efetivamente que o requerente da escritura de justificação notarial apresente documentos comprovativos de declaração para inscrição na matriz (provisória esta inscrição), precisamente para que a escritura de justificação de imóveis, pese embora narrativa, tenha um mínimo de segurança e controle.

Tem sido esta aliás a posição dominante do Conselho Técnico do Instituto dos Registos e do Notariado, conforme flui, nomeadamente, do R.P. 110/2011 SJC-CT do Conselho Técnico do Instituto dos Registos e do Notariado, a saber, «O NIP inserido pelo serviço de finanças na declaração para inscrição ou actualização de prédios urbanos na matriz (declaração mod. 1) não constitui presunção da existência do prédio, pelo que a justificação notarial outorgada anteriormente à inscrição matricial do prédio objecto do direito justificado viola a citada norma do nº 1 do art. 92º do Cód. do Notariado, sendo nulo o acto jurídico, de acordo com os invocados art.s 294º e 295º do Cód. Civil.»

Sendo certo que esta nulidade «é provocada pela não inscrição do concreto prédio “justificado” à data da celebração da escritura – é esse o facto negativo integrante da previsão legal, e não propriamente o de que a escritura seja instruída, em vez de com certidão de teor da inscrição matricial própria e exclusiva dele (como se exige no art. 98.º/1, b, do CN), com documento comprovativo do mero pedido de inscrição (o denominado “Modelo 1”, aprovado pela Portaria n.º 1281/2003, de 13-11, ou, eventualmente, um qualquer outro requerimento avulso), ou até, no limite, o de que não se mostre instruída por nenhum»[11].

Neste mesmo sentido já foi sustentado em douto aresto jurisprudencial que:

«I - O artigo 92º , nº1, do Código do Notariado, ao estabelecer que "a justificação de direitos que, nos termos da lei fiscal, devam constar da matriz, só é permitida em relação aos direitos nela inscritos", constitui norma com disposição de carácter imperativo, pelo que a sua violação importa a nulidade do acto, salvo se outra solução resultar da lei.

II - Para o prédio objecto da justificação notarial poder ser registado na Conservatória a favor do justificante, tem ele de ter uma inscrição própria, autónoma na matriz, e não de fazer parte de outro artigo matricial, pois neste caso a escritura de justificação notarial é nula.».[12]

Neste conspecto, importa reconhecer ainda ser efetivamente impossível para os AA. satisfazerem a exigência de procederem à inscrição da parcela na matriz.

O que tudo serve para dizer que em reforço e como acréscimo a ser nula a escritura de justificação notarial instruída apenas com documento comprovativo do pedido de inscrição na matriz, esse pedido nem é liminarmente aceite pela administração fiscal…

Dito de outra forma: na medida em que a autoridade tributária nunca facultaria aos AA. a inscrição da parcela na matriz, fica por essa via inviabilizada a referenciada “justificação Notarial”.

Finalmente, nem se argumente, por referência ao processo de justificação predial que, à luz do disposto no art. 117º-A nº1 do Código de Registo Predial, é permitido dar início ao processo apenas com o pedido de inscrição da parcela na matriz.

É certo que no dito art. 117º-A, sob o título “Restrições à admissibilidade de Justificação”, se estabelece o seguinte:

«1- A justificação de direitos que, nos termos da lei fiscal, devam constar da matriz só é admissível em relação aos direitos nela inscritos ou relativamente aos quais esteja pedida, à data da instauração do processo, a sua inscrição na matriz (sublinhado nosso).

É que, não obstante face a este 2º termo da alternativa aparentemente estar facilitada a utilização desse procedimento, sucede que, nos termos já anteriormente explicitados, ocorre que sempre a autoridade tributária se opõe à mesma por já constar de uma matriz e a criação de outra matriz, exclusiva para a parcela em causa, carecer de autorização administrativa que os AA. não detêm nem conseguem obter face aos dados conhecidos nos autos.

Do que tudo resulta, também à luz desta via de enquadramento, que existia interesse em agir por parte dos AA. ora recorrentes, traduzido na propositura da ação ajuizada, onde a questão tinha de ser apreciada e dirimida.

Nestes termos procedendo as alegações recursivas, com a correspondente revogação da decisão recorrida, assente que foi na “absolvição da instância”.

                                                           ¨¨

Assente isto, vejamos agora o passo seguinte do presente recurso, qual seja, se pode e deve ter lugar o conhecimento de fundo da questão.

Na verdade, por despacho liminar nesta instância de recurso logo se adiantou/perspetivou poder vir a revogar-se a dita decisão final de “absolvição da instância”, face ao que seria então caso deste tribunal de recurso apreciar e decidir do fundamento para “absolvição do pedido” consignado igualmente na decisão [cf. art 665º, nº2 do n.C.P.Civil], nessa linha de entendimento se tendo prosseguido com a audição das partes «(…) nos termos e para os efeitos do disposto no nº3 do normativo citado», para evitar decisões-surpresa, isto porque o recurso interposto não se debruçara sobre esta última questão.

Vejamos então.

Desde logo importa sublinhar que está inapelavelmente prejudicado/impossibilitado o deferimento do pedido de homologação da transação que as partes alcançaram ab initio nos autos – como os AA. requereram no final das suas alegações recursivas! – pois que relativamente a tal já teve lugar decisão transitada em julgado nestes autos no sentido de não considerar válida essa transação apresentada, não se homologando a mesma!

Assim sendo, o que pode estar em causa é efetivamente o julgamento do fundo da questão, isto a considerar-se que os autos já dispõem dos elementos necessários e a tal nada obsta.

Que dizer a esta luz?

Em nosso entender – e releve-se o juízo antecipatório! – que a pretensão dos AA. no sentido de ser reconhecida a divisão do prédio em discussão em dois novos prédios “A” e “B”, e bem assim de ser declarada a propriedade dos AA. e RR. através do instituto da usucapião, essa é pretensão que necessária e insofismavelmente improcede.

Senão vejamos.

Temos presente que os RR. não contestaram a ação, ação essa que foi proposta pelos AA. invocando ab initio que as duas parcelas se encontravam autonomizadas, cada uma com acesso à “via pública”.

Sucede que, nesta matéria da usucapião, rectius, dos atos materiais de posse em condições de tempo e modo para validamente conduzirem à usucapião, resulta que não pode haver acordo das partes (ou confissão) em ordem a viabilizar sem mais uma tal aquisição por usucapião, com o consequente reconhecimento da divisão material porventura operada dos prédios.[13]

Isto porque admitir tal, significaria que com toda a facilidade poderiam tornear-se os obstáculos de ordem pública decorrentes nomeadamente do disposto no R.J.U.E, [nos termos já supra expostos, nomeadamente na nota [9]], conquanto o Tribunal se limitasse como que a um acto de chancela.

Efetivamente, prescreve o art. 574º, nº2 do n.C.P.Civil que: «Consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito; a admissão de factos instrumentais pode ser afastada por prova posterior.» (sublinhado nosso).[14]

Face a esta prescrição não é admissível, nomeadamente, a confissão relativamente a atos formais por exigência da lei.

É o caso de “destaque” de prédios urbanos só possível nos termos prescritos no R.J.U.E, mais concretamente tal só é possível caso as duas parcelas resultantes do “destaque” fiquem comprovadamente a confrontar com “arruamentos públicos”.

Dito de outro modo: se tal impedimento pode ser afastado pela emergência da usucapião, não basta que a parte invoque não existir o impedimento, e a contraparte com tal concorde, tornando-se, pois, necessário provar os seus requisitos/inexistência do impedimento através da comprovação de tal assim ser por documento escrito emitido/certificado pela entidade competente.

Caso contrário, poderiam, eventualmente, gizar-se conluios com fraude à lei, com intuito de tornear os seus impedimentos.

Dito isto, será que se devia mandar prosseguir os autos para julgamento, em ordem a que fosse possível aos AA. virem a provar que estão em condições legais de obter a pretendida autonomização do prédio urbano em duas “parcelas”.

Cremos que não pelo que vamos passar a explicitar.

É que são os próprios termos sob os quais os AA. formulam a final a questão e configuram a sua pretensão material, a vedar-lhes inapelavelmente a procedência almejada.

Na verdade, foi formulação expressa do legislador, no art. 1287º do C.Civil, ao definir a usucapião, a previsão de que esta forma de aquisição originária não pode ser invocada quando exista “disposição em contrário”.

Esta previsão transporta-nos inequivocamente para os casos em que o reconhecimento desse título contende com lei expressa, a saber, in casu para as já citadas normas de direito do urbanismo.

Preside a esta solução o entendimento de que a usucapião não constitui nem pode constituir um instituto jurídico isolado, antes faz parte de um vasto “arquipélago” que engloba outras normas que a condicionam ou impedem, umas integradas no Cód. Civil e outras que emergem de diplomas avulsos como os que regulam a matéria de direito do urbanismo ou do licenciamento da construção ou utilização de edifícios.

Nesta mesma linha de entendimento, sublinhou-se o seguinte na decisão sob recurso (ainda que com argumentação centrada na “constituição de propriedade horizontal”, mas que é perfeitamente extensível e aplicável ao enquadramento pretendido pelos AA., e sempre por eles reiterado – de ser reconhecida a “divisão” do prédio em discussão em dois novos prédios A e B, e bem assim de ser declarada a propriedade dos AA. e RR. através do instituto da usucapião tudo conforme primitivamente peticionado):

«(…)

Deste modo quando o art. 1287.º do Código Civil ressalva as disposições em contrário, entende este Tribunal, na esteira da jurisprudência supracitada, que está em causa o acatamento da legislação de cariz urbanístico sob pena de numa leitura parciária do ordenamento jurídico os Tribunais tolerarem aquilo que a administração não consente. Cfr. António Pereira da Costa “Loteamento, Acessão e Usucapião”, in “Revista do CEDOUA”, N.º 11, Janeiro de 2003, p. 95 e ss. e Mónica Jardim e Dulce Lopes in “O Urbanismo, o ordenamento do território e os Tribunais”, Coimbra: Almedina, 2010, p. 806 e ss.

Aliás, se é pacífico na doutrina e na jurisprudência que a justificação para o usucapião repousa no interesse público (bono publico usucapio introducta est) e que “tal interesse público está em assegurar, no tráfego das coisas, quer a certeza da existência dos direitos reais de gozo sobre elas e de quem é o seu titular, quer em proteger o valor da publicidade / confiança que nesse tráfego lhe é aduzido pela posse, quer em fornecer, através do usucapião, um meio de prova seguro, de fácil utilização e consentâneo com a confiança, quanto à existência do direito e à sua titularidade” - Cfr. Durval Ferreira, “Posse e Usucapião”, 3.ª Ed., Coimbra: Almedina, 2008, p. 494 - como aceitar tal aquisição originária ao arrepio da legislação urbanística compenetrada, também ela, com esse mesmo interesse comunitário?

Connosco, identicamente, Pedro Eiró e Miguel do Carmo Mota, “Comentário ao Código Civil - Direito das Coisas”, Lisboa: UCE, 2021, p. 94, dando conta relativamente à prevalência da aquisição por usucapião face a determinados conjuntos de normas imperativas como sejam as normas do Direito do Urbanismo que se “por um lado, a usucapião tem efeito originário (art. 1288.º do Código Civil), pelo que sendo o direito adquirido ex novo, este ficaria purgado de quaisquer vícios ou invalidades de que padeceria antes da aquisição. (…) Está em causa, apesar de tudo, a aquisição da propriedade contra legem (…) porquanto o que está em causa nas normas urbanísticas imperativas é a prossecução do interesse público, e não uma mera contraposição de interesses provados (…). Assim, não se podem sacrificar valores relativos ao interesse público na ordenação do território em prol da salvaguarda de interesses puramente privados.”

(…)»

Recorde-se que nos parece inquestionável na circunstância que ambas as partes reconheceram na tramitação última dos autos, mormente após o Relatório pericial e informação formal do Município ... (cf. ofício de 09-11-2022 a fls. 253-254) que, nomeadamente a parcela “B”, operada a pretendida “divisão”/“destaque”, não ficaria a confrontar com qualquer “arruamento publico” (por apenas existir um “acesso privado” através de um “caminho” sito a poente).[15]

Neste quadro, está afinal em causa a criação de um novo prédio, a partir de um prédio já existente e previamente descrito, sem que os AA. demonstrem o cumprimento das normas administrativas de tal permissivas ou que estão em condições de o cumprir.

Dito de outa forma: não resulta dos autos nem que a operação urbanística em que a “divisão”/“destaque” se traduziria tenha sido precedida de qualquer procedimento administrativo que configure um loteamento urbano, nem que se trata de um “destaque” legalmente admissível.

  Ora se assim é, temos muito claramente que in casu, o reconhecimento da aquisição por usucapião contenderia com “lei expressa”, sendo certo que a falta de observância das citadas normas seria cominada com a anulabilidade ou nulidade do ato jurídico que fosse praticado, nos termos dos arts. 49º, nº 1, 67º e 68º do R.J.U.E..

Acresce que semelhante efeito impeditivo sempre emergiria de outras normas legais de natureza imperativa, ainda que de cariz genérico, como os arts. 294º e 280º, ex vi do art. 295º do C.Civil.

Isto porque, s.m.j., precisamente na medida em que a situação incidiria sobre objeto física ou legalmente impossível, mais concretamente porque o reconhecimento do direito de propriedade por via da usucapião não pode constituir uma forma de contornar ou ultrapassar os limites à negociabilidade ou transmissibilidade de bens por via do acordo de vontades, donde, a usucapião, enquanto ato jurídico de aquisição originária de direitos reais, não opera validamente sobre coisa que, nesse domínio, se traduza em objeto legalmente impossível, nos termos do artigo 280º, aplicável por via do art. 295º, ambos do C.Civil.

Perfilhando esta linha de entendimento, para um caso com similitude, já se sublinhou em douto aresto[16] o seguinte:

«(…)

Assim, vem-se entendendo que “… em sede de operações urbanísticas de loteamento/destaque, deverão prevalecer as normas imperativas de ordem pública, ficando vedado às partes alcançar com recurso ao Tribunal (com invocação de usucapião ou da acessão industrial imobiliária) um resultado que lhes está vedado pelo direito substantivo, na medida em que o regime de direito privado está sujeito a condicionalismos de direito do urbanismo e do ordenamento do território que se lhe sobrepõem (princípio da submissão aos limites substantivos) …”(14).

Esta conclusão decorre das mais recentes e mais avisadas posições que têm sido assumidas, quer pela Doutrina, quer pela Jurisprudência.

Nesta última, destaca-se aqui o recente ac. do Stj de 26.1.2016 (15), onde, de uma forma exaustiva, se explanam as diversas posições que vêm sendo tomadas sobre a questão enunciada, e onde, de uma forma profunda e fundamentada, se chegaram às seguintes conclusões que aqui se transcrevem por serem absolutamente pertinentes para a resolução da presente causa.

Assim, concluiu o Stj nesse Acórdão que:

“… c) Em simultâneo com o instituto da usucapião - de natureza privatística - coexistem no nosso ordenamento jurídico disposições de natureza jurídico-administrativa – de direito público - que disciplinam o ordenamento do território e condicionam a utilização dos solos, estendendo-se os seus efeitos aos actos e negócios jurídicos que os particulares praticam relativamente a bens imóveis.

d) Um dos principais instrumentos de que o legislador se tem servido para conformar e conjugar os interesses públicos e privados no que se refere à utilização dos solos tem sido a legislação sobre loteamentos urbanos, tendo esta como propósito geral impedir o aproveitamento indiscriminado de terrenos para a construção urbana e evitar a criação de núcleos habitacionais contrários ao racional desenvolvimento urbano do território, não olvidando a qualidade de vida das populações (com reflexo nos direitos de personalidade,”maxime” a higiene e salubridade), as infraestruturas urbanísticas e, “last but not least”, a estética.

e) O diálogo entre o direito civil e o direito do urbanismo e o objectivo de aplicação uniforme e coerente do ordenamento jurídico como um todo implicam que as normas de cariz administrativo respeitantes ao fraccionamento, ao loteamento e ao destaque de imóveis sejam atendidas aquando do reconhecimento das formas de aquisição da propriedade, mormente da usucapião.

f) Os tribunais judiciais não podem manter-se como espaços de aplicação exclusiva do direito civil ignorando as intersecções deste com o direito do urbanismo, sendo cada vez mais urgente, face à natureza imperativa e aos interesses públicos que este último prossegue, abandonar este estado “monocromático” das relações entre ambos estes ramos do direito.

g) Na ausência de demonstração do cumprimento das limitações impostas pelas normas administrativas de ordenamento do território relativas à validade das operações urbanísticas como o loteamento ou o destaque (artigos 3.º, alínea a), 5.º, 53.º, n.º 1 e 56.º, n.º 1, do Regime Jurídico dos Loteamentos Urbanos, republicado pelo Decreto-Lei n.º 334/95, de 28-12, aplicáveis na data da celebração da escritura), não podem os actos de posse baseados num facto proibido por essas leis permitir uma aquisição por usucapião na medida em que contrários a uma disposição de carácter imperativo (artigo 294.º do Código Civil), sendo nula a escritura de justificação que a titula…”.

(…)

14. Luis Filipe Pires de Sousa, in “Processos especiais de divisão de coisa comum e de prestação de contas”, pág. 68.

15. (relator: Sebastião Póvoas), in Dgsi.pt»

Isto é, não se encontram reunidos, em face do regime legal, os pressupostos para que possa ser considerada válida a operação urbanística em causa nos autos, do que decorre a necessária nulidade do ato que vem peticionado [“divisão” do prédio urbano em dois novos prédios, com declaração da propriedade respetiva através do instituto da usucapião], pelo que, porque a pretensão dos AA. necessariamente improcederia, é caso de, sem necessidade da produção de outra prova, concluir sem mais pela absolvição dos RR. do pedido, em sede de saneador-sentença [cf. art. 595º, nº 1, al. b) do n.C.P.Civil].

                                                                       *

6 – DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se a final, revogar a decisão recorrida que em despacho saneador determinou a absolvição dos RR. da instância, mas, em substituição do tribunal recorrido, e porque a pretensão dos AA. necessariamente improcederia, concluir sem mais pela absolvição dos RR. do pedido, em sede de saneador-sentença [cf. art. 595º, nº 1, al. b) do n.C.P.Civil].   

Custas pelos AA./recorrentes em ambas as instâncias.

Coimbra, 9 de Abril de 2024

                                                      Luís Filipe Cravo

                                                    Fernando Monteiro

             João Moreira do Carmo



[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Des. Fernando Monteiro
  2º Adjunto: Des. João Moreira do Carmo
[2] Sendo que se vai considerar para este efeito a p.i. aperfeiçoada de fls. 171-175.
[3] Assim por ANSELMO DE CASTRO, in “Direito Processual Civil Declaratório”, 1982, I, a págs. 101.
[4] Ao que nos é dado saber, não publicado, mas precisamente por isso, se reproduz de seguida o respetivo sumário, a saber:
«1.
As acções de simples apreciação destinam-se a definir uma situação formal e incerta. Esta incerteza deve ser objectiva e grave e deve brotar de factos exteriores, de circunstâncias externas. Aquela gravidade medir-se-á pelo prejuízo material ou moral que a situação de incerteza possa criar ao autor. A causa de pedir consubstancia-se na inexistência do direito e nos factos materiais pretensamente cometidos pelo demandado que determinavam o estado de incerteza. Só se da petição não resultar o estado de incerteza objectiva referida, o autor não dispõe do necessário interesse em agir.
2.
O que determina apreciar que o estado de incerteza sobre a existência de um direito ou de um facto, é susceptível de causar prejuízo a uma pessoa; deve, por isso, pôr-se à disposição dessa pessoa um meio de se defender contra tais prejuízos. Esse meio é
a acção declarativa. Quer dizer, o prejuízo inerente à incerteza do direito ou do facto legítima e justifica o uso de acção de simples apreciação positiva ou negativa.
3.
Tudo em consonância com reconhecer que o interesse em agir consiste, a final, em o direito do demandante estar carecido de tutela judicial; é o interesse em utilizar a arma judiciária e em recorrer ao processo. Tem por objecto a providência solicitada ao tribunal, através da qual se procura ver satisfeito o interesse substancial lesado pelo comportamento da contraparte, ou, mais genericamente, pela situação de facto objectivamente existente
[5] Assim por MANUEL DE ANDRADE, in “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, págs. 79-82.
[6] Pelo professor citado na nota antecedente.
[7] ANTUNES VARELA / MIGUEL BEZERRA / SAMPAIO E NORA in “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, 2.ª edição, a págs.179, sintetizam o mesmo conceito, nestes termos: “o interesse processual consiste na necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção”.
[8] Decorre, inter alia, do art. 6º, nº 10 do DL nº 555/99 de 16 de Dezembro [“Regime Jurídico da Urbanização e Edificação”, doravante “R.J.U.E.”], que «Os atos que tenham por efeito o destaque de parcela com descrição predial que se situe em perímetro urbano e fora deste devem observar o disposto nos nos 4 ou 5, consoante a localização da parcela a destacar, ou,  se também ela se situar em perímetro urbano e fora deste, consoante a localização da área maior», o que na conjugação com o nº 4 do mesmo normativo aplicável ao caso [por se tratar de prédio em “perímetro urbano”], a saber, «Os atos que tenham por efeito o destaque de uma única parcela de prédio com descrição predial que se situe em perímetro urbano estão isento de licença desde que as duas parcelas resultantes do destaque confrontem com arruamentos públicos», determina que na medida em que a parcela identificada pelos AA. como parcela “B”, após o pretendido “destaque”, face ao dados apurados na instrução do presente processo, não ficaria a confrontar com qualquer “arruamento público”, o dito “destaque” careceria de “licença administrativa”, elemento que os AA. não têm, não diligenciaram por obter, nem sequer demonstram estar em condições de vir a ser-lhes deferido [mormente face à posição do próprio Município ... (cf. ofício de 09-11-2022 a fls. 253-254), no sentido de que “o prédio em causa não confronta a poente com o arruamento público”].   
[9] Citámos agora BORGES DE ARAÚJO, in “Prática Notarial”, 2001, a págs. 339.
[10] Cf. JOSÉ ALBERTO VIEIRA, em Registo de usucapião titulada por escritura de justificação notarial e presunção de titularidade do direito – Anotação ao AUJ n.º 1/2008, de 04-12-2007, Cadernos de Direito Privado, n.º 24, Outubro/Dezembro de 2008, a págs. 37.
[11] Cf. P.º n.º R.P. 108/2010 SJC-CT.
[12] Trata-se do acórdão do T. Rel. de Lisboa de 03.10.2000, no proc. nº 0026021, acessível em www.dgsi.pt/jtrl.
[13] De referir que embora os AA. aludam sempre a que pretendem a “divisão” do prédio e não um “destaque”, salvo o devido respeito, trata-se de um mero jogo de palavras, pois que a “divisão”, operada fora do quadro processual da divisão de coisa comum, se traduz material e juridicamente num “destaque”… 
[14] No mesmo sentido, prescreve o art. 1249º do C.Civil que: «as partes não podem transigir sobre direitos de que não lhes é permitido dispor, nem sobre questões respeitantes a negócios jurídicos ilícitos».
 
[15] Como exposto supra no “Relatório”, alegaram (e aceitaram) os AA. muito concretamente que «Na verdade, e tal qual resulta do requerimento dos réus, datado de 05.07.2022, com a referência citius 42769311, os réus possuem acesso privado ao prédio “B”, através de um caminho sito a poente e, por seu turno, os autores acesso privado à fração “A” através de um caminho sito a nascente.»
[16] Trata-se do acórdão do TRG de 04/10/2017, proferido no proc. nº 1197/13.5TBPTL.G1, acessível em www.dgsi.pt/jtrg.

(…)