ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
REQUISITOS
ACÇÃO FUNDADA EM DUAS CAUSAS DE PEDIR AUTÓNOMAS
UMA PRINCIPAL E OUTRA SUBSIDIÁRIA
PRIORIDADE DE CONHECIMENTO DA CAUSA DE PEDIR PRINCIPAL
CASO JULGADO
Sumário


1. - A ação por enriquecimento sem causa depende da verificação de um enriquecimento à custa de outrem, que careça de causa justificativa, por nunca a ter tido ou por a ter perdido, tornando-se, assim, injusto e inaceitável para o direito.
2. - Vista a natureza subsidiária do enriquecimento sem causa, é imprescindível a inexistência de outro meio jurídico de satisfação da pretensão do demandante na ação de enriquecimento (casos em que a lei não permite ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, como resulta do art.º 474.º do CCiv.).
3. - Fundando-se a ação interposta em duas autónomas causas de pedir – uma principal/prioritária, por incumprimento de deveres de mandato, e outra por subsidiário enriquecimento injustificado –, o caráter subsidiário do enriquecimento sem causa obsta à procedência da ação de enriquecimento sem (prévio) conhecimento e improcedência da causa de pedir principal.
4. - O caso julgado – formal ou material –, constituído pela decisão judicial, na conjugação do respetivo dispositivo com os seus fundamentos, na parte em que estes sejam antecedente lógico necessário daquele, configura uma exceção dilatória de conhecimento oficioso da Relação no âmbito recursivo.
5. - Tendo a Relação determinado, com trânsito em julgado, que a 1.ª instância conhecesse em plenitude da causa petendi – as aludidas causas de pedir principal/prioritária e subsidiária –, a sentença que, na sequência, apenas conhece da matéria do enriquecimento sem causa configura não acatamento de decisão de tribunal superior e inobservância do caso julgado formado no processo.
6. - Tendo em conta que a ação de enriquecimento só poderia proceder mediante prévia improcedência do pedido fundado na causa de pedir principal, a não apreciação deste redunda em prejuízo para a parte demandante, para além de ofender o caso julgado formado, pelo que ocorre erro de julgamento de direito, obrigando à revogação da sentença, para prolação de outra, que contemple a pluralidade de causas de pedir.

Texto Integral


Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:


***
I – Relatório ([1])

AA e BB, ambas com os sinais dos autos,

intentaram ação declarativa condenatória – por invocado abuso de mandato/poderes de representação e, subsidiariamente, enriquecimento sem causa, bem como, em qualquer caso, responsabilidade por danos não patrimoniais –, com processo comum, contra

CC, também com os sinais dos autos,

pedindo a condenação da R. a pagar-lhes a quantia de € 99.880,22, acrescida dos juros de mora, à taxa supletiva legal civil, desde a citação e até efetivo e integral pagamento.

Para tanto, alegaram, em síntese, e para além do mais, que:

- a R. usou abusivamente dos poderes que lhe foram conferidos pelas AA., as quais autorizaram tal R. a movimentar contas bancárias, conferindo-lhe poderes para tanto, através de procuração, poderes que aquela usou no interesse exclusivo dela própria, violando os princípios e interesses que nortearam a concessão dos poderes de representação (art.ºs 1.º a 38.º da petição inicial);

- através de conta titulada pela R. e ao longo de vários anos, as AA. cederam o valor total acima referido, por forma a assegurar, nomeadamente, as despesas de DD – filho e irmão daquelas, respetivamente, o qual, encontrando-se em reclusão, mantinha uma relação amorosa com a R. –, bem como a aquisição, a 27/05/2014, pela R. da casa em que a mesma e o referido DD passaram a viver enquanto casal (em união de facto);

- «Nesse sentido e usando a quantia de 90.000€ (noventa mil euros) dinheiro existente nas contas supra identificadas a Ré em 27 de Maio de 2014 adquiriu em nome próprio o seguinte imovel: Prédio Urbano (…)» (art.º 9.º da petição);

- «Da mesma conta, efectuou pagamentos ao estado, mormente IMT e IS, e as despesas do acto com a compra» (art.º 10.º da petição);

- «Desde então a Ré, usa o imóvel que adquiriu usando o dinheiro das AA, a seu bel-prazer, disfrutando de todas as comodidades» (art.º 11.º);

- «Não prestando contas a ninguém, usando-o em proveito próprio e em exclusivo» (art.º 12.º);

- «A vantagem obtida no montante referido (…) é obtida na aquisição do imóvel referido (…)» (art.º 49.º);

- cessada a união de facto, «(…) tal vantagem patrimonial obtida pela ré mostra-se totalmente injustificada, isto é, carece causa de justificativa. A ré viu aumentado o seu património com dinheiro pertença das AA.» (art.º 50.º);

- termos em que, caso não procedesse aquela matéria de abuso/incumprimento de mandato/poderes de representação, teria de proceder a matéria de enriquecimento sem causa, no montante de € 90.880,22 (art.ºs 39.º, 48.º e 53.º da petição);

- a conduta da R. causou às AA. danos não patrimoniais (angústia, tristeza, perda de vontade de viver, desgosto/“pesadelo”), a deverem ser reparados com o montante total de € 9.000,00 (correspondente a € 4.500,00 para cada uma) – art.ºs 55.º a 63.º da petição.

Contestou a R., impugnando, no essencial, a factualidade alegada pelas AA. e excecionando a prescrição do direito invocado, pelo decurso do prazo legal de três anos para o efeito (art.º 482.º do CCiv.), assim concluindo pela procedência da exceção, com decorrente improcedência da ação, e condenação incidental das demandantes como litigantes de má-fé.

Pronunciaram-se as AA., pugnando pela falência da deduzida exceção e do incidente de litigância de má-fé, assim concluindo pela procedência da ação.

Realizada audiência prévia, foi proferido despacho saneador – onde foi relegado para final o conhecimento da exceção da prescrição, por se tratar de matéria ainda controvertida –, fixando-se o objeto do litígio e os temas de prova.

Foi realizada audiência final, seguida da prolação de sentença (datada de 04/11/2022), julgando verificada a exceção perentória da prescrição, com consequente absolvição da R. do peticionado, e declarando improcedente o pedido de condenação das AA. como litigantes de má-fé.

Tendo as AA. interposto recurso, esta Relação (doravante, TRC), por decisão singular datada de 11/07/2023 – transitada, entretanto, em julgado –, julgou «procedente a apelação, na improcedência da deduzida exceção de prescrição, revogando-se, em consequência, a sentença absolutória recorrida», assim determinando «a baixa dos autos à 1.ª instância para cabal conhecimento do mérito da ação (atentas as respetivas causas de pedir)».

Na sequência, foi proferida nova sentença pelo Tribunal recorrido (datada de 10/10/2023), julgando assim:

«A. Condeno a ré (…) a pagar às autoras (…) a quantia total de € 35.000,00 (…), a que acrescem juros de mora, calculados à taxa supletiva legal civil, e contabilizados desde a data de citação, bem como os juros moratórios que se vencerem até ao efectivo e integral pagamento.

B. Absolvo a ré do remanescente peticionado pelas autoras.

C. Declaro improcedente o pedido de condenação das autoras como litigantes de má-fé.

Custas pelas autoras e pela ré, na respectiva proporção de 40% e 60%.» (destaques subtraídos).

Novamente inconformadas, vieram as AA. interpor recurso, apresentando alegação, culminada com as seguintes

Conclusões ([2]):

«a) Para que se constitua uma obrigação de restituir fundada no enriquecimento, não basta que uma pessoa tenha obtido uma vantagem patrimonial, à custa de outrem. É ainda necessário que não exista uma causa justificativa para essa deslocação patrimonial, quer porque nunca a houve, por não se ter verificado o escopo pretendido, ou, porque, entretanto, deixou de existir, devido à supressão posterior desse fundamento.

b) No caso sub judicie, está em causa a interpretação do disposto no artigo 482º do Código Civil que diz: "O direito à restituição por enriquecimento prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o credor teve conhecimento do direito que lhe compete e da pessoa do responsável, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do enriquecimento".

c) O que se discute é o saber se a expressão "conhecimento do direito que lhe compete" quer dizer, como se sustenta acima, "conhecimento dos elementos constitutivos do seu direito" ou, "conhecimento de ter direito à restituição" ou em última análise e talvez não menos importante a consciência do empobrecimento.

d) A prescrição do artigo 482º do Código Civil funda-se na conveniência de compelir os empobrecidos a, podendo e querendo exercer o direito à restituição, o exercerem em prazo curto, a fim de esse direito não ter de ser apreciado a longa distância dos factos, o que pode tornar-se difícil ao tribunal (Cfr. Vaz Serra, in Rev. de Leg. e de Jur., ano 107, páginas 299 e 300).

e) Além de Vaz Serra, este entendimento pode confortar-se com o ensino de Antunes Varela, in "Das Obrigações em Geral", I vol., página 436:

"Fixou-se o prazo de três anos, a contar do momento em que o lesado teve conhecimento do seu direito, ou seja, a partir da data em que ele, conhecendo a verificação dos pressupostos que condicionam a responsabilidade, soube ter direito à indemnização (...)".

"(...) prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete (...)".

f) O prazo de prescrição de três anos começa, pois, a contar a partir do momento em que a pessoa que reclama a restituição conhece os pressupostos que condicionam a responsabilidade civil como fonte da obrigação de indemnizar por enriquecimento sem causa, independentemente da consciência da valoração jurídica que sobre eles faça. O conhecimento do direito à restituição por enriquecimento vem a ser a consciência da possibilidade legal da restituição, ou seja, a perceção pelo empobrecido do (i) enriquecimento da carência da causa justificativa do mesmo e de que o enriquecimento foi obtido à sua custa.

g) Assim e em jeito de resumo, no caso em apreço, cremos, salvo melhor opinião, inexistir controvérsia que o direito reclamado foi fundado no enriquecimento sem causa e que o mesmo prescreve “no prazo de três anos, a contar da data em que as AA. tiveram conhecimento do direito que lhes compete e da pessoa da responsável” (art.º 482.º do CC), prazo que começa “a correr quando o direito puder ser exercido” (art.º 306º/1 do CC).

h) Resta então saber, se no caso sub-judicie, o prazo prescricional para a invocação do enriquecimento sem causa por parte das AA., iniciou-se com a celebração da escritura de compra e venda mencionado no ponto 21. As autoras tiveram conhecimento da aquisição da casa acima identificada no ponto 10 no decurso das negociações de compra da mesma, ou seja em dia não concretamente apurado, mas que antecedeu o dia 27-5-2014. Conforme entendeu o Meretíssimo Juiz “ a quo”, em nosso entender mal, ou se, de acordo com a quase totalidade da jurisprudência recolhida, com o conhecimento da separação da Ré do filho/irmão das AA.

i) Na verdade é nesta altura que as AA. têm conhecimento do empobrecimento, e da falta de razão justificativa para a trasferência de património tal qual acima, porventura em demasia, expandido.

j) É portanto a 18 de Novembro de 2018 que são alteradas as circunstâncias que levam a que as AA. sintam o património empobrecido em detrimento da Ré que por sua vez sente o património aumentado, nesta altura sem causa que justifique esse aumento. Aliás, semelhantes são os casos das benfeitorias praticadas pelos conjuges em património próprio de um ou outro, quando é que começa a contar o prazo prescricional para a invocação do enriquecimento sem causa? Com o divórcio, e não sobre a concretização das benfeitorias.

l) Para além do mais, houve uma incorrecta apreciação e valoração das provas produzidas ;

m) Importa referir que, no seu sentido restrito, que é o rigoroso, o princípio do inquisitório opera no domínio da instrução do processo, sendo que neste domínio, o juiz tem poderes mais amplos do que no domínio da investigação dos factos, na medida em que pode determinar quaisquer diligências probatórias que não hajam sido solicitadas pelas partes.

n) A propósito da prova por testemunhas, afigura-se-nos importante rememorar os dois pólos que, em regra, se mostram aptos a condicionar o juízo valorativo que o decisor deve fazer, por conseguinte, a maior ou inferior aceitação do conteúdo de cada concreto depoimento.

o) Em 1º lugar, o patamar de fiabilidade ou credibilidade que cada testemunha mereça; com reflexo nos chamados costumes [artigo 635º nº 1 do Código de Processo Civil (artigo 513º)]; e que pretende apurar não mais do que os níveis de confiança a creditar à pessoa e ao conteúdo do que disser.

Em 2º lugar, os níveis daquilo que sabe quanto ao que importa apurar; aqui com reflexo na chamada razão de ciência, que o artigo 638º nº 1 do CPC, manda que seja, quanto possível, especificada e fundamentada; e que pretende apurar, para fixar o nível de aceitabilidade, a justificação para a posse dos conhecimentos, que se pretende que sejam exteriorizados em depoimento.”

p) No caso sub judice, entendeu o Meritíssimo Juiz “ a quo” em nosso entender mal, valorar as declarações de parte da Ré e as testemunhas por esta apresentadas, todas elas testemunhas indirectas que apenas confirmaram o que pela Ré, foi alegado, sem saberem concretizar o como, o porquê, o quando ou quais as circunstâncias, em detrimento do depoimento directo das testemunhas apresentadas pelas AA..

q) E nessa medida os Pontos, 11, 13, 14, 16 e 19 matéria dada como provada, devem ser alterados nos exactos termos dos n.ºs 1, 2, 3, 4 e 5 das alegações acima aduzidas;

r) Mais entendem as ora Apelantes que a sentença deve conter, na fundamentação de facto, a enumeração dos factos que julga provados e aqueles que julga não provados, para além da análise crítica das provas (artigo 607º nº 3 e 4 NCPC). Cremos nós salvo melhor opinião que, a breve menção;

Com relevância para a boa Decisão da causa, e sem prejuízo da factualidade acima dada como provada, resultam como não provados quaisquer outros aspectos alegados nos articulados e acima não indicados, nomeadamente:

a) Que na conta acima referida e identificada pelo n.º  ...70 tivessem as autoras depositado dinheiro que não pertencesse a DD.

Responda ou possa responder à exigência consagrada no referido artigo.

Atento todo o exposto, entendemos que a decisão proferida, ao ter decidido, como decidiu, violou as normas e princípios expostos quer quanto ao instituto do enriquecimento sem causa previsto no artigo 473º e ss do Código Civil e bem assim, os artigos 411º , 526.º , 601.º , 638.º, 640.º do CPC, devendo ser substituída por uma outra, nos termos supra referidos, que, a final, condene a Ré no peticionado.

Termos em que e nos melhores de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve a decisão de 1.ª Instância ser revogada e, em conseqeuência ser a ação julgada procedente, com o que se fará a

serena JUSTIÇA.».

Também a R., inconformada, interpõe recurso, apresentando alegação e as seguintes

Conclusões ([3]):

«I. Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida a fls. dos autos que condenou a Ré, ora Recorrente, a pagar às Autoras a quantia de €35.000,00 (trinta e cinco mil euros).

II. Da factualidade provada consta que a quantia de € 35.000,00 (trinta e cinco mil euros) foi disponibilizada pelo pai de DD – Sr. EE, conforme resulta dos pontos 19 e 20 dos factos provados.

III. A obrigação de restituição fundada no enriquecimento sem causa, instituto consagrado no artigo 473º do Código Civil, pressupõe a verificação cumulativa dos seguintes três requisitos: a) a existência de um enriquecimento; b) o enriquecimento carece de causa justificativa; c) a obrigação de restituir pressupõe que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição.

IV. O terceiro requisito referido exige uma correlação entre a situação dos dois sujeitos, traduzida no facto de a vantagem patrimonial alcançada por um resultar do sacrifício económico correspondente suportado pelo outro, verificando-se, assim, a necessidade de existência de um nexo (causal) entre a vantagem patrimonial auferida por um e o sacrifício sofrido por outro.

V. À luz do artº 342º, nº 1 do Código Civil, é sobre o autor, alegadamente empobrecido, que impende o ónus de alegação e prova dos correspondentes factos que integram cada um daqueles requisitos, o que não se verificou.

VI. Resulta inequívoco da factualidade provada, nos pontos 19 e 20, que o valor de € 35.000,00 (trinta e cinco mil euros), pertencia a EE e não a nenhuma das Autoras, as quais, como se apurou em audiência, não dispunham de quaisquer rendimentos, nem desenvolviam qualquer atividade remunerada que lhes permitisse amealhar tal quantia, pelo que não ficaram as Autoras empobrecidas em tal montante.

VII. Assim, considerando que o enriquecimento não foi obtido à custa de quem requereu a restituição não existe qualquer obrigação de restituir, por falta de preenchimento do terceiro requisito supra referido.

VIII. Estamos, in casu, em presença de um enriquecimento por prestação, pelo que tal pressuposto normativo se dissolve na própria autoria da prestação, sendo essa autoria que determina a legitimidade do credor da pretensão de enriquecimento. Assim, tendo a prestação sido realizada por EE, era este que teria legitimidade para deduzir tal pedido de restituição.

IX. Em face do disposto no artigo 342º, n.º 1 do Código Civil, recaia sobre as Autoras o ónus de provar que a referida quantia de € 35.000,00 (trinta e cinco mil euros) lhes pertencia, o que não se verificou, uma vez que ficou demonstrado e provado que a referida quantia pertencia ao pai e marido das Autoras, EE, e foi por este disponibilizada à Recorrente.

X. Não se verifica uma unidade do processo de enriquecimento, ou seja, uma deslocação patrimonial direta entre o património das Recorridas e o da Recorrente, que constitui requisito essencial de aplicação do instituto do enriquecimento sem causa.

XI. O requisito da imediação, ou da unidade do procedimento de enriquecimento, significa que, entre empobrecimento e enriquecimento, não deve encontrar-se um facto intermédio ou, em todo o caso, não deve encontrar-se um património intermédio, de terceiro.

XII. O Tribunal a quo, ao decidir da forma que o fez, violou o disposto no artigo 473º do Código Civil.

Termos em que,

Deve ser julgado totalmente procedente, por provado, o presente recurso e, em consequência, substituída a decisão recorrida por outra que absolva integralmente a Recorrente do pedido, assim se fazendo a costumada

JUSTIÇA!».

Ambas as partes apresentaram contra-alegação, concluindo pela total improcedência da apelação da contraparte.

Os recursos foram admitidos como de apelação, com efeito meramente devolutivo e subida imediata, tendo sido ordenada a remessa do processo a este Tribunal ad quem.

Cumpridos os vistos e nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito dos recursos, cumpre apreciar e decidir.

II – Âmbito recursivo

Sendo o objeto dos recursos delimitado pelas respetivas conclusões, pressuposto o objeto do processo delimitado em sede de articulados – como é consabido, são as conclusões da parte recorrente que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([4]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.) –, está em causa na presente apelação saber ([5]):

a) Se o não conhecimento pela 1.ª instância, na sentença agora recorrida, da matéria de abuso/incumprimento de mandato/poderes de representação configura, em âmbito de conhecimento oficioso da Relação, não acatamento de decisão de Tribunal superior (o determinado na anterior decisão sumária deste TRC) e, do mesmo modo, inobservância do respetivo caso julgado, em prejuízo de uma das partes (as AA./Recorrentes);

b) Se ocorre erro de julgamento em matéria de facto – quanto aos pontos 11, 13, 14, 16 e 19 matéria dada como provada, a deverem ser alterados – ou invocada insuficiência da decisão de facto relativamente a factos julgados como não provados;

c) Se, em matéria de direito, deverá a ação proceder integralmente (como pretendem as AA./Recorrentes) ou, ao invés, improceder in totum (como defende a R./Recorrente, por não verificação do requisitório da ação de enriquecimento).

III – Fundamentação

          A) Quadro fáctico da causa

1. - É a seguinte a factualidade julgada provada pela 1.ª instância:

«1. A autora BB nasceu a ../../1966, é filha da autora AA e do seu marido EE (cfr. cópia da certidão do respectivo assento de nascimento, junta a fls. 12 a 13 verso, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido).

2. DD nasceu a ../../1971, é filho da autora AA e do seu marido EE (cfr. cópia da certidão do respectivo assento de nascimento, junta a fls. 14 a 15 verso, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido).

3. DD e a autora BB são irmãos.

4. DD cumpriu efectiva pena de prisão no período compreendido entre 03-11-2006 e 26-3-2019 (cfr. cópia da decisão de 26-3-2019 no âmbito do respectivo processo de liberdade condicional, proferida pelo Mm.º Juiz de Direito do Tribunal de Execução de Penas ..., junta a fls. 16 a 26 verso, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido).

5. [Em] Outubro de 2008, DD e a ré iniciaram relação amorosa, a qual foi terminada pela ré no mês de Novembro de 2018.

6. A partir do ano de 2009 e não obstante a aludida situação de reclusão, DD e a ré CC passaram a ter vida em comum, como se de marido e mulher se tratassem.

7. Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor do documento junto a fls. 27, com o timbre da Banco 1..., S.A., do qual se transcreve o seguinte excerto:

“Declaração

A pedido de uma das titulares da conta  ...70, FF, e conforme informou, para efeitos de tribunal, serve a presente para declarar que a cliente CC era autorizada a movimentar a conta identificada desde 2010-03-23 até 2011-03-17 e desde 2011-06-03 até 2014-12-12. A partir de 2014-12-12, a cliente CC passou à condição de co-titular até 2018-02-05, data do encerramento da conta.

..., 30 de Outubro de 2019 (…)”.

8. Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor do documento junto a fls. 28, com o timbre da Banco 1..., S. A., do qual se transcreve o seguinte excerto:

“Aditamento

Relativamente à declaração datada de 30 de Outubro de 2019 e a pedido de uma das titulares da conta  ...70, FF, (…) e conforme informou, para efeitos de tribunal, serve a presente para acrescentar a seguinte informação:

- A movimentação da conta à ordem acima mencionada por CC (…), nos períodos indicados na declaração emitida no dia 30/10/2019, inclui as contas associadas, nomeadamente ...20 – conta de depósito a prazo; ...78 – conta poupança; e ...51 – conta poupança.

..., 27de Novembro de 2019 (…)”.

9. Dá-se aqui por integralmente reproduzido o teor do documento junto a fls. 29, com o timbre da Banco 1..., S. A.. Em síntese, tal documento elenca os movimentos da conta  ...70 no período compreendido entre 11-5-2014 e 29-5-2014.

10. A 27-5-2014, foi outorgado o “Título de Compra e Venda”, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido (fls. 39 a 41). No referido título consta como compradora a ora ré, sendo o objecto de tal compra o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Civil, Predial, Comercial e Automóvel ... sob o n.º ...31/....

O preço declarado de tal compra ascendeu a € 90.000,00.

11. A conta acima referida foi aberta pelas autoras; contudo a ré, receando que as suas contas bancárias, por ser namorada do então recluso DD, pudessem ser afectadas, acordou com as autoras a abertura de tal conta.

12. Sem prejuízo do especificado infra, alguns dos valores depositados na referida conta pretendiam ajudar DD não apenas com as despesas do mesmo no decurso da sua reclusão, mas também com vista a ajudá-lo a recomeçar a vida, findo tal período de reclusão.

13. No momento da abertura da referida conta (15-12-2009), a ré depositou na mesma a quantia de € 9.000,00, que lhe pertencia (cfr. talão de depósito, junto pela ré a fls. 52, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido).

14. A 23-3-2010, as autoras depositaram a quantia de € 10.892,02, com vista a fazer face às despesas de DD (cfr. talão de depósito, junto pela ré a fls. 52 verso, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido), nomeadamente:

a. Entregas em numerário no estabelecimento prisional (documentos n.ºs 62 a 65 da contestação, cujo teor aqui se considera reproduzido).

b. Despesas diversas associadas ao próprio DD, nomeadamente com a aquisição de aparelho de correcção dentária, de vestuário e deslocações da ré para visitas no estabelecimento prisional, bem como despesas associadas à economia comum de ambos.

c. Despesas inerentes à frequência e à conclusão da licenciatura em ..., na Universidade ..., por parte de DD.

15. A ré procedeu a diversos depósitos, cujos respectivos talões constam de fls. 53 a 77 verso (documentos juntos com a contestação e identificados com os n.ºs 3 a 42), sendo que o teor dos mesmos aqui se considera integralmente reproduzido, no total de € 79.950,00.

16. Os aludidos depósitos foram efectuados por força do vencimento da ré, das ofertas monetárias efectuadas tanto pelo pai como pela mãe da mesma ré (documento n.º 43 junto com a contestação, a fls. 78, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido); da venda de eucaliptos proveniente de prédios rústicos integrados na herança da mãe da ré (€ 11.000,00); bem como da venda da casa onde inicialmente residira a ré, a qual foi pela mesma vendida em Março de 2014 (cfr. cópia da respectiva escritura pública, junta como documento n.º 44 da contestação, a fls. 78 verso a 80 verso, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido).

17. Em tal gestão da conta, a ré procedeu à concretização de diversas aplicações financeira, conforme consta dos documentos n.ºs 41,42, 45 a 61 juntos com a contestação, cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido.

18. Perante a possibilidade de DD beneficiar de saídas do Estabelecimento Prisional, bem como com a aproximação do fim da pena de prisão, a ré procedeu à venda da sua casa, conforme acima referido.

19. Uma vez que as economias da ré não eram suficientes para adquirir a casa acima identificada no ponto 10 dos factos provados, tal aquisição foi concretizada pelo recurso a todas as suas economias, bem como com o valor de € 35.000,00 disponibilizados pelo pai de DD – Sr. EE -.

20. Dá-se aqui por reproduzido o teor do documento bancário junto com a contestação com o n.º 42 (fls. 77 verso), o qual alude à transferência efectuada a 14-5-2014 – e acima referida no ponto 19 – no montante de € 35.000,00 por parte do Sr. EE.

21. As autoras tiveram conhecimento da aquisição da casa acima identificada no ponto 10 no decurso das negociações de compra da mesma, ou seja em dia não concretamente apurado, mas que antecedeu o dia 27-5-2014.».

2. - E foi julgado como não provado:

«(…) resultam como não provados quaisquer outros aspectos alegados nos articulados e acima não indicados, nomeadamente:

a) Que na conta acima referida e identificada pelo n.º  ...70 tivessem as autoras depositado dinheiro que não pertencesse a DD.».

B) Substância do recurso

Do não acatamento da anterior decisão sumária deste TRC e da inobservância do respetivo caso julgado, tendo em conta a autonomia/hierarquia das causas de pedir apresentadas e a natureza subsidiária do enriquecimento sem causa

Na anterior decisão singular deste TRC (decisão sumária datada de 11/07/2023), que transitou em julgado, foi conhecida a matéria recursiva da exceção perentória da prescrição (da ação de enriquecimento), exceção essa que havia sido julgada procedente na 1.ª instância, mas cuja sentença foi revogada pela Relação, que firmou julgamento [al.ª a) do dispositivo] no sentido da “improcedência da deduzida exceção da prescrição” ([6]).

No dispositivo da mesma decisão sumária de 11/07/2023 determinou-se ainda «(…) a baixa dos autos à 1.ª instância para cabal conhecimento do mérito da ação (atentas as respetivas causas de pedir).» [cfr. al.ª b) respetiva, com sublinhado aditado].

Por isso, ante o trânsito em julgado daquela decisão recursiva do TRC, importa, desde logo, em apreciação oficiosa da Relação ([7]), verificar se, tendo os autos baixado ao Tribunal a quo (para os efeitos concretamente determinados), o não conhecimento pela 1.ª instância, na sentença agora recorrida, da matéria de abuso/incumprimento de mandato/poderes de representação configura situação de não acatamento da prévia decisão do Tribunal superior e, desse modo, inobservância do respetivo caso julgado (tal como formado no processo), em prejuízo de uma das partes (as aqui AA./Recorrentes).

Vejamos.

Na fundamentação jurídica daquela prévia e vinculante decisão do Tribunal superior foi assim fundamentado ([8]): «(…) a ação de enriquecimento tem caráter subsidiário, sendo o último recurso disponibilizado pelo sistema jurídico ao empobrecido, em caso de locupletamento injustificado de outrem (…).».

E logo se prosseguiu, nesta senda:

«Perante a decisão tomada pelo Tribunal recorrido – de procedência da exceção perentória de prescrição, com decretada absolvição, por isso, da R. do pedido –, foram tidas por prejudicadas as demais questões suscitadas na ação, das quais aquele Tribunal, por isso, não conheceu, não entrando no conhecimento do mérito da pretensão das AA. (pedido e causa de pedir apresentados, designadamente, procedência, ou não, do direito de restituição por enriquecimento).

Julgada agora pela Relação improcedente a exceção da prescrição, necessário se torna conhecer de fundo em matéria de ação, designadamente quanto a tal direito de restituição por enriquecimento (mas não só).

(…)

Ora, no caso, como visto, o Tribunal recorrido limitou-se a conhecer da exceção da prescrição, não entrando no mérito da matéria da ação (quanto aos seus plurais fundamentos jurídicos), pelo que nenhum juízo operou quanto ao fundo da causa (pretensão das AA.), desde logo no que se prende ao direito à restituição por enriquecimento (…).

(…) estando por decidir o mérito da pretensão das AA., designadamente na vertente da subsidiária ação de enriquecimento, embora ainda haja, em primeiro plano, como não pode olvidar-se, a suscitada questão de mandato, a que expressamente aludia, como prioritária, o Mandatário das AA. em sede de audiência prévia (e que foi oportunamente suscitada na petição inicial).

Se a Relação, substituindo-se à 1.ª instância, fosse conhecer neste recurso de toda essa matéria de ação – o fundo multifacetado da causa –, deixaria prejudicado (ou seriamente limitado) o direito das partes ao duplo grau de jurisdição em matéria de recurso, saltando-se uma instância decisória.

Diversamente, se a 1.ª instância vier a conhecer, como deverá, da matéria por decidir (fundo/mérito da ação), as partes poderão ainda recorrer de apelação – para a Relação – do assim decidido, respeitando-se integralmente aquele princípio garantístico do duplo grau de jurisdição em matéria de recurso cível, sem excluir a possibilidade de ulterior recurso de revista (para o STJ), caso se verifiquem os respetivos pressupostos legais.

Em suma, no caso, à luz do disposto no art.º 665.º, n.º 2, do NCPCiv., é de entender haver obstáculo à apreciação do mérito da ação, no atual estado dos autos, pela Relação, devendo ser o Tribunal a quo a conhecer de tal mérito, para que às partes não fique vedado o ulterior recurso, uma vez decidida a matéria pela instância devida, para Relação, em obediência à regra/garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de recurso cível.

Termos em que, na procedência do recurso interposto, com revogação da decisão recorrida, baixarão os autos à 1.ª instância para conhecimento do mérito da ação (quanto às causas de pedir apresentadas).» (destaques aditados).

Ou seja, as AA. apresentaram – e bem – duas causas de pedir (autónomas), uma a título principal – aquela que se prende com a invocada matéria de abuso/incumprimento de mandato/poderes de representação –, e outra a título subsidiário, aqueloutra que se refere ao enriquecimento sem causa.

Por isso é que se deixou vincado na anterior decisão singular deste TRC que estamos no âmbito, subsidiariamente, da ação de enriquecimento, fundada, pois, na figura do enriquecimento sem causa, tendo como pano de fundo uma invocada relação de união de facto entre a R. e um familiar das AA. (respetivamente, filho e irmão destas, ao tempo em situação de reclusão em cumprimento de pena da prisão), o que, na versão das AA., motivou diversas atribuições patrimoniais/pecuniárias, de que viria a beneficiar a R. (permitindo-lhe adquirir e, assim, pagar o preço, de um prédio urbano, que é a sua atual casa de habitação), sem causa que o justifique, uma vez dissolvida a união de facto (separação).

E, quanto às linhas de compreensão mais salientes da figura do enriquecimento sem causa, exarou-se:

«Assim, no âmbito deste instituto, trata-se da verificação quanto a um injusto locupletamento, por destituído de causa justificativa, de uma parte à custa do património da outra, com o decorrente dever de restituição daquilo com que injustamente se enriqueceu – compreendendo tudo quanto se obteve à custa do(s) empobrecido(s) ou, não sendo possível a restituição em espécie, o valor correspondente (cfr. art.ºs 473.º e 479.º, ambos do CCiv.) –, independentemente da prática de um qualquer facto culposo ([9]).

Assim, o enriquecimento sem causa depende (cumulativamente) da verificação da existência de (i) um enriquecimento, (ii) que seja obtido à custa de outrem, (iii) faltando uma causa justificativa.

Em sede de enriquecimento sem causa, é pacífico que a vantagem em que o enriquecimento ([10]) se manifesta pode traduzir-se no evitar de uma despesa – por exemplo, evitar pagar certo montante de renda de casa por se utilizar uma casa de que se não paga renda ou de que se paga uma renda abaixo do valor locativo –, mas também na aquisição de um novo direito ou no acréscimo de valor de um direito já existente – a propriedade de um bem ou “a mais-valia trazida a um prédio por trabalhos nele efectuados” ([11]).

Essa vantagem, auferida por um sujeito, por repercutida no seu património, tem sempre de ocorrer para que haja enriquecimento sem causa, sendo suportada por outrem, com inerente, por regra, diminuição patrimonial (…).

Ponto é que o enriquecimento – à custa de outrem – se verifique e careça de causa justificativa, ou por nunca a ter tido ou por a ter perdido ([12]), tornando-se, por isso, injusto e, como tal, inaceitável para o direito.

Imprescindível é ainda a ausência de outro meio jurídicose a lei não faculta ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído –, pois que estamos perante obrigação com natureza subsidiária, como resulta do art.º 474.º do CCiv. ([13]).» (destaques aditados).

Desta feita, não poderia, pois, o Tribunal recorrido deixar de conhecer do mérito da matéria da ação “quanto aos seus plurais fundamentos jurídicos”, ou seja, à luz daquelas duas autónomas causas de pedir, começando, necessariamente, pela causa de pedir principal, para depois, se necessário, apreciar a causa de pedir subsidiária, em coerência, ademais, com a feição subsidiária substantiva do enriquecimento sem causa.

Quer dizer, tanto em termos adjetivos como substantivos, a ordem de conhecimento de meritis a prosseguir na sentença teria de ser a da prioritária apreciação da matéria do abuso/incumprimento de mandato/poderes de representação e só depois, em caso de improcedência deste fundamento da ação, a do subsidiário enriquecimento sem causa.

Doutro modo, logo se incorreria, no plano adjetivo, no não acatamento da anterior decisão do TRC e em inobservância, ante o trânsito ocorrido, do respetivo caso julgado formado.

E, no plano substantivo, na desconsideração do caráter subsidiário do enriquecimento sem causa, que não poderia ser reconhecido in casu sem determinação/definição quanto à prévia improcedência da substância da causa de pedir principal.

Dito de outro modo, a pretensão das AA. fundada no enriquecimento sem causa – visto o caráter subsidiário do instituto (no plano substantivo) e a natureza subsidiária da correspondente causa de pedir (no âmbito adjetivo) – somente poderia colher procedência se improcedesse a pretensão fundada na causa de pedir principal (abuso/incumprimento de mandato/poderes de representação).

Porém, como se torna evidente, na sentença em crise não se conheceu de tal causa de pedir principal, partindo-se, sem mais, para o conhecimento da matéria do enriquecimento sem causa, termos em que também não se atentou, salvo sempre o devido respeito, nas implicações do caráter subsidiário deste último instituto, que sempre impediriam a sua procedência sem afastamento (prévio) da pretensão fundada naquela causa de pedir principal/prioritária.

Concretizando.

Tendo em conta o objeto dos dois recursos sub judice, a matéria recursiva resumir-se-ia, grosso modo, à problemática do enriquecimento sem causa (âmbito sobre que incidiu a sentença agora recorrida, ao que as partes não objetaram, em termos de definição do quadro recursivo interposto).

De fora da esfera de conhecimento da Relação ficaria, pois, definitivamente, a questão do mandato/incumprimento de poderes de representação.

Embora a sentença não se tenha pronunciado sobre ela, esta parte da decisão não foi impugnada, nem foi arguida a nulidade por omissão de pronúncia (neste particular), pelo que se trataria de matéria que já não poderia ser discutida, nem conhecida. Aliás, não foi sequer invocada nos recursos sob espécie.

E sobre a absolvição por responsabilidade civil/danos não patrimoniais também as AA. nada esgrimem/argumentam nas suas conclusões, limitando-se, vagamente, a pedir a procedência da ação. É, por isso, também matéria sobre que não versa a apelação das AA./Recorrentes.

Porém, atendendo à ordem das duas distintas/autónomas causas de pedir, em linha com o princípio da subsidiariedade do enriquecimento sem causa, a obrigar, como visto, ao conhecimento prévio da questão do mandato/incumprimento de poderes de representação – sem o que não poderia proceder a ação (subsidiária) de enriquecimento –, como tudo, aliás, resulta da fundamentação e do dispositivo da anterior decisão singular do TRC, a qual transitou em julgado, impondo à 1.ª instância o conhecimento prioritário da matéria de tal mandato (causa de pedir principal), ocorre ofensa/inobservância ao caso julgado assim formado no processo.

Com efeito, o caso julgado – formado pela decisão, na conjugação do respetivo dispositivo com os seus fundamentos, na parte em que estes sejam antecedente lógico necessário daquele ([14]) – é, como exceção dilatória, de conhecimento oficioso da Relação [art.ºs 577.º, al.ª i), e 578.º, ambos do NCPCiv.].

Assim sendo, o enriquecimento sem causa nunca poderia proceder sem prévia improcedência do pedido fundado na causa de pedir atinente ao mandato – que, manifestamente, ficou por apreciar –, pelo que ocorre, nessa perspetiva, inevitável erro de julgamento de direito.

Termos em que a decisão recorrida terá de ser revogada, para que a 1.ª instância conheça da causa de pedir (principal) e pedido referentes ao invocado incumprimento de mandato e só depois, em caso de improcedência desta pretensão, conhecer da causa de pedir e pedido subsidiários, os referentes ao enriquecimento sem causa.

Ficando prejudicadas, como assim se verifica, as demais questões recursivas suscitadas, resta, pois, revogar a sentença recorrida, para que seja proferida nova sentença, no prosseguimento dos autos, que aprecie, desde logo, a dita causa de pedir principal, de cuja improcedência dependerá a apreciação da causa de pedir subsidiária (enriquecimento sem causa).

Em suma, procedem, nesta vertente apenas, os recursos, ficando os mesmos prejudicados quanto ao mais, razão pela qual as custas de ambas as apelações serão suportadas por ambas as partes, na proporção de metade (medida correspondente ao decaimento de cada uma delas).

(…)


***

V – Decisão

Pelo exposto, julgando-se em parte procedentes as apelações, revoga-se a sentença recorrida, para que seja proferida nova sentença, no adequado prosseguimento dos autos, que aprecie em plenitude as causas de pedir da ação (desde logo, a causa de pedir principal, de cuja improcedência, a ocorrer, dependerá a apreciação da causa de pedir subsidiária).

Custas das apelações por ambas as partes, na proporção de metade (medida correspondente ao respetivo decaimento) – cfr. art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do NCPCiv..

Coimbra, 09/04/2024

Escrito e revisto pelo relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.

Vítor Amaral (relator)

Fernando Monteiro

Luís Cravo



([1]) Segue-se, no essencial, nesta parte, por economia de meios, o relatório da anterior decisão sumária deste TRC.
([2]) Cujo teor se deixa transcrito.
([3]) Cujo teor se deixa transcrito.
([4]) Excetuando questões de conhecimento oficioso, desde que não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([5]) Caso nenhuma das questões resulte prejudicada pela decisão das precedentes.
([6]) Logo se constata, por isso, a inutilidade do conteúdo das al.ªs a) a j) das conclusões das AA./Apelantes, onde estas argumentam ainda sobre a problemática (já decidida e transitada em julgado) da prescrição. Esta matéria resulta, pois, definitivamente julgada pela dita decisão sumária, razão pela qual não foi sequer tratada – nem o poderia ser – na sentença agora recorrida (a de 10/10/2023, a fls. 352 e segs. do processo físico). Interessam, então, ao presente recurso as al.ªs l) e segs. das conclusões daquelas AA./Recorrentes.
([7]) À luz do disposto nos art.ºs 577.º, al.ª i), e 578.º, ambos do NCPCiv..
([8]) Quanto ao ora relevante e com sublinhado aditado.
([9]) Já, por exemplo, na obrigação indemnizatória por responsabilidade civil extracontratual está, diversamente, em causa a reparação de um dano, causado a outrem, decorrente de facto ilícito e culposo, como tal imputável ao lesante (art.º 483.º, n.º 1, do CCiv.).
([10]) Visto como um enriquecimento real ou patrimonial, traduzindo-se este último na “diferença, para mais, produzida na esfera económica do enriquecido e que resulta da comparação entre a sua situação efectiva (situação real) e aquela em que se encontraria se a deslocação se não houvesse verificado (situação hipotética)”, sendo certo que, nesta sede, “a obrigação de restituir se pauta pelo efectivo alcance das vantagens no património do enriquecido” – assim M. J. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 11.ª ed., Almedina, Coimbra, 2008, ps. 492 e seg..
([11]) Cfr. Almeida Costa, op. cit., p. 492.
([12]) Cfr., por todos, Almeida Costa, op. cit., p. 499, e Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit. [Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1987], p. 454.
([13]) Ver ainda Almeida Costa, op. cit., p. 501.
([14]) Cfr., inter alia, o recente Ac. TRC de 20/02/2024, Proc. 829/23.1T8ACB-A.C1 (Rel. Henrique Antunes), em www.dgsi.pt, em cuja fundamentação pode ler-se: «No tocante aos limites objectivos – i.e., ao quantum da matéria que foi apreciada pelo tribunal que recebe o valor da indiscutibilidade do caso julgado – este abrange, decerto, a parte decisória do despacho, da sentença ou do acórdão, i.e., a conclusão extraída dos seus fundamentos (art.º 607.º. n.º 3, do CPC). O problema está, porém, em saber se – de harmonia com uma concepção restritiva, apenas cobre a parte decisória da sentença ou antes se estende – de acordo com uma concepção ampla – a toda a matéria apreciada, incluindo os fundamentos da decisão. // Apesar do carácter espinhoso do problema, tem-se por preferível uma concepção intermédia, para o qual se orienta, ao menos maioritariamente, a jurisprudência: o caso julgado abrange todas as questões apreciadas que constituam antecedente lógico indispensável da parte dispositiva da sentença. Realmente, como toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos de facto e de direito, o caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos fundamentos. Assim, reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado, não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independente dos respectivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos – e atinge esses fundamentos enquanto pressupostos dessa decisão. Ou noutra formulação: os pressupostos da decisão são cobertos pelo caso julgado – enquanto pressupostos da decisão, ficando fora do caso julgado tudo o que esteja contido na sentença, mas que não seja essencial ao iter iudicandi.».