ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
ACÇÃO DE DEMARCAÇÃO
CAUSA DE PEDIR
Sumário


1. A causa de pedir nas ações de reivindicação consiste nos factos de onde resulta o direito real sobre o prédio objeto do litígio e que o mesmo está sob o domínio factual de terceiro; o respetivo pedido consiste na condenação do réu a entregar a coisa ou parte da coisa ao autor.
2. Nas ações de demarcação a causa de pedir é formada pela factualidade relativa à existência de incerteza acerca da linha de fronteira entre prédios, incerteza essa que pode resultar da divergência entre os proprietários, mesmo que cada um deles, subjetivamente, esteja convencido do local por onde essa linha passa; o pedido consiste em impetrar a fixação da linha divisória entre os prédios.
3. Na ação de demarcação o autor deve indicar, salvo se não lhe for possível, por onde passa a linha divisória entre os prédios.
4. Se o autor não alega na petição privação da coisa e pede a sua entrega, a ação não é de reivindicação.

Texto Integral

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Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra,

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Juiz relator………….....Alberto Augusto Vicente Ruço

1.º Juiz adjunto……….João Manuel Moreira do Carmo

2.º Juiz adjunto……….José da Fonte Ramos


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(…)

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Recorrentes….………………..AA e BB.

Recorridos……………………..CC e DD.


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I. Relatório

a) O presente recurso insere-se numa ação que os Autores denominam de «acção de demarcação» e vem dirigido à decisão de 29 de novembro de 2023 que absolveu os réus da instância com fundamento na ineptidão da petição inicial, por existir contradição entre o pedido e a causa de pedir.

Transcreve-se um excerto da decisão que se afigura conter o essencial da argumentação.

«(…) Ou seja, os Réus não põem em causa que os Autores são efectivamente donos de um determinado prédio, apenas colocam em causa a latitude do mesmo na sua concreta extensão ou abrangência tal como configurada por estes.

Basta atentar nos factos alegados pelos Autores, acima já sublinhados, destacando-se os seguintes:

Que o Autor, no exercício do seu legítimo direito como proprietário, realizou, no final do mês de Março de 2022, uma comunicação prévia para construção de um muro de estrema na linha limítrofe de confrontação com o prédio dos Réus, que foi autorizado pelo Município”;

- Que, todavia, quando se preparava para construir o referido muro, no dia 27 de Abril do presente ano, os Réus colocaram na linha de construção um veículo ligeiro (Marca Peugeot, matrícula ..-..-UP), impedindo a realização dos trabalhos;

- Que os Réus tinham “avançado” a estrema poente do seu prédio (no correspondente à estrema nascente do prédio do Autor) para lá da linha estabelecida pelos evidentes sinais existentes no terreno, abarcando uma parte do prédio do Autor;

- dissenso que tem ainda impacto em parte da edificação que os Réus parecem pretender erguer – nomeadamente em abertura de janelas e portas, considerando a sua distância em relação à estrema;

- Que este litígio carece de solução judicial, atento o impedimento de construção de muro delimitador e a posição tomada pelos Réus no procedimento administrativo identificado.

Ou seja, os Autores invocam ser proprietários de determinado prédio abrangente de determinado espaço ou extensão que alcança determinada linha de estrema que entendem como correcta e que os Réus praticaram actos que colocam em causa tal propriedade.

Por seu turno, os Réus contrapõem que estes é que são os proprietários desse mesmo espaço de terreno.

Isto é, cada uma das partes alega ser a exclusiva proprietária de determinada faixa/parcela de terreno localizada na zona de confrontação dos prédios de cada uma das partes, salientando-se que os Réus, em sede de Reconvenção, pedem a condenação dos Autores a reconhecerem tal circunstância.

Nesta sequência, a presente acção consubstancia uma verdadeira acção de reivindicação e não de demarcação, isto é, cada uma das partes alega conhecer perfeitamente onde se localiza a estrema da sua propriedade.

Seguindo de perto o decidido no já citado Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, os pedidos (de demarcação) e a causa de pedir (de reivindicação) são intrínseca e substancialmente incompatíveis entre si, na medida em que um (reivindicação) pressupõe que a discussão incida sobre o título de aquisição dos Autores sobre a extensão do prédio na sua materialidade – o seu direito de propriedade, integra a causa de pedir na ação de reivindicação, pelo que o thema probandum e decidendum vai incidir, necessariamente, sobre os factos que o mesmo alega com vista à demonstração da aquisição desse seu direito de propriedade sobre aquele prédio (e parcela de terreno que reivindica e que alega fazer parte integrante daquele), enquanto o outro (demarcação) pressupõe um título de aquisição de propriedade que se afirma indiscutido entre as partes, pelo que o direito de propriedade dos Autores e dos Réus sobre os respetivos prédios não integra a causa de pedir da ação, não indo o thema probandum e decidendum incidir sobre esses títulos de aquisição, mas apenas sobre a relevância deles em relação aos prédios, designadamente, tratando-se de usucapião, vai-se discutir a extensão do prédio possuído pelos Autores, designadamente, se a extensão da posse exercida pelos Autores se estende à totalidade da faixa de terreno a demarcar ou apena a parte dela, por existir um pretenso estado de incerteza sobre essa extensão.

Quanto à causa de pedir não há da parte dos Autores qualquer estado de incerteza quanto à localização exacta da extensão do prédio, contraditoriamente com a causa de pedir, ao formular o pedido de demarcação pretendem os Autores que se proceda à necessária demarcação entre o seu prédio e o dos Réus.

Deste modo, os pedidos formulados pelos Autores e a causa de pedir invocada são intrínseca e substancialmente incompatíveis, na medida em que se excluem mutuamente.»

b) Recorrem os Autores, sendo as conclusões do recurso as seguintes:

«1ª O presente recurso visa a discussão e inerente impugnação de direito da sentença recorrida na sua integralidade, na medida em que decidiu absolver os réus da instância em virtude de considerar procedente a exceção de ineptidão da petição inicial, nos termos previstos no art. 186º nº 2 b) do CPC, redundando na nulidade de todo o processado e na condenação dos autores nas custas do processo.

2ª  Com efeito, os autores invocaram na sua petição inicial que:

1. São proprietários de um prédio;

2. Os réus são proprietários de outro prédio;

3. Tais prédios estão cabalmente identificados;

4. Tais prédios são confinantes;

5. E, por fim, que existe comprovadamente um litígio/diferendo quanto à localização exata da estrema que os divide.

3ª  A causa de pedir de uma ação assim conformada é, como é evidente, a conformação e sanação da dúvida e diferendo acerca dos limites entre os referidos prédios – ac ausa típica de uma ação de demarcação.

4ª   Sucede que os autores têm, no caso, uma posição quanto ao local onde se deve encontrar a linha delimitadora que pediram ao Tribunal a quo que determinasse, e, por isso, a afirmaram e fundamentaram na petição inicial, terminando com o respetivo pedido de demarcação.

5ª Mas, note-se que nem os autores contestaram ou puseram em causa que os réus são proprietários do prédio identificado no ponto 12º da petição inicial, nem, por seu turno, os réus contestaram ou puseram em causa que os autores são proprietários do prédio indicado no ponto 1º da petição inicial, contestando as partes reciprocamente o limite do seu respetivo prédio na confrontação que fazem um com o outro.

6ª Assim, nas ações de demarcação não está nunca posto em causa que o autor é proprietário de um prédio, o réu é proprietário de outro distinto, e que ambos são confinantes, estando em causa, todavia, os limites desses prédios em relação um ao outro.

7ª Existe, de facto, uma diferença entre a demarcação e a reivindicação de parte de um prédio, em especial quando exista a mesma relação de cofinancia que faz funcionar o direito de demarcação.

8ª Mas essa distinção é particularmente fácil de apreender buscando a lógica e fundamento do direito de demarcação: haverá ação de demarcação sempre que ambas as partes litigantes, sendo donas de prédios confinantes, se arroguem que uma determinada parcela de terreno já faz parte de um dos prédios cuja propriedade reciprocamente reconhecem entre si, ainda que não com a mesma extensão.

9ª Essa distinção não se identifica, nem se poderá identificar, como o faz o Tribunal recorrido, sob pena de uma demarcação poder sempre ser considerada uma reivindicação quando não esteja apenas em causa a incerteza objetiva relativa à localização da estrema, ou seja, um clima de mínimo entendimento entre as partes em litígio.

10ª Em verdade, uma demarcação, quando assume contornos litigiosos – em que, como no caso vertente, ambas as partes têm posições definidas quanto àquela que deve, para si, ser a localização da estrema – é sempre, em boa verdade, uma reivindicação simultânea de uma parcela de terreno entre dois confinantes que se digladiam (rectius, concorrem) por ela, dois prédios que se batem pela sua integração neles.

Por isto,

11ª A posição do Tribunal a quo é absoluta e insanavelmente contraditória, já que na mesma sentença se afirma perentória e simultaneamente que:

I. “Deste modo, considerando a causa de pedir analisada à luz das referidas considerações jurídicas constatamos, sempre com o devido respeito, que no caso em apreciação não está propriamente em causa o direito de propriedade dos Autores sobre um determinado prédio, que, aliás, os Réus não contestam, mas antes, mais especificamente, está em causa a própria extensão ou área do imóvel, a sua descrição ou materialidade – saber se determinada faixa/parcela de terreno com a configuração concretamente alegada pelos Autores pertence ao prédio dos Autores ou ao prédio dos Réus.” (negrito e sublinhado nossos)

II. “Ou seja, os Réus não põem em causa que os Autores são efectivamente donos de um determinado prédio, apenas colocam em causa a latitude do mesmo na sua concreta extensão ou abrangência tal como configurada por estes.” (negrito e sublinhado nossos)

III. “Isto é, cada uma das partes alega ser a exclusiva proprietária de determinada faixa/parcela de terreno localizada na zona de confrontação dos prédios de cada uma das partes, salientando-se que os Réus, em sede de Reconvenção, pedem a condenação dos Autores a reconhecerem tal circunstância.” (negrito e sublinhado nossos)

12ª Ou seja, o Tribunal recorrido admite dados, no próprio texto decisório da sentença recorrida que são contraditórios com a decisão que toma a final, pois que se tratam daquela que é a conformação típica de uma ação de demarcação, com uma única diferença em relação ao racional por si adoptado: na posição das partes há uma controvérsia em relação à localização da linha delimitadora, e não uma mera incerteza.

13ª Neste ponto, erra rotundamente o Tribunal recorrido, e contradiz-se de tal ordem a gerar a nulidade da sentença recorrida, nos termos do disposto no art. 615º nº 1 c) do CPC, nulidade que aqui expressamente se invoca para todos os efeitos legais. Mais,

14ª Mesmo que assim se não entenda, a posição assumida pelo Tribunal a quo é expressa e legalmente contraditada pela previsão do nº 2 do art. 1354º do CC, pois que a definição do “terreno em litígio” aí prevista nunca se consegue fazer sem existir uma posição prévia de cada parte em relação à localização mais ou menos exata da estrema – é a diferença entre a posição concreta do autor e a do réu que corresponde ao conceito legal ali previsto de “terreno em litígio”, e que será objeto, em última linha, da regra salomónica ali prevista.

15ª Ou seja, a previsão do nº 2 do art. 1354º implica necessariamente, sem margem para dúvida, que o legislador consagrou a hipótese de demarcação em que exista já controvérsia e posições distintas bem definidas entre as partes quanto à linha delimitadora que deverá ser adotada.

16ª Neste sentido se pronunciam, entre muitos outros, os Acórdãos da Relação de Coimbra de 15/10/2013 (MARIA DOMINGAS SIMÕES), da Relação de Guimarães de 19/11/2020 (MARIA JOÃO MATOS) e de 01/06/2017 (ELISABETE VALENTE), e, com especial referência, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/05/2012 (FERNANDO BENTO), todos disponíveis em www.dgsi.pt.

17ª Pelo que o Tribunal recorrido violou, por erro de interpretação e aplicação, o disposto nos arts. 1353º e 1354º do CC e ainda o disposto no art. 186º nº 2 b) do CPC, errando, por isso, na conclusão de que se verificou, no caso concreto, incompatibilidade ou contradição entre pedido e causa de pedir, o que não existe.

18ª Por isto, por violadora da lei e contraditória, deve, em qualquer caso, a decisão recorrida ser revogada e substituída por uma que julgue improcedente a exceção de ineptidão da petição inicial, e determine, em consequência, o prosseguimento dos autos

Por cautela de patrocínio, subsidiariamente e sempre sem conceder,

19ª Mesmo que, por hipótese que se coloca no plano académico, tal alegação não fosse procedente, sempre se terá, pelo menos, que admitir, que tal relação de inadequação entre o pedido e a causa de pedir sempre teria que ser considerada sanável, na esteira da jurisprudência do Acórdão da Relação de Évora de 17/06/2021 (TOMÉ DE CARVALHO).

20ª Assim, o Tribunal recorrido violou, por erro de interpretação e aplicação, o seu dever de gestão processual estabelecido no nº 2 do art. 6º e nos n.º os 2 e 3 do art. 590º do Código de Processo Civil, violando ainda o disposto no art. 2º nº 2 do CPC ao assumir que mantém uma dúvida quanto ao tipo de ação que deve tutelar o litígio em concreto sem decidir num sentido ou no outro.

21ª Por isso, mesmo que não seja julgado procedente o recurso no seu pedido essencial de revogação integral da decisão recorrida, deverá, pelo menos, o recurso proceder, revogando-se parcialmente a decisão recorrida, na parte em que julgou a exceção de ineptidão como insuprível no caso concreto e absolveu os réus da instância, sendo, em consequência, substituída por uma que convide os autores a suprir a sanar a invalidade, indicando qual a ação que cabe à tutela dos direitos invocados pelos autores, nessa sequência se determinando o prosseguimento dos autos.

TERMOS EM QUE, Deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, e, em consequência, na procedência da nulidade invocada ou da impugnação de direito realizada, devendo a sentença recorrida ser integralmente revogada e substituída por uma que julgue improcedente a exceção de ineptidão da petição inicial, e determine, em consequência, o prosseguimento dos autos.

Por cautela de patrocínio, subsidiariamente e sempre sem conceder,

Deverá ser revogada parcialmente a decisão recorrida, na parte em que julgou a exceção de ineptidão como insuprível/insanável no caso concreto e absolveu os réus da instância sem prévio convite ao aperfeiçoamento, sendo, em consequência, substituída por uma que convide os autores a sanar a eventual inadequação do pedido, indicando qual a concreta ação que cabe à tutela dos direitos invocados pelos autores, nessa sequência se determinando o prosseguimento dos autos.»

c) Os Réus contra-alegaram pugnando pela manutenção da decisão.

II. Objeto do recurso.

O presente recurso coloca as seguintes questões:

1 -  Nulidade da sentença, nos termos invocados nas conclusões 12.ª e 13.ª.

2 - Saber se a petição inicial é inepta por conter uma contradição entre a causa de pedir e o pedido.

III. Fundamentação

a) Factualidade processual relevante

É a que resulta do relatório que antecede.

b) Apreciação das questões objeto do recurso

(I) Nulidade da sentença.

Os recorrentes alegam que o tribunal recorrido admite no próprio texto da sentença recorrida dados factuais que são típicos da ação de demarcação, como é a controvérsia entre as partes acerca da localização da linha delimitadora entre os dois prédios, mas depois conclui que a petição não configura uma ação de demarcação, mas sim de reivindicação, o que é contraditório e gera a nulidade da sentença recorrida, nos termos do disposto no artigo 615.º n.º 1, al. c), do CPC.

Não procede esta arguição.

Com efeito, os fundamentos da sentença não estão em oposição com o respetivo dispositivo, pois, lendo os fundamentos, os mesmos conduzem ao dispositivo.

Improcede a nulidade invocada.

(II)  Vejamos se ocorre contradição entre a causa de pedir e o pedido.

Afigura-se que não existe tal contradição pelas razões que a seguir se indicam.

 (1) Antes de proceder à distinção entre a ação de demarcação e a ação de reivindicação, vejamos como estava estruturada a ação de demarcação no anterior Código de Processo Civil, na versão anterior à reforma do processo civil realizada pelo DL n.º 329‐A/95, de 12 de dezembro, diploma este que suprimiu o processo especial previsto para a ação de demarcação.

Até ao momento desta reforma a ação de demarcação, juntamente com outras, como, por exemplo, a ação de prevenção contra o dano, de expropriação por utilidade particular, mudança de servidão e divisão de coisa comum, seguia o processo especial previsto nos artigos 1052.º e seguintes do Código de Processo Civil.

Havia uma fase comum a todas estas ações, a qual se destinava a averiguar se efetivamente se verificava a situação de facto carecida de intervenção judicial. No caso da ação de demarcação, esta primeira fase destinava-se a averiguar se existiam dois prédios confinantes e se a linha de estrema entre ambos não estava definida, sendo, portanto, incerta a sua localização.

Por conseguinte, nos termos do pretérito artigo 1053.º do Código de Processo Civil, invocada esta causa de pedir na petição, seguia-se a citação do réu e este podia tomar duas atitudes.

Uma delas consistia em contestar a necessidade da demarcação e, neste caso, o processo seguia os trâmites do processo declarativo, ordinário ou sumário consoante o valor, para se decidir se havia ou não havia necessidade de demarcação (n.º 1 do artigo 1053.º).

Se se concluísse que não havia necessidade de demarcação o processo terminava, sem mais qualquer ato; se, pelo contrário, se concluísse que era um caso carecido de demarcação, o processo avançava para a segunda fase.

O mesmo sucedia se não tivesse havido contestação do Réu, o que implicava igualmente o reconhecimento de que existia uma situação predial carecida de demarcação.

Em que consistia a segunda fase?

Se existissem títulos com idoneidade para determinar a linha divisória entre os prédios, as partes apresentavam os títulos e procedia-se à nomeação de peritos que iriam ponderar a situação e proceder à demarcação sendo o resultado desta diligência notificado às partes – n.º 1 do artigo 1054.º e n.º 1 do artigo 1058.º do Código de Processo Civil.

Se as partes nada dissessem a demarcação era homologada pelo juiz – n.º 2 do artigo 1054.º.

Se alguma das partes deduzisse oposição à demarcação indicada pelos peritos, seguiam-se os trâmites do processo declarativo, ordinário ou sumário consoante o valor – n.º 2 do artigo 1054.º.

Não havendo títulos ou sendo estes insuficientes para determinar os limites dos prédios, as partes eram convocadas para comparecerem no local onde, com a ajuda dos peritos se procurava obter o acordo delas quanto ao local da linha divisória – n.º 2 do artigo 1058.º do Código de Processo Civil.

Se fosse conseguido o acordo, este era homologado pelo juiz e o processo terminava.

Na ausência de acordo procedia-se do seguinte modo:

(a) Cada um dos interessados podia indicar os pontos por onde entendia dever fazer-se a divisão com base na posse ou outros meios de prova, tendo a faculdade de contraditar a linha discordante apresentada por outros, seguindo-se os trâmites do processo declarativo, ordinário ou sumário consoante o valor («3. Não sendo possível o acordo, observar-se-á o seguinte: a) Qualquer dos interessados pode, dentro de dez dias, indicar os pontos por onde deve passar a linha divisória, com base na posse ou outro meio de prova; b) Os interessados que não tenham feito indicação ou que a tenham feito em termos diferentes da fornecida pelos outros são notificados para contestar nos dez dias seguintes» -  n.º 3 do artigo 1058.ºdo CPC).

(b) Se apenas fosse apresentada uma única linha divisória não contestada esta era homologada.

(c) Havendo contestação ou tendo sido apresentadas linhas diferentes seguiam-se os trâmites do processo declarativo, ordinário ou sumário consoante o valor.

(d) Se nenhuma das partes indicasse qualquer linha o terreno em litígio era dividido em partes iguais – al. e) do n.º 3 do artigo 1058.º do Código de Processo Civil.

Havendo necessidade de cravar marcos os peritos procederiam a essa diligência – n.º 4 do artigo 1058.º do Código de Processo Civil.

Face a esta tramitação pode ver-se que as partes deviam alegar o seguinte:

– Ou a linha divisória entre os prédios (cada parte indicava uma linha, podendo, no entanto, existir acordo).

– Ou quando não a indicavam, por não saberem onde se situava, sempre tinham de identificar a faixa de terreno litigiosa que seria dividida em partes iguais, ou seja, tal faixa teria de ser localizada fisicamente no terreno, e as partes tinham de indicar onde ela começava e acabava fisicamente no terreno, sob pena de não ser possível dividir o que quer que fosse em duas partes iguais.

Prudentemente, o processo especial previsto para a ação de demarcação, nos artigos 1052.º e seguintes do pretérito Código de Processo Civil, indicava às partes os passos que deviam dar para conseguirem atingir os objetivos da demarcação.

Tais indicações desapareceram da atual lei de processo, como se disse, com a reforma do processo civil de 1995, a qual extinguiu este processo especial, pelo que atualmente as partes não recebem qualquer indicação da lei processual e não raro o autor não indica na petição nem a linha divisória, nem identifica fisicamente a faixa de terreno em litígio.

Resulta do exposto que o Autor, no âmbito do anterior regime processual civil devia indicar, salvo se não lhe fosse possível, os pontos por onde passava a linha divisória entre os prédios.

O mesmo deve continuar a fazer-se, uma vez que a lei substantiva é a mesma (cfr. artigo 1354.º do Código Civil).

Aliás, as partes sempre têm de indicar tal linha, pois em caso de non liquet sobre a linha divisória, o tribunal tem de repartir em duas partes iguais, entre as partes, a faixa litigiosa, mas, para isso ser possível, é necessário que cada parte indique uma linha diferente da outra, repartindo-se o trato de terreno compreendido entre ambas as linhas.

É o que resulta do artigo 1354.º (Modo de proceder à demarcação) do Código Civil, onde se determina que «1. A demarcação é feita de conformidade com os títulos de cada um e, na falta de títulos suficientes, de harmonia com a posse em que estejam os confinantes ou segundo o que resultar de outros meios de prova.

2. Se os títulos não determinarem os limites dos prédios ou a área pertencente a cada proprietário, e a questão não puder ser resolvida pela posse ou por outro meio de prova, a demarcação faz-se distribuindo o terreno em litígio por partes iguais.

3. Se os títulos indicarem um espaço maior ou menor do que o abrangido pela totalidade do terreno, atribuir-se-á a falta ou o acréscimo proporcionalmente à parte de cada um.»

(2) Como acabou de se dizer, a anterior lei processual determinava que, em certos casos, cada uma das partes devia indicar por onde passava a linha divisória entre os prédios e, em regra, as partes divergiam quanto à respetiva localização.

Deste modo, não se afigura procedente a ponderação feita na decisão recorrida no sentido de que os Autores, ao indicarem por onde entendem que passa a linha divisória, estão a invocar uma causa de pedir que é a adequada a uma ação de reivindicação, mas não a uma ação de demarcação.

Ora, não tem de se concluir desse modo e o regime anterior mostra que não é assim, isto é, o facto do Autor indicar por onde entende que passa a linha divisória não implica que se qualifique a ação como de reivindicação.

Vejamos, de seguida o que distingue uma ação de demarcação de uma outra de reivindicação.

 (3) Pires de Lima e Antunes Varela referiram que «Se as partes discutem o título de aquisição, como se, por exemplo, o autor pede o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a faixa ou sobre uma parte dela, porque a adquiriu por usucapião, por sucessão, por compra, por doação, etc., a acção é de reivindicação. Está em causa o próprio título de aquisição. Se, pelo contrário, se não discute o título, mas a relevância dele em relação ao prédio, como, por exemplo, se o autor afirma que o título se refere a varas e não a metros ou discute os termos em que deve ser feita a medição, ou, mesmo em relação à usucapião, se não discute o título de aquisição do prédio de que a faixa faz parte, mas a extensão do prédio possuído, a acção é já de demarcação (…) Esta é, pois, como dizem alguns autores, uma acção de acertamento ou de declaração da extensão da propriedade, sem que estejam em causa os títulos de aquisição» - Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª Edição, pág. 199.

Cunha Gonçalves sustentou que «…sempre que haja debate sobre a propriedade de certa faixa de terreno confinante e sobre os títulos em que se baseia, a acção é de reivindicação» - Tratado de Direito Civil, Vol. XII, Coimbra Editora, 1937, pág. 135.

Nas palavras de Rita Maria Cruz Gama, «Em suma, a atuação do direito de demarcação está sempre aberta desde que existam proprietários distintos com prédios adjacentes entre si e não exista uma linha divisória entre eles – sendo essa linha incerta, desconhecida, controversa, ou simplesmente não se encontre sinalizada ou marcada no próprio terreno» - Ação de Reivindicação e Ação de Demarcação: Um Confronto Entre Duas Ações (2023), pág. 59. Dissertação de mestrado consultável em https://estudogeral.uc.pt/handle/10316/111020.

No mesmo sentido, o acórdão do Tribunal da Relação Porto, de 16 de janeiro de 2006, no processo identificado com o n.º 0554858:

«(…) V - Na acção de demarcação devem as partes indicar, caso disponham de elementos para tal, quer resultantes dos títulos, quer de outros elementos de prova, a linha divisória pela qual deve ser feita a demarcação, ou seja, por onde devem ser fixados os limites dos prédios».

Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 14 de fevereiro de 2006, no processo n.º 4315/05:

«(…) 2. Sendo complexa a causa de pedir na acção de demarcação consistindo na existência de prédios confinantes, de proprietários distintos e de estremas incertas ou divididas, o autor, nessa acção, terá que alegar factos concretos em ordem a identificar o traçado ou linha divisória entre prédios, ou os pontos por onde deve passar a linha divisória.»

Bem como o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12 de fevereiro de 2009, no processo n.º 288/2009-6:

«I. A acção de demarcação não pode confundir-se com a acção de reivindicação, apresentando-se, em termos gerais, como critério de distinção entre as duas acções a existência de um conflito entre prédios ou a existência de um conflito acerca do título, ainda que, em determinadas situações, o recurso a uma ou a outra das acções possa conduzir ao mesmo resultado;

II. O recurso à acção de demarcação deverá sempre ter lugar nos casos em que nenhum dos proprietários sabe quais são os limites dos prédios confinantes;

III. Também poderá ter lugar se cada um dos proprietários pensa saber quais os limites dos prédios, mas se aqueles estão em divergência quanto a esses limites. Porém, na mesma hipótese também qualquer deles poderá recorrer, antes, à acção de reivindicação, se invocar que o outro está a lesar o seu direito de propriedade.

IV. Igualmente poderá recorre-se à acção de demarcação se um dos proprietários não tem dúvidas e veda o seu prédio ou coloca marcos, contra vontade do proprietário vizinho que não aceita a marcação, por nessa situação resultarem dúvidas quanto aos limites dos prédios. Mas, da parte do proprietário que não manifestou dúvidas também poderá recorrer à acção de reivindicação.

V. Muito embora sejam distintas as acções de demarcação e de reivindicação poderão cada uma delas em determinadas situações ser utilizadas indistintamente na prossecução do mesmo objectivo de circunscrever determinada propriedade aos seus justos e claros limites.»

(4) Não se afigura que o critério da «discussão do título de aquisição», para identificar a ação de reivindicação e distingui-la da ação de demarcação, seja o mais adequado.

Com efeito, o que carateriza a ação de reivindicação é o pedido de entrega da coisa, no seu todo ou apenas em parte, como se vê pelo disposto no n.º 1 do artigo 1311.º do Código Civil: «O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.»

Como referiu o Prof. Oliveira Ascensão, «Do art. 1311.º/1 não resulta sequer que o conceito de reivindicação pressuponha o pedido de reconhecimento do domínio. A lei não pode impor qualificações doutrinárias nem definições.

A reivindicação é a acção correspondente à pretensão substantiva do proprietário. Esta implica apenas o pedido de entrega da coisa» - Acção de Reivindicação. Revista da Ordem dos Advogados, Ano 57. Vol. II, pág. 520.

Foi este o critério seguido no Acórdão do STJ de 10 de abril de 1986, onde se ponderou que «O direito de demarcação supõe a incerteza sobre a linha divisória entre dois prédios contíguos, pertencentes a proprietários diferentes, por falta de sinais exteriores indicativos das estremas de cada prédio. (…) Através da ação de reivindicação (…) pretende-se o reconhecimento do direito de propriedade sobre a coisa em litígio e a sua restituição» - Boletim do Ministério da Justiça n.º 356, pág. 288.

E, mais adiante, «A pretensão do autor consiste, não na restituição de todo ou parte do prédio com base no seu direito de propriedade, mas na definição da linha divisória do seu prédio na parte não demarcada com cerca, em relação aos prédios confinantes, pelo que a ação apropriada é a acção de demarcação» - pág. 289.

Ou seja, a causa de pedir na ação de reivindicação é composta por factos dos quais há de resultar um desapossamento do prédio ou parte do prédio.

Se o autor não alega que o réu se apoderou da coisa, no todo ou em parte, e não pede, logicamente, a condenação do réu a entregar-lhe a coisa, a ação não é de reivindicação.

Ora, no caso dos autos, os autores não dizem que os réus se apropriaram de uma dada faixa de terreno do seu prédio e não pedem, logicamente, a entrega.

Se fosse esse o caso, se houvesse pedido de entrega, estaríamos perante uma ação de reivindicação.

Porém, os Autores apenas dizem que pretenderam fazer um muro na estrema do prédio e não o puderam fazer porque os réus colocaram um veículo a «cortar», a impedir a linha de construção do muro e que, depois, verificaram que nos serviços da Câmara Municipal ... existia um procedimento de licenciamento de obras particulares para construção de moradia no prédio dos réus cuja planta de localização do prédio invade a área correspondente ao prédio dos Autores.

Por conseguinte, não está formulada uma causa de pedir própria de uma ação de reivindicação, a qual pressuporia, como se disse, que se alegasse ocupação efetiva de uma dada faixa de terreno que os autores entendem pertencer ao seu prédio.

No caso dos autos, os Autores não tinham fundamento para reivindicar qualquer parcela porque não há qualquer parcela ocupada.

E não pedem a entrega de qualquer parcela.

Conclui-se, por conseguinte, que a ação não pode ser qualificada como de reivindicação, pelo que falece a argumentação exarada na decisão recorrida que concluiu pela contradição entre o pedido e a causa de pedir e a consequente ineptidão da petição inicial.

Cumpre revogar a decisão recorrida, prosseguindo a causa.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso procedente, pelo que se revoga a decisão recorrida para que o processo prossiga com vista à apreciação do pedido.

Custas pelos Réus.


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Coimbra, …