RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
CULPA DO LESADO
CONCORRÊNCIA DE CULPA E RISCO
Sumário

I - De acordo cm o entendimento clássico da doutrina e da jurisprudência a responsabilidade pelo risco é excluída sempre que o acidente seja imputável ao próprio lesado ou quando o acidente é devido ao lesado.
II - Em termos atualistas , O regime normativo decorrente do estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 505º e 570º do CCivil deve ser interpretado, como não implicando uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre culpa do lesado e risco do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a eventual imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura;
III - O acidente resultou de uma conduta culposa da sinistrada, mas não foi só unicamente devido a essa conduta culposa, dado ter existido uma contribuição decorrente dos riscos de circulação do próprio veículo.

Texto Integral

Processo nº 2291/22.7T8PNF.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Penafiel - JC Cível - Juiz 2,
Relatora: Ana Vieira
1º Adjunto Juiz Desembargador Dra. Maria Manuela B.E.Machado
2º Adjunto Juiz Desembargador Dra. Judite Pires

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Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I- RELATÓRIO

AA e BB vieram propor a presente acção declarativa sob a forma de processo comum para efetivação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação contra A..., S.A, concluindo a final pedindo a condenação da Ré a pagar-lhes uma indemnização nono valor global de 201.680.00 Euro acrescida dos juros legais vincendos desde a citação até efetivo pagamento, correspondente a 1.680,00 a titulo de danos patrimoniais; 100.000,00 a titulo de danos não patrimoniais dano morte; 100.000,00 euros a titulo de danos não patrimoniais sofridos em consequência do acidente dos autos, na proporção de 50.000,00 para cada um dos autores.
Para fundamentarem as respectivas pretensões descreveram o modo como se verificou o acidente que vitimou mortalmente a sua irmã, caracterizando a culpa do condutor do veículo seguro na Ré pela verificação do evento, mais justificando os danos que liquidam nos termos dos pedidos que antecedem.
Contestou a Ré, excepcionando a ilegitimidade dos AA, desacompanhados do pai, vivo, da falecida e sempre atribuindo a causação culposa do sinistro, exclusivamente, à vítima mesma.
Dispensada a audiência prévia, posto que cumprido por escrito o contraditório quanto às excepções dilatórias suscitadas, decidiu-se da validade e regularidade da instância e, assim, da legitimidade dos AA, fixou-se o objecto do litígio, ulteriormente corrigido e selecionaram-se os factos assentes e controvertidos, estes a integrarem os temas da prova, com interesse para a decisão da causa.
Realizou-se a audiência de julgamento, com observância das formalidades legais.

Na sentença recorrida quando foi proferida consta como decisão o seguinte : «III.
Tudo visto, julgo a acção parcialmente procedente, por provada e, em consequência, condeno a Ré a satisfazer a cada um dos AA o montante de 25 mil EUR, sendo-o 20 mil EUR a cada um, a título do dano da morte da vítima e 5.000 EUR, a título de dano moral próprio.
Aquelas quantias serão acrescidas de juros à taxa dos juros relativos às obrigações civis, vencidos desde a data da citação e até integral pagamento.
Custas na proporção do decaimento. Registe e notifique.
Transitada, devolva os autos de processo crime apensos. ... »(sic)
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Apos requerimentos a solicitar rectifcações foi proferido despacho de 26-9-2023 nos seguintes termos: «De acordo com o n.º 1 do artigo 613.º do Código de Processo Civil, uma vez proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, o que significa que este nada mais pode decidir no âmbito da mesma.
Não obstante, prevêem-se algumas exceções a esta preclusão, tendo em vista, designadamente, possibilitar ao juiz proceder à correção de alguns aspetos que se suscitem posteriormente. É assim que o n.º 2 do mesmo artigo 613.º do CPC admite que é lícito ao juiz, depois de proferida a sentença, retificar erros materiais nela contidos, suprir nulidades ou reformá-la, nos termos dos artigos subsequentes desse Código.
As situações de retificação de erros materiais da sentença estão previstas no artigo 614.º do CPC, no qual se regula, então, quando é que pode um juiz retificar a sentença por si já proferida. Assim, de acordo com o n.º 1 daquele artigo, admite-se que se a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do artigo 607.º do Código, ou contiver erros de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode aquela ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz.
Verifica-se, desta forma, que a retificação de erros materiais visa apenas a correção de erros formais que sejam claros ou manifestos ou que se revelem na própria leitura da sentença.
É o que sucede, manifestamente, na situação decidenda, quanto ao objeto da condenação relativo ao dano da morte da vítima, fixado em 100.000 EUR. É que na sentença se decidiu que a responsabilidade pela ocorrência do sinistro teria de ser repartida entre o condutor do veículo seguro na R. e a sinistrada, cabendo 20% dessa responsabilidade ao primeiro e 80% à segunda, ficando, assim, a aqui R. responsável pelo pagamento aos AA. de 20% dos montantes que viessem a ser fixados nessa decisão. Assim conforme fls. 21 e 22 da sentença…
Ora, incorreu-se num lapso manifesto, na medida em que calculada corretamente a percentagem da responsabilidade da Ré, não se atentou em que aquele valor era a dividir pelos AA, sendo certo que em sede de condenação se arbitraram as indemnizações a cada um.
Nessa parte, pois, impõe-se corrigir a sentença, no que ambas as partes estão de acordo.
Retifique-se, em consequência, a parte final da sentença/segmento condenatório desta, passando a constar: julgo a ação parcialmente procedente, por provada e, e em consequência, condeno a Ré a satisfazer a cada um dos AA o montante de 15 mil EUR, sendo-o 10 mil EUR a cada um, a título do dano da morte da vítima e 5.000 EUR, a título de dano moral próprio.…».
Assim, consigna-se que a decisão recorrida tem o teor referido no despacho que antecede: «…: julgo a ação parcialmente procedente, por provada e, e em consequência, condeno a Ré a satisfazer a cada um dos AA o montante de 15 mil EUR, sendo-o 10 mil EUR a cada um, a título do dano da morte da vítima e 5.000 EUR, a título de dano moral próprio.».
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Inconformados com tal decisão, vieram os autores interpor o presente recurso, o qual foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito devolutivo.
A autora com o requerimento de interposição do recurso apresentara alegações, formulando, a final, as seguintes conclusões: «… CONCLUSÕES:
1. O Tribunal “a quo” decidiu condenar a Recorrida no pagamento da quantia de €15.000,00 (quinze mil euros) a cada um dos Recorrentes, correspondendo a quantia de €10.000,00 (dez mil euros) a título de indemnização pelo dano pela perda da vida e €5.000,00 (cinco mil euros) a título de indemnização pelos danos sofridos por cada um dos Recorrentes em virtude da morte da lesada.
2. Tal condenação assentou no entendimento sufragado pelo Tribunal “a quo” de que, no sinistro em causa nos autos que, lamentavelmente, vitimou CC imã dos aqui Recorrentes) houve culpa repartida entre o condutor do veículo segurado pela Recorrida (para a qual foi transferida a respetiva responsabilidade) e a vítima, na proporção de 20% para o primeiro e 80% para a segunda
3. Porém, não podem os Recorrentes conformar-se com tal decisão levada a cabo pelo Tribunal “a quo”, razão pela qual se insurgem contra a mesma através do presente recurso na medida em que, no seu entender, o Tribunal “a quo”, face matéria de facto dada como provada, interpretou e aplicou erradamente o disposto nos art. 503.º, 505º e 570.º do Código Civil.
4. O entendimento do Tribunal “a quo” foi levado a cabo ao arrepio da factualidade dada como provada nos presentes autos que, criteriosamente analisada, impõe desde logo o afastamento da concorrência de culpas a que aderiu o Tribunal Recorrido.
5. Razão pela qual cumpre desde logo junto dos Venerandos Juízes Desembargadores indicar quais os aspetos que impõe a existência de culpa
exclusiva do condutor do veículo na ocorrência do acidente, a saber:
a) Momento que antecederam o sinistro;
b) Características do local onde ocorreu o sinistro;
c) Características do veículo automóvel;
d) Dinâmica do acidente propriamente dito.
6. Pelo que é nestes aspetos que nos teremos de centrar para aferir pela culpa
exclusiva do condutor do veículo na ocorrência do sinistro que vitimou a CC.
7. No que concerne ao primeiro dos aspetos (pontos F, M, N, P e Q do acervo
probatório dado como provado) resulta que o condutor do veículo automóvel não atropelou uma vítima desconhecida ou indeterminada, mas sim a sua namorada, cuja personalidade, estado físico e emocional não lhe eram alheios, uma vez que ela lhe deu a conhecer que havia tomado fármacos. Por outro lado, o acidente ocorreu na sequência de uma tentativa de escape do condutor do veículo da discussão que o mesmo e a vítima mantinham no interior da habitação.
8. Algo que, em bom rigor, foi notado (e bem) pelo Tribunal “a quo” que, em sede de motivação, acabou mesmo por afirmar que: “o condutor se apercebeu quer do estado de exaltação da vítima (que as mensagens apelativas mais induzem) e da intenção desta de impedir que se afastasse, mediante obstrução/alcance do veículo.
De resto, foi este preciso depoimento que caracterizou a perceção do condutor deque a vítima tinha saído do portão e vinha em direção ao carro, razão das manobras de «fuga» ou saída”.
9. No que diz respeito ao local onde o sinistro ocorreu, resulta da matéria de facto dada como provada (pontos F, G, H, I, J e L) que se trata de um largo no final de uma rua, sem saída para veículos automóveis, em paralelo e com plano inclinado descendente. De um lado, um muro, onde se encontrava estacionado o veículo em causa nos autos; do lado oposto, a residência da vítima.
10. E, quanto às características do veículo, as quais não poderão, de todo, ser
descuradas, já que as mesmas se encontram implicitamente relacionadas com o dever de cuidado exigível a condutor (que, a nosso ver, é acrescido, sempre que as características justifiquem um maior perigo de circulação), resulta do ponto U da matéria de facto dada como provada que o mesmo é um “veículo automóvel ligeiro de mercadorias que dispõe de uma caixa fechada, com cerca de 2 metros de altura, a qual não é dotada de vidros ou janelas na respetiva traseira e laterais traseiras”.
11. Ora, considerando as caracerísticas do veículo, mormente e em especial a inexistência de vidros/janelas nas laterais e na traseira e a altura superior da parte frontal quando comparada com um veículo ligeiro de passageiros, parece aos Recorrentes que se impõe ao condutor do veículo um dever acrescido de cuidado, porquanto a condução do seu veículo acarreta uma maior perigosidade.
12. Por fim, e quanto à dinâmica do acidente, resulta desde logo da matéria de facto dada como provada (pontos P e Q do acervo probatório dado como provado) que a vítima e o condutor do veículo iniciaram uma discussão no interior da habitação e casa e dirige-se ao interior do seu veículo, no lugar do
condutor.
13. Resultando igualmente da matéria de facto dada como provada, concretamente no ponto R dos factos dados como provados, que já no interior do veículo o condutor do veículo vê que a vítima vem no seu encalce caminhando ligeira nessa direção e, de imediato (e apenas nesse momento), decide iniciar a manobra de inversão de marcha para abandonar o local.
14. Pelo que resulta inequivocamente provado que o condutor do veículo viu a vítima a dirigir-se ao seu veículo e que foi, até, por tal circunstancialismo que decidiu iniciar a manobra.
15. Dúvidas não restam, assim, de que o condutor do veículo que atropelou a vítima viu a mesma a dirigir-se ao veículo e que, por isso, sabia da sua presença naquele local.
16. Em ato contínuo, e com o intuito de fazer inversão de marcha, o condutor arranca (cfr. ponto S) dos factos provados), recua (cfr. ponto T) dos factos provados), altura
em que atenta nos espelhos retrovisores laterias do veículo e nada vislumbra (cfr. ponto T) dos facos provados); inicia marcha ascendente e, olhando para frente, uma vez mais, nada vislumbra (cfr. ponto X).
17. É nesta nébula que ocorre o sinistro, porquanto, ao iniciar a marcha em sentido ascendente, o condutor, por alegadamente não ter essa visibilidade, embate com a parte frontal do veículo na vítima, ocasionando a sua morte (ponto GG) dos factos provados).
18. Ora, impõe-se assim questionar: onde está a CC? Em que momento o condutor do veículo se questionou onde a mesma estava? Já que sabia da sua presença e não a poderia ignorar?
19. Pois se é certo que, alegadamente, o condutor não viu a CC durante a manobra, não percecionando a sua queda e não tendo visto a mesma caída do chão (tese sufragada pelo Tribunal “a quo” – pontos CC, DD, EE e FF da matéria de facto dada como provada), menos certo não é, como se disse, que o condutor do veículo sabia que a vítima se encontrava naquele local, sabia da sua intenção de se aproximar do veículo e, ainda assim, não cuidou (como era sua obrigação) de saber onde a mesma se encontrava.
20. O que, desde logo, resulta do ponto JJ dos factos dados como provados pelo Tribunal “a quo” que, expressamente em tal ponto referiu que: “Apesar de se ter apercebido que a vítima tinha passado a circular a pé na Rua na qual estava estacionado o veículo cuja marcha iniciou, consciente que a intenção/propósito da vítima era a de se aproximar do veículo por si conduzido, razão aliás das manobras com vista a abandonar o local, o condutor DD não verificou/acautelou, ao realizar a manobra de marcha atrás ou imediatamente antes de reiniciar a marcha, concluída aquela, do local onde se encontrava a vítima, não cuidando de verificar/acautelar-se que a vítima tinha desistido do seu propósito de perseguição, tendo por suficiente a não visibilidade da vítima.”
21. Pese embora tal consideração que, a nosso ver, é aquela mais justa e correta sobre a ocorrência do sinistro, a verdade é que o Tribunal “a quo” acaba por considerar a existência de concurso de culpas, com clara tónica na vítima.
22. Por um lado, entendeu que o condutor do veículo não observou o dever de cuidado que as circunstâncias concretas em que atuou o condutor exigiam. Que atuou assim com culpa negligente.
23. Por outro, erradamente a nosso ver, o Tribunal “a quo” atribui também à vítima um comportamento negligente por a mesma se encontrar sob efeito de fármacos suscetíveis de alterar as capacidades motoras, de chinelos, exaltada/alterada emocionalmente e se dirigiu ao encontro/perseguição de um veículo em movimento.
24. É contra esta consideração do Tribunal “a quo” que os Recorrentes, com o devido respeito, se insurgem junto de Vexa(s) Venerados Juízes Desembargadores, porquanto, no seu humilde entendimento, o Tribunal “a quo” levou a cabo um raciocínio incorreto e sem consideração pela matéria de facto dada como provada.
25. Isto porque e desde logo, não corresponde à verdade (nem sequer vai de encontro à matéria de facto dada como provada) que a vítima tenha decidido dirigir-se na perseguição de um veículo em movimento.
26. Isto é, que a vítima tenha decidido (após ponderação sobre os riscos inerentes) colocar-se naquela situação – perseguição de veículo em movimento.
27. Pois que, quando a vítima decide vir no encalce do condutor, o veículo não estava em circulação, até porque resulta da matéria de facto dada como provada (a qual já em supra fizemos referência) que o condutor apenas inicia a manobra quando vê a vítima a aproximar-se.
28. O que, forçosamente, significa que quando a CC se aproximava do veículo – diga-se, quando tomou tal decisão-, o mesmo não se encontrava em movimento.
29. Por outro lado, realce-se que o condutor do veículo que atropelou mortalmente a vítima tinha igualmente conhecimento que a vítima se encontrava sob o efeito de substância suscetível de alterar as capacidades psicomotoras, de chinelos, alterada/exaltada emocionalmente e que a mesma se dirigia ao seu encontro.
30. Algo que, igualmente deverá ser sopesado, quanto à culpa do condutor (já que tal circunstância não poderia pelo condutor ser ignorada e exigia ao mesmo um dever acrescido, até porque era ele que detinha a direção da máquina originadora do risco).
31. Pelo que, não poderão os Recorrentes aceitar que a vítima tenha tido culpa na ocorrência do sinistro, pois em nada contribuiu para o mesmo.
32. A existir algum tipo de culpa (o que apenas se concebe por mero deleito intelectual), a mesma sempre se terá de considerar leve.
33. O acidente deveu-se a culpa exclusiva do condutor do veículo, que violou o dever de cuidado a que estava adstrito, ao descurar em absoluto o paradeiro de CC durante a realização das manobras de circulação com um veículo com as características do veículo por si dirigido que, na ótica dos Recorrentes, impunha um dever acrescido de cuidado na sua condução.
34. E a mesma é de tal forma manifesta que o condutor, conforme resulta do ponto X) dos factos dados como provados, referiu que assim que sentiu um solavanco nos rodados dianteiros, de imediato se lembrou da vítima CC.
35. Venerandos Juízes, tal afirmação por parte do condutor do veículo (refletida nos factos dados como provados) é a verdadeira representação da culpa do condutor.
36. Como pode alguém que não viu, nem procurou ver, a vítima aquando da realização de uma manobra de inversão de marcha, pensar imediatamente nela quando sentiu um solavanco do veículo?
37. O condutor não desconhecia a presença da CC naquele local.
38. Ainda assim, o Tribunal “a quo” optou pela verificação de concurso de culpas.
39. O art. 503.º, n.º1 do Código Civil prevê a responsabilidade pelo risco em caso de acidentes causados por veículos, a qual apenas é possível excluir nos casos previsto o art. 505.º do mesmo diploma legal, cabendo tal prova ao lesante.
40. No caso em concreto, é entendimento dos Recorrentes que não resulta da
factualidade assente que o lesante tenha logrado afastar a responsabilidade pelo risco.
41. Contudo, o Tribunal “a quo” optou por lançar mão do concurso de culpas (art. 570.º do Código Civil) e imputar à lesada culpa na ocorrência do sinistro, a qual, conforme viemos a expor, não se verifica.
42. De todo o modo, e caso assim não se entenda, sempre teremos de entender, face à factualidade dada como assente e acima descrita, que a culpa da vítima é leve e, por isso, consumida pela inobservância do dever de cuidado dada como assente por parte do condutor do veículo.
43. Sendo de atribuir aos Recorrentes a totalidade das indemnizações fixadas.
44. Destarte, e caso assim não se entenda, sempre cabe aos Recorrentes afirmar que a percentagem atribuída se encontra manifestamente exagerada.
45. Neste conspecto, chamamos aqui à colação o entendimento que vem sendo perfilhado pelo Supremo Tribunal de Justiça que, quando chamado a pronunciar-se quando à co causalidade entre o risco e a culpa do agente, tem colocado a tónica nos riscos do próprio veículo, mesmo nas situações em que o condutor não incumpriu qualquer dever ou regra a que está adstrito. (Vejam-se a esse propósito os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça Proc. n.º 9/14.7T8CPV.P2.S1, relatado por Rijo Ferreira de 24-09-2020 e Proc. n.º 1896/20.5T8FNC.L1.S1, relatado por Maria da Graça Trigo de 30-12-2022, ambos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt ).
46. A este propósito, invocamos ainda as palavras de Maria de Graça Trigo que refere que, mesmo quando se trata de conduta culposa da vítima, há que avaliar “a intensidade da contribuição causal dos perigos do veículo versus conduta do lesado, como o grau de culpa deste, podendo aumentar-se a percentagem de redução da indemnização até 50% do montante dos danos, fasquia que só deveria ser ultrapassada na hipótese de culpa grave do lesado.”
47. Ou seja, a redução de indemnização em virtude de existência de culpa do lesado, nos casos em que esta não é grave (como, no entendimento do Tribunal “a quo” sucedeu, reportando-se este a comportamento negligente da vítima, excluindo assim a culpa grave), nunca deve ser superior a 50%.
48. Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto, o Tribunal “a quo” reduziu a indemnização em 80%, mesmo considerando a culpa negligente da vítima (a qual, em bom rigor, resulta de circunstâncias que o próprio condutor era conhecedor).
49. Questionamo-nos assim, qual a percentagem de redução em caso de culpa grave do lesado.
50. Pelo que, e em face do exposto, e a considerar-se a existência de concurso de culpas entre o lesado e os riscos próprios do veículo, sempre a mesma se deveria cifrar, pelos motivos já expostos, na proporção de 10% para a sinistrada e 90% para o condutor do veículo.
51. Nos termos e para os efeitos do disposto no art. 639.º, n.º2, a) e b) do CPC, versando o presente recurso matéria de direito, os Recorrentes desde já indicam: -O Tribunal “a quo” violou o disposto no art. 503.º, 505º e 570.º do Código de Processo Civil.
-O Tribunal “a quo” deveria ter aplicado apenas o disposto no art. 503.º do Código de Processo Civil, considerando apenas e só a existência de culpa do condutor do veículo na ocorrência do sinistro (por este não a ter afastado) e, a existir culpa leve da sinistrada, esta se considerar consumida pela culpa do condutor.
-Em caso de concurso de culpas, o que se considera por mero deleito intelectual, o Tribunal “a quo” deveria ter interpretado e aplicado o disposto no art. 570.º, n.º1 do Código Civil no sentido de que a redução da indemnização do lesado só pode ser superior a 50% em caso de culpa grave.
-Nesse caso, deveria ter aplicado tal normal, e, a reduzir a indemnização ao lesado, apenas o deveria fazer em 10% na medida em que a culpa da lesada, a existir, é leve e as circunstâncias da sua eventual culpa eram do conhecimento do condutor o que, naturalmente, reduz a culpa da Lesada.
Termos em que deve ser julgado procedente o presente Recurso e, em consequência, ser revogada a decisão proferida pelo Tribunal Recorrido e substituída por outra que responsabilize exclusivamente a Recorrida pela ocorrência do sinistro (por transferência da responsabilidade) e condene a mesma ao pagamento da quantia aos Recorrentes de 100.000,00€ (cem mil euros) a título de indemnização pelo dano morte da vítima e, bem assim, pelo pagamento da quantia de 50.000,00€ (cinquenta mil euros) a cada um dos Recorrentes pelo dano moral próprio, por ser este o valor mais justo e adequado, tendo em conta a relação de grande proximidade entre os Recorrentes e a vítima, de quem eram os único irmãos.
Caso este Tribunal seja do entendimento que os presentes autos encerram uma causalidade concorrente, deverá a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que fixe as culpas na ocorrência do sinistro na proporção de 10% para a sinistrada e 90% para o condutor do veículo, reduzindo-se os valores supra referidos nessa exata proporção.
Assim se fazendo a mais elementar, JUSTIÇA!».
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A recorrida junta contra-alegações nas quais em resumo pugna pela manutenção da sentença recorrida e deduziu recurso subordinado, (admitido nos mesmos termos), apresentando as seguintes conclusões:
1. Nos presentes autos discute-se o atropelamento mortal da malograda CC e o eventual direito ao ressarcimento dos prejuízos daí resultantes;
2. A sentença recorrida reconheceu que este direito existia e que cabia aos AA., aqui recorridos, enquanto irmãos da falecida;
3. Tendo fixado a responsabilidade pela ocorrência do sinistro em 80% para a própria sinistrada e em 20% para a aqui apelante;
4. Neste contexto, condenou esta última no pagamento a cada um dos recorridos – AA e BB– de €15.000,00, sendo€10.000,00 a título da perda do direito à vida da irmã destes e em €5.000,00 a título de danos morais próprios deles.
Da inexistência do direito reclamado pelos Recorridos
5. Acontece que os recorridos, contrariamente ao que alegaram, não são os únicos e universais herdeiros da sua falecida irmã;
6. Na verdade, à data do óbito desta, esta vivia numa união de facto com o DD, condutor do veículo atropelante, sem descendentes, órfã de mãe, mas o seu pai, EE, nascido a ../../1975, ainda se encontrava vivo – conforme se retira da leitura da certidão de nascimento deste, junta a fls…, e ainda do depoimento que este prestou em julgamento – gravado através do sistema integrado de gravação digital da seguinte forma: 11:38:20 – 11:42:59” – vide Ata de Audiência de Julgamento de 14 de junho de 2023;
7. Donde resulta que, de acordo com o previsto nos art.º 2132, 2133 e 2134, este seu pai 24 é o único e universal herdeiro da CC;
8. E, consequentemente, que os AA., irmãos da vítima, não são titulares do direito que invocam contra a recorrente, nem têm legitimidade para o reclamarem, impondo-se, assim, a improcedência da ação.
Sem prescindir,
9. E mesmo que fossem os seus únicos e universais herdeiros, o que apenas se equaciona como mera hipótese académica, o certo é que, tal situação de nada relevaria para sustentar o direito que aqui invocam;
10. Na verdade, as indemnizações reclamadas a título de danos não patrimoniais nestes autos pelos AA. –uma respeitante ao direito a indemnização por morte da vítima e outra atinente aos danos morais próprios sofridos pelos AA. pelo falecimento da irmã – não cabem aos herdeiros legais, nem aos testamentários, mas sim, às pessoas enumeradas no artigo 496.º nºs 2 e 3 do C. Civil, ou seja, “…em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem”, ou se a vítima vivia em união de facto, “…em primeiro lugar, em conjunto, à pessoa que vivia com ela e aos filhos ou outros descendentes.”;
11. E pela ordem aí prevista – vide acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 02/03/2016, proferido no processo 160/12.8GAPNI.C1;
12. Ora, atento o vertido no alegado dispositivo legal, verificamos que os aqui recorridos apenas teriam o direito que invocam, e somente o poderiam exercer, e sempre conjuntamente com todos os seus irmãos (sendo que não lograram demonstrar que são os únicos irmãos da falecida), no caso de inexistência de cônjuge sobrevivo da CC, de filhos ou de ascendentes desta, ou na falta de pessoa que com ela vivesse em união de facto;
13. O que presentemente não acontece, já que, como dissemos supra, o pai desta ainda hoje se encontra vivo, facto e qualidade que lhe confere o direito, face à inexistência de cônjuge não separado de pessoas e bens e de filhos ou outros descendentes e outros ascendentes da falecida, de reclamar os danos decorrentes do óbito da CC, caso haja lugar à efetiva reparação deles;
14. Tudo isto conforme o debitado no citado dispositivo legal que, de acordo com a ordem de preferência aí vertida, coloca os irmãos no último lugar ou posto para poderem reclamar qualquer indemnização a título de danos não patrimoniais pelo óbito de uma irmã, querendo tal significar que um eventual direito destes apenas existiria na falta de alguém que preenchesse ou ocupasse alguma das classes ou posições anteriores, o que não acontece, conforme demonstrado documentalmente a fls;
Ainda sem prescindir,
15. À data do seu falecimento, a mencionada CC vivia em união de facto com o DD, que era o condutor do veículo interveniente no acidente sub judice;
16. Donde resulta que, de acordo como previsto no referido n.º 2e 3 do art.º 496 do Código Civil, o direito a reclamar os eventuais danos não patrimoniais emergentes deste sinistro lhe caberia, ou, se tal não se entendesse, caberia ao dito DD juntamente com o pai da falecida, mas nunca aos irmãos desta, pelos argumentos supra expostos;
17. Do exposto resulta que não se pode reconhecer aos autores, aqui recorridos, que eram irmãos da falecida, a legitimidade para exercerem o direito que invocam, nem muito menos a existência nas suas esferas jurídicas desse mesmo direito, razão pela qual terá de improceder a ação por estes intentada e aqui em análise.
Por mera cautela,
Da responsabilidade pela ocorrência do sinistro
18. Da matéria de facto dada como provada, transcrita no corpo destas alegações e que aqui se dá por reproduzida para os devidos efeitos legais e por economia processual, resulta, salvo melhor entendimento, que o acidente sub judice ficou a dever-se unicamente à atuação e culpa – única e exclusiva – da malograda CC;
19. Desta matéria resulta, no nosso modesto entender, que o condutor do veículo atropelante atuou sempre com todas as cautelas e prudências que lhe eram exigidas, tendo, antes de iniciar as várias manobras que compõem uma manobra de inversão de marcha, verificado previamente que as podia realizar sem perigo, em condições normais, verificando que nada nem ninguém estava dos lados, frente ou retaguarda do veículo que conduzia a uma velocidade de 5 km/h;
20. Sendo que o atropelamento acaba por acontecer, conforme resulta repetidas vezes dessa matéria provada, porque a falecida que se colocou numa posição sentada / deitada, num plano inferior ao respetivo para-choques dianteiro, fora do campo visual desse condutor;
21. Mais, a CC encontrava-se a uma distância inferior a 2 (dois) metros da frente do TD, sendo que “… a distância mínima para a constatação do corpo seria de aproximadamente 5 metros…” – conforme resulta da reconstituição do acidente levada a cabo pela B... e pela Polícia Judiciária, junta a fls…
22. Acresce ainda que a malograda CC se colocou intencionalmente sobre o efeito da droga / medicação de 765 ng/ml de “Quetiapina”, suscetível de alterar as suas capacidades psico-motoras, e cuja extensão e dosagem apenas ela conhecia, mas que seria em doses excessivas e inadequadas para um qualquer ser humano, conforme se retira da sentença recorrida;
23. Medicação ou drogas as quais a impediram de tomar as medidas óbvias e necessárias para evitar o comportamento que adotou (de se colocar à frente do TD), bem como de tomar as medidas necessárias para evitar o atropelamento, que só ela poderia e deveria ter evitado;
24. Donde se conclui, também por este prisma, que se coloca como mera hipótese académica, que a presente ação deveria ter sido julgada totalmente improcedente e determinada a culpa única e exclusiva da malograda CC pela ocorrência do acidente em apreço;
25. Conclusão a que chegaram todas as instituições e organismos que analisaram este sinistro, nomeadamente a B..., a Polícia Judiciária, o Digno Representante do Ministério Público da Procuradoria da República da Comarca do Porto Este, Departamento de Investigação e Ação Penal - Seção ... (que escreveu que “…Em suma se dirá que não sendo previsível, em face das regras de experiência integradas nos padrões do homem médio naquele circunstancialismo concreto, que a ofendida se encontrasse naquele local deitada/ sentada no chão, consideramos não ter o denunciado violado qualquer dever objetivo de cuidado na realização da manobra de inversão de marcha do seu veículo…não era exigível ao denunciado a adoção de outro comportamento, pelo que se conclui que o resultado da morte não foi consequência causal da conduta adotada… o denunciado com a sua conduta não criou ou assumiu um perigo típico para a vida da vítima…” ), o Mmo Juiz do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Juízo de Instrução Criminal de Penafiel, Juiz 2 (“… o denunciado terá efetuado a manobra de inversão de marcha respeitando as regras estradais, a uma velocidade inferior a 5 km/h… não era previsível que a vítima se encontrasse naquela posição…nem seria exigível ao denunciado presumir tal comportamento… não tendo o denunciado violado qualquer dever objetivo de cuidado na realização da manobra de inversão de marcha…realizado a dita manobra com as cautelas que lhe eram exigidas…não antevemos a possibilidade de lhe imputar objetivamente ou subjetivamente a morte de CC…demonstrado que o arguido usou as cautelas necessárias para efetuar a dita manobra em segurança… decide não pronunciar…arquivamento dos autos…”.);
Sem prescindir,
26. Na eventualidade de se entender que o condutor do TD, DD, também contribuiu para a ocorrência do sinistro, o que apenas se equaciona como mera hipótese académica, sempre se teria de concluir, face à matéria dada como provada e não provada e aos argumentos supra expostos, que aqui se dão por integralmente reproduzidos para os devidos efeitos legais, por economia processual, que essa percentagem de culpa teria de ser (bastante) diminuta, nunca podendo ultrapassar os 10%, pelo que, ainda assim, andou mal o Tribunal recorrido ao fixar essa responsabilidade nos 20%;
27. Impondo-se, por isso, a alteração da sentença recorrida, no mínimo, nos termos referidos no ponto anterior.
Ainda sem prescindir,
No tocante aos valores fixados pela sentença recorrida
28. A sentença recorrida fixou a indemnização pelo direito à vida da falecida em €100.000,00 e os danos próprios dos irmãos, pelos sofrimentos que padeceram, em €25.000,00, para cada um deles;
No tocante ao valor fixado a título de direito à vida
Sem prejuízo do alegado supra, relativamente à existência do direito dos recorridos e à responsabilidade pela ocorrência do atropelamento,
29. A falecida tinha 20 anos de idade, à data do sinistro, mas já demonstrava um enorme desprezo e desapego pela sua vida, que, por diversas e consecutivas vezes vinha colocando em perigo ou prejudicando (danificando);
30. E são vários os exemplos que demonstram: a toma de doses excessivas de Quetiapina, uma inconstante estabilidade amorosa e relacional, com alegados casos de infidelidade de curta duração, o consumo quase diário de haxixe, cocaína e pastilhas e um comportamento de “…um pouco passada…” – conforme referiu à PJ o seu próprio irmão BB, aqui recorrido –, o seu caráter “…um pouco conturbada…” e as relações extraconjugais de curta duração e ainda o consumo de extasy e cocaína – de acordo com 29 o vertido nas declarações prestadas à PJ, pela sua própria irmã AA, aqui recorrida.
31. Acresce que não ficou provado que “A falecida era uma jovem com um grande apego à vida, muito alegre, robusta, saudável, dinâmica, alegre e feliz” – ponto 17 da matéria não provada;
32. Além de que, na fixação do valor aqui em apreço, deverá ter-se em consideração o grau de culpa do lesante (que neste caso é nulo ou bastante diminuto), o grau de culpa da vítima (que é exclusivo ou, no mínimo, elevadíssimo); o valor intelectual e humano da vítima (que, nestes autos, não ficou alegado, nem demonstrado), a sua formação académica e científica (que também não foi alegada, nem ficou demonstrada, mas que se presume ser reduzida, face aos empregos de curta duração que a malograda manteve), as suas qualidades de trabalho e de idoneidade moral (que também não foram apuradas nestes autos, resultando apenas das declarações dos irmãos que a falecida estava desempregada);
33. Por tudo isto, mantendo sempre o devido respeito, defendemos que o direito à vida da CC deverá ser valorizado em montante inferior ao de alguém que prezasse essa vida e que lutasse para a preservar, razão pela qual esse seu direito à vida, no seu todo e na sua plena extensão, deveria ter sido valorizado em quantia próxima dos €60.000,00, à qual, posteriormente, terão de ser aplicadas as percentagens de culpa, caso existam, o que, como alegámos supra, não aceitamos.
Dos danos não patrimoniais próprios sofridos por um irmão pela morte de uma irmã
Sem prejuízo do alegado supra, relativamente à existência do direito dos recorridos e à responsabilidade pela ocorrência do atropelamento,
34. A quantia de €25.000,00 fixada pelo Tribunal recorrido é manifestamente exagerada e indevida para o ressarcimento das dores sofridas por irmão pela morte de uma irmã;
35. Note-se que para o ressarcimento das mágoas e dores sofridas por uma viúva pelo óbito do seu marido ou pelos filhos que perderam um pai ou uma mãe, a nossa Jurisprudência atribuiu valores idênticos e, em alguns casos, inferiores aos que foram fixados pelo Tribunal recorrido para o ressarcimento dos sofrimentos pela perda de uma irmã – AC. STJ, proc. 269/09GBPNF.P1.S1, de 20.02.2013, in https://jurisprudencia.pt/acordao/129109/, de onde se retira que: “Considerando a longevidade do casamento, com mais de 49 anos, tendo o demandante perdido a sua companheira de sempre, com quem tinha uma profunda relação afetiva, recíproca de amor e carinho, com a idade que tem, passando a não ter vontade de encarar o dia a dia, entende-se ser de fixar o valor da compensação em € 25.000. No que toca à demandante filha RM, na 1.ª instância foi fixado o valor de € 10.000, o qual foi alterado na Relação para € 13 000. Considerando a relação de afetividade entre a demandante e sua mãe e o facto de ter assistido à situação de encarceramento da vítima no interior da viatura sinistrada e ao sofrimento daquela e sua agonia, entende-se ser de atribuir o valor de € 18.000.”; Acórdão da Relação do Porto de 27.02.2023, processo 1399/19.0T8PVZ.P1, in www.dgsi.pt, onde se pode ler que “VII - É proporcionada e em consonância com os valores jurisprudenciais correntes a indemnização de € 20.000,00 pelos danos de natureza não patrimonial dos filhos do sinistrado maiores de idade, que com ele conviviam regularmente.”
36. Estas decisões, uma delas de 2023, atribuíram a título de danos não patrimoniais sofridos pela viúva e pelos filhos, em consequência da morte do marido e pai, montantes entre os €18.000,00 e os €25.000,00!
37. Ora, partindo do princípio básico de que o sofrimento de um marido ou de uma esposa que perdem o esposo/esposa e o sofrimento de um filho que perde um pai ou uma mãe é bastante superior ao sofrimento de um irmão pela perda de uma irmã, teremos forçosamente de concluir que o montante fixado na sentença recorrida é manifestamente exagerado e indevido, impondo-se a sua redução para valores nunca superiores a €15.000,00, para cada irmão, aos quais, posteriormente, terão de ser aplicadas as percentagens de culpa, caso existam, o que, como vimos supra, não aceitamos.
38. A sentença recorrida violou, entre outros, os artigos 99.º, 100.º e 101.º do Código da Estrada e os artigos 483, 496, 505, 566, 570, 2132, 2133 e 2134 do Código Civil.
PEDIDO
Termos em que, dando provimento ao presente recurso, nos termos aqui expostos, farão V.Exas JUSTIÇA!!».

Os Autores juntaram contra-alegações apresentando as seguintes conclusões: «… Conclusões:
I – Quanto à alegada inexistência do direito dos Recorridos:
1. A Recorrente, à semelhança do que veio sufragando ao longo os presentes autos, insiste na tese de que os aqui Recorridos carecem de legitimidade, estribando-se na factualidade de, por um lado, não serem os únicos e universais herdeiros da vítima e, por outro, na alegada violação do art. 496.º, n.º3 do Código Civil.
2. Não assiste razão à Recorrente, tal como ficou manifestamente espelhado no despacho saneador proferido nos presentes autos, o qual não merece qualquer reparo.
3. Assim, a tese sufragada pela Recorrente merece censura do ponto de vista jurídico, desde logo porque a questão que encerra os presentes autos não é sucessória.
4. De facto, o artigo 496.º nº.2 do CC indica quais os titulares do direito de que se arrogam os Recorridos, podendo-se aferir de tal comando normativo que a atribuição do direito à indemnização por danos não patrimoniais pela morte de familiar não é, de todo, uma questão sucessória, desde logo porque figuram como um dos aqueles que têm direito a tal atribuição, o que, aliás, resulta inclusivamente da vasta jurisprudência, mormente do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça com processo nº. 1608/15.5T8LRA.C1.S1.
5. Pelo que soçorberá, sem sombra de dúvida, a tese apontada pela Recorrente.
6. Ademais, importa ainda referir que os Recorridos, contrariamente ao alegado, cumprem cabalmente o ónus de alegação que sobre eles recaía para a atribuição de tal indemnização, mormente quando alegam que são irmãos da sinistrada, facto que resulta provado da sentença recorrida e que a própria Recorrente dá como aceite.
7. Mas, ainda que assim não se entendesse, sempre se diga que “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras do direito”, cabendo às partes a alegação dos “factos essenciais que constituem a causa de pedir”, conforme resulta do art.º 5.º do Código de Processo Civil.
Isto posto,
8. A segunda questão suscitada pela Recorrente ancora-se na tese de que os irmãos surgem no “último lugar ou posto” nos termos estabelecidos no art.º 496.º, n.º 2 do Código Civil e que, considerando que o pai da falecida está vivo, este “ocupa uma classe privilegiada e anterior à dos irmãos”, pelo que os “Recorridos não têm sequer direito a reclamar os pedidos formulados nos autos”.
9. Contudo e tal como sustentado, e bem, pelo Tribunal Recorrido a alegada ilegitimidade consubstancia-se por via da não titularidade do direito de indemnização, pelo que, a possibilidade de indeminização trata-se uma questão de fundo/mérito e não de ilegitimidade.
10. Assim, e face aos elementos que constam dos autos, foi dada como provada a relação de proximidade entre a falecida e os Autores e, nesse seguimento não foi dada como provada qualquer relação de proximidade afetiva entre o progenitor e CC, sendo a verificação desta relação essencial para apurar a existência do direito à indemnização – circunstância defendida pela jurisprudência que in casu, espelha o caso dos presentes autos, decisões que atribuem a referida compensação não só a pessoas não elencadas no art. 496.º CC, mas também não se restringindo à ordem prevista na norma.
11.Assim, e a respeito da atribuição da indemnização a que se refere o art. 496.º do CC, a mesma deve ser atribuída àqueles que constituíam o núcleo fundamental e restrito da vida da vítima, que cuidavam da mesma, que, no fundo, partilhavam a vida com aquela.
12.Pois só desse modo se justifica a atribuição de uma indemnização pelos danos sofridos pela morte de um familiar: são aqueles que, efetivamente, sofrem com a perda, com a partida de um ente querido que merecem a tutela do direito.
13.A jurisprudência demonstra-nos isso mesmo, na medida em que vem sendo entendimento dos Tribunais Superiores que o conceito de família deve ser interpretado num sentido atualista e extensivo, adaptando-se à evolução e à realidade dos tempos que, nos dias de hoje, é manifestamente diferente daquela que existiam aquando da publicação da norma.
14.Pelo que se vem entendendo que a indemnização do art. 496.º do C.C. deve ser atribuída não só às pessoas indicadas na referida norma, mas também a outras não elencadas, por terem uma relação estreita com a vítima, como é, a título meramente exemplificativo, o caso dos enteados. (vide Ac. STJ de 15-09-2022, processo n.º 2374/20.8T9PNF.P1.S1)
15.Sendo certo que tais decisões não se encontram ao arrepio da lei, na medida em que o legislador acautelou essa necessidade com o disposto no art. 9.º, n.º1 do CC. 16.Posto isto, parece-nos desprovido de qualquer sentido de justiça que uma indemnização por danos não patrimoniais seja atribuída a um pai, conforme parece defender a Recorrente, que nunca partilhou qualquer momento com os filhos, que nunca lhes pagou um almoço, que nunca lhes pagou pensão de alimentos, que nunca primou por fomentar qualquer laço familiar.
17.Veja-se que conforme resulta dos factos dados como provados, o progenitor não tinha contacto com a menor (conforme assumiu em sede de Audiência de discussão e julgamento) nem com a família desta e a sua intenção não era assumir qualquer responsabilidade parental sendo as despesas de educação da então menor suportadas por uma tia-avó.
18.Circunstância contrária à vivência dos irmãos, uma vez os irmãos da falecida CC, partilhavam a vida com a mesma, vivam com ela, falavam todos os dias com ela, cuidavam dela, sendo, na verdade, a sua família mais restrita.
19.Acresce ainda que, para além do aduzido, importa destacar que o progenitor não poderia peticionar qualquer indeminização uma vez que nunca prestou alimentos à filha, pelo que estava aberto o caminho da deserdação conforme previsto no artigo 2166.º do Código Civil.
20.Motivo pelo qual, para além da tentativa de assacar tais quantias pecuniárias se revelarem “Abuso de Direito”, tal circunstância demonstra que os Recorridos possuem legitimidade substantiva bastante.
21.Por fim, e no que concerne à tese da Recorrente, de que, não tendo o pai, terá o condutor, que mantinha uma relação amorosa com a CC, legitimidade para a referida indemnização, isto é, que aquele sempre preferia aos irmãos da falecida CC, da análise dos articulados, bem como da matéria de facto provada resulta que a Recorrente não alegou factos que permitam ao Tribunal concluir que a CC vivia em união de facto com o namorado, nem tais factos resultaram provados, ou a Ré impugnou a matéria de facto dada como provada, solicitando a respetiva alteração à matéria de facto.
22.Com o devido respeito, uma relação amorosa e a constituição de uma união de facto são situações (jurídicas, até) distintas.
23.Pelo que, não tendo sido dado como provado que a sinistrada e o condutor viviam em união de facto, e não tendo a Recorrente impugnado a matéria de facto dada como provada, peticionando a alteração da mesma nesse sentido, jamais poderá, mais uma vez, sufragar-se tal entendimento.
II – Da responsabilidade pela ocorrência do sinistro dos autos:
24.A título subsidiário, alega a Recorrente a existência de culpa exclusiva da sinistrada CC na eclosão do acidente que a vitimou.
25. A este propósito, e sem prescindir do já alegado em sede de recurso interposto pelos aqui Recorridos, cumpre destacar a matéria de facto dada como provada, de onde resulta que o condutor não atropelou uma vítima desconhecida, mas sim a sua namorada e, mais ainda, que tal acidente ocorreu na sequência de uma tentativa de escape do condutor do veiculo após uma discussão entre ambos.
26. Não se pode aceitar que a CC que caminha numa rua em paralelo, sem saída, sem trânsito e onde o único veículo que aí se encontrava – estacionado –, era o do condutor em causa, tenha tido qualquer culpa na ocorrência do acidente.
27.Note-se que, o condutor, conforme assumiu em sede de Audiência de Discussão e Julgamento, e conforme resulta da matéria de facto dada como provada, decide iniciar a marcha no momento em que vê a sinistrada no seu encalce: ao dirigir-se ao seu veículo, que se encontrava parado.
28.É este o mote para todo o acidente, de onde resulta claro e inequívoco que o condutor sabia, não podendo desconhecer, da presença da CC naquele local.
29.Contudo, em momento algum mesmo, ao efetuar a manobra se questionou: Onde está a CC?
30.Ao efetuar a manobra: com o intuito de fazer inversão de marcha, o condutor arranca (cfr. ponto S) dos factos provados), recua (cfr. ponto T) dos factos provados), altura em que atenta nos espelhos retrovisores laterias do veículo e nada vislumbra (cfr. ponto T) dos facos provados); inicia marcha ascendente e, olhando para frente, uma vez mais, nada vislumbra (cfr. ponto X), o condutor em momento algum, pese embora tenha conhecimento da presença da vítima naquele local, se questiona sobre a mesma. E, espante-se, na tese da Recorrente, o condutor não o teria que fazer.
31.É nesta circunstância que o acidente ocorre, porquanto o condutor, ao iniciar a manobra em sentido ascendente, embate com a parte frontal do veículo na vítima, ocasionando a sua morte (ponto GG dos factos dados como provados)
32.O condutor não cuidou de saber onde a vítima estava no decurso da sua manobra, como, no humilde entendimento dos aqui Recorridos, era sua obrigação, até porque, atendendo às características do veículo – ligeiro de mercadorias que dispõe de uma caixa fechada com cerca de 2 metros de altura a qual não é dotada de vidros ou janelas na traseira ou lateral traseira --, impunha-se uma atuação mais cuidada, por o mesmo apresentar maior perigosidade.
33.O Tribunal deu como provado (ponto JJ) que “Apesar de se ter apercebido que a vítima tinha passado a circular a pé na Rua na qual estava estacionado o veículo cuja marcha iniciou, consciente que a intenção/propósito da vítima era a de se aproximar do veículo por si conduzido, razão aliás das manobras com vista a abandonar o local, o condutor DD não verificou/acautelou, ao realizar a manobra de marcha atrás ou imediatamente antes de reiniciar a marcha, concluída aquela, do local onde se encontrava a vítima, não cuidando de verificar/acautelar-se que a vítima tinha desistido do seu propósito de perseguição, tendo por suficiente a não visibilidade da vítima”
34.Não deixa de ser curioso que o condutor, quando questionado sobre a primeira perceção que teve quanto sentiu o embate, em sede de Audiência de Julgamento, o mesmo ter respondido que de imediato se lembrou da CC. (ponto X dos factos dados como provados)
35.Tal revela com manifesta clareza a culpa do condutor na ocorrência do acidente, pois só desse modo se justifica tal resposta.
36.Contudo, na ótica da Recorrente, apenas a sinistrada deu causa ao sinistro. 37.A CC quando se dirige ao veículo o mesmo não estava em circulação, sendo que nem tal era a intenção do condutor, que apenas iniciou a marcha porque viu a CC.
38.Não merece censura o comportamento da sinistrada: deslocar-se a um veículo estacionado. Merece, outrossim, o comportamento do condutor: inicia uma manobra ao volante de um veículo, sabendo da presença de outrem na via, e não se preocupa em localizar a mesma, ou indagar-se onde a mesma se encontrava durante a mesma.
39.Mais ainda, sendo num curto espaço de tempo.
40.Por outro lado, e ainda que colhesse a tese da culpa, apresentada pela Recorrente, consta do acervo probatório dado como provado, que não foi impugnado pela Recorrente, que o condutor do veículo tinha igualmente conhecimento que a vítima se encontrava sob o efeito de substância suscetível de alterar as capacidades psicomotoras, de chinelos, alterada/exaltada emocionalmente e que a mesma se dirigia ao seu encontro, porquanto, como resulta da matéria de facto provada, ela tinha-lhe enviado mensagens ao longo do dia, ele tinha estado no interior da habitação com ela, tinham discutido e ele viu-a a sair de casa em direção ao seu carro, razão pela qual iniciou a marcha.
41.Não se pode aceitar, e certamente não aceitarão os Venerandos Juízes Desembargadores, que a CC tenha tido qualquer culpa na ocorrência do acidente.
42.Sendo que, a existir culpa da mesma, sempre seria considerada leve e, por isso, excluída a sua responsabilidade.
Por fim,
43.E quanto à tese da exclusão da culpa do condutor veiculada pela Recorrente, tem sido entendimento da mais abalizada doutrina e jurisprudência, que o veículo automóvel constitui um perigo, que decorre da sua própria natureza, nomeadamente atenta as suas dimensões, o seu peso, a potencial velocidade, da maior ou menor dificuldade em manobrar, isto é, da máquina enquanto engrenagem.
44.Caímos, pois, na alçada no disposto no art. 503º do CC, o qual prevê a responsabilidade daquele que tiver a direção efetiva do veículo, prevendo o art. 505.º do mesmo diploma legal a exclusão da sua responsabilidade.
45.Ora, no entendimento dos aqui Recorridos, o lesante não logrou afastar a responsabilidade pelo risco própria da circulação do veículo por si dirigido, sem prejuízo, claro está, da culpa que lhe é assacada, por não se poder extrair da factualidade assente que o acidente se deveu a culpa da vítima/lesada.
46.E, a admitir-se que a conduta da lesada concorreu para o desfecho, a verdade é que o comportamento da sinistrada não se revelou culposo, sempre se dirá que a inobservância do dever de cuidado por parte do condutor do veículo mostra-se consumida pela culpa leve da lesada.
47.Por outro lado, também não poderá sucumbir a tese da Recorrente do concurso de culpas fixado em 10% para o condutor e 90% para a lesada.
48.Sendo que, a este propósito, remetemos para o já aduzido bem como para os Ac. do STJ de 24-09-2020, processo n.º 9/14.7T8CPV.P2.S1, de 30-12-2022, processo n.º 1894/20.5T8FNC.L1.S1
49.Neste sentido, e em conjugação com o artigo 503 nº.1 do Código civil a entender-se existir concurso de culpas, deve a mesma fazer-se na proporção de 10% para a sinistrada e 90% para o condutor do veículo, por de facto, se entender que só assim se tem como respeitado o art.º 570.º do C.C., conforme pugnam os Recorridos em sede de alegações de recurso.
III – No tocante aos valores fixados pela sentença recorrida:
50.No que a esta tónica respeita, nenhuma censura merece o decidido pelo Tribunal Recorrido, isto porque a sinistrada tinha, tão só, 20 anos de idade e como tal a indemnização arbitrada pelo Tribunal Recorrido justifica-se por si só até porque tal como resulta da análise jurisprudencial, quanto mais jovem é a vítima, maior costuma ser o valor arbitrado.
51.Assim, considerando a idade da vítima, a culpa do lesado e as concretas circunstâncias em que ocorreu o sinistro, nenhuma censura merece a indemnização atribuída pelo Tribunal Recorrido que, em boa verdade, se cifra a meio caminho entre o decidido pelos Tribunais Superiores.
52.Já no que ao dano moral dos próprios Recorridos respeita, mostra-se justo e equitativo o abalizado pelo Tribunal Recorrido, pois, sem prejuízo das considerações tecidas pela Recorrente, a verdade é que os Recorridos eram a única família da sinistrada.
Nestes termos e nos demais de direito, deverá ser julgado totalmente improcedente o recurso interposto.».
Nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre decidir.
***
II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Cód. Processo Civil.
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelos apelantes, resulta que são os seguintes os pontos a analisar:

Recurso dos autores:

A- Alteração da decisão de mérito (culpa exclusiva do segurado; ou alteração da percenbtagem no caso de concorrência).

Recurso subordinado da Ré:

B- Alegada inexistência do direito dos Recorridos (Ilegitimidade)
C- Alteração da decisão de mérito (culpa exclusiva da vítima, ou alteração da percentagem e redução valor da indemnização).
*
III- FUNDAMENTOS DE FACTO

A sentença recorrida foi proferida quanto á matéria de facto nos seguintes termos: «… Com interesse para a decisão da causa está provado que:
A) No pretérito dia 28 de Julho de 2017, entre as 19 horas e 30 minutos e as 19 horas e 45 minutos, na Rua ..., mais concretamente no largo ..., em Real ..., Amarante, ocorreu um acidente com um veículo em circulação, do qual resultou a morte de CC, solteira, maior, residente que foi na referida Rua ..., ..., freguesia ..., Concelho de Amarante.
B) A sinistrada era irmã dos aqui Autores.
C) CC foi atropelada mortalmente pelo veículo automóvel ligeiro de mercadorias, de marca Peugeot, modelo ..., com a matricula ..-TD-...
D) O TD era propriedade da sociedade C... Unipessoal, Lda.
E) A proprietária do veículo automóvel havia transferido para a Ré (na pessoa da sua antecessora) a responsabilidade civil pelos danos causados com o mesmo, por contrato de seguro que se encontrava em vigor à data do acidente, a que se reporta a apólice junta sob o documento nº 2 com a contestação da Ré, que aqui se dá por integralmente reproduzida.
F) O sinistro sucedeu no largo que se situa no final da Rua ... - Amarante, de piso em paralelo e com plano inclinado descendente, ladeado pela moradia onde residia a vítima e ainda por campos de cultivo e mato.
G) A Rua ..., atento o sentido de marcha Norte Sul, é uma via sem saída para veículos automóveis, terminando num pequeno largo, que apenas dá acesso a um caminho estreito em piso de terra batida que permite aceder a campos e mato situados ao seu redor, bem como a um outro caminho de acesso pedonal a outras casas e anexos existentes naquelas imediações.
H) O referido largo possui o pavimento empedrado e apresenta uma inclinação longitudinal descendente, considerando o sentido de marcha Norte Sul, ou seja, na perspectiva de quem ali acede, procedendo da Rua ....
I) A Rua ... é ladeada pelo lado esquerdo, atento o indicado sentido de marcha, por um muro pertencente a uma habitação e, pelo lado direito, pelo muro e pelo portão de acesso à habitação onde ao menos a CC então vivia.
J) Por sua vez, o largo existente no final da Rua ... é ladeado pelo lado esquerdo, atento o sentido Norte Sul, por árvores e vinhas que ali se encontram implantadas num terreno que o ladeia.
K) O veículo era conduzido naquela data por DD, à data dos factos funcionário da empresa proprietária do veículo.
L) Antes do evento, o DD estacionou a viatura acima melhor identificada, no largo, ao fundo da Rua ..., com a frente virada para baixo, encostada ao lado esquerdo junto ao muro, tendo-se dirigido, de seguida, para a casa onde residia a sinistrada CC. O veículo estava estacionado encostado do lado esquerdo da via, atento o sentido de marcha Norte - Sul, junto ao final do muro existente desse mesmo lado da via e com a respectiva frente virada para baixo, isto é, para o lado Sul.
M) Já no interior da habitação, iniciaram os mesmos uma discussão.
N) Na manhã e na tarde do dia do acidente, a CC enviou ao condutor do PD, DD, com quem mantinha uma relação amorosa e com o qual havia tido uma discussão na noite anterior, várias mensagens telefónicas, a dizer-lhe que tinha tomado comprimidos que levaram a ficar com tonturas, como forma de o pressionar a vir para casa.
N) À data, a sinistrada CC tinha 20 anos de idade.
O) A CC apresentava na ocasião em que foi colhida no sangue uma substancia medicamentosa denominada «quetiapina», numa concentração de 765 mg/L.
P) Após a ocasião referida em M), o condutor saiu de casa, dirigiu-se ao seu automóvel, abriu a porta do lado do condutor e sentou-se.
Q) Na sequência da discussão no interior da casa, o mencionado DD decidiu sair novamente da habitação, para não alimentar a discussão, tendo-se dirigido ao TD, no qual entrou.
R) Apenas quando que se apercebeu que a sinistrada vinha no seu encalce, descendo a rua, alterada, o condutor trancou as portas do aludido automóvel e ligou a ignição e arrancou, pretendendo iniciar a realização da manobra de inversão de marcha, sendo que quando iniciou a marcha o condutor viu que a sinistrada se encontrava a aproximar-se do veículo, caminhando ligeira na direcção daquele mesmo veículo.
S) Pretendendo fazer uma manobra de inversão de marcha, visto que a rua em causa não tem saída, o referido DD engatou a 1ª velocidade e virou o volante do TD para a direita atento o sentido de marcha Norte Sul e arrancou, dando início à sua marcha, dirigindo o TD para o seu lado direito, tendo percorrido alguns, não mais de quatro metros, a velocidade não superior a 10 Km/h.
T) De seguida, o DD travou e engatou a marcha atrás, com vista a recuar, de forma a poder concluir a manobra de inversão de marcha a que dera início, para o que, antes de iniciar a manobra de marcha atrás, olhou para trás através dos espelhos retrovisores laterais do TD e constatou que, naquele momento, nenhum veículo ou pessoa se encontrava ao lado ou à retaguarda do veículo que tripulava.
U) O TD é um veículo ligeiro de mercadorias que dispõe de uma caixa de carga fechada, com cerca de 2 metros de altura, a qual não é dotada de vidros ou janelas na respectiva traseira e laterais traseiras.
V) De seguida, executada a marcha atrás, pretendendo seguir a direcção ascendente e o sentido de saída da Rua ..., o condutor do TD engatou novamente a 1º velocidade e olhou ao menos para a frente, verificando que, no campo visual que lhe era avistável, atenta a posição normal que ocupava no veículo, não se encontrava qualquer pessoa ou viatura a circular naquele largo.
X) Logo após ter arrancado, quando tinha apenas percorrido uma distância não superior a 3 metros, a uma velocidade não superior a 5 Km/h, o mencionado DD sentiu um solavanco nos rodados dianteiros do TD, como se estivesse a subir uma lomba, que condicionou/impediu a progressão do veículo.
Z) O referido DD calcou o pedal da embraiagem e deixou o veículo descair para trás em direcção contrária à sua circulação até à sua imobilização.
AA) Nesse momento apenas avistou a CC caída na faixa de rodagem, apercebendo-se, então, que a tinha atingido com os rodados dianteiros do TD.
BB) Na ocasião do atropelamento, a vítima encontrava-se à frente do veículo, numa posição deitada/sentada, sem que fosse visível para o condutor.
CC)Aquando do arranque do TD a CC não estava no campo de visão do DD, pois estava deitada/sentada no chão da estrada, sobre a zona frontal inferior da viatura.
DD) A referida CC, tendo caído, ficou, na ocasião da manobra de arranque pelo condutor, na frente do TD, junto à dianteira do veículo, num plano inferior ao respectivo para-choques dianteiro e num local onde não era avistável para o mencionado DD.
EE) No momento imediatamente anterior à colisão, a CC encontrava-se prostrada no chão em frente ao TD, junto à dianteira do veículo e a uma distância deste sempre inferior a 2 metros.
FF) Quando reiniciou a sua marcha e arrancou, o mencionado DD não podia avistar a CC, pois esta estava fora do seu campo de visão.
GG) O embate entre o TD e a referida CC deu-se com a parte inferior dianteira da viatura, mais concretamente com a carenagem de protecção do motor do veículo.
HH) Na sequência do acidente, o TD apenas sofreu danos na fixação da respectiva forra inferior direita.
II) A mencionada CC apresentava apenas lesões abrasivas e escoriações nos membros inferiores, com um sentido horizontal relativamente ao corpo.
JJ) Apesar de se ter apercebido que a vítima tinha passado a circular a pé na Rua na qual estava estacionado o veículo cuja marcha iniciou, consciente que a intenção/propósito da vítima era a de se aproximar do veículo por si conduzido, razão aliás das manobras com vista a abandonar o local, o condutor DD não verificou/acautelou, ao realizar a manobra de marcha atrás ou imediatamente antes de reiniciar a marcha, concluída aquela, do local onde se encontrava a vítima, não cuidando de verificar/acautelar-se que a vítima tinha desistido do seu propósito de perseguição, tendo por suficiente a não visibilidade da vítima.
LL) A substância referida em O), na concentração verificada, é passível de alterar a capacidade da marcha, podendo provocar lentificação psicomotora.
MM) Os Bombeiros fizeram manobras de reanimação à vítima, cujo corpo se encontrava no pavimento em decúbito dorsal, de cuja posição original não foi deslocada.
NN) A vítima estava em paragem cardíaca.
OO) Elementos do INEM entretanto chegados também tentaram reanimar a vítima.
PP) A morte da vítima CC ocorreu devido a lesões traumáticas torácicas, com rotura cardíaca e tamponamento cardíaco, provocados por traumatismo de natureza contundente, compatível com o descrito atropelamento.
QQ) As circunstâncias em que a irmã dos aqui Autores faleceu, nomeadamente a causa da morte bem como a circunstância de ter ocorrido de forma inesperada, causou aos irmãos desgosto.
RR) A CC era uma irmã querida pelos Autores, os quais nutriam pela mesma carinho e afeto e com a qual tinham uma relação de proximidade.
SS) Os Autores viveram momentos de angústia, ansiedade e tristeza.
TT) Os AA sentiram revolta com a morte da irmã.

2. Factos não provados
Com interesse para a decisão da causa não se provou que:
1. Para além do provado, ao arrancar, o condutor viu que a sinistrada se encontrava na área circundante ao veículo, tanto mais que a mesma chegou a tocar o veículo para impedir que o mesmo abandonasse o local;
2. conformando-se com a presença da vítima, o condutor virou o volante à direita, iniciando a marcha com o intuito de abandonar o local;
3. De seguida, travou e engatou a marcha atrás, e, recuando, engatou novamente a primeira mudança e arrancou, sendo certo que neste hiato temporal a sinistrada encontrava-se naquele local, o que era do seu conhecimento;
4. Ao efetuar tal manobra, o condutor embateu com a parte inferior da frente do veículo (atenta a posição do condutor) na sinistrada CC, tendo-a arrastado numa distância inferior a 1 metro;
5. Na véspera do acidente, o mencionado DD tinha referido à CC que, se os problemas persistissem, era sua intenção abandonar a casa onde ambos viviam, o que terá deixado esta última perturbada.
6. Logo que chegou ao carro, nas circunstâncias de tempo, lugar e modo assentes em P) a R), o condutor accionou o respectivo motor, com vista a abandonar o local.
7. Naquelas circunstâncias a sinistrada gritava para que aquele não abandonasse o local;
8. Nas circunstâncias de tempo, lugar e modo assentes em S), o condutor não iniciou a marcha sem antes ter olhado previamente para a frente e para o seu lado direito, de modo a certificar-se de que ali não circulavam quaisquer viaturas ou peões, sendo que apenas realizou a manobra depois de verificar que o sobredito largo se encontrava livre e desimpedido, não sendo visível qualquer veículo ou peão;
9. Nas mesmas circunstâncias o TD percorreu não mais de 2 / 3 metros, a uma velocidade de cerca de 1 / 2 kms/h.
10. Durante a execução da manobra de marcha atrás, o referido DD manteve o seu olhar sempre dirigido para ambos os espelhos retrovisores do TD, para se assegurar de que não embatia nas árvores e videiras que se encontram implantadas no lado esquerdo do largo existente no final da Rua ..., atento o sentido de marcha Norte Sul;
11. Nas circunstâncias de tempo, lugar e modo referidas em V) o condutor mais olhou para o seu lado direito antes de iniciar a marcha, o que fez a uma velocidade de 1 Km/h;
12. Apenas depois de se assegurar que o sobredito largo se encontrava livre e desimpedido, o mencionado DD arrancou, reiniciando a sua marcha, avançando em direcção à sua direita.
13. Nas circunstâncias de tempo, lugar e modo referidas em X) e Z) o DD pensou que tinha colidido contra algum obstáculo, que não chegou a transpor;
14. Quando o mencionado DD se encontrava a realizar a sobredita manobra de marcha atrás, com o seu olhar direccionado para a parte de trás do veículo, a referida CC colocou-se subitamente na frente do TD, porque se posicionou voluntariamente na dianteira da viatura, de forma a impedir a sua progressão e que aquele fosse embora;
15. Pese embora o provado sob Antes de iniciar a marcha o condutor verificou todo o espaço do sobredito largo por onde ia começar a circular, por forma a perceber;
16. Apesar de poder avistar facilmente o TD, a falecida colocou-se na frente da viatura e num plano inferior;
17. A falecida uma jovem com um grande apego à vida, muito alegre, robusta, saudável, dinâmica, alegre e feliz;
18. A mais do provado, os AA relembram-se com maior intensidade de toda a factualidade sempre que passam pelo local do sinistro.
19. Os Autores nutriam um sentimento grande de proteção para com a CC;
20. Os Autores viram a sua capacidade de concentração e de trabalho diminuídas;
21. Em consequência da morte da sinistrada CC, os aqui Autores tiveram ainda que suportar despesas com o seu funeral no montante de 1.680,00 (mil seiscentos e oitenta euros).
Não se provaram outros danos morais.».(sic).
***
IV - FUNDAMENTOS DE DIREITO

Por uma questão de precedência lógica iremos analisar em primeiro lugar o primeiro ponto invocado no recurso subordinado atinente á alegada inexistência do direito dos autores á indemnização (Ilegitimidade substantiva).

A ré veio invocar a inexistência do direito á indemnização dos autores, sendo que tal questão se traduz numa questão de ilegitimidade substantiva e não de mera ilegitimidade activa, já que contende com a decisão de mérito
No caso consideramos este segmento do recurso como improcedente, porque o legislador no artigo 496º do Código Civil, veio subtrair a indemnização por “danos não patrimoniais” às regras do direito sucessório a que aludem os artigos 2133º do Código Civil.
Neste sentido, vide Pires de Lima e Antunes Varela e CCvil Anotado, “no caso de a lesão ser mortal, toda a indemnização correspondente aos danos morais (quer os sofridos pela vítima quer pelos familiares mais próximos cabe, não aos herdeiros por via sucessória mas aos familiares por direito próprio, nos termos e segundo a ordem do disposto no nº 2 do artigo 496º.
Neste sentido, vide o Ac do STJ 1608/15.5T8LRA.C1.S1 ,Relator: TÁVORA VICTOR, 01-03-2018, disponível na base de dados da DGSI (local de origem de toda a jurisprudência citada) Sumário :
I - Foi intuito do legislador, no art. 496.º do CC, subtrair a indemnização por "danos não patrimoniais" às regras do direito sucessório a que aludem os arts. 2133.º e ss. do CC.
II - O membro sobrevivo da união de facto recebe todos os quantitativos a atribuir a título de indemnização por danos não patrimoniais resultantes da morte do membro finado.».

Sobre os danos não patrimoniais versa o artigo 496.º do Código Civil.
Como decorre do artigo 496.º a indemnização pelo dano morte é concedida conjuntamente e de forma sucessiva aos grupos de familiares ali indicados. Há quem defenda que uma situação de litisconsórcio necessário activo, identificando outros uma regra de direito material que não impede uma atuação ut singuli.
Tem-se entendido doutrinária e jurisprudencialmente, que, em caso de morte, do artigo 496.º, n.º s 2 e 3, do Código, existem três danos não patrimoniais indemnizáveis:
- O dano pela perda do direito à vida;
- O dano sofrido pelos familiares da vítima com a sua morte;
- O dano sofrido pela vítima antes de morrer,
Nos termos do artigo 495.º, n.º 3 e do artigo 496.º, n.ºs 2 e 3, ambos aceitam, que, no caso de lesão ou agressão mortal, o agente é obrigado a indemnizar não só o dano patrimonial sofrido pelas pessoas com direito a exigir alimentos ao lesado ou por aquelas a quem este, de facto, os prestava em cumprimento de uma obrigação natural, mas também os danos não patrimoniais que tenham sofrido quer a própria vítima da lesão ou agressão, quer o seu cônjuge ou parentes mais próximos.
Em acidente de viação mortal, a indemnização pela “perda do direito à vida da vítima”, bem como pelos danos não patrimoniais sofridos pelos familiares referidos no art. 496º nº 2 e 3 do CC constitui direito próprio das pessoas aí elencadas.
De todo o exposto, conclui-se ser o direito a indemnização pelo dano morte um direito originário, não havendo que proceder a habilitação de herdeiros.
A ausência da lide do pai da falecida, não determina ilegitimidade por infracção das regras do litisconsórcio necessário, que se não aplicam no caso.
Acresce que a questão suscitada quanto á união de facto não se aplica ao caso dado que não ficou demonstrado esse relacionamento entre a vitima e o segurado.
Pelo exposto, improcede neste segmento o recurso deduzido.
*
B e C Alteração da decisão de mérito

No presente recurso foi impugnado por ambas as partes matéria de direito e nessa medida ir-se-á analisar conjuntamente as respectivas impugnações: culpa exclusiva do condutor ou da sinistrada, no caso de concorrência de culpas alterar a percentagem e a redução dos valores da indemnização pelo danos morte e danos morais.

Nas alegações de recurso aos autores consideram em resumo que a factualidade provada determina que se conclua pela existência de culpa exclusiva do condutor do veículo na ocorrência do acidente, sedo que o mesmo tinha uma relação amorosa com a vítima, com a qual se havia desentendido no dia anterior ao do sinistro; que o mesmo, na manhã e durante a tarde do dia a que se reportam os factos, rececionou várias mensagens telefónicas por parte da sinistrada, dando-lhe nota de que havia ingerido medicação, que lhe casou tonturas; que nos momentos que antecederam o sinistro, a vítima mortal e o condutor do veículo automóvel que a atropelou, discutiram na casa onde habitava a vítima, e que foi este facto que levou o condutor a abandonar o local e a sentar-se na viatura em causa nos autos, a qual se encontrava estacionada nas imediações.
Referem que o referido condutor atropelou a sua namorada, que havia tomado fármacos e o acidente ocorreu na sequência de uma discussão do casal, na sua tentativa de escape. Mais referem que a vitima vem no seu encalce, altura em que o condutor do veículo decide iniciar a manobra para abandonar o local, sem olvidar, que “o condutor viu que a sinistrada se encontrava a aproximar-se do veículo, caminhando ligeira na direção daquele mesmo veículo” . Mais referem que nesse preciso momento constitui o instante em que o condutor do veículo “perde de vista” a vítima, não tendo nunca mais, ao que parece, se questionado: “Onde está a CC?”
É nesta nébula que ocorre o sinistro, porquanto, ao iniciar a marcha em sentido ascendente, o condutor, por alegadamente não ter essa visibilidade, embate com a parte frontal do veículo na vítima, ocasionando a sua morte Refere que se é certo que se o condutor do veículo automóvel não percecionou a queda de CC, certo é também que sabia que a mesma se encontrava naquelas imediações e da sua intenção em aproximar-se do veículo, e não cuidou de saber onde estava a mesma.
Face a tais características do veículo, sempre se dirá que, também por este motivo, recaía sobre o condutor um cuidado acrescido, uma vez que o mesmo não possui janelas nas laterais e na traseira, e que a sua parte frontal é mais elevada quando comparado com um comum veículo ligeiro de passageiros.
Da matéria de facto provada resulta que, ainda que o condutor do veículo possa não ter avistado a vítima, a verdade é que também, em momento algum, se preocupou em saber onde a mesma se encontrava e, desse modo, assegurar que fazia as manobras de fuga em segurança.
Atento o exposto, não se pode aceitar que a CC tenha tido qualquer culpa na ocorrência do acidente. E mais, a existir algum tipo de culpa por parte da sinistrada – que caminha numa rua em paralelo, sem saída, sem trânsito e onde o único veículo que aí se encontrava – estacionado –, era o do condutor em causa nos autos, a mesma sempre se terá de considerar como leve e, nessa medida, deve ser excluída toda e qualquer responsabilidade por parte da vítima.
No entender dos Recorrentes, o acidente deveu-se a culpa exclusiva do condutor do veículo, que violou o dever de cuidado a que estava adstrito, ao descurar em absoluto o paradeiro de CC durante a realização das manobras de circulação com um veículo com as características do veículo por si dirigido que, na ótica dos Recorrentes, impunha um dever acrescido de cuidado na sua condução.
Alegam os recorrentes que ao contrário do entendido pela decisão recorrida, o lesante não logrou afastar a responsabilidade pelo risco/perigo, própria da circulação do veículo por si dirigido, sem prejuízo, claro está, da culpa que lhe é assacada, por não se poder extrair da factualidade assente que o acidente se deveu a culpa da vítima/lesada.
Por outro lado referem que mesmo que se entendendo de forma diversa, atento o circunstancialismo dos autos, nomeadamente “com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram”, sempre se dirá que a indemnização deve ser totalmente concedida aos Recorrentes, porquanto a inobservância do dever de cuidado por parte do condutor do veículo mostra-se consumida pela culpa leve da lesada.
Acresce que, caso assim se não entenda, e se considere a existência de repartição da culpa entre o condutor do veículo seguro e da sinistrada, a percentagem atribuída a cada um deles encontra-se totalmente alheada da realidade dos factos e do direito que lhes é aplicável.
Por todo o exposto, e a entender-se existir concurso de culpas, deve a mesma fazer-se na proporção de 10% para a sinistrada e 90% para o condutor do veículo, por de facto, se entender que só assim se tem como respeitado o art.º 570.º do C.C.
Concluem, assim que , deve ser dado provimento ao recurso e, consequentemente, revogada a decisão recorrida, e substituir-se por outra que responsabilize exclusivamente a Recorrida pelo pagamento da quantia aos Recorrentes de 100.000,00€ (cem mil euros) a título de indemnização pelo dano morte da vítima e, bem assim, pelo pagamento da quantia de 50.000,00€ (cinquenta mil euros) a cada um dos Recorrentes pelo dano moral próprio, por ser este o valor mais justo e adequado, tendo em conta a relação de grande proximidade entre os Recorrentes e a vítima, de quem eram os único irmãos.
Caso este Tribunal seja do entendimento que os presentes autos encerram uma causalidade concorrente, sempre deverão as respetivas culpas ser fixadas na proporção de 10% para a sinistrada e 90% para o condutor do veículo, reduzindo-se os valores supra referidos nessa exata proporção.
*
Por outro lado, a ré considera que da análise da matéria dada como assente resulta, desde logo, que a conduta do condutor do TD, DD, em nada contribuiu para a eclosão do sinistro, sedo que o mesmo de modo a fugir de uma nova discussão familiar com a CC, decidiu sair de casa e dirigiu-se até ao veículo TD, que se encontrava estacionada e dado tratar-se de uma rua sem saída, procurou levar a cabo uma manobra de mudança de direção, de modo a lograr sair daquele local. Com esse intuito, primeiramente, engatou a 1ª velocidade e virou o volante do TD para a direita, depois iniciou a marcha atrás, tendo previamente verificado pelos espelhos retrovisores laterais do TD e constado que, naquele momento, nada – veículo, animal ou pessoa – estava do lado ou à retaguarda do veículo que conduzia. E que ao seguir em frente não era avistável não se encontrava qualquer pessoa ou veículo e depois, só depois, iniciou esse arranque, a uma velocidade de 5 Km/h.E foi então que sentiu um solavanco nos rodados dianteiros do TD, como se estivesse a subir uma lomba, tendo, de imediato, interrompido a manobra que estava a levar a cabo.
Posteriormente, após ter saído veículo, veio a verificar que se tratava do corpo da malograda CC, que antes do embate estava à frente do veículo, numa posição sentada / deitada, sem que fosse, por tudo isto, visível para o DD ou para qualquer condutor normal que estivesse a levar a cabo uma manobra idêntica à que aquele condutor estava a fazer.
A tudo isto acresce que a malograda CC estava sobre o efeito da droga / medicação em dosagem excessiva que afectava os movimentos ao nível psico-motor.
Conclui, assim que o DD nada mais poderia ter feito para evitar a eclosão do atropelamento, já que, antes de iniciar qualquer uma das manobras que levou a cabo, tomou as devidas cautelas e providências necessárias para as realizar sem perigos em situações normais, Acresce que a CC surgiu a cerca de 2 metros, encontrando-se deitada / sentada no chão da estrada fora do campo visual do DD que, por isso, estava impedido e impossibilitado de a ver, naquele local e daquela forma.
Donde resulta que esta é a única responsável pela eclosão do sinistro, que facilmente poderia ter evitado.
Invoca ainda que em sede de instrução criminal houve arquivamento dos autos, e assim resulta, de forma clara e inequívoca, que o acidente dos autos ocorreu por culpa única e exclusiva da CC, não se podendo, por isso e consequentemente, atribuir qualquer percentagem de culpa ao DD, que se limitou a atuar como um cidadão normal perante o cenário imprevisível, improvável e “estranho” que lhe apareceu, atuando com a diligência que um pai de família – o homem normal – teria, em face do condicionalismo do caso concreto (cf. Ac. do STJ de 15.06.88, in BMJ n.º 378, pág.. 677).
Conclui, assim que seja decidida e determinada a culpa exclusiva da falecida pela ocorrência do atropelamento e a improcedência total da presente ação, com a consequente absolvição da aqui recorrente.
Mais refere que na eventualidade de se entender que há culpas concorrentes , considera que a culpa do condutor não poderia ultrapassar os 10% e nessa medida mal andou o tribunal em fixar em 20%.
Por fim,, alega que a indemnização do direito á vida deveria ser fiada em 60.000,00 Euros face ao acima invocado.
E quanto aos danos não patrimoniais próprios sofridos por um irmão pela morte de uma irmã entende que esta quantia – de €25.000,00 – é manifestamente exagerada e indevida, para o ressarcimento dos danos aqui em causa, impondo-se a sua redução para valores nunca superiores a €15.000,00, para cada irmão, aos quais, posteriormente, terão de ser aplicadas as percentagens de culpa, caso existam
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A sentença recorrida quanto á parte objecto do recurso refere em resumo o seguinte: «…Importa, agora, averiguar se é possível imputar o facto ao agente, ou melhor, se este, nas circunstâncias em que o acidente ocorreu podia ou devia ter agido de outro modo, isto é, se actuou com a diligência que um pai de família homem normal teria em face do condicionalismo do caso concreto (cfr. Ac. do STJ de 15.06.88, in BMJ n.º 378, pág. 677).
Importa, também, averiguar, do mesmo modo, se a vítima actuou culposamente, omitindo deveres legais ou deveres de cuidado no caso impostos.
…Se aproximarmos as precedentes considerações do que normalmente ocorre nos acidentes de viação, temos à partida que considerar o acto de conduzir viaturas um acto voluntário. Esta voluntariedade, em princípio, repercute-se em todo o seu desenvolvimento, a menos que um facto anormal, no sentido de excepcional, intervenha no processo.
Donde, se ressalta no caso o comportamento negligente da vítima, que se encontrava sob o efeito de substância susceptível de alterar as capacidades psico- motoras, de chinelos, alterada/exaltada emocionalmente e se dirigiu ao encontro/na perseguição de um veículo em movimento, valendo aqui a prova prima facie da respectiva culpa negligente, que não é afastada pela queda que a terá vitimado, antes causal esta queda daquele comportamento Não se nos afigura que o comportamento do arguido seja isento de reparo do ponto de vista da culpa, ao não ter verificado onde se encontrava a vítima, antes de iniciar a manobra de marcha á frente…com efeito, ciente de que a vitima estava naquele estado emocional alterado e na sua/do veículo perseguição/encalço, achando-se imediatamente antes de ter arrancado já na via/estrada/largo, o facto de não ter procurado confirmar onde estava a mesma, acautelando que esta não se encontrasse, como veio a suceder, de modo a poder ser atingida pelo veículo por si tripulado, integra, em nossa opinião, a inobservância de um dever de cuidado que as circunstâncias concretas em que actuou o condutor exigiam. Culpa negligente, pois.
Em conclusão, da factualidade apurada decorre que o acidente dos autos resultou, ou ainda ou também, num plano de concausalidade ou de causalidade concorrente, ambas culposas, do comportamento lesivo de um dever de cuidado da parte do condutor do veículo seguro na Ré, a saber, o dever de cuidado de verificar onde se encontrava a vítima, afastando a possibilidade que se tornou real de a atingir.
…Finalmente, não se afigura que a queda da vítima se prefigure como evento totalmente imprevisível que afaste, desta feita, o nexo causal entre a violação do dever de cuidado e o atropelamento mortal.
…Convocada aqui a apreciação supra das circunstâncias do evento, importa inferir a culpa da vítima/sinistrada, tendo o comportamento daquela contribuído para a produção do acidente, pelo que somos forçados a concluir estarmos perante uma conduta do lesado que se enquadra naquele que é, tradicionalmente, considerado o círculo exoneratório do art. 505.
Contudo, adiante-se, temos para nós que o acidente não tem de ser imputado exclusivamente àquela sinistrada i. é, o comportamento desta não tem de haver-se como a causa única do acidente. É que os factos assentes não permitem ter por caracterizada uma ausência de contribuição causal do risco/perigo próprio da circulação do veículo para a produção do acidente.
E esta conclusão assume importância decisiva: tanto a doutrina como a jurisprudência vêm abandonando o entendimento, baseado na autoridade de Antunes Varela, segundo o qual, em matéria de acidentes de viação, a verificação de qualquer das circunstâncias referidas no art. 505 exclui a responsabilidade objectiva do detentor do veículo, não se admitindo o concurso do perigo especial do veículo com o facto da vítima, de modo a conduzir a uma repartição da responsabilidade.
…Não se afigura, assim, compatível com o direito comunitário e, designadamente, com o art. 1.º da 3.ª Directiva a interpretação que, do art. 505, vem fazendo a doutrina tradicional, no sentido de que a simples culpa ou a mera contribuição do lesado para a produção do dano exclui a responsabilidade pelo risco, contemplada no art. 503º. O efeito útil das disposições comunitárias acima aludidas impõe sempre a indemnização das vítimas de acidentes causados por veículos automóveis, excepto se se tratar de passageiros transportados, com seu conhecimento, em veículo roubado.
Como é entendimento do TJ, que diz decorrer dos arts. 189 (actual 249) e 5.º do Tratado CE, as jurisdições nacionais devem, dentro do possível, interpretar o respectivo direito nacional à luz das Directivas comunitárias no caso aplicáveis, mesmo que não transpostas ou incorrectamente transpostas. É a chamada obrigação de interpretação conforme.
É também a esta luz que entendemos, procedendo, dentro do possível, a uma interpretação conforme com o direito comunitário, das regras nacionais sobre a responsabilidade civil objectiva, que essas normas consagram a possibilidade de concurso do risco do condutor do veículo com a conduta culposa do lesado, e que a responsabilidade pelo risco só é excluída, tal como entende Calvão da Silva, quando o acidente for imputável i.e., unicamente devido, com ou sem culpa ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte (exclusivamente) de força maior estranha ao funcionamento do veículo. Não sendo esse o caso, logrará aplicação, na fixação da indemnização, o art. 570
…Sensíveis que somos a esta jurisprudência e doutrina, sempre o risco próprio da circulação do veículo teria de haver-se como concausal, a par da culpa do sinistrado e lesado mesmo, para a verificação do sinistro, tendo-se como caracterizada aquela concausalidade, ainda por via do risco.
Alcançado, pois, o fundamento da obrigação de indemnizar, temos para nós que a repartição da culpa entre o condutor do veículo seguro e da sinistrada se tem que fazer na proporção de 20% para o primeiro e 80% para a segunda. É em função desta repartição, pois, que cabe arbitrar a reparação.
Está em causa a indemnização por danos não patrimoniais em caso de morte da vítima, demonstrada a culpa negligente do lesante.
…A morte decorrente de um acidente de viação constitui um dano inqualificável, uma vez que a vida humana representa um bem insubstituível e irreparável. Assim, o princípio basilar do direito à indemnização nunca funciona, na sua plenitude, em caso de morte uma vez que é objetiva e subjetivamente impossível reparar o dano e repor a situação que existia antes do acidente.
De todo o modo, a lei portuguesa contempla uma forma de compensação ou atenuação do dano através de indemnização pela perda do direito à vida, pelo sofrimento da vítima antes da morte e pelos danos morais dos familiares diretos (filhos, pais, cônjuge) Além desses danos, denominados de não patrimoniais, pela morte decorrente de acidente de viação há também lugar a indemnização pelos danos patrimoniais, sempre que a vítima contribuísse para a economia doméstica ou tivesse dependentes a seu cargo.
Todos estes danos devem ser devidamente contabilizados, de acordo com cálculos em vigor na legislação aplicável e na jurisprudência atualmente em prática.
Julgamos que a jurisprudência largamente dominante é no sentido de que a perda do direito à vida é indemnizável em montante variável, atendendo v.g. à idade da vítima, ao seu apego à vida, à sua situação socioeconómica - cfr. por todos os Acs. do S.T.J. de 13 de Maio de 1986, B.M.J. n.º 357, pág. 399, 16 de Dezembro de 1999, revista 899/99, 2ª secção, os Acs. da Rel. de Évora de 16 de Fevereiro de 1983 (Col. de Jur. ano VIII, tomo 1, pág. 308), da Rel. de Lisboa de 20 de Fevereiro de 1990 (Col. de Jur., ano XV, tomo 1, pág. 188) e da Rel. de Coimbra de 26 de Novembro de 1991 (Col. de Jur., ano XVI, tomo 5, pág. 71), no último dos quais, perante um acidente que vitimou uma jovem de 23 anos de idade que havia completado dias antes a licenciatura em Ciências Biológicas após um exemplar comportamento escolar, se assinala que no juízo de equidade que deve presidir à determinação concreta da indemnização pela perda do direito à vida, deverá o tribunal atender nomeadamente, ao grau de culpa do lesante e também ao valor intelectual e humano da vítima, à sua formação académica e científica, às suas qualidades de trabalho e idoneidade moral.
Por último, ter-se-ão em consideração o sentido das decisões sobre a matéria em causa, os critérios jurisprudenciais vigentes e aplicáveis a situações semelhantes, fazendo-se a comparação do caso concreto com situações análogas equacionadas noutras decisões judiciais, não se perdendo de vista a sua evolução e adaptação às especificidades do caso sujeito.
Os padrões de indemnização que vêm sendo adoptados pela jurisprudência, nomeadamente os mais recentes, constituem também circunstância a ter em conta no quadro das decisões que façam apelo à equidade.
Na verdade, devendo o quantitativo da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais ser apurado, sempre, segundo critérios de equidade, deverá atender- se, conforme Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, volume I, p. 629, para além do grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização, ainda aos padrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência. E assim é que o recurso à equidade, exigido pela necessidade de adequação da indemnização às circunstâncias do caso, não dispensa a necessidade de observância das exigências do princípio da igualdade, o que implica a procura de uniformização de critérios e a necessidade de atender, por razões de justiça relativa e para evitar soluções demasiadamente marcadas por subjectivismo, aos padrões geralmente adoptados na jurisprudência, importando ter sempre em atenção as circunstâncias de cada caso, bem como as datas em que as decisões foram proferidas e o consequente decurso do tempo relativamente à decisão confrontada.
Antunes Varela, na RLJ, ano 123.º, p. 280, considera que o Tribunal deve também atender aos valores anteriormente fixados pelos outros tribunais para a indemnização de danos de igual natureza. Defendendo, bem assim, o recurso a tais padrões, podem ver-se numerosos acórdãos do STJ. Sem que deixe de se ter em atenção o relativismo decorrente, para além do mais, da diversidade e heterogeneidade das espécies submetidas a julgamento e a reapreciação em recurso, dos diferentes circunstancialismos, condicionalismos e especificidades presentes em cada caso e em que se procura a harmonia possível com recurso à equidade, com diferenças que podem advir do facto de ser o lesante a pagar efectivamente a indemnização ou a seguradora para quem foi transferida a responsabilidade, para além no cível dos limites da condenação, presentes no artigo 661.º do CPC, ou ser caso de dolo ou de mera
Compulsando, finalmente, a jurisprudência ainda mais recente dos tribunais superiores, sem esquecer que alguma disparidade de quantitativos processuais arbitrados é imputável ao funcionamento das regras do processo civil, por via dos próprios pedidos dos lesados, constata-se que o dano morte oscila, na sua quantificação nos últimos anos, entre 50 mil (para pessoas de mais idade) e 180 mil, sendo possível encontrar variados exemplos de «maior generosidade».
De todo o modo, embora deva reconhecer-se ser a vida um bem igual para todos, a indemnização pela perda do direito à vida deve ser aferida em relação a três realidades ( o já longínquo Ac. Rel. Évora, de 16/02/83, CJ, 83, tomo 1, p. 308), que mais não são do que parâmetros genéricos a utilizar no juízo de avaliação da indemnização por danos não patrimoniais: a vida que se perde, com função normal que desempenha na vida e na sociedade; a vida que se perde, com função excepcional que desempenha na sociedade (sábio, cientista, etc.) e a vida que se perde sem função específica na sociedade (criança, doente, inválido, etc.).
Na situação decidenda, pela aplicação dos critérios supra, julga-se adequado fixar a indemnização pelo dano da morte da vítima em cem mil euros, a final se calculando a proporção cabível em função da repartição de culpas já mencionada.
…Assim, o valor concedido a título de indemnização pela perda do direito à vida da sinistrada cabe, desde logo, aos AA, enquanto irmãos da vítima.
Em causa, agora, o dano afectivo dos irmãos da falecido, pelo sofrimento com a perda do ente querido, o dano sofrido pelos parentes da vítima com direito a indemnização, como referia o acórdão de 12-02-1969, processo n.º 32873, BMJ n.º 184, p. 156.
…Os danos não patrimoniais por morte da vítima nascem por direito próprio na titularidade das pessoas designadas pela lei, os familiares a que se refere o artigo 496.º- acórdão do STJ, de 09-05-1996, CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 58.
Na atribuição da indemnização por danos não patrimoniais é suposta a existência de uma presunção de afectos, a que já se aludiu, imperando o princípio da proximidade comunitária e afectiva ínsito neste tipo de indemnização cfr. Maria Manuel Veloso, Danos não patrimoniais, Comemorações dos 35 anos do Código Civil, volume III, p. 524, e acórdãos do STJ, de 16-03-99, revista n.º 22/99 - 2.ª e de 16-12- 2010, processo n.º 231/09.1JAFAR.E1.S1-3.ª (estes em www.dgsi.pt).
No caso a compensação é devida pelo sofrimento da perda abrupta e irreparável daquele ente querido. A origem do dano do desgosto é o sofrimento causado pela supressão da vida, sendo de negar o direito à indemnização em relação a quem não tenha sofrido o dano - neste sentido o acórdão do STJ de 23-03-1995, CJSTJ 1995, tomo 1, pág. 230. Salvo raras e anómalas excepções, a perda do lesado é para os seus familiares mais próximos causa de sofrimento profundo, sendo facto notório o grave dano moral que a perda de uma vida humana traz aos seus familiares, às pessoas que lhe são mais chegadas.
Como se refere no acórdão do STJ de 26-06-1991, BMJ n.º 408, p. 538, trata-se de um dano não patrimonial natural, cuja indemnização se destina a compensar desgostos e que por serem factos notórios, não necessitam de ser alegados, mas só pedidos.
É pacífico que um dos factores a ponderar na atribuição desta forma de compensação será sempre o grau de proximidade ou ligação entre a vítima e os titulares desta indemnização.
…Na hipótese dos autos, a vítima estava ligada por fortes laços afectivos a ambos os demandantes, sendo certo que cabalmente demonstrado que os Autores sofreram desgosto, nos termos da matéria assente.
Nestas condições de relação próxima, afigura-se-nos adequada a fixação do montante indemnizatório em 25 mil EUR para cada um dos demandantes….»(sic).
Quanto á fundamentação jurídica e o estabelecimento da concorrência de culpas e as percentagens e aos valores da indemnização, aderimos integralmente ao teor da sentença recorrida com o qual concordamos sendo despiciendo realizar ouras considerações face ao caracter exaustivo da sua argumentação.
Sem prejuízo cumpre referir que igualmente neste sentido vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça Processo: 3883/18.4T8FAR.E1.S1, Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR, 25-05-2021 Sumário: I – Por força de uma interpretação atualista e sistemática do preceito, que tem em conta a conjuntura do momento em que a lei é aplicada (a crescente perigosidade e frequência dos acidentes de viação e as necessidades de proteção dos lesados), bem como a unidade da ordem jurídica (vejam-se os lugares paralelos do sistema no regime da responsabilidade do produtor, responsabilidade por acidentes de trabalho e por acidentes causados por aeronaves e embarcações de recreio), aderimos à orientação jurisprudencial fixada no acórdão deste Supremo Tribunal, de 04-10-2007, que admite a concorrência entre o risco próprio do veículo e a culpa do lesado.
II - No mesmo sentido concorre o princípio da interpretação conforme ao Direito Comunitário, de acordo com o qual o juiz nacional deve, entre os métodos permitidos pelo seu sistema jurídico, dar prioridade ao método que lhe permite atribuir à disposição de direito nacional em causa uma interpretação compatível com o direito originário e derivado da União Europeia.
III - O TJUE, apesar de reconhecer que a escolha do regime de responsabilidade civil aplicável aos sinistros resultantes da circulação de veículos é, em princípio, da competência dos Estados-Membros, e que a culpa da vítima pode excluir ou limitar a indemnização, através de uma apreciação individualizada de cada caso, veda uma exclusão automática da indemnização ou uma redução desproporcionada desta, visando, sobretudo, que os lesados mais vulneráveis, entre os quais incluiu os peões e as crianças, sejam objeto de um tratamento mais favorável.
IV –Não se pode classificar como grave a culpa da mãe da criança que atravessa a estrada com a filha ao colo, nem atribuir ao comportamento desta uma eficácia exoneratória total da responsabilidade pelo risco do veículo, pois, a matéria de facto não fixou a que velocidade circulava o veículo FR, o local do acidente nem a distância que mediava entre o veículo e as peãs.
V- Decide-se, assim, pela verificação de um concurso da responsabilidade pelo risco próprio do veículo FR com a culpa da lesada, fixando-se, para o cálculo da indemnização, uma proporção de 50% para o risco do veículo e 50% para o contributo causal do comportamento da lesada….»
E vide Ac da RL Processo: 12186/17.0T8SNT.L1-6 Relator: CRISTINA NEVES 13-09-2018 Sumário: I-O nosso sistema continua a manter o paradigma assente no primado da responsabilidade findada na culpa do agente – cfr. artigo 483.º do Código Civil – admitindo, no entanto, a responsabilização do detentor/beneficiário de um veículo de circulação pelos riscos inerentes à circulação do veículo – cfr. artigo 503.º do Código Civil
II- Só se da dinâmica do acidente se apurar a culpa exclusiva do lesado, o artigo 505.º do Código Civil exclui, ou bane de forma taxativa, a possibilidade de concorrência entre risco e facto do lesado.
III- Há concorrência de culpas, na proporção de 50%, se, por um lado, o lesado, peão, procedeu à travessia de uma via, de modo inadvertido – fora da passadeira de peões e sem obediência à sinalização semafórica e sem se certificar da inexistência de circulação na mesma – e, por outro lado, a condutora do veículo que, apesar de não poder ter deixado de avistar o peão que atravessara já três hemi-faixas e parte da quarta, de uma via com cinco hemi-faixas de rodagem, não efectua qualquer manobra quer de travagem, quer de mudança de direcção, com vista a evitar o embate.
E o Ac do STJ Processo: 5705/12.0TBMTS.P1.S1 Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO Data do Acórdão: 11-01-2018Sumário: I - A questão da concorrência entre a culpa do lesado (arts. 505º e 570º do CC) - ou, mais amplamente, a imputação do acidente ao lesado - e a responsabilidade por riscos próprios do veículo (art. 503º, nº 1, do CC) constitui uma das mais complexas e controversas da jurisprudência civilista nacional dos últimos anos, circunstância para a qual contribui o facto de a mesma questão se apresentar de modos distintos em razão do tipo de situação litigiosa subjacente, ainda que com um núcleo essencialmente comum.
II - Em tese geral, perfilha-se o entendimento de que o regime normativo decorrente do estatuído nas disposições conjugadas dos arts. 505º e 570º do CC deve ser interpretado, em termos actualistas, como não implicando uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre a culpa do lesado (ou, mais amplamente, a imputação do acidente ao lesado) e os riscos do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau de contribuição causal ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a eventual imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura.
III - Porém, tal não implica que, por si só e de forma imediata, se responsabilize o detentor efectivo do veículo (e respectiva seguradora) pelos danos sofridos pelo lesado, implicando sim que, em função da factualidade subjacente a cada caso concreto, se pondere a medida da contribuição do lesado, culposa ou não culposa.
IV - Num caso como o dos autos em que ficou provado que o acidente foi causado pela conduta gravemente culposa do A. lesado – pessoa maior e imputável, que enquanto peão, atravessou uma via com diversas faixas de trânsito, não utilizando a passadeira, situada a 24,5 metros de distância, e provando-se que os semáforos se encontravam verdes para a via onde circulava o veículo automóvel que o atropelou, sem que tenha sido feita prova de qualquer infracção das regras do Código da Estrada por parte do seu condutor –, a indemnização deve ser totalmente excluída.

Relativamente ao pedido de redução dos valores indemnizatórios afigura-se-nos deverem os mesmos serem mantidos, sedo que a vitima quando faleceu tinha 20 anos de idade e nessa medida o valor estabelecido está enquadrado na jurisprudência, sendo que a ré não logrou demonstrar o alegado em sede de recurso de que a vitima tinha desapego pela sua vida ou que ingeria drogas de forma habitual ou que mantinha relações de curta duração.
Igualmente o valor atribuído aos autores pela morte da sua irmã no valor de 25.000,00 euros não se nos afigura excessiva dado que existiam grandes laços afectivos.
Para outros desenvolvimentos sobre esta temática vide o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto Processo: 2374/20.8T8PNF.P1, Relator: JUDITE PIRES, 24-02-2022:Sumário: I - A determinação da compensação pecuniária devida pelo dano morte e correspondente lesão do direito à vida deve fazer-se com recurso à equidade, ponderando critérios de uniformidade na jurisprudência para situações similares, sem descurar, todavia, a especificidade do caso concreto.
Em todo o caso, nenhuma razão séria justifica que este dano, perfilando-se como lesão do bem vida, valor de dimensão absoluta e inexcedível, possa ter um tratamento de menor dignidade ressarcitória do que aquele que é conferido às lesões da saúde em geral, todas necessariamente, e por definição, de menor gravidade.
…III - Na fixação da indemnização pelos danos não patrimoniais, resultantes do sofrimento e perda pela morte do marido e pai, em consequência das lesões resultantes de acidente de viação, está o julgador subordinado a critérios de equidade, que ponderem a situação económica dos lesados e do obrigado à reparação, a intensidade do grau de culpa do lesante, e extensão e natureza das lesões sofridas pelo titular do direito à indemnização, considerando, como ponto de equilíbrio, as próprias finalidades prosseguidas pela indemnização por este tipo de danos.
IV - O n.º 2 do artigo 496.º do Código Civil contém uma enumeração taxativa das pessoas com direito a ser ressarcidas por danos não patrimoniais próprios resultantes da morte da vítima, não podendo, por isso, a ressarcibilidade ser estendida a outras pessoas para além das indicadas na norma em causa - ainda que estas pudessem ter uma apertada ligação emocional ou afectiva à vítima.
V - Na quantificação das indemnizações dos familiares por perda do contributo remuneratório da vítima falecida, haverá que ter sempre presente a figura da equidade, a qual visa alcançar a justiça do caso concreto, flexível, humana, independente de critérios normativos fixados na lei, de forma que se tenha em conta, as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida.»
Pelo exposto, e quanto á fundamentação jurídica, conclui-se que o presente recurso de apelação terá, por conseguinte, de improceder na sua totalidade.
***
V- DECISÃO

Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo da apelante (art. 527º, nºs 1 e 2).

Porto, 7/3/2024
Ana Vieira
Manuela Machado
Judite Pires