EXECUÇÃO
LEGITIMIDADE PASSIVA
SUCESSÃO
Sumário

I - A execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor.
II - Esta regra geral da legitimidade comporta desvios, devendo, designadamente, a execução correr entre os sucessores das pessoas que no título figurem como credor ou devedor da obrigação exequenda, desde que entre o momento da formação do título e o da instauração da execução ocorra, ou do lado activo ou do lado passivo da obrigação, um fenómeno sucessório.

Texto Integral

Processo n.º 10684/23.6T8PRT.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Execução do Porto – Juiz 1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO.

Tendo A..., S.A. instaurado execução para pagamento da quantia de €15.799,26 contra AA e Herdeiros de BB, foi proferida decisão liminar com o seguinte dispositivo:

“...ao abrigo do disposto nos art.ºs 726.º n.º 2 al. b), 11.º, 576º, n.ºs 1 e 2, 577º, alínea c) e 578º do Código de Processo Civil, indefiro liminarmente o requerimento executivo, e determino o subsequente arquivamento dos autos.

Custas pelo exequente, com taxa de justiça que se fixa em 2 UC.

Valor: O da execução”.

Inconformada com tal despacho, dele interpôs a exequente recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:

“I. Por douto despacho, proferido, pelo Tribunal a quo, em 09/06/2023 (Ref.ª Citius 449272772), foi o requerimento executivo liminarmente indeferido, tendo igualmente determinado o subsequente arquivamento dos autos.

 II. Ora, com o teor do citado despacho, não pode o ora Recorrente nunca concordar, pelas razões que infra melhor se exporão.

III.  Efetivamente, no ponto 9. do seu Requerimento Executivo, solicitou o Exequente que “…ao abrigo do princípio da cooperação entre as partes, previsto nos artigos 7.º, 8.º e 417.º, n.º 1 e 2, todos do Código de Processo Civil, sejam citados os Executados BB e AA, para querendo se oporem à presente execução e simultaneamente notificados para virem aos autos indicar se existem herdeiros conhecidos da Mutuária BB ou sobre se foi efectuado inventário ou habilitação notarial, com o intuito de, no caso de existirem, serem os mesmos devidamente habilitados a intervir nos autos como herdeiros e representantes da Mutuária falecida, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 351.º do Código de Processo Civil.”

IV.  Decorre do preceituado no artigo 351.º do CPC, que, em princípio , a habilitação de  herdeiros no âmbito da ação terá lugar apenas quando, em consequência das diligências para citação do Réu, resultar certificado o óbito deste.,

 V. Desde logo se verifica que, tivesse a Exequente, de má-fé, omitido o conhecimento do óbito da Executada BB, a presente questão nem sequer se colocaria.

VI. Pois que, intentada a ação executiva, sem mais, contra a Executada, certo é que, das diligências de Citação da mesma, resultaria certificado o seu falecimento, e, nesse seguimento, seria a Exequente notificada para, querendo, deduzir incidente de habilitação de herdeiros, suspendendo-se, entretanto, a instância, para decisão de tal incidente processual (cfr . artigos 269.º n.º 1 a), 270.º e 276.º n.º 1 a), todos do CPC).

VII. Destarte, no caso em apreço, a Exequente, diligente e de boa-fé, no mais pleno espírito de colaboração e transparência, deu, desde logo, conhecimento ao douto Tribunal do falecimento da Executada, solicitando, tão só , a notificação do Mutuário sobrevivo para vir aos autos indicar se existem herdeiros conhecidos da Mutuária BB ou sobre se foi efetuado inventário ou habilitação notarial, com o intuito de, no caso de existirem, serem os mesmos devidamente habilitados a intervir nos autos como herdeiros e representantes da Mutuária falecida.

VIII. E assim, nesta sequência, vê o Exequente, inconcebivelmente, a sua solicitude “punida”.

 IX. No mais, sempre se dirá, que, alegando a parte, dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, ao abrigo do princípio da cooperação, providenciar pela remoção do obstáculo (cfr . artigo 7.º n.º 4 CPC).

X. Nestes termos, face ao circunstancialismo acima exposto, considera o ora Recorrente que andou mal o Tribunal a quo , ao não ter procedido nos termos requeridos.

XI. Bem assim, nem sequer considerou o douto Tribunal convidar o Exequente a aperfeiçoar o seu Requerimento Executivo, o que se lhe impunha (cfr . artigo 726.º n.º 4 CPC).

XII. E, igualmente, numa outra solução, sempre poderia a Mma. Juíza a quo ordenar a suspensão da instância, procedendo pela notificação do Exequente para efeitos de promoção do incidente de habilitação de herdeiros, ao abrigo dos princípios da boa-fé processual e do aproveitamento de atos.

XIII. Assim, “saltando” todas estas hipótese s e soluções, que teriam de ser, pelo menos, consideradas, decidiu-se, desde logo, pelo indeferimento liminar do Requerimento Executivo, não podendo, com essa decisão o ora Recorrente concordar.

XIV. Acresce que, é ainda julgada verificada, no despacho em crise, a exceção dilatória de ilegitimidade passiva, por preterição do litisconsórcio necessário legal.

XV. Ora, também com esta decisão, não pode o ora Recorrente nunca concordar.

XVI. O Título Executivo dado à execução trata-se de um contrato de mútuo com hipoteca, identificado sob o n.º 70_968292813_MLS / 20_340132457_OCV, no qual figuram como Mutuários AA e BB.

XVII. Ora, nessa sequência, e estando perante uma obrigação solidária, é ponto assente que o caso dos autos não pode configurar uma situação de litisconsórcio necessário legal.

XVIII. Outrossim, poderá configurar uma situação de litisconsórcio voluntário (cfr . artigo 32.º do CPC).

 XIX. Neste sentido, os entendimento do Tribunal da Relação de Coimbra4 , e do Tribunal da Relação de Guimarães5 .

XX. Ora, assim, ainda que admitindo a impossibilidade dos Herdeiros de BB, não identificados e não indicados, sem personalidade jurídica, em serem demandados nos termos em que os foram (conforme defendido pela Mma. Juíza a quo), sempre poderia o Tribunal ter procedido pelo indeferimento parcial do Requerimento Executivo, quanto aos sujeitos que, neste caso, careciam de legitimidade para figurar como executados.

XXI. Pois que, verificando-se um caso de litisconsórcio voluntário, e não necessário, não existia motivo para o indeferimento liminar do requerimento executivo, nos termos do artigo 726.º n.º 2 b) do CPC, em virtude de apenas subsistir como Executado o mutuário sobrevivo, porquanto não se verifica qualquer exceção dilatória de ilegitimidade, de conhecimento oficioso.

XXII. Nestes termos, deveria a ação executiva ter prosseguido apenas contra o Mutuário sobrevivo.

XXIII. Ainda que assim não se entenda, e se considere que estamos perante uma situação de litisconsórcio necessário, hipótese que apenas academicamente se concebe, sempre se dirá que a falta desse pressuposto processual não deveria conduzir, automaticamente, ao indeferimento liminar.

XXIV. Outrossim, deveria a Mma. Juíza a quo ter convidado o Exequente a aperfeiçoar o seu requerimento executivo, no sentido de lhe dar oportunidade de identificar os eventuais herdeiros da Mutuária falecida, permitindo, assim, que a instância prosseguisse e evitando a total desconsideração dos atos já praticados, inutilizando, no seu todo, esta ação executiva.

XXV. A proposta de lei que deu origem ao Código de Processo Civil de 2013 optou por desenvolver o conceito de gestão processual e acentuar os poderes judiciais de direção formal do processo, nos seus aspetos técnicos e de estrutura interna, valorizando o princípio do inquisitório e aderindo a uma conceção de processo civil diversa da primitiva conceção liberal. O juiz passa, assim, a ter poderes para assegurar a regularidade da instância e o normal andamento do processo. Designa-se este poder como “poder dever de agilização do processo”, o qual tem eficácia como poder de adequação formal e como um elemento de interpretação de outras normas (que concedam ao juiz poderes determinados de atuação), no sentido de estabelecerem deveres do juiz e não meros poderes discricionários (cfr . Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado , Vol. I).

XXVI. Destarte, estipula o artigo 6.º do CPC, que, sob a epígrafe, «Dever de gestão processual», no seu n.º 2 afirma o seguinte: «O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo».

 XXVII. Por seu turno, o artigo 7.º (Princípio da cooperação) implica para os juízes um dever de cooperar com as partes para que se atinja, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.

XXVIII. É, assim, preceituada a intervenção judicial no sentido da sanação da falta de pressupostos processuais. Nestes termos, ao juiz cabe providenciar, por iniciativa oficiosa, se as partes não o requererem, o suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação ou convidar as partes a suprir a deficiência para que a instância fique regularizada.

XXIX. Deste modo, a falta de pressuposto processual deixou de conduzir automaticamente à absolvição da instância, que só tem lugar quando a sanação for impossível ou quando, dependendo ela da vontade da parte, esta se mantiver inativa perante o convite ao aperfeiçoamento.

XXX. A lei consagra, assim, um dever do juiz de providenciar pela sanação da falta de pressuposto processual que seja sanável (cfr . Lebre de Freitas, in Ação declarativa comum).

 XXXI. Neste sentido, o Tribunal da Relação de Évora6 .

XXXII. Nesta esteira, impunha-se ao douto Tribunal a quo , convidar o Exequente a aperfeiçoar o seu Requerimento Executivo, o que se lhe impunha (cfr . artigo 726.º n.º 4 CPC).

Pelo exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência ser o despacho recorrido revogado e substituído por outro que convide o exequente ao aperfeiçoamento do seu requerimento executivo ou, alternativamente, que ordene o prosseguimento da ação executiva apenas contra o mutuário sobrevivo, com todos os efeitos legais.

Nestes termos, farão V. Exas. a tão esperada e costumada Justiça!”.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II. OBJECTO DO RECURSO.

A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.

B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar se existe fundamento para o indeferimento liminar decidido.

III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

Além do narrado no relatório que antecede, resultam documentalmente demonstrados os seguintes factos:

1. Consta do requerimento executivo, na área reservada à descrição dos factos, o seguinte:

I - QUESTÃO PRÉVIA - INSOLVÊNCIA

1 - Por sentença proferida em 13-06-2014, foi declarada a insolvência de AA, NIF ...20, no âmbito do processo de insolvência n.º 935/14.3TJPRT.

Contudo, em 25-02-2021 foi proferido despacho de recusa da exoneração do passivo restante nos termos do art.s 243 n.º 1 al. a) e 239 n.º 2 e al a) nº4 do CIRE, já transitado em julgado, tendo sido arquivado os autos, motivo pelo qual se intenta a presente execução contra o Mutuário do contrato agora dado em execução.

II. QUESTÃO PRÉVIA – HABILITAÇÃO DE HERDEIROS

2 – A Contraente BB com NIF ...55 faleceu em ../../2017 (cfr. documento n.º 1, correspondente ao assento de óbito, que ora se junta e se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos).

3. De acordo com as informações de que dispõe o Exequente, poderá ser herdeiro da falecida Mutuária, o também Mutuário AA, nos termos do disposto nos artigos 2132.º e 2147.º do Código Civil, conjugado com o estabelecido no artigo 351.º do Código de Processo Civil, não tendo contudo o Exequente como confirmar o exposto à data.

4. Nos termos do disposto no artigo 2128.º do Código Civil, o adquirente da herança ou do quinhão hereditário sucede nos encargos respectivos.

5. O crédito do Exequente perante a Mutuária falecida é encargo da respectiva herança.

6. E esta responde pelo pagamento das dívidas da falecida Mutuária, de acordo com o disposto no artigo 2068.º do Código Civil.

7. Assim, o Exequente é também credor dos herdeiros da falecida Mutuária BB, do capital em dívida, acrescido dos juros de mora, contabilizados a partir do respectivo incumprimento e até integral e efectivo pagamento, motivo pelo qual a presente execução é igualmente proposta contra os mesmos.

8. O Exequente desconhece e não conseguiu apurar se existem herdeiros que sobreviveram a Mutuária falecida, e se foi celebrada escritura de habilitação.

9. Pelo que se requer a V. Exa., ao abrigo do princípio da cooperação entre as partes, previsto nos artigos 7.º, 8.º e 417.º, n.º 1 e 2, todos do Código de Processo Civil, sejam citados os Executados BB e AA, para querendo se oporem à presente execução e simultaneamente notificados para virem aos autos indicar se existem herdeiros conhecidos da Mutuária BB ou sobre se foi efectuado inventário ou habilitação notarial, com o intuito de, no caso de existirem, serem os mesmos devidamente habilitados a intervir nos autos como herdeiros e representantes da Mutuária falecida, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 351.º do Código de Processo Civil.

III – DOS FACTOS:

10 - Por Contrato de Cessão de Créditos celebrado no dia 26 de setembro de 2018, o Banco 1..., S.A., cedeu à A..., S.A., ora Exequente, os créditos que detinha sobre os ora Executados, incluindo capital, juros, indemnizações e quaisquer outras obrigações pecuniárias. Cessão essa que foi notificada aos Executados nos termos do artigo 583.º, n.º 1 do Código Civil (cfr. doc. 2 e 3 que se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos).

11 - No âmbito da presente cessão contratual, foi transmitido o contrato n.º 70_968292813_MLS / 20_340132457_OCV.

12- Ora, por escritura pública, e respectivo documento particular, celebrada em 14-11-2005, a entidade bancária Cedente celebrou com os mutuários AA e BB um contrato de mútuo com hipoteca, identificado sob o n.º 70_968292813_MLS / 20_340132457_OCV, mediante o qual concedeu-lhes um empréstimo no valor de € 88 244,90 (oitenta e oito mil, duzentos e quarenta e quatro euros e noventa cêntimos), que estes se obrigaram a liquidar em 231 prestações mensais e sucessivas de capital e juros. (Cfr. Doc. n.º 4);

13 - Foi acordado entre as partes que o capital mutuado venceria juros à taxa de 3.38% (Cfr. Doc. n.º 4).

14 - Mais tendo sido acordado, que em caso de incumprimento de qualquer prestação de juros ou capital, serão devidos juros pelos ora Executados à taxa de 3.38% acrescida de uma sobretaxa de 3,00 %, a título de cláusula penal (Cfr. Doc. n.º 4);

15 – Apesar de a tal obrigados, os Mutuários do contrato aqui dado à execução deixaram de proceder ao pagamento das prestações a que estavam vinculados por conta do contrato ora executado em 25-07-2014, o que determinou, nos termos do disposto no art.º 781.º do Código Civil, o vencimento imediato das restantes prestações.

16 – À data da cessão de créditos melhor identificada em 1. o capital em dívida, emergente do contrato n.º 70_968292813_MLS / 20_340132457_OCV cifrava-se no valor de €21.791,66 (vinte e um mil, setecentos e noventa e um euros e sessenta e seis cêntimos).

17 – Apesar de devidamente interpelados para o efeito, os ora Executados nada pagaram ao Exequente, o que justifica a existência da presente acção.

18 - Em face do incumprimento e amortizados os pagamentos recebidos em sede de rateio, no âmbito do processo de Insolvência do Mutuário AA, no valor total de €16.998,26, é devido pelos Executados capital de €13.740,89 e juros de mora sobre o montante do capital em dívida de €2.058,37, à taxa de 3.38% + 3% contados da data do incumprimento, ou seja, 25/07/2014, até 05-05-2023, no montante total de €15.799,26.

19 - Pelo que, o débito dos Executados perante o Exequente ascende, assim, com referência a 05-05-2023, a €15.799,26. (€13.740,89 + € 2.058,37).

20 - São igualmente devidos juros de mora vincendos sobre o capital de €13.740,89, contados à taxa de juro de 3.38% acrescida de 3,00% a título de cláusula penal, a contar da data de 06-05-2023 até efectivo e integral pagamento.

21 – O contrato exarado por escritura pública constitui título executivo, nos termos da alínea b) do n.º 1 artigo 703.º do Código de Processo Civil, e a dívida exequenda é certa, líquida e exigível.

22 - O Tribunal é territorialmente competente, nos termos do n.º 1 do artigo 89.º do Código de Processo Civil”.

2. BB faleceu a ../../2017, conforme cópia, não certificada, do respectivo assento de óbito, junto com o requerimento executivo.

3. A acção executiva foi instaurada a 7.06.2023.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
Dispõe o artigo 53.º, n.º 1 do Código de Processo Civil que “a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor”.
Como elucida Lebre de Freitas[1], “a legitimidade das partes determina-se, na acção executiva, com muito maior simplicidade do que na acção declarativa.
Enquanto nesta há que indagar da posição das partes em face da pretensão, o que implica averiguar a titularidade, real (…) ou meramente afirmada pelo autor (…), da relação ou de outra situação jurídica material em que ela se funda e que dá por vezes lugar a dificuldades de distinção perante a questão de mérito, na acção executiva a indagação a fazer-se resolve-se no confronto entre as partes e o título executivo: têm legitimidade como exequente e executado, respectivamente, quem no título figura como credor e como devedor (art. 55).
Esta regra consente, quanto à legitimidade passiva, um desvio (no caso de execução por dívida provida de garantia real) e excepções (por alargamento a terceiros abrangidos pela eficácia do caso julgado).
Há, além disso, que considerar a legitimidade específica do Ministério Público para a acção executiva”.
O que permite concluir, tal como o faz Amâncio Ferreira[2]: “afere-se assim a legitimidade, na acção executiva, através de um critério formal, diversamente do que ocorre na acção declarativa, onde se faz apelo a um critério substancial, identificando-se aqui a legitimidade com o interesse que o autor e o réu têm, respectivamente, em demandar e contradizer (art. 26.º, n.º1)”[3].
No entanto, aquela regra geral da legitimidade comporta alguns desvios, enumerados no artigo 54.º do referido diploma, prevendo o seu n.º 1: “tendo havido sucessão no direito ou na obrigação, deve a execução correr entre os sucessores das pessoas que no título figuram como credor ou devedor da obrigação exequenda; no próprio requerimento para a execução o exequente deduz os factos constitutivos da sucessão”.
Do referido normativo resulta claro que a execução deve correr entre os sucessores das pessoas que no título figurem como credor ou devedor da obrigação exequenda, desde que entre o momento da formação do título e o da instauração da execução ocorra, ou do lado activo ou do lado passivo da obrigação, um fenómeno sucessório[4].
O termo “sucessão” é aqui empregue em sentido lato, abrangendo todos os modos de transmissão das obrigações, seja mortis causa ou entre vivos.
A sucessão em causa é apenas a que opera antes de instaurada a acção executiva, devendo nesse caso, o exequente, deduzir os factos constitutivos dessa sucessão (habilitação/legitimidade) no requerimento executivo.
 Se a transmissão do crédito ou da dívida ocorrer após instaurada a acção executiva, da dedução do incidente de habilitação regulado, nos artigos 351.º e seguintes do Código de Processo Civil (habilitação/incidente), dependerá o prosseguimento desta contra os sucessores do exequente ou do executado.
O incidente de habilitação não pressupõe necessariamente a morte de uma das partes na pendência da acção.
Com efeito, como se extrai do n.º 2 do artigo 351.º do Código de Processo Civil, o incidente de habilitação pode ser suscitado quando a morte seja anterior à propositura da acção[5]. É o caso dos autos, pois que tendo a acção executiva sido instaurada a 7.06.2023, a mutuária não era viva nessa data, tendo falecido a ../../2017, conforme cópia do assento de óbito junto pela exequente com o requerimento executivo.
Assim, no caso em debate nenhum obstáculo legal se interpunha para que a execução fosse também instaurada contra os sucessores da já então falecida BB.
Diz-se na decisão recorrida que “ao contrário do requerido, a falecida não pode ser citada para a execução. Nem tão pouco pode ser parte neste processo, pois que com seu decesso cessou a sua personalidade jurídica e consequentemente a sua personalidade judiciaria.
Com efeito, a personalidade judiciária, na definição que dela dá o artº. 11º/1 do CPC, consiste na susceptibilidade de ser parte. Vale isto dizer que a personalidade judiciária se traduz "na possibilidade de requerer ou de contra si ser requerida, em próprio nome, qualquer das providências de tutela jurisdicional reconhecida na lei".
De acordo com o artº. 11º/2 do CPC, quem tiver personalidade jurídica tem personalidade judiciária.
É este o critério geral de atribuição da personalidade judiciária - critério da correspondência ou coincidência entre a personalidade jurídica e a personalidade judiciária, pelo que se conclui cm meridiana clareza que esta não pode ser citada para a execução.
Por outro lado, os Herdeiros de BB, não identificados e não indicados, não tem personalidade jurídica, e não podem ser demandados nos termos em que os foram.
Segundo invoca o exequente, a divida exequenda é de responsabilidade da herança da falecida que ainda não foi partilhada, e que a divida exequenda é uma divida da herança.
A actuação em juízo de uma herança indivisa pressupõe a intervenção de todos os herdeiros, correspondendo a uma situação de litisconsórcio necessário, decorrente do artigo 2091º, nº 1 do CC, herdeiros esses que tem que ser indicados pelo exequente, não podendo a ser o seu desconhecimento suprido em fase judicial”.
É sobejamente evidente que a exequente não pretendeu instaurar a execução contra a mutuária BB, pelo que também com meridiana clareza nos parece que nunca esteve na sua mente que se procedesse à sua citação[6].

É certo ter a mesma requerido que “sejam citados os Executados BB e AA, para querendo se oporem à presente execução e simultaneamente notificados para virem aos autos indicar se existem herdeiros conhecidos da Mutuária BB ou sobre se foi efectuado inventário ou habilitação notarial, com o intuito de, no caso de existirem, serem os mesmos devidamente habilitados a intervir nos autos como herdeiros e representantes da Mutuária falecida, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 351.º do Código de Processo Civil”.
Trata-se de uma evidente imprecisão, face à matéria alegada nos artigos 3.º a 8.º do requerimento executivo, tanto mais que no mesmo requerimento indica como executados AA e Herdeiros de BB.
Não se crê, assim, que a exequente tenha pretendido integrar na acção  executiva, como parte, a falecida BB, e, menos ainda, que requeira a sua citação: se fosse esse o seu propósito, repete-se, bastaria que omitisse nos autos o pré-falecimento da devedora, e se abstivesse de juntar o respectivo assento de óbito, deixando para momento posterior - frustrada que se mostrasse a citação da, neste caso, executada, por falecimento da mesma - a dedução do incidente de habilitação, que sempre poderia promover contra incertos.
O que claramente transparece do requerimento executivo é que a exequente pretendeu que, além da citação do identificado executado para os termos da acção executiva, fosse este também notificado para prestar os esclarecimentos necessários à dedução do incidente de habilitação relativamente aos sucessores da também mutuária BB, no caso destes existirem.
E não se diga que o facto de a execução não ter sido instaurada contra os herdeiros da falecida BB é gerador de ilegitimidade passiva, por preterição de listisconsórcio necessário. Não havendo sucessores [e a exequente expressamente afirma que “desconhece e não conseguiu apurar se existem herdeiros que sobreviveram a Mutuária falecida, e se foi celebrada escritura de habilitação”] nunca eles teriam de figurar na acção executiva como parte passiva, e mesmo existindo, nenhum entrave processual obstaria a que a quantia mutuada e respectivos juros e encargos, tratando-se de dívida solidária, pudesse ser judicialmente reclamada apenas a um dos mutuários, singularmente, estando, deste modo, assegurada a sua legitimidade passiva, por estar em causa uma situação de litisconsórcio necessário.
Flui, assim, do que se deixa exposto não existirem fundamentos válidos para o decidido indeferimento do requerimento executivo e subsequente arquivamento dos autos. Ainda que dúvidas suscitasse o referido requerimento, nomeadamente quanto à intervenção dos eventuais herdeiros de BB, sempre antes devia ter sido formulado convite ao seu aperfeiçoamento, ao invés de se enveredar pela solução radical do indeferimento.
E também pela solução do convite ao aperfeiçoamento se deveria ter optado no caso de se entender que teria de ser a exequente a promover as diligências necessárias à identificação dos eventuais herdeiros da falecida BB[7],  notificando-a para, em prazo, apresentar novo requerimento com as identificações omitidas.
Não pode, desta forma, manter-se o despacho recorrido de indeferimento do requerimento executivo, o qual deve ser substituído por outro que ordene o prosseguimento da acção executiva, nos termos assinalados.


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Síntese conclusiva:

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…………………..

…………………...

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Pelo exposto, acordam as juízes desta Relação, em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que determine o prosseguimento da acção executiva.

As custas do recurso serão suportadas pela recorrente, por tirar proveito da decisão, não havendo lugar à sua condenação em custas de parte ou procuradoria por não ter sido apresentada resposta às suas alegações: artigo 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.

 

Porto, 7.03.2024


Acórdão processado informaticamente e revisto pela 1.ª signatária.

Judite Pires
Isabel Peixoto Pereira
Maria Manuela Machado


_______________________
[1] “A Acção Executiva Depois da Reforma da Reforma”, 5ª ed., pág. 121.
[2] “Curso de Processo de Execução”, 2010, 13ª ed., Almedina, pág. 75.
[3] Cfr. Ainda acórdão da Relação de Coimbra de 20.01.2009, processo nº 1447/07.7TBCVL-A.C1 e acórdãos da Relação de Lisboa de 30.06.2011, processo nº 2327/07.1TBCSC-A.L1-7 e de 15.11.2007, processo nº 8521/07-2, todos em www.dgsi.pt.
[4] Amâncio Ferreira, “Curso de Processo de Execução”, 3.ª edição, página 52.
[5] Acórdão da Relação do Porto de 19.12.2012, processo n.º 9386/07.5TBMAI-C.P, www.dgsi.pt.
[6] Se fosse esse o seu propósito, mal se compreenderia que viesse expressamente informar no requerimento executivo que a mesma já tinha falecido e juntar documento comprovativo  do óbito, anterior à instauração da execução.
[7] Embora a diligência requerida pela exequente, no sentido de ser o executado notificado para prestar as informações que indica, não se revele, de todo, impertinente, antes encontrando pleno apoio no artigo 7.º, n.º 4 do Código de Processo Civil, que dá guarida ao princípio da cooperação, um dos princípios estruturantes da arquitectura da actual lei processual civil, achando-se hoje particularmente reforçada a actuação directiva do juiz na gestão processual, que passa a constituir dever expressamente imposto pelo artigo 6.º do mesmo diploma.
Note-se, por outro lado, que podendo a habilitação ser promovida contra incertos, nos termos do disposto no artigo 355.º do Código de Processo Civil, ou contra certos, mas que se achem ausentes em parte incerta, a citação edital dos habilitandos será, em qualquer dos casos, sempre a última ratio, devendo sempre, oficiosamente ou a requerimento de interessado, ser realizadas as diligências necessárias para a sua citação pessoal.