I - A liberdade de aplicação pelo tribunal das normas legais está apenas limitada ao principio da vinculação temática e respeito pelo contraditório por forma a evitar decisões surpresa.
II - Se o tribunal aplicou a norma relativa ao prazo de prescrição de 5 anos quando foi invocada a de 20 anos, usando para tal um AUJ é evidente que a apelante, na sua contestação se devia ter pronunciar sobre essa questão, tanto mais que qualquer advogado médio não poderia ignorar a existência desse AUJ.
III - A aplicação de uma norma que consagra um prazo mais curto de prescrição não viola o principio da vinculação temática, porque o tribunal respeito a mesma relação contratual, o mesmo instituto, a concreta vontade da parte e o pedido formulado.
IV - Para se aproveitar de um prazo de prescrição basta que a parte formule claramente esse pedido sendo para ela indiferente se o prazo aplicado é de 20 anos ou mais curto, já que a sua pretensão fundamental é a extinção da obrigação contratual.
Por apenso à execução AA, veio deduzir os presentes, (assim denominados), EMBARGOS DE EXECUTADO pedindo que a presente Oposição à Execução (deve) ser julgada totalmente procedente, por provada, e em consequência, ser a execução extinta, o que se requer.
Para tal alegou, em suma, que: “Sem prescindir e por mera precaução, desde já se alega a prescrição da dívida com a presente demanda com base no art. 309º do CC. Sendo a data da interpelação da respetiva livrança de Janeiro de 2003, está prescrita a petição da Requerente. Alega-se ainda a prescrição dos juros peticionados, nos mesmos termos.
Notificada para o efeito veio a exequente, ora apelante contestar, dizendo, em suma que o prazo de prescrição não decorreu.
Seguidamente foi saneado o processo e elaborada decisão que julgou procedente a excepção de prescrição com base no art. 310º, do CC, extinguindo-se a execução.
Inconformada com essa decisão veio a exequente recorrer, recurso esse que foi admitido como de “apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, nos termos do disposto nos arts. 638º, nº 1, 644º, nº 1, a), 645º, nº 1, a) e 647º, nº 1, do Código de Processo Civil.
- O Tribunal a quo decidiu, sem ter sido alegado, pela prescrição nos termos do art. 310.º, al. d), e) e g) C.C. com base no AUJ 6/2022 do STJ de 30/06/2022.
- A decisão viola o princípio do dispositivo das partes e principio igualdade partes, nos termos do art. 5.º, n.º 1 e 4.º do CPC, não podendo ser esta matéria ser subjugada ao n.º 3 do art. 5.º do CPC, consubstanciando uma decisão surpresa e nulidade nos termos do art. 615.º, n.º 2 al.d) CPC.
- Além disso a sentença viola ainda o princípio da igualdade entre as partes previsto no art. 4.º CPC;
1. Apreciar se a decisão em causa assume a natureza de decisão surpresa violando o princípio da igualdade;
2. Apreciar, depois, se a mesma viola o princípio do dispositivo.
1. A exequente alega que em 06/02/2002, o embargante, na qualidade de avalista, e BB, na qualidade de mutuário, celebraram com a A..., SA um contrato de crédito n.º ...63, destinado a financiar a aquisição de um veículo automóvel de passageiros, mais concretamente um Daewoo ..., com a matrícula ..-..-NG, junto da entidade vendedora CC, pelo montante de € 13.119,12 (treze mil cento e dezanove euros e doze cêntimos, a ser liquidado em 72 prestações mensais e sucessivas, no valor de 182,21€, cada – cfr. contrato de crédito junto com o requerimento executivo sob documento n. 1, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
2. E apresentou à execução de que estes autos constituem um apenso, o documento denominado “livrança”, além do mais, com os seguintes dizeres: Importância – 9.913,21 €; vencimento – 2003.02.15; local e data de Emissão – Porto – 2002.02.06; imputando a assinatura do subscritor ao executado BB e a assinatura que consta no verso da livrança, a seguir à expressão “`dou o meu aval ao subscritor” ao executado/embargante AA.
3. Mais alega que, apesar de devidamente interpelados para regularizar a dívida em que incorreram, pelo não pagamento do montante total em incumprimento, os executados não efetuaram, até à presente data, qualquer pagamento, nem prestaram qualquer justificação, situação que motivou a resolução do contrato e o preenchimento da livrança, juntando para o efeito, as cartas que se acham juntas com o requerimento executivo sob os n.ºs 10 e 11,
datadas de 27.01.2003, através das quais refere, designadamente que: " Vimos por este meio informar que o contrato acima referido de que V. Exa. é Titular, foi denunciado por falta de pagamento. Desta forma, e de acordo com as cláusulas contratuais, é agora exigido o pagamento da totalidade do valor do contrato, incluindo este o montante das prestações em atraso, e o montante do capital em dívida até ao final do prazo do empréstimo, acrescido de despesas extrajudiciais ocorrido até à data desta carta. Informamos ainda que, igualmente ao abrigo do clausula do contratual, foi efetuado o Preenchimento da Livrança de Caução, entregue para o efeito por V. Exa. Com o montante de 9.913,21€. Este valor encontra-se a pagamento na A..., SA sita na Av. ..., ..., até 15-02-2003, (data de vencimento da livrança). O valor em dívida refere-se às seguintes parcelas: CAPITAL EM DÍVIDA - 8.235,75 Euro JUROS VENCIDOS – 991,24 Euro IMPOSTO DE SELO 120/A – 39,65 Euro SELAGEM DO TÍTULO – 46,77 Euro Total da livrança a pagar – 9.913,21 Euro.”
4. A execução a que estes autos seguem por apensos foi instaurada em 14.01.2023.
Está em causa fundamentalmente a violação ou não do princípio da vinculação temática do tribunal na aplicação das normas jurídicas.
De acordo com esse princípio o tribunal terá de respeitar não apenas o contraditório, evitando decisões surpresas, como o concreto pedido e causa de pedir aduzidas pela parte.
Vejamos, pois, detalhadamente a questão:
1. Da violação do princípio do contraditório
Pretende a apelante que o tribunal ao aplicar aos autos o art. 310º, al e), do CC violou o contraditório, pois praticou uma decisão surpresa.
Decorre do disposto no artigo 3.º, n.º 3 do Código Processo Civil que “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”.
Esta norma pretende que o tribunal não decida algo sem que, previamente, accione o contraditório possibilitando assim à parte a possibilidade de se pronunciar sobre a questão.
O princípio do contraditório é (o) princípio basilar do processo civil, porque (este) “reveste a forma de um debate ou discussão entre as partes (e) esta estruturação dialéctica ou polémica do processo (visa) o esclarecimento da verdade” - cf. Manuel de Andrade, Noções Elementares, 1979, pág. 379.
Mas, como resulta da própria lei o mesmo não tem de ser accionado em caso de manifesta desnecessidade.
Isso ocorrerá, em regra, quando a questão a decidir não é inovadora e/ou quando a parte já teve oportunidade de se pronunciar sobre a mesma.
Ora, in casu, a questão da prescrição da obrigação exequenda foi suscitada no requerimento inicial. Pelo que sobre a mesma teve a apelante todas as oportunidades para se pronunciar na sua contestação.
Aí, aliás afirma que, “No entanto, a matéria prescricional é um tema sensível, devendo ser corretamente interpretado, sob pena de criar um falso argumento, analisando-se caso a caso todos os elementos relevantes, em particular, o momento contratual”. Citou aliás doutrina e jurisprudência (um aresto do STJ DE 2007), concluindo que “Pelo que se conclui que a Embargada intentou a ação executiva dentro do prazo prescricional da exigência do título executivo de documento particular como mero quirografo”.
Logo, se a parte nada referiu quanto à aplicação do art. 310º, do CC foi certamente por lapso ou clara intenção sua.
Na verdade, a apelante argumentou que “Embargante e Embargada acordaram que o valor do empréstimo seria liquidado em 72 (setenta e duas) prestações mensais e sucessivas, no valor de € 182,21 (cento e oitenta e dois euros e vinte um cêntimos) (art. 8)”. Logo, era mais do que previsível que essa norma pudesse ser aplicada, tanto mais que recorde-se foi proferido um AUJ sobre esta questão recentemente que a parte não podiam ignorar e que agora expressamente cita nas suas alegações.
Conforme já salientou esta secção [1] “em direito civil as partes, não podem invocar a ignorância da lei nos termos do art. 6º, do CC, tanto mais que estavam representadas por mandatário.”
E, neste caso a questão da prescrição foi alegada logo na parte inicial do requerimento inicial, nos seguintes termos “Sem prescindir e por mera precaução, desde já se alega a prescrição da dívida com a presente demanda com base no art. 309º do CC. Sendo a data da interpelação da respetiva livrança de Janeiro de 2003, está prescrita a petição da Requerente. 6) Alega-se ainda a prescrição dos juros peticionados, nos mesmos termos”.
É evidente que o art. 310º, do CC não foi referido mas, como veremos, parece que o tribunal não está adstrito ao enquadramento jurídico das partes.
Logo, parece seguro, claro e evidente que a apreciação da aplicabilidade da prescrição à obrigação exequenda foi uma questão suscitada pela contra-parte, comunicada à apelante e sobre a qual esta pode pronunciar-se adequadamente.
Diga-se aliás, que o conceito de decisão surpresa nunca poderia ser aplicado neste caso, pois, estamos perante um enquadramento jurídico previsível.
A posição dominante entre nós é que a “decisão - surpresa é a solução dada a uma questão que, embora previsível, não tenha sido configurada pela parte, sem que a mesma tivesse obrigação de a prever”.
Ou seja, é precisamente o âmbito desse dever de previsibilidade da parte que delimita e condiciona o conceito de decisão surpresa.
Sendo certo que “recai sobre as partes o ónus de analisarem as diversas possibilidades interpretativas, suscetíveis de virem a ser seguidas e utilizadas na decisão, cumprindo-lhes adotar as necessárias e indispensáveis precauções, em conformidade com um dever de litigância diligente e de prudência técnica (…)». [2]
Determinar se a questão é ou não surpreende implica definir se, no caso concreto, uma parte representada por um mandatário normal, diligente e medianamente sagaz poderia e deveria ter representado como possível essa questão.
Ora, no caso, a aplicação da prescrição foi claramente enunciada.
Este instituto está regulado nos arts. 300 e segs do CC, dentro os quais avultam os arts. 309 e 310 (prazos). Sendo que foi a apelante que alegou e admitiu que “ o empréstimo seria liquidado em 72 (setenta e duas) prestações mensais e sucessivas”. Logo, parece evidente que qualquer mandatário normal e sagaz, com cumprimento da diligencia profissional não poderia ignorar o teor do art. 310º, e que tinha sido proferido o Ac do AUJ 6/2022, do STJ de 30/06/2022, publicado no Diário da República n.º 184/2022, Série I de 22/09/2022, em data anterior à da interposição da execução.
Esse citado AUJ decidiu “I - No caso de quotas de amortização do capital mutuado pagável com juros, a prescrição opera no prazo de cinco anos, nos termos do artigo 310.º alínea e) do Código Civil, em relação ao vencimento de cada prestação. II - Ocorrendo o seu vencimento antecipado, designadamente nos termos do artigo 781.º daquele mesmo diploma, o prazo de prescrição mantém-se, incidindo o seu termo 'a quo' na data desse vencimento e em relação a todas as quotas assim vencidas.”
Podemos, portanto, concluir que os apelantes pronunciaram-se sobre a questão da prescrição da forma que entenderam melhor para defender a sua pretensão, e foram eles que alegaram e admitiram a factualidade necessária para a aplicação do art. 310º, do CC pelo que esta questão não pode se qualificado como surpresa para qualquer mandatário minimamente diligente.
Quanto ao principio da igualdade não se vislumbra sequer a sua relevância, no caso, pois, se o apelado apresentou o requerimento inicial e a apelada pode responder ao mesmo, no prazo legal, o que fez ignorando um AUJ e a aplicabilidade de outras normas do mesmo instituto jurídico a igualdade de armas processuais foi rigorosamente respeitada.
Logo a igualdade de tratamento imposta, além do mais, pelos art. 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, do art. 14º, nº 1 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e art. 6º, nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, bem como art. 20º, nº 4 da CRP, foi plenamente assegurada. Isto, porque, foi a parte que livremente optou por omitir qualquer consideração à aplicabilidade aos factos por si alegados do art. 310º do CC e supra referido AUJ.
Improcede, pois, a primeira questão suscitada que naturalmente incluiu a nulidade processual invocada.
2. Da violação do princípio do dispositivo
Está em causa saber se foi ou não violado o princípio da vinculação temática.
Nesta matéria diremos desde já que aresto do STJ citado pela apelante reforça, como veremos, a tese da bondade da decisão do tribunal recorrido, já que na sua citação a apelante omite dois pormenores.
O primeiro é que nesse caso foi considerado que o prazo de prescrição não podia ser aplicado porque dizia respeito ao prazo extra-contratual e a invocação dizia respeito ao prazo contratual.
Ou seja, não existe identidade da factualidade dessa questão face a esta, pelo que a força do precedente é escassa.
E, por fim, a apelante omite, que nesse aresto foi lavrado um voto de vencido, que não apenas afecta a autoridade do mesmo como, pela força dos seus argumentos, a coloca decisivamente em causa neste caso concreto.
Esta norma, consagrou entre nós o principio Iura novit curia nos termos do qual o tribunal não está limitado pelas alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação de regras de direito, cabendo-lhe o dever de indagar e aplicar as regras jurídicas aos factos.
Por isso é que o mesmo princípio se pode formular também como da mihi factum dabo tibi ius” (“dá-me os factos e dou-te o direito”).
Por causa disso é que, mesmo numa questão penal, “o tribunal pode - diremos, deve, atento o âmbito do recurso em matéria de direito, cujos contornos se definiram - apreciar as questões submetidas à sua apreciação com base em argumentos ou razões distintas daquelas que foram concitadas pelas partes”.[3]
E, como salienta o recente Ac do STJ DE 16.2.23, nº 3063/18.9T8PTM.E2.S1(Catarina Serra): “Sempre que o enquadramento jurídico realizado pelo tribunal se contenha dentro dos limites da factualidade essencial alegada e seja adequado ao efeito prático-jurídico pretendido, pode o tribunal realizá-lo, posto que as partes tenham tido oportunidade de se pronunciar sobre ele, sendo poder-dever do julgador proceder à requalificação ou reconfiguração normativo-jurídica do caso quando cumpridas aquelas condições”.[4]
Ora, in casu foi precisamente isso que aconteceu.
Como vimos o contraditório foi plenamente cumprido pelo que a apelante pode livremente alegar e invocar todos os argumentos relevantes para a decisão.
Depois, quem alegou os factos necessários à subsunção da obrigação exequenda foi a própria apelante.
Quem invocou o decurso do prazo de prescrição foi a apelada e o tribunal a quo aplicou a esses factos uma norma do mesmo instituto que produz os mesmos efeitos.
É evidente que a norma aplicada é diferente da indicada pela parte (art 310º, ao invés do art. 309). Mas, essas duas normas diferem entre si (apenas) quanto à dimensão do prazo de prescrição (20 anos/5 anos), e quanto a pressupostos particulares da segunda, regulando ambas a mesma situação (efeito do tempo no cumprimento de obrigações contratuais). Parece-nos, pois, que a decisão se situa no âmbito do pedido já que aplica um prazo mais curto de prescrição.
Não podemos, por isso, considerar que a mesma se situe fora da vinculação temática do tribunal nos termos dos arts. 5.º, n.º 1, 609.º e 611.º do CPC. Porque, estamos perante a aplicação do mesmo instituto jurídico, com as mesmas consequências, ao mesmo evento contratual, conforme a concreta causa de pedir factual (decurso do tempo) alegada pela parte.
Nesta matéria um aresto decisivo é o Ac do STJ de 19.1.17, nº 873/10.9T2AVR.P1.S1 (Tomé Gomes), que afirma a vinculação temática do tribunal foi violada quando se “trata de uma pretensão, de resto nem sequer deduzida pelo A., qualitativamente diversa daquela, quer quanto à relação jurídica material controvertida, quer quanto ao próprio efeito pretendido”.
E, estamos também muito longe da situação analisada pelo Ac do STJ DE 10.2.22, nº 5045/20.1T8GMR.G1.S1 (Rosa Tching)[5], que considerou que a invocação da prescrição contratual não seria aplicável a uma situação de responsabilidade extra-contratual.
Acresce que, conforme voto de vencido desse mesmo aresto: “para cumprir a exigência de invocação da prescrição exigida pelo art.º 303º do CCiv basta que se exprima a vontade dessa invocação (a simples afirmação de que o peticionado é inexigível em função do tempo já decorrido)”.
Ora, é mais do que evidente que isso foi realizado neste caso.
Pretender o contrário implicaria que o tribunal, mesmo respeitando (como vimos) o principio do contraditório) não poderia qualificar de forma diferente os contratos celebrados pelas partes, os danos sofridos pelos lesados, ou, como neste caso, concluir que o prazo de prescrição aplicável é de 5 anos e não de 20, aplicando uma norma distinta situada no mesmo livro, capitulo e secção do código civil e que visa regular o mesmo instituto.
Acresce que in casu, o tribunal respeitou integralmente a concreta causa de pedir alegada pela parte, usando até o quadro factológico essencialmente fornecido pela apelante.
No quadro de uma justiça que se deve aproximar o mais possível do real social, estranho seria que depois do apelado se limitar a invocar o prazo de prescrição mais longo, e do apelante na sua oposição alegar os factos necessários para a aplicação de um prazo de prescrição mais curto, se pudesse defender que o tribunal está a violar a vinculação temática do apelante ao não atender a esse pedido e esses novos factos.
Consideramos assim que inexiste a violação do princípio do dispositivo, pelo que improcedem as restantes questões suscitadas.
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Pelo exposto este tribunal delibera julgar o presente recurso totalmente não provido, e por via disso confirmar a sentença recorrida.