EXECUÇÃO
LEGITIMIDADE
LETRA DE CÂMBIO
Sumário

Nos termos do artigo 53.º, n.º 1, do C. P. C., o exequente é parte legítima na execução se na letra de câmbio surge como tomador.

Texto Integral

Processo n.º 6978/22.6T8PRT-A.P1.

João Venade.

António Paulo Vasconcelos.

Paulo Duarte Teixeira.


*

1). Relatório.

A..., Unipessoal, Lda., com sede na ..., Edifício ..., Porto,

intentou

Ação executiva para pagamento de quantia certa contra

B..., Lda., com sede na ..., Loja ..., Porto

AA, residente na Avenida ..., ..., 3.º Dt., ...,

BB, residente na Avenida ..., ..., Vila do Conde,

CC, residente na Avenida ..., ..., ..., Vila Nova de Gaia,

DD, residente na Rua ..., ..., Vila do Conde,

alegando, em resumo, que:

. na qualidade de tomadora, é legítima portadora de uma letra no montante de 165.932,28 EUR, emitida em 30/06/2018, com vencimento em 31/12/2021, destinando-se a garantir as obrigações assumidas pela executada/aceitante B..., Lda. no âmbito de «Contrato de Integração de Loja» celebrado entre esta e a exequente;

. vencida a letra, não foi paga pela executada/aceitante;

. os avalistas da letra, AA, BB, DD e CC, são responsáveis pelo pagamento da mesma nesses termos;

. estão assim os executados obrigados a pagar à exequente o valor global de 209 306,52 EUR (incluindo juros) e bem assim os juros vincendos à taxa legal até efetivo e integral pagamento.


*

Citados, deduziram embargos os executados AA, CC e DD, alegando, no que releva para os presentes autos de recurso que o exequente era parte ilegítima pois, ao contrário do que invocou no requerimento executivo, a mesma não foi parte do contrato que deu origem à emissão da letra dada à execução; a letra/título executivo não lhe foi endossada nem lhe foi cedida a posição contratual da «C..., S. A.».

A exequente contestou, invocando que corresponde à verdade que o contrato que deu origem à emissão da letra foi celebrado entre a sociedade C..., S.A. e a executada B..., Lda., e que por força daquele contrato, a «C...…» cedeu à aludida executada a exploração das lojas ... e ..., do Edifício ..., para o exercício da sua atividade comercial. Do mesmo modo, a título de caução e como garantia de pagamento atempado e integral de todas as obrigações emergentes do contrato acima identificado, a executada B..., Lda. aceitou e entregou a «C...….» uma letra em branco.

Não tendo sido parte no contrato, o certo é que ficou estabelecido na cláusula 3.ª (Contrapartidas), que «B..., Lda.» se obrigou a efetuar o pagamento das contrapartidas devidas pela exploração das lojas a «C...…», ou a quem esta em qualquer momento lhe indicasse, pelo que os pagamentos tanto podiam ser feitos a «C...…» como a outra sociedade que esta viesse a indicar.

Daí que a exequente possa ser a entidade que exige o pagamento através da letra em causa.


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Foi proferido despacho saneador onde se decidiu:

«Pelo exposto, julga-se a exequente A... Unipessoal, Lda. parte ilegítima na execução, relativamente ao pedido executivo que deduziu contra os embargantes/executados AA, CC e DD e, em consequência, absolve-se os mesmos da instância nos termos do disposto no artigo 576º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, julgando-se, quanto a eles, extinta, a execução.

(…).

Fica prejudicada a apreciação das restantes questões, inclusive, do pedido de suspensão da execução.» - nosso realce -.


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Inconformado, recorre a exequente, formulando as seguintes conclusões:

«1. Entre a C... e a B... foi celebrado um contrato de utilização.

2. A C... cedeu à B... a exploração de duas lojas no Edifício ....

3. A título de caução e como garantia do pagamento atempado e integral a B... entregou à C... uma letra em branco, avalizada pelos sócios e aqui embargantes.

4. Na mesma data celebraram um pacto de preenchimento da letra de cambio.

5. Do contrato constava que a C... tinha o direito de, por qualquer título ou negócio transmitir ou ceder, parcial ou totalmente, a sua posição no presente contrato, ou os direitos e/ou obrigações do mesmo para ela decorrentes, independentemente do consentimento da B....

6. Posteriormente, a C..., a B... e a Recorrente resolveram o contrato de integração.

7. A B... assumiu-se devedora perante a C... e a Recorrente.

8. Foram transmitidas as garantias prestadas no contrato de integração.

9. A garantia transmitida foi a letra de câmbio subscrita com o contrato de integração.

10. Porém, como acordaram em revogar o contrato, a letra de câmbio não podia servir para garantir a mesma obrigação, que já não existia.

11. Assim, a letra de câmbio servia para garantir o pagamento da dívida assumida pela B... perante a C... e a Recorrente.

12.Vencida a obrigação, a mesma não foi paga pela Executada.

13.Pelo que a Exequente tem total legitimidade para executar a Letra de câmbio.».

Termina pedindo a revogação da decisão.


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Contra-alegou o executado, pugnando pela manutenção do decidido e apresentando recurso subordinado, com as seguintes conclusões:

«01. A sentença proferida nos presentes autos compõe o litígio de forma juridicamente quase irrepreensível, pecando, tão-somente, por não se pronunciar sobre o pedido de condenação, da Exequente/Embargada, como litigante de má-fé.

02 É este lapso que cumpre reparar através do recurso à presente via, nos termos e pelos fundamentos melhor explicitados ao diante.

03 Na instância executiva, o Executado foi citado para pagar ou para se opor à execução, na qual a Exequente reclama o pagamento da astronómica quantia de € 209.306,52.

04 Os factos e os fundamentos alegados, pela Exequente, e que sustentam a referida execução, são absolutamente incompatíveis com a pretensão formulada.

05 Designadamente, pela circunstância de:

a) A Exequente não ter sido parte no ‘Contrato de Integração de Loja nº. ...’, de 04.05.2015, e de, por esse motivo, não existir nenhuma relação extracartular entre ela e a sociedade Executada ou entre ela e o Avalista/Executado/Embargante;

b) A letra dada à execução não ter sido endossada à Exequente;

c) Não ter sido cedida, à Exequente, a posição contratual no contrato supra indicado;

d) Esse contrato ter sido revogado por acordo de 10.07.2018 (com intervenção da própria Exequente), facto que determinou a cessação da garantia dada pelo Avalista/Executado/Embargante;

e) A Exequente pretender obter o pagamento duma letra de € 165.932,28, tendo dado à execução um título distinto, no valor de € 189.208,26;

f) A letra dada à execução ter sido emitida/preenchida em 30.06.2018, sendo certo que a data limite para que esse preenchimento ocorresse era o dia 01.07.2017; o que equivale a dizer que, a partir desta data, a letra deixou de garantir o cumprimento do contrato que lhe era subjacente (ou de qualquer outro);

g) A letra dada à execução garantir apenas 6 meses de remunerações mensais e 6 meses de despesas comuns, e tão-somente os 6 meses mais antigos por referência ao período que porventura estivesse em dívida, num valor global (máximo) de € 36.043,92 e, não obstante, ter sido preenchida com um valor (quase) seis vezes superior;

h) A letra apenas garantir valores que se encontrassem em divida à empresa ‘C..., S. A.’, e não à Exequente.

i) A Exequente nunca ter comunicado, ao Avalista/Executado/Embargante, o montante em dívida inscrito na letra, nem a data do respectivo vencimento, não obstante peticionar-lhe a ‘simbólica’ quantia de € 43.374,24 a título de juros moratórios.

§ Os quais, de resto, não se sabe se foram calculados tendo por referência o valor de € 165.932,26 mencionado em 1 do requerimento executivo, ou o valor de € 189.208,26 constante da própria letra, ou ainda o valor de € 169.932,28 indicado na ‘Liquidação da Obrigação’ de fls. 3 daquele requerimento.

06. Todos estes factos eram do integral conhecimento da Exequente, que, consequentemente, também sabia ser falsa a factualidade que apresentou (designadamente) em 1, 2, 4 e 5 do requerimento executivo.

07 Em suma, a presente execução constitui uma descarada tentativa de extorquir, ao Executado/Avalista/Embargante, uma avultadíssima quantia pecuniária, à qual a Exequente bem sabia não ter direito.

08 Sendo reveladora da má-fé dolosa com que esta actuou, e da sua conduta altamente censurável e reprovável, que não poderia deixar de ser severamente punida.

09 Por este motivo, em sede de embargos de executado, o Executado/Avalista/Embargante peticionou, para além do mais, a condenação da “Exequente como litigante de má-fé, em multa e em indemnização condigna à parte contrária (incluindo todas as despesas suportadas pelo Embargante nesta instância e os honorários do seu Mandatário), em valor nunca inferior a € 10.000 (artº. 542º, nº. 1, do Código de Processo Civil).”.

10 Fundamentando este pedido com a matéria vertida de 112 a 121 do articulado de embargos, por referência à factualidade anteriormente alegada, de 05 a 85 e de 101 a 111 dessa mesma peça processual.

11 Esta questão da litigância de má-fé da Exequente foi trazida aos autos, pelo Executado, e constitui o objecto de uma pretensão que o Tribunal ‘a quo’ não podia deixar de conhecer, mas que, todavia, ele efectivamente não conheceu.

12 Ao assim não proceder, a omissão de pronúncia do Tribunal determina a nulidade da sentença, conforme estatuído no artº 615º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Civil, por incumprimento do dever de apreciar todas as questões submetidas à sua apreciação, prescrito art.º 608º, nº. 2, deste Código.

13 Os presentes autos contêm matéria documental mais do que suficiente para que se conclua, com certeza, que a Exequente tentou obter o pagamento duma quantia (astronómica), conhecendo a inexistência de fundamento para tanto.

14 Ao mesmo tempo que omitiu inúmeros factos relevantes para a boa decisão da causa, entorpecendo a acção da justiça e a descoberta da verdade.

15 Em suma, é patente que a Exequente actuou com evidente intenção maliciosa (dolo) ou, quando muito, com falta grave das precauções exigidas pela mais elementar prudência e que sempre deve observar-se nos usos correntes da vida (negligencia grave), ou seja, que ela litigou com evidente má-fé (artº. 542º, nº. 1, do Código de Processo Civil)

16 Por esse motivo, deve ser condenada, pelo Tribunal da Relação, nos termos peticionados pelo Executado/Embargante no articulado de embargos de executado (artºs. 112 a 121, 05 a 85 e 101 a 111), ao abrigo do disposto no artº. 665º, nº. 2, do Código de Processo Civil.

17 Acaso assim não se entenda (o que se considera como mera hipótese de raciocínio), deverá o Tribunal da Relação determinar o prosseguimento da instância para apuramento da matéria de facto habilitante à prolação de decisão sobre a questão ‘sub iudice’».

Pede o provimento do recurso subordinado, revogando-se a decisão recorrida e substituindo-a por outra que:

A) Condene a Exequente, como litigante de má-fé, em multa e em indemnização condigna à parte contrária (incluindo todas as despesas suportadas pelo Embargante nesta instância e os honorários do seu Mandatário), que ele ora peticiona em valor nunca inferior a € 10.000 (artº. 542º, nº. 1, do Código de Processo Civil),

Ou

B) Determine o prosseguimento dos autos (em sede de primeira instância) para apuramento da matéria de facto habilitante à prolação de decisão sobre a questão sub iudice.


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Foram admitidos ambos os recursos.

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As questões a decidir são:

. legitimidade do exequente;

. possibilidade de apreciação da má-fé do exequente (recurso subordinado).


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2). Fundamentação.

2.1). De facto.

Para efeitos de apreciação da exceção de ilegitimidade do exequente, foram considerados os seguintes factos:

«1. Foi apresentada à execução de que estes autos constituem um apenso, o documento anexo ao requerimento executivo, denominado “letra de câmbio”, sacada pela exequente A..., Unipessoal, Lda, aceite pela executada B..., Lda, além do mais, os seguintes dizeres:

- Importância: 189.208,26€

- Vencimento: 2021/12/31

- Local e data de emissão: Porto – 2018/06/30

2. Tal documento foi assinado no verso pelos embargantes/executados, a seguir às expressões manuscritas “Dou o meu aval à aceitante”, estando os demais espaços, aquando da assinatura, por preencher.

3. Em 4 de maio de 2015, entre a sociedade C..., S.A. e a executada B..., Lda., foi celebrado o contrato de utilização de loja n.º ..., por força do qual a C..., S.A. cedeu à referida executada a exploração das lojas ... e ..., do Edifício ..., para o exercício da atividade comercial de bar, café, serviço de refeições, restaurante, estabelecimento de bebidas com espaço para dança e realização de espetáculos, nos termos constantes do documento n. 1, anexo à oposição à execução, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

4. A título de caução e como garantia de pagamento atempado e integral de todas as obrigações emergentes do contrato acima identificado, a executada B..., Lda. aceitou e entregou à C..., S.A., a letra em branco referida em 1) e 2), que nesse momento era em branco.

5. A exequente não foi parte no sobredito contrato.

6. A cláusula quarta do contrato dispõe que:

1. A SEGUNDA CONTRAENTE obriga-se a comparticipar nos custos e encargos de funcionamento, exploração e promoção do Edifício ... (doravante Custos Comuns), pagáveis a partir do dia 1 de Julho de 2015 ou da data da abertura da loja ao público caso seja acordado pelas partes data anterior à prevista na cláusula 7ª n.º 1, e conforme previsto no Regulamento, mediante o pagamento mensal à PRIMEIRA CONTRAENTE ou à entidade que venha a indicar da importância de € 2.220,00.

2. O montante dos Custos Comuns será atualizado anualmente, em função do orçamento previsional que será elaborado e apresentado aos Lojistas até ao mês de Dezembro pela PRIMEIRA CONTRAENTE ou por quem esta tenha encarregue a gestão do Edifício ...”.

7. A cláusula 18ª do contrato dispõe que:

A PRIMEIRA CONTRAENTE, tem o direito de por qualquer título ou negócio transmitir ou ceder, parcial ou totalmente, a sua posição no presente contrato, ou os direitos e/ou obrigações do mesmo para ela decorrentes, independentemente do consentimento da SEGUNDA CONTRAENTE. (…)

8. Anexo ao referido contrato de integração de Loja, consta o seguinte documento, datado de 04.05 2015, subscritos pelos embargantes quer na qualidade de legais representantes da executada B..., Lda, quer na qualidade de avalistas:

PACTO DE PREENCHIMENTO N.º ...

Nos termos acordados constantes da cláusula décima quarta do Contrato de integração de Loja celebrado em 4 de Maio de 2015 e referente à exploração das Lojas designadas por ... e ..., é entregue uma letra de câmbio em branco, aceite por esta sociedade e avalizada pelos seus sócios, destinada a garantir o pagamento dos valores que se encontrarem em dívida à Primeira Contraente até ao limite do valor fixado de 6 meses de remunerações mensais calculado ao valor em vigor das remunerações mensais mais antigas em dívida e 6 meses de despesas comuns, desde já autorizando V. as. a, em caso de incumprimento das obrigações contratuais por parte desta sociedade, completá-la com todos os restantes elementos, nomeadamente quanto à data de vencimento, local de pagamento e valor a pagar, o qual corresponderá aos valores que por nós forem devidos aquando da sua eventual utilização com o limite supra referido.

9. Em 10 de julho de 2018, entre a C..., S.A., como primeira outorgante; a Exequente/Embargada A... Unipessoal, Lda, enquanto segunda outorgante; a Executada B..., Lda., como terceira outorgante; a D... – Unipessoal, Lda., como quarta outorgante, e EE e FF, como quintos outorgantes foi celebrado um acordo, intitulado “Acordo de Resolução/Revogação Contratual e Assunção de Dívida” nos termos constantes do documento n. 3 anexo à oposição à execução, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

10. A cláusula 1, intitulada “Objeto” estabelece o seguinte:

1.1 Pelo presente Acordo, e nos termos e condições nele estabelecidos, a primeira, segunda e terceira outorgantes acordam em revogar, à data de assinatura do presente, o Contrato de Integração de Loja n.º ... — Edifício ... celebrado em 4 de Maio de 2015.

1.2 À data da assinatura do presente acordo, a terceira outorgante reconhece e confessa-se devedora, perante a primeira do montante de €54.796,80 (cinquenta e quatro mil. setecentos e noventa e seis euros e oitante cêntimos) e perante a segunda do montante de €81.100,84 (oitenta e um mil e cem euros e oitenta e quatro cêntimos), mantendo-se as garantias. pessoais ou outras já prestadas.

1.3 Com a presente revogação cessam todas e quaisquer obrigações que decorriam para a terceira outorgante por conta do contrato de integração de loja já referido com exceção das obrigações pecuniárias ainda que o seu pagamento seja, pelo presente, assumido pela quarta outorgante nos termos infra.

1.4 A responsabilidade pelo pagamento de todas as despesas inerentes a esta revogação corre por conta da quarta outorgante.

1.5 Nos termos e para os efeitos do artigo 595.º , n.º 1, al. a) do Código Civil. a quarta outorgante, na qualidade de nova devedora, aceita a transmissão da divida fixada em €81 100,84 (oitenta e um mil e cem euros e oitenta e quatro cêntimos) contraída pela terceira perante a segunda e de que se confessa devedora perante a segunda outorgante.

1.6 Sem prejuízo, a transmissão da divida não exonera o primitivo devedor, aqui terceiro outorgante, que por ela responde solidariamente com o novo devedor, mantendo-se. ademais, para todos os efeitos, as garantias já prestadas.

1.7 A quantia de €81.100,84 (oitenta e um mil e cem euros e oitenta e quatro cêntimos) será paga, pela quarta outorgante à segunda, em 11 (onze) prestações mensais, iguais e sucessivas de €7.372,80 (sete mil, trezentos e setenta e dois euros e oitenta cêntimos), vencendo-se a primeira no dia 10 de Julho de 2018 e as seguintes no mesmo dia dos meses subsequentes, vencendo-se a última no dia I0 de Maio de 2019, devendo. portanto, ser pagas no mesmo prazo e nas mesmas condições que as comparticipações nos custos comuns que decorrem do contrato de integração de loja nesta data celebrado entre a primeira e quarta outorgantes e acrescendo ao valor das referidas comparticipações conforme cláusula 4. do referido contrato.

1.8 A falta de pagamento de uma prestação implica o total vencimento das prestações vincendas e implica a resolução automática do presente acordo e do contrato de integração de loja celebrado na presente data.

1.9 A quarta outorgante dá de garantia segunda, para garantia do bom cumprimento do acordo hoje celebrado e do pagamento do valor assume e que será pago nos termos referidos na cláusula 1.7, uma letra em branco, aceite pela própria sociedade e avalizada pelos sócios que, desde já, autorizam a segunda outorgante e, em caso de incumprimento das obrigações contratuais assumidas pela quarta outorgante, a preenchê-la com os demais elementos em falta. nomeadamente, valor que se encontrar em incumprimento, data de vencimento e local de pagamento.

1.10 Ainda para garantia do bom cumprimento do acordo hoje celebrado e do pagamento do valor que, por este acordo, assume e que será pago nos termos referidos na cláusula 1.7, a quarta outorgante constituiu penhor sobre os bens móveis que se encontrem no interior da loja ... que se relacionam no Anexo I ao presente acordo e que deste faz parte integrante.».


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2.2). Do mérito do recurso.

A). Recurso principal.

A única questão a apreciar no recurso é saber se a exequente é parte legítima na execução.

Nos termos do artigo 53.º, n.º 1, do C. P. C., a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor.

O título executivo dos autos é uma letra, junta com o requerimento executivo, descrita nos factos 1 e 2; e, como daqui se retira, o exequente é, face ao título, credor pois sendo o tomador/portador do referido instrumento cambiário, é aquele a quem deve ser paga a letra – artigo 1.º, ponto 6, da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças (L. U. L. L.) -.

Assim, à partida, o exequente (A..., Lda.), sendo quem surge no título cambiário como tomador, é parte legítima pois, repete-se, figura como credor no título executivo.

Tal letra, face ao alegado e aos factos acima referidos, terá sido entregue em branco, nos seguintes termos:

. «C...…» e a executada «B...… » celebraram, em 04/05/0215, um contrato pelo qual aquela cedeu a esta a exploração de lojas de um edifício;

. a título de caução/garantia de pagamento das obrigações da executada «B...…», esta aceitou e entregou a «C...…» a referida letra, em branco.

. depois, em 10/07/2018, «C...…», exequente e executada «B...…» revogam o dito contrato, reconhecendo-se esta última como devedora de «C... …» de uma determinada quantia e perante a exequente de uma outra, mantendo-se as garantias pessoais ou outras.

O tribunal recorrido afirma que:

. citando um Acórdão do S. T. J. de 18/10/2007, «o fundamento substantivo da ação executiva… é a própria obrigação exequenda, sendo que o título executivo é o seu instrumento documental legal de demonstração, ou seja, constitui a condição daquela ação e a prova legal da existência do direito de crédito nas suas vertentes fáctico-jurídicas»;

. «sucede, porém, que no caso em apreço, foi a própria exequente que alegou no requerimento executivo que a letra dada à execução se destinava a garantir o cumprimento do contrato de integração de loja que celebrara com a executada B..., Lda., mas depois retificou tal alegação, (…), invocando que o contrato não tinha sido celebrado entre ela e a B..., mas sim entre a C..., S. A e a B..., Lda., abrindo assim a discussão sobre a presunção da existência e titularidade do direito constante do título executivo, que, em consequência, ficou ilidida pela própria exequente,…;

. «…a letra dada à execução, avalizada pelos embargantes, foi entregue à C... … em branco, e não à exequente, para garantia do cumprimento do contrato de integração de loja celebrado com a «B...…», tendo sido definidas as circunstâncias em que o seu preenchimento podia ser feito, através do pacto de preenchimento anexo ao contrato;»

. «tal contrato foi posteriormente revogado…»;

. «a exequente defende que… «C...…» tinha o direito de por qualquer título ou negócio, transmitir ou ceder, parcial ou totalmente, a sua posição no contrato, ou os direitos e/ou obrigações do mesmo para ela decorrentes, e que isso (essa cessão ou transmissão) sucedeu através do acordo de resolução/revogação contratual e assunção de dívida, em que a executada «B...…..», … se confessou devedora da Exequente/Embargada do montante de 81.100,84€, declarando ainda que, mantinha as garantias, pessoais ou outras, já prestadas, em que se incluiria a letra oferecida à execução, bem como os avales prestados»;

. «não pensamos contudo que assista razão à exequente, ou seja, que tenha havido uma transmissão do crédito da C... para a B..., através do Acordo de Resolução/Revogação Contratual e Assunção de Dívida.

. por um lado, porque através de tal acordo, o contrato de integração de loja foi revogado;

. «nada nos leva a concluir que, …, ainda que os pagamentos pudessem ter sido feitos à A..., isso implicasse uma cessão de crédito tal como vem prevista nos artigos 582º e seguintes do Código Civil, nem justifica a transmissão da letra dada em garantia das obrigações contraídas pela B... perante a C....

. a letra e a livrança podem ser validamente transmitidas a terceiros, quer através do endosso, quer mediante cessão ordinária de créditos (artºs. 77.º e 11.º da LULL), sendo esta última a única forma de transmissão caso tenham inscritas as palavras “não à ordem” ou expressão equivalente;

. a legitimidade do cessionário para instaurar a execução com base em letra que acompanha o crédito que lhe foi cedido, dependerá da alegação e junção não só do contrato de cessão de créditos, bem como da notificação ao devedor.

. no caso não houve endosso, nem contrato de cessão do crédito garantido pela letra avalizada pelos executados embargantes, que não intervieram em nome pessoal no Acordo de Resolução/Revogação Contratual e Assunção de Dívida, nem deram o seu acordo para a manutenção do aval;

. não tendo o crédito sido cedido, não houve transmissão da letra que o cauciona no que respeita aos embargantes, pelo que a garantia pessoal de pagamento emergente desses avales deixou de produzir efeitos perante a exequente, que não tem consequentemente legitimidade para demandar, com base neles, os executados/embargantes, uma vez que apenas a sobredita C..., S.A. poderia figurar na letra como sacadora e, consequentemente, exigir o respetivo pagamento.».


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Todas estas considerações são ponderadas e doutas e poderão ser relevantes mas, na nossa visão, não se referem à legitimidade processual da exequente. Como vimos, esta resulta do próprio título executivo.

Mas já o saber se:

. o exequente é efetivamente credor dos executados;

. o contrato de revogação de 2018 permite essa conclusão, no sentido de o exequente poder deter e preencher a letra e acioná-la;

. o fez devidamente (cumprindo acordos), são questões que não interferem com a legitimidade processual mas com a aferição, em substância, da sua qualidade de credora.

Como refere Fátima Pacheco, reportando-se à livrança mas que aqui encontra acolhimento quanto à letra, in Breves considerações sobre a Livrança: noção e características, função e importância, classificação e forma de extinção[1], «É, também, importante referir que por via da circulação do título o portador de tais documentos adquire legitimidade para exercer ou transferir (legitimação ativa) o direito nele incorporado (direito cartular), sem ter de provar a titularidade do direito. Por outro lado, tal legitimação habilita o devedor a cumprir (apenas) a quem se apresentar como portador do título (legitimação passiva). O que significa que nos títulos de crédito, contrariamente ao direito civil (v.g. regime da cessão de créditos e do nemo plus iuris), a titularidade do direito e a legitimidade para o seu exercício não coincidem, pelo que a legitimação mais não é do que uma forma de dar rapidez e segurança à circulação, atribuindo ao portador legitimidade para atuar como se fosse o seu titular.».

Ou ainda Rui Teixeira Santos, Títulos de crédito, Lições de Direito Comercial[2]: «a detenção do título é indispensável para o exercício e a transmissão do direito nele mencionado (quem for titular de um título é titular de um direito). Tal característica consiste em que a posse do título legítima o portador para exercer ou transmitir o direito. Podemos designar esta característica por legitimação activa visto que ela se refere à posição jurídica do sujeito activo do crédito, à sua aptidão para exercê-lo ou transmiti-lo. A posse, ou melhor a detenção material do título segundo as regras de circulação que para ele estão defendidas, é que confere ao seu possuidor a legitimação formal para exercer ou transmitir o direito que o título refere.».

O exequente não surge na letra como um sucessor no direito ou na obrigação mas como o tomador original tal como inscrito nesse mesmo instrumento; se o tomador fosse outra pessoa, então o exequente, para poder acionar essa letra, teria que justificar que a execução tinha que correr entre os sucessores das pessoas que no título figuram como credor ou devedor, conforme artigo 54.º, n.º 1, do C. P. C.; mas, no caso, o exequente é tomador da letra, não sendo assim um sucessor. É certo que terá recebido a letra, eventualmente por tradição manual do anterior credor material («C...…») mas não deixa de ser quem surge como credor no título cambiário.

Aliás, pensamos que os embargantes não apontam a sua defesa primordialmente para a ilegitimidade do exequente mas antes para questionarem a possibilidade de o mesmo obter o pagamento por não ser o titular da relação material (subjacente), também por esta inexistir, não havendo assim relação extracartular; só subsidiariamente pedem que a exequente seja declarada parte legítima, não por que não figure como credora na letra mas porque não deveria assim figurar.

Este «não dever figurar» é algo que, na nossa opinião, transcende a legitimidade processual que advém de a exequente ser a tomadora da letra.

O que sucede é que o exequente, com base numa perceção sua de um acordo, preencheu a letra e aciona-a; restará aos executados demonstrarem, se assim o entenderem, a factualidade que pode obstar à cobrança do crédito pelo exequente por não poder, substancialmente, pedir o pagamento.

Por isso, entendemos que a exequente/recorrente é parte legítima na execução; se tem direito a receber a quantia que pede que seja paga coercivamente, é matéria que está dependente da produção de prova, nomeadamente por o embargante DD impugnar toda a factualidade constante do requerimento executivo (requerimento de 25/10/2022).

Conclui-se assim pela procedência do recurso, tendo os autos de prosseguir os seus termos para apreciação das restantes questões ainda não decididas, matéria que, face à apontada impugnação, não podemos apreciar.


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B). Do recurso subordinado.

Este recurso do embargante AA versa unicamente sobre a falta de apreciação da litigância de má-fé da exequente/embargada/recorrente principal, pedida pelo mesmo embargante, devida à sua absolvição de instância.

Apesar de tribunal ter extinguido a instância, poderia ter-se apreciado esta questão.

Na verdade, a condenação do exequente pressupunha que, de algum modo, se demonstrasse que a atuação daquele era violador de princípio de boa-fé, integrando-se nas situações previstas no artigo 542.º, n.º 2, do C. P. C..

Não se tendo analisado o mérito da pretensão, pensamos que a solução mais correta poderia ser a de atentar unicamente na má-fé que sobressaísse da propositura da execução e não do mérito da mesma execução, o qual não foi apreciado, ou seja, aferir se ao propor a execução e não tendo legitimidade, se de algum modo essa falta de preenchimento deste pressuposto processual poderia conduzir à conclusão que o exequente litiga de má-fé.

Sucede que, como acima se decidiu, por ora, não está demonstrado que o exequente praticou algum ato no processo de onde pudesse resultar que não tinha atuado com a lisura devida. E, concluindo-se que é parte legítima na execução, não se pode decidir que incorreu em falta ao intentar a execução pois, neste momento, o que se apura é que intenta uma execução para a qual tem legitimidade processual.

Se a ilegitimidade tivesse sido confirmada, poderia eventualmente aferir-se se, por ter intentado a execução sem o poder ignorar e/ou que usava o processo de modo manifestamente reprovável – eventualmente querendo atingir o património dos executados – , estavam preenchidas as alíneas a), d), do n.º 2, do citado artigo 542.º, do C. P. C. –-.

Mas como o exequente é parte legítima, não há que apreciar, efetivamente e por ora, este pedido de condenação de litigância de má-fé (não pensamos que fosse caso de nulidade por omissão de pronúncia pois o tribunal justificou o motivo da não apreciação – por ter extinguido a instância -).

A base da sustentação do recurso (ilegitimidade do exequente) não se manteve pelo que a não apreciação do pedido de condenação de litigância de má-fé acaba por se confirmar, ainda que por outro motivo.

Tal pedido, ainda não decidido, agora já não por o exequente ser parte ilegítima mas por outros motivos, poderá assim ser apreciado a final, ponderando-se certamente a decisão que vier a ser proferida nos autos.

Conclui-se assim pela improcedência deste recurso.


*

3). Decisão.

Pelo exposto, decide-se:

1). Julgar procedente o recurso interposto pela exequente A..., Unipessoal, Lda., declarando-se a mesma parte legítima, devendo os autos prosseguir os seus termos.

Custas do recurso pelos recorridos.

2). Julgar improcedente o recurso subordinado interposto pelo executado/embargante AA.

Custas do recurso pelo recorrente.


Porto, 2022/03/07
João Venade
António Paulo Vasconcelos
Paulo Duarte Teixeira
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[1] Revista Jurídica da Portucalense, n.º 25, file:///C:/Users/MJ01804/Downloads/16896-Article%20Text-67898-2-10-20191206.pdf
[2] https://pt.slideshare.net/Ruiteixeirasantos/ttulos-de-crdito-direito-comercial-professor-doutor-rui-teixeira-santos-inpiscadiseit-2013