AUTORIDADE DE CASO JULGADO
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
VENDA EM EXECUÇÃO DE IMOVEL DESTINADO A HABITAÇÃO
Sumário

I – A autoridade de caso julgado não se confunde com a excepção de caso julgado: esta respeita ao efeito negativo do caso julgado e constitui uma excepção dilatória, de conhecimento oficioso, que impede a apreciação do mérito da acção; aquela respeita ao efeito positivo do caso julgado e pressupõe que seja conhecido o mérito da acção, impondo-se na decisão desta o que foi decidido na acção anterior.
II – A questão da autoridade de caso julgado invocada como fundamento da não consideração do crédito de um credor reclamante contenderá apenas com a decisão de graduação de créditos e não com o prosseguimento da execução, incluindo a venda executiva.
III – A proibição da venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efectivamente afecto a esse fim, prevista no nº 2 do artº 244º do Código de Procedimento e Processo Tributário, apenas respeita à venda a impulso da administração fiscal e destinada ao pagamento coercivo de dívidas fiscais do devedor, não se aplicando às dívidas de outra natureza.
IV – Assim, estando em causa vários créditos garantidos pelo imóvel que constitui a casa de habitação do devedor, sendo alguns desses créditos de credores particulares e outros do Estado, nada impede a venda do imóvel na execução comum, sendo depois os pagamentos respectivos efectuados de acordo com a graduação que constar da sentença de graduação de créditos.

Texto Integral

Processo nº 5377/12.2TBVNG-C.P1
(Comarca do Porto – Juízo de Execução do Porto – J1)

Relatora: Isabel Rebelo Ferreira
1ª Adjunta: Maria Manuela Machado
2ª Adjunta: Ana Luísa Loureiro

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I AA interpôs recurso da decisão de 14/07/2022, proferida na Execução Ordinária nº 5377/12.2TBVNG, do Juízo de Execução do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, que indeferiu a sua pretensão de oposição à venda do imóvel penhorado nos termos do requerimento de 23/05/2022.
A recorrente pretende que seja revogada a decisão recorrida e que não se proceda à venda daquele imóvel, tendo, na sequência da respectiva motivação, apresentado as seguintes conclusões, que se transcrevem:
«1.º
Ex vi art.º 850.º, n.º 3, do C.P.C., fixa a renovação da instância “somente quanto aos bens sobre que incida a garantia real invocada pelo requerente, que assume a posição de exequente.”, porém, no seguimento do estatuído na Lei n.º 13/2016, de 23 de Maio, que alterou o CPPT, no seu art.º 244.º, n.º 2, não há lugar à realização da venda de imóvel destinado exclusivamente à habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efectivamente afecto a esse fim.”;
2.º
A venda em conjunto com os Autos de insolvência id. a fls., atenta contra o disposto no art.º 244.º n.º 2 do CPPT, por força da alteração imposta pela Lei n.º 13/2016 de 23 de Maio, devendo, a mesma, ser interpretada no sentido de que não se poderá efectivar, por ter sido impulsionada pelo ISS, IP., quando a execução se encontrava extinta por pagamento integral, uma vez que o crédito do credor reclamante Banco 1... se mostrava regularizado, cfr. requerimento de fls., datado de 02.10.2020;
3.º
Fixa o art.º 1.º, da Lei n.º 13/2016, de 23 de Maio, que, “A presente lei protege a casa de morada de família no âmbito de processos de execução fiscal, estabelecendo restrições à venda executiva de imóvel que seja habitação própria e permanente do executado, disposição ignorado pelo Tribunal “a quo”, sem o que se viola o disposto no art.º 65.º da C.R.P.;
4.º
Não tendo o legislador ponderado que [que] dividas da mesma natureza (fiscal) poderiam em determinados casos ser cobradas em execuções comuns, por via da reclamação de créditos, ut artigo 788.º, do C.P.C., tal não obstará a aplicação daquela norma nos presentes autos, a qual, outrossim se impõe;
5.º
A tutela da habitação da Recorrente não é feita por sacrifício dos credores, mas sim, unicamente, do Estado, o que aconteceria igualmente se se estivesse perante uma execução fiscal.
6.º
Se o credor comum da execução comum está a ser pago e, por isso, não impulsiona a execução, o credor “público” não a poderá impulsionar. Poderá, se houver impulso do credor comum, aproveitar-se dele para não ser prejudicado, mas não poderá ser ele a fazer com que a habitação própria e permanente do executado seja vendida, sob pena de se estar a defraudar a Lei; e violando o disposto no art.º 65.º da C.R.P.;
7.º
Nos Autos de Insolvência do Co-Executado, não foi proferida sentença de graduação de créditos, objecto de impugnação, sem que tenha havido de resposta por parte do ISS, I.P., no prazo legal, e como tal, impossível de escapar ao efeito cominatório previsto no art.131.º do CIRE, com reflexo na delimitação subjectiva e objectiva de responsabilidades reflexivas para ordenada venda em conjunto com aqueles autos;
8.º
O Tribunal “a quo”, ignorou por completo a Sentença Judicial de fls, transitada em julgado, superveniente, e da qual resultou que a Recorrente não é responsável por qualquer divida fiscal reclamada, por não ser gerente de facto da devedora principal e assim não sendo passível de reversão, impondo-se-lhe por via da determinada venda, o cumprimento de uma obrigação inexistente, violando um caso julgado;
9.º
No processo que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia, Juiz 1, o processo n.º 4893/19.0T9VNG, no qual a aqui Executada era também Arguida, sendo a Participante o ISS, I.P., os mesmos foram objecto de arquivamento relativamente à aqui Executada, que decidiu, também que a Recorrente arguida AA tenha participado na gerência da firma em causa, tomando decisões ou decidindo sobre os destinos económicos da mesma”, e assim,
10.º
Deve a aqui Recorrente, beneficiar da autoridade de caso decidido, passível de conhecimento oficioso, nos termos do disposto nos artigos 624.º, n.º 1, 577.º, al. i) e 578.º, todos do C.P.C., que expressamente foi invocado e clamado no Tribunal “a quo”, nesta data;
11.º
Não admitir a aplicação do art.º 2.º da Lei n.º 13/2016, de 23 de Maio, é admitir que o ISS., I.P., dribla tal norma com anuência do Tribunal a quo”, uma vez que se admitiria p[ro][or] via de uma execução comum a venda de imóvel no qual se integra a casa de morada de família em circunstâncias que não seria admitidas na execução fiscal, o que não resulta nem do espírito da lei, a unidade do sistema jurídico, sequer as circunstâncias em que a Lei n.º 13/2016 foi elaborada, nem tão pouco da necessária observação dos aludidos princípios constitucionais, ignorando in extremis o que dispõe o art.º 9.º do CC., sequente,
12.º
Resultaria violado o princípio da igualdade previsto no artigo 13.º n.º 1, da CRP e bem assim o princípio da legalidade e da segurança jurídica, previsto no art.º 2.º e 3.º da C.R.P.;
NESTES TERMOS,
Deve o presente Recurso ter provimento e, em consequência, ser integralmente revogado o despacho recorrido, com o que se fará
JUSTIÇA!».
A credora “Banco 1..., S.A.” apresentou contra-alegações, defendendo o não provimento do recurso e a manutenção da decisão recorrida.
Pelo credor “Instituto da Segurança Social, I.P.” não foram apresentadas contra-alegações.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II – Considerando que o objecto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), é uma única a questão a tratar:
a) averiguar se não deve haver lugar à venda do imóvel penhorado na execução.
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Apreciemos então, sendo os seguintes os factos a considerar, resultantes da análise do processo de execução e dos apensos de reclamação de créditos e de embargos de executado:
1. A presente execução iniciou-se em 14/06/2012, com a apresentação de requerimento executivo por “Banco 2..., S.A.”, sendo executados AA e BB, a quantia exequenda de € 33.836,49 e o título executivo uma livrança;
2. Em 01/08/2016 foi efectuada a penhora de um “prédio urbano correspondente a prédio de 2 pavimentos e quintal com água do poço, confrontando a Norte e a Nascente com CC, a Sul com o caminho e DD e a Poente com o caminho, sito no Lugar ..., da União das Freguesias ..., ..., ... e ..., do concelho de Vila Nova de Gaia, descrita na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º ... e inscrita na respetiva matriz sob o artigo n.º ...”, com o valor matricial de € 101.892,88;
3. Em 22/03/2017 a “Banco 1..., S.A.” reclamou créditos no montante total de € 122.910,31, garantidos por duas hipotecas voluntárias registadas sobre o imóvel referido no ponto anterior, sob a Ap. ... de 1997/11/28 e sob a Ap. ... de 2005/02/21, respectivamente;
4. Em 24/03/2017 o “Instituto da Segurança Social, I.P.” reclamou créditos no montante global de € 243.196,82, garantidos por hipoteca legal registada sobre o mesmo imóvel, sob a Ap. ... de 2016/08/23, resultantes de processo de reversão de dívidas de contribuições da sociedade “A..., Lda.”;
5. Os créditos reclamados foram reconhecidos por sentenças de 26/05/2017 e de 06/01/2022, tendo sido graduados da seguinte forma:
“- em primeiro lugar o crédito reclamado a que corresponde a Ap. ... de 1997/11/28.
- em segundo lugar o crédito reclamado a que corresponde a Ap. ... de 2005/02/21.
- em terceiro lugar o crédito exequendo
- em quarto lugar o crédito reclamado pelo ISS, IP a que corresponde a AP ... de 23.8.2016”;
6. Em 06/11/2017 foi apresentado um acordo e plano de pagamento subscrito pelo exequente e pelos executados, no qual constava, além do mais, que “o exequente declara não prescindir de qualquer penhora já realizada no processo executivo, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 807.º do Código de Processo Civil”;
7. A credora “Banco 1..., S.A.”, notificada deste acordo, em 17/11/2017 solicitou “o prosseguimento dos autos, nos termos do Artº 809º do C.P.C. para ressarcimento do seu crédito”;
8. Por decisão de 21/03/2018, a agente de execução, atento o plano de pagamentos acordado, e ao abrigo do disposto no art. 806º do C.P.C., declarou extinta a instância executiva, “sem prejuízo do Exequente requerer a renovação da execução para satisfação de remanescente do seu crédito”;
9. Na sequência desta decisão e do requerimento da Banco 1.... referido no ponto 7, foi o exequente “notificado nos termos do disposto no n.º 2 art.º 809º do C.P.C., para no prazo de 10 dias, declarar se desiste da garantia a que alude o n.º 1 do art.º 807º do C.P.C. ou requerer também a renovação da instância para pagamento do remanescente do seu crédito, ficando sem efeito o pagamento em prestações acordado”;
10. E foi o credor I.S.S. notificado “de que dispõe do prazo de 10 dias, para requerer a renovação da instância executiva, nos termos do artigo 809.º do C.P.C, acompanhando o requerido pelo credor Banco 1... S.A.”;
11. Por requerimento de 09/04/2018, o exequente declarou que “considerando que foi requerida a renovação da instância pelo credor reclamante com vista ao prosseguimento da execução e não pretendendo a aqui Exequente prescindir da garantia, vem igualmente requerer-se o prosseguimento da execução para satisfação integral da quantia exequenda”, informando ainda dos montantes que havia, entretanto, recebido por conta da quantia exequenda;
12. Por requerimento de 11/04/2018, o credor I.S.S. igualmente requereu o “prosseguimento da instância executiva para satisfação do seu crédito ao abrigo do art. 809º do C.P.C., acompanhando assim o requerido pelo credor Banco 1..., S.A.”;
13. Prosseguiu então a execução, por força das posições assumidas pelos credores reclamantes e pelo exequente, procedendo-se às diligências tendentes à venda do imóvel penhorado;
14. Em 28/09/2018 foi apresentado novo acordo e plano de pagamento subscrito pelo exequente e pelos executados, no qual constava, além do mais, que “o exequente declara não prescindir de qualquer penhora já realizada no processo executivo, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 807.º do Código de Processo Civil”;
15. E em 01/10/2018 foi apresentado requerimento pela credora Banco 1...., com o seguinte teor: “Os Executados regularizaram os empréstimos de que são titulares, objeto dos presentes autos, pelo que, a Credora Reclamante não pretende o prosseguimento da presente instância, requerendo assim a V.Exa. o cancelamento da venda por leilão eletrónico, agendada para o dia 02 de Outubro de 2018, pelas 10 horas, sem prejuízo de uma eventual renovação da execução, no caso de voltarem a incumprir”;
16. Por decisão de 08/11/2018, a agente de execução, atento o plano de pagamentos acordado, e ao abrigo do disposto no art. 806º do C.P.C., novamente declarou extinta a instância executiva, “sem prejuízo do Exequente requerer a renovação da execução para satisfação de remanescente do seu crédito”;
17. O exequente foi notificado desta decisão, com a advertência que “uma vez que já declarou não prescindir da garantia sobre o imóvel, que apenas será emitida guia de pagamento referente ao valor do Imposto de Selo para efeitos de conversão da penhora em hipoteca após decurso do prazo de que dispõe o credor reclamante para se pronunciar acerca da pretensão ou não do prosseguimento da instância executiva, nos termos do artigo 809.º do CPC”;
18. E foram igualmente notificados os credores reclamantes, com a advertência de que dispunham “do prazo de 10 dias, para requerer a renovação da instância executiva, nos termos do artigo 809.º do C.P.C.”;
19. Por requerimento de 19/11/2018, a credora Banco 1.... requereu “a renovação da instância para efetiva verificação do pagamento do seu crédito”;
20. Por requerimento de 26/11/2018, o credor I.S.S. igualmente requereu “a renovação da instância executiva para satisfação do seu crédito ao abrigo do art. 850º do C.P.C.”;
21. Nessa mesma data, a credora Banco 1.... apresentou novo requerimento, desta vez informando que “os empréstimos foram, entretanto, regularizados, pelo que, não pretende a manutenção da instância executiva”;
22. Por requerimento de 30/11/2018, o exequente declarou que “considerando que foi requerida a renovação da instância pelo credor reclamante com vista ao prosseguimento da execução e não pretendendo a aqui Exequente prescindir da garantia, vem igualmente requerer-se o prosseguimento da execução para satisfação integral da quantia exequenda”, informando ainda dos montantes que havia, entretanto, recebido por conta da quantia exequenda;
23. Em 05/12/2018, perante os requerimentos do credor I.S.S. e do exequente, a credora Banco 1.... apresentou novo requerimento com o seguinte teor: “vem informar que acompanha o prosseguimento dos autos, até porque os executados já estão, novamente, em incumprimento. Nesta conformidade, a Credora vem requerer a V.ª Ex.ª o prosseguimento dos autos, para ressarcimento do seu crédito.”;
24. Prosseguiu novamente a execução, por força das posições assumidas pelos credores reclamantes e pelo exequente, procedendo-se, além do mais, às diligências tendentes à venda do imóvel penhorado;
25. Em 31/07/2020 o exequente informou que “foi liquidada a totalidade da quantia em dívida peticionada, assim como o montante referente à taxa de justiça inicial liquidada pela Exequente e o valor relativo às despesas de solicitadoria” e requereu “a extinção da execução, com o consequente cancelamento das penhoras”;
26. Em 21/09/2020 a agente de execução, atento o pagamento integral da quantia em dívida, proferiu despacho de extinção da acção executiva;
27. Os credores reclamantes foram notificados desta decisão, com a advertência de que dispunham “do prazo de 10 dias, para requerer a renovação da instância executiva, nos termos do artigo 850.º do C.P.C.”;
28. Em resposta, a credora Banco 1.... apresentou o requerimento de 02/10/2020, com o seguinte teor: “notificada da extinção da execução, nos termos do artigo 849º do CPC, vem informar V.Exa. que os Executados regularizaram o incumprimento e por esse motivo a Banco 1..., S.A. não pretende a renovação da instância. Porém, caso a instância venha a ser renovada por qualquer motivo, desde já se informa que a Banco 1..., S.A. acompanhará a referida renovação, considerando que continua a deter garantia hipotecária sobre o imóvel penhorado nos presentes autos.”;
29. E o credor I.S.S., por requerimento de 07/10/2020, requereu “a renovação da instância executiva para satisfação do seu crédito ao abrigo do art. 850º do C.P.C.”;
30. Em 15/10/2020, a credora Banco 1...., “notificada do pedido de renovação da execução apresentado pelo ISS, I.P.”, requereu “o prosseguimento dos autos para ressarcimento do seu crédito”;
31. Prosseguiu mais uma vez a execução, por força das posições assumidas pelos credores reclamantes, procedendo-se, além do mais, a novas diligências tendentes à venda do imóvel penhorado;
32. Em 01/04/2022, no Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia, foi proferida sentença que declarou a insolvência do executado BB, na sequência de requerimento nesse sentido do próprio;
33. O executado, perante o sucedido, por requerimento de 05/04/2022, veio requerer que a venda judicial (que estava designada para 05/04/2022) fosse dada sem efeito;
34. Em 06/04/2022, a agente de execução prestou a seguinte informação no processo: “À ordem do presente processo encontra-se penhorado prédio urbano correspondente a prédio de 2 pavimentos e quintal com água do poço, confrontando a norte e a nascente com CC, a sul com o caminho e DD e a poente com o caminho, sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º ... e inscrito na respetiva matriz sob o artigo ..., sendo que, atualmente pertence à União das Freguesias ..., ..., ... e ....
O imóvel supra mencionado é propriedade da executada AA e marido BB, declarado insolvente por sentença de 04/04/2022 proferida no processo n.º 2519/22.3T8VNG, a correr termos na Comarca do Porto, juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia- Juiz 2.
Sendo apreendida a meação do executado BB, à ordem do processo de insolvência, teria a venda do imóvel de ser realizada em ½ em cada processo.
Desta feita, por forma a concretizar a venda do imóvel no seu todo no âmbito de um único processo, foi o ilustre Administrador de Insolvência assim como os Mandatários notificados para informarem os autos se nada têm a opor à venda nos termos expostos.”;
35. A credora Banco 1.... informou, em 14/04/2022, que “concorda com a venda da totalidade do imóvel e repartição do produto por ambos os processos, execução e insolvência.”, o que reiterou em 17/05/2022;
36. O credor I.S.S. informou, em 27/05/2022, da sua “anuência sobre a venda da totalidade do imóvel e a consequente repartição do produto da venda pelos processos executivo e de insolvência”;
37. Em 08/04/2022 (expediente junto em 31/05/2022), o administrador da insolvência informou da “não oposição à venda da totalidade do imóvel, através da plataforma eleilões, via processo executivo nº 5377/12.2TBVNG, com apreensão a realizar no processo de insolvência relativamente a metade do produto da venda”;
38. Em 23/05/2022, os executados apresentaram requerimento, com o seguinte teor:
1.º
O Executado BB mostra-se judicialmente declarado Insolvente.
2.º
A dita, tem consequências processuais não apenas na presente mas em todas as execuções que sobre o mesmo impendam.
3.º
A Executada AA, não se mostra declarada Insolvente,
4.º
É proprietária do bem imóvel ml. id. s fls.,
5.º
Dispondo de meação no bem comum,
6.º
Que há-de responder, se e quando apurado o montante das dividas pelas quais responde.
7.º
Opõem-se a venda do imóvel -que constitui casa de morada de família dos Executados - nos autos, e por ora, também no seu todo,
8.º
E assim, a todo e qualquer acto que contenda com a posição jurídica que cada um dos executados beneficia em função da declaração/não declaração de insolvência,
9.º
E, cota parte da propriedade de cada um dos executados no dito imóvel, e montantes das responsabilidades que se venham a mostras certas, líquidas e exigíveis, para satisfação com a alienação do mesmo, no todo ou em parte,
10.º
O que, s.d.r., não poderá ocorrer nos presentes autos.”;
39. Em 31/05/2022 a agente de execução expôs o seguinte:
“À ordem do presente processo encontra-se penhorado prédio urbano correspondente a prédio de 2 pavimentos e quintal com água do poço, confrontando a norte e a nascente com CC, a sul com o caminho e DD e a poente com o caminho, sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º ... e inscrito na respetiva matriz sob o artigo ..., sendo que, atualmente pertence à União das Freguesias ..., ..., ... e ....
O imóvel supra mencionado é propriedade da executada AA e marido BB, declarado insolvente por sentença de 04/04/2022 proferida no processo n.º 2519/22.3T8VNG, a correr termos na Comarca do Porto, juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia- Juiz 2, em que é Administrador de Insolvência EE.
Desta feita, por forma a concretizar a venda do imóvel no seu todo no âmbito de um único processo, pelos motivos expostos em anterior requerimento, acordaram a ora Agente de [de] execução, Administrador de Insolvência assim como os Mandatários do exequente e credor reclamante que a venda, ocorra na sua totalidade no âmbito destes autos, conforme comunicações que ora se juntam.
Face ao exposto, requer-se a V. Exa. se digne informar se nada obsta a que a venda do imóvel no seu todo, ocorra nos presentes autos, com tornas para o processo de insolvência.”;
40. Em 15/06/2022, os executados apresentaram novo requerimento, com o seguinte teor:
1.º
Desconhecia-se que as partes a seu bel prazer e interesse tivessem na sua disponibilidade “acordar” nos termos sui generis que resultam do que subjaz.
2.º
Mais ainda quando, os valores reclamados em sede de Insolvência, não coincidem com os aqui reclamados,
3.º
E foram objecto de impugnação judicial – que se carreará se ordenado por este Tribunal - que não pode ser ignorada pelos diversos intervenientes, configurando mesmo causa prejudicial.
4.º
No demais, reitera-se o vertido no Reqto. de 23.05.2022, do qual é feita tábua rasa no que antecede,
5.º
A merecer total indeferimento.”;
41. Em 14/07/2022 foi proferido o despacho recorrido, com o seguinte teor:
«É destituída de fundamento legal a pretensão da executada no requerimento de 23.5.2022, no qual declara “opor-se à venda do imóvel no todo ou na sua quota parte que constitui morada de família”, uma vez que a sua “oposição” é irrelevante em sede de processo executivo, ao qual não deduziu oportunamente nem oposição à execução nem oposição à penhora.
Indefere-se assim, a pretensão de 23.5.2022.
De resto, e no mais, a “liquidação” dos créditos em sede de insolvência do executado não podem ser dirimidas nestes autos de execução, ante a sua insolvência pelo que nada há a determinar quanto a esta questão suscitada.
Custas pela executada com taxa de justiça que se fixa em 1 UC.
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Quanto à venda do imóvel em conjunto na insolvência, e posterior repartição do produto da venda por estes e por aqueles autos, deve a Sr-ª AE tomar decisão em conformidade com a posição assumida pelos sujeitos processuais – cfr. art.º 719.º e 723.º do CPC.
Quanto a pagamentos pelo produto da venda do imóvel, os mesmos serão em conformidade com a graduação de créditos já efetuada no apenso A.
Notifique.»;
42. Em 19/07/2022 a agente de execução proferiu a seguinte decisão:
“Face à insolvência do executado BB, declarada no processo 2519/22.3T8VNG, a correr termos na Comarca do Porto, juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia- Juiz 2, foi o prédio urbano, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o n.º ... e inscrito na respetiva matriz sob o artigo ..., sendo que, atualmente pertence à União das Freguesias ..., ..., ... e ..., apreendido à ordem da massa insolvente.
Considerando a posição assumida pelo o Exequente, Credor reclamante e pelo Administrador de Insolvência, os quais pretendem que a venda do supra referido bem imóvel ocorra no âmbito do processo de execução, sendo, posteriormente, dadas tornas ao processo de insolvência, e,
Atento a que, também a aqui Agente de Execução não obsta a que a venda ocorra nesses termos,
Cumpre à Agente de Execução decidir que, a venda da totalidade do imóvel ocorra no âmbito dos presentes autos de execução.”;
43. Em 12/09/2022 a executada apresentou reclamação à decisão de venda do imóvel penhorado, invocando pela primeira vez a “Lei n.º 13/2016, de 23 de Maio, que alterou o CPPT, no seu artigo 244.º, n.º 2”;
44. E em 15/09/2022 a executada apresentou o seguinte requerimento:
1.º
Correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia, Juiz 1, o processo n.º 4893/19.0T9VNG, no qual a aqui Executada era também Arguida, sendo a Participante o ISS, I.P..
2.º
Tais Autos criminais reportam-se a quantias objecto de reclamação, nos presentes, cfr. doc. 1 que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos e bem assim a reclamação de créditos de fls. e requerimento de 30.09.2021.
3.º
Sucede que tais Autos, em 23.01.2020, foram objecto de arquivamento relativamente à aqui Executada,
4.º
Que decidiu, “compulsados todos os elementos constantes dos autos, designadamente os colaboradores inquiridos, não resulta suficientemente indiciado que a arguida AA tenha participado na gerência da firma em causa, tomando decisões ou decidindo sobre os destinos económicos da mesma, tudo indicando ser o seu marido, o arguido BB, o único responsável pela gerência da firma arguida.”, cfr. doc. 2 que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos.
5.º
Ex vi art.º 624.º, n.º 1, do C.P.C, extrai-se presunção ilidível quanto aos factos que tenham sido dados como inexistentes ou não praticados pelo arguido, invertendo o ónus da prova.
6.º
In casu, o despacho de arquivamento, configura caso decidido supervenientemente e passível de ser invocado nos presentes, atentos os sequentes efeitos,
7.º
Neste sentido, o Ac. TCA Sul de 20-02-2020, P. 540/10.3BELRS, Relator: Jorge Cortês, in www.dgsi.pt “1) A invocação da falta de exercício da gerência de facto, no período relevante, com base em sentença penal absolutória transitada em julgado, em momento posterior à apresentação da petição inicial de oposição, constitui facto superveniente em relação ao oponente, cuja invocação constitui o tribunal recorrido no dever de conhecer.”
8.º
O que aqui expressamente se invoca, beneficiando a Executada da supra referida presunção.
9.º
Acresce que, nos termos previstos no art.º 577.º, al. i) e art.º 578.º, ambos do C.P.C., “O tribunal deve conhecer oficiosamente das exceções dilatórias…”, o que aqui também expressamente se invoca, com as legais consequências.”;
45. Nessa mesma data a executada interpôs o presente recurso;
46. A credora Banco 1.... respondeu à reclamação por requerimento de 26/09/2022, onde, além do mais, aduz que o seu crédito “regista incumprimento desde fevereiro de 2021” e que “o disposto no nº 2, do art.º 244º do CPPT, apenas tem aplicação no âmbito das execuções fiscais em que o único credor é o Estado”, e defende o indeferimento da reclamação;
47. Por despacho de 09/11/2022 decidiu-se “Quanto à reclamação da decisão de venda da SR.ª AE: Aguardem os autos por ora pela notificação supra determinada e a admissão (ou não) do recurso interposto.”;
48. Não foi proferido despacho sobre o requerimento referido no ponto 44;
49. Em 03/01/2023 a executada apresentou oposição, mediante embargos de executado, “assente em factos supervenientes”, invocando que no processo de insolvência foi julgada procedente a impugnação relativamente ao crédito do I.S.S., que foi excluído da lista de credores, e que se verifica a prescrição das quantias reclamadas e bem assim o caso julgado, que aproveita à executada, pretendendo que não seja reconhecido aquele crédito;
50. Por decisão de 20/01/2023 foi indeferida liminarmente a petição de embargos, constando da fundamentação da mesma, além do mais, que “quanto à sentença proferida na acção criminal, a mesma limita-se a absolver a executada do crime de abuso de confiança fiscal, cujos pressupostos (acção penal) não têm a virtualidade de extinguir o crédito reclamado. Tanto mais que nessa sentença não foi deduzido nem apreciado nenhum pedido de indemnização civil decorrente do crime de apropriação das quantias que deveriam ter sido entregues ao ISS;
51. A executada recorreu desta decisão, tendo sido proferido acórdão por este Tribunal da Relação do Porto, em 26/09/2023, que negou provimento ao recurso e confirmou a decisão recorrida;
52. Nesse acórdão, diz-se, imediatamente antes do dispositivo: “De qualquer modo, antes de finalizar, entendemos ser de sublinhar que a sentença que reconheceu e graduou o crédito reclamado pelo Instituto de Segurança Social, datada de 6.1.2022, por não ter sido alvo de qualquer recurso, designadamente por parte da executada, se encontra transitada em julgado, passando a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos termos do art. 619º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil.
Assim, salvo melhor entendimento, só poderá ser alterada em sede de recurso extraordinário de revisão, caso haja fundamento para tal ao abrigo do art. 696º do Cód. de Proc. Civil, e não pela forma pretendida pela executada/recorrente.”;
53. A executada apresentou reclamação do acórdão, invocando a nulidade do mesmo, a qual foi desatendida, por acórdão de 07/11/2023.
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Visto o longo elenco da factualidade resultante da execução e seus apensos, verifica-se que o andamento deste processo não foi propriamente célere e escorreito.
Ainda assim, a questão a dirimir no presente recurso afigura-se revestir simplicidade.
Com efeito, o que está em causa é saber se deve ser travada a venda executiva do imóvel que foi determinada.
Como argumentos para fundamentar esta sua posição, invoca a recorrente a aplicabilidade do disposto no art. 244º, nº 2, do C.P.P.T., porque o actual prosseguimento da execução foi impulsionado pelo I.S.S., e a existência de autoridade de caso julgado (embora invocando normas respeitantes à excepção de caso julgado e à presunção decorrente da sentença penal absolutória) decorrente da decisão de arquivamento proferida em processo que correu termos no juízo criminal.
Tais argumentos não foram invocados no requerimento que deu origem à decisão recorrida (não tendo nela, por isso, sido ponderados), mas apenas em requerimentos ulteriores.
Se no que concerne ao argumento da aplicabilidade do disposto no art. 244º, nº 2, do C.P.P.T., estamos apenas perante um simples argumento, posto que a questão contende unicamente com a possibilidade ou não de realizar a venda, já quanto ao argumento da autoridade de caso julgado, o que a recorrente efectivamente com ele pretende não é a simples não realização da venda, mas a não admissão superveniente da reclamação de créditos apresentada pelo I.S.S., pelo que não se trata apenas de um fundamento para a questão objecto do recurso, mas de uma questão nova, que a recorrente invoca alegando que se trata de questão de conhecimento oficioso, visando com isso que se decida que o crédito reclamado pelo I.S.S. não seja reconhecido quanto a si.
Ora, os recursos ordinários “destinam-se a permitir que o tribunal hierarquicamente superior proceda à reponderação das decisões recorridas”, estando em causa questões que já foram “objecto de decisão, tratando-se apenas de apreciar a sua manutenção, anulação, alteração ou revogação”.
“Na verdade, os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando (…) estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis”.
Portanto, porque o recurso é um “meio de impugnação de uma anterior decisão judicial”, o mesmo “apenas pode incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas”.
Estas “não podem ser apreciadas no recurso, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recursos, pois estes destinam-se a reapreciar questões, e não a decidir questões novas, por tal apreciação equivaler a suprimir um ou mais órgãos de jurisdição”.
Excepcionam-se, como já se referiu, as questões que sejam de conhecimento oficioso, “desde que a sua decisão não esteja coberta pelo caso julgado”, como o serão, por exemplo, a inconstitucionalidade, a existência de excepções dilatórias, a nulidade ou a caducidade em caso de direitos indisponíveis (cfr. Recursos em Processo Civil, António Santos Abrantes Geraldes, Almedina, 2022, 7ª edição actualizada, págs. 30 e 139 a 142).
Assim, quanto a esta questão da autoridade de caso julgado verifica-se que a mesma não se confunde com a excepção de caso julgado, essa sim de conhecimento oficioso, constituindo uma excepção que obsta ao conhecimento do mérito da acção (cfr. arts. 576º, nº 2, e 577º, al. i), do C.P.C.).
Na verdade, a excepção de caso julgado respeita ao efeito negativo do caso julgado, impossibilitando que a questão decidida seja novamente apreciada por qualquer tribunal, e pressupõe a tríplice identidade (de sujeitos, pedido e causa de pedir) – arts. 580º e 581º do C.P.C..
Já a autoridade de caso julgado respeita ao efeito positivo do caso julgado e pressupõe que seja conhecido o mérito da acção, impondo-se na decisão desta o que foi decidido na acção anterior, que a vincula, não podendo a relação material aqui definida ser contrariada na segunda decisão, não se exigindo nesta situação a referida tríplice identidade.
Esta questão de autoridade de caso julgado pressupõe, portanto, uma apreciação de mérito, não fazendo qualquer sentido a sua invocação numa execução, muito menos o seu conhecimento oficioso – sendo que a pretensão da recorrente nesta parte seria direccionada ao apenso de reclamação de créditos, visando que a decisão proferida no processo penal fosse considerada para efeitos de excluir o reconhecimento do crédito neste apenso (aliás, o que foi peticionado nos embargos de executado deduzidos).
Ademais, ainda que se considerasse estar-se perante questão de conhecimento oficioso, sempre se verifica que os autos não contêm os elementos imprescindíveis ao conhecimento da ocorrência ou não dessa autoridade no caso e que a mesma já foi objecto de determinada apreciação no apenso de embargos de executado, como decorre dos pontos 50 a 53 dos factos elencados, estando a coberto do caso julgado – anote-se que aí se deu conta (com o que concordamos) que a sentença de graduação de créditos se encontra transitada em julgado e só poderá ser alterada em sede de recurso extraordinário de revisão.
Como quer que seja é uma questão que não contende com a execução, mas com a reclamação de créditos, não interferindo com a possibilidade de haver lugar à venda executiva, até porque está em causa a satisfação de outros créditos que não apenas o reclamado pelo I.S.S. (para além dos créditos da Banco 1.... reclamados na presente execução, ainda os créditos que terão sido reclamados na insolvência do co-executado), e quando muito a colocação em crise daquele crédito poderia obstar ao seu pagamento imediato pelo produto da venda.
No que concerne ao argumento da aplicabilidade do disposto no art. 244º, nº 2, do C.P.P.T. (Código de Procedimento e Processo Tributário), também aplicável ao processo de execução das dívidas à segurança social (art. 6º do D.L. nº 42/2001, de 09/02), verifica-se que é o seguinte o teor da norma: Não há lugar à realização da venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efectivamente afecto a esse fim.
Esta redacção da norma foi introduzida pela Lei nº 13/2016, de 23/05, que protege a casa de morada de família no âmbito de processos de execução fiscal, estabelecendo restrições à venda executiva de imóvel que seja habitação própria e permanente do executado (art. 1º).
Esta proibição de venda não funciona “quando esta seja realizada para satisfazer conjuntamente créditos fiscais e créditos não fiscais” (Ac. da R.L. de 02/05/2023, com o nº de proc. 2390/07.5TBALM.L1-7, publicada em www.dgsi.pt).
Com efeito, “tem sido entendimento unânime na Jurisprudência que a proibição da venda de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar, quando o mesmo esteja efectivamente afecto a esse fim, prevista no n.º 2 do art.º 244.º do CPPT, apenas diz respeito à venda a impulso da administração fiscal e destinada ao pagamento coercivo de dívidas fiscais do devedor.
Assim, tal proibição de venda, não se aplica às dívidas do devedor de outra natureza, uma vez que nada nos leva a crer que o legislador quis criar, ainda que de forma indirecta, um entrave ao prosseguimento das execuções cíveis” (Ac. da R.G. de 23/05/2019, com o nº de proc. 2132/17.7T8VCT-B.G1, publicado em www.dgsi.pt; veja-se também o Ac. da R.L. de 12/09/2019, com o nº de proc. 1183/18.9T8SNT.L1-2, publicado no mesmo local, onde se diz que “Quanto a isto – que a habitação própria e permanente não pode ser vendida sob impulso da AT para satisfazer os créditos fiscais, mas pode-o ser para satisfazer os créditos comuns - não há qualquer divergência jurisprudencial ou doutrinária.”).
Na verdade, a “impossibilidade de venda do imóvel penhorado que seja habitação própria e permanente do executado não foi estendida aos demais credores, pelo que à partida não se afigura razoável que se impeça um credor comum (…) de promover a sua venda para ver satisfeito o seu crédito” (Ac. da R.C. de 24/10/2017, com o nº de proc. 249/13.6TBSPS-A.C1, publicado no mesmo local).
Impõe-se, pois, “considerar que a proteção da habitação apenas goza de proteção absoluta na relação tributária estabelecida entre o Estado e o contribuinte devedor, cedendo perante os direitos patrimoniais de outros cidadãos, sob pena de, assim não sendo, ocorrer uma compressão inadmissível da propriedade privada” (Ac. da R.G. de 10/07/2023, com o nº de proc. 7274/18.9T8VNF-B.G1, publicado no mesmo local).
A impossibilidade de que se fala é apenas a impossibilidade de proceder à venda da casa de habitação quando esteja em causa apenas uma dívida do Estado (tributária ou contributiva). Todavia, não há qualquer impedimento à penhora, que, aliás, se mantém, mesmo que exista o impedimento à venda, e não fica em causa o crédito do Estado, que, havendo outros créditos (particulares) garantidos pelo referido imóvel, pode “reclamar os respectivos créditos na execução comum”, sendo pago “no lugar que lhe couber em graduação” (cfr. Ac. da R.L. de 20/12/2022, com o nº de proc. 175/20.2T8AGH.L1-7, publicado no mesmo local; veja-se também o Ac. da R.C. de 18/12/2019, com o nº de proc. 205003/10.1YIPRT.1.C1, igualmente publicado no mesmo local: “a proibição de venda do imóvel afecto a habitação própria e permanente do devedor ou do seu agregado familiar não implica a preclusão da garantia real ou do grau de preferência pelo pagamento de que a administração fiscal possa beneficiar”).
Ou seja, em conclusão, estando em causa vários créditos garantidos pelo imóvel que constitui a casa de habitação do devedor, sendo alguns desses créditos de credores particulares e outros do Estado, nada impede a venda do imóvel na execução comum, sendo depois os pagamentos respectivos efectuados de acordo com a graduação que constar da sentença de graduação de créditos.
Nem se diga que este entendimento coloca em causa o direito à habitação consagrado no art. 65º da Constituição da República Portuguesa, o qual não integra a categoria dos direitos, liberdades e garantias fundamentais, mas a dos direitos económicos, sociais e culturais, sendo um direito social, que “comporta duas vertentes: uma de natureza positiva e outra de natureza negativa”.
“A dimensão positiva ou prestacional do direito à habitação consiste no direito a uma morada condigna, razão pela qual a mesma está intimamente ligada a medidas e prestações estaduais (ou eventualmente das regiões autónomas e dos municípios) adequadas a realizar tal objectivo, prestações essas de conteúdo não determinado ao nível das opções constitucionais, necessitando de uma actividade de mediação e concretização do legislador ordinário, o qual, por sua vez, se encontra limitado pelas circunstâncias económicas, sociais e políticas de cada época, a chamada reserva do possível. De todo o modo, tal dimensão do direito à habitação rege na garantia de critérios objectivos e imparciais no acesso dos interessados às habitações oferecidas pelo sector público”.
“A dimensão negativa ou de defesa do direito à habitação “constitui uma garantia dos particulares contra ingerências indevidas por parte do Estado ou de terceiros, ou seja, o direito de não ser arbitrariamente privado da habitação” (cfr. Ac. do TCA Sul de 15/02/2018, publicado em www.dgsi.pt, com o nº de processo 1299/17.9BELSB).
Portanto, o que está em causa na consagração do direito constitucional à habitação é a actividade do Estado na prossecução das medidas que permitam o acesso de todos a uma morada condigna, por um lado, e, por outro lado, a protecção dos particulares contra actuações indevidas, que visem privá-los arbitrariamente da habitação.
Sendo que, no caso concreto não existe uma actuação indevida que vise privar a executada arbitrariamente da sua habitação, posto que “caso a habitação seja vendida os executados estarão apenas privados de viver naquela sua habitação, nada impedindo que com a parte restante do produto da venda adquirem ou arrendem outra e/ou peticionem a concessão de uma habitação social”, não sendo de confundir o direito à habitação “com o direito de possuir e fruírem aquela concreta habitação própria” (Ac. da R.P. de 29/04/2021, com o nº de proc. 25742/19.3T8PRT-A.P1, publicado no mesmo local; sobre o assunto, podem ver-se também os Acs. da R.L. de 11/05/2023, com o nº de proc. 9442/18.4T8SNT-D.L1-6, e da R.E. de 02/03/2023, com o nº de proc. 4466/11.5TBPTM-F.E1, igualmente publicados no mesmo sítio da Internet).
Revertendo à situação dos autos, da análise dos factos elencados, resulta claro que a execução não se encontra a prosseguir unicamente por impulso do I.S.S., mas também da credora Banco 1...., a qual, aliás, tem os seus dois créditos graduados para serem pagos em primeiro lugar, posto que, no que concerne ao último impulsionamento da execução, após estar pago o crédito exequendo, aquela credora, embora não tendo ela própria impulsionado a renovação da execução, logo informou que acompanharia a renovação que viesse a ocorrer por qualquer motivo, uma vez que mantinha a sua garantia hipotecária (requerimento de 02/10/2020) – sendo que o que informou foi que “os executados regularizaram o incumprimento”, mas não que estivessem pagos os créditos reclamados –, e, após o requerimento do credor I.S.S., requereu também “o prosseguimento dos autos para ressarcimento do seu crédito” (requerimento de 15/10/2020). Ademais, a credora ainda acrescentou, no requerimento de 26/09/2022, que o seu crédito “regista incumprimento desde fevereiro de 2021”.
Não é, pois, exacto afirmar, como faz a recorrente, que a execução prosseguiu unicamente atento o impulso processual do I.S.S., nem que o credor comum (a Banco 1....) “está a ser pago” e o seu “crédito” se mostrava regularizado (o que a credora referiu foi que o “incumprimento” estava regularizado, não sendo neste caso indiferente o uso de uma ou outra expressão, até porque, como decorre da sua imediata manifestação de aderir a uma eventual renovação da execução, se verificava desde logo que o crédito se mantinha em dívida, tendo, quando muito, havido renegociação dos termos de regularização dos débitos).
Conclui-se, portanto, que a execução se encontra a prosseguir para pagamento dos créditos do I.S.S. e da Banco 1...., destinando-se a venda executiva a obter o pagamento de ambos os créditos, aliás em primeiro lugar os da Banco 1.... (podendo nem chegar a haver produto da venda que permita pagar o crédito do I.S.S., pelo menos na totalidade), pelo que não existe qualquer impedimento a que os autos prossigam com a referida venda (atenta a posição manifestada também pelo administrador da insolvência).
Não encontra, assim, acolhimento a pretensão da recorrente, não merecendo censura a decisão recorrida.
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Em face do resultado do tratamento da questão analisada, é de concluir pela não obtenção de provimento do recurso interposto pela executada e pela consequente confirmação da decisão recorrida.
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III - Por tudo o exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
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Custas da apelação pela recorrente (art. 527º, nºs 1 e 2, do C.P.C.).
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Notifique.
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Sumário (da exclusiva responsabilidade da relatora - art. 663º, nº 7, do C.P.C.):
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datado e assinado electronicamente
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Porto, 7/3/2024
Isabel Ferreira
Maria Manuela Machado
Ana Luísa Loureiro