SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL
INCÊNDIO
PROVA PERICIAL
COMPRA E VENDA DE VEÍCULO
COMPRA E VENDA DEFEITUOSA
BENS DE CONSUMO
DEFEITOS
Sumário

I - A realização de uma perícia pressupõe o respeito pela sua utilidade processual e o principio da preclusão.
II - Se um veículo foi completamente queimado num incêndio e nenhuma das partes requereu atempadamente qualquer perícia, não pode em fase de recurso a mesma ser determinada por inutilidade e impossibilidade da mesma.
III - O conceito de defeito da coisa, numa compra e venda de consumo incluiu a existência de uma anomalia que deu causa a um incêndio interno no motor do veículo que o destruiu completamente impedindo a sua circulação.

Texto Integral

Processo: 2284/23.7T8MTS.P1

Sumário:

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1. Relatório

AA intentou a presente ação de processo comum, contra A..., Compañia de Seguros y Reaseguros, SA e B... – Unipessoal, Lda pedindo: a) a condenação da primeira ré a indemnizar o autor no montante de 28.970,89€ (vinte e oito mil novecentos e setenta euros e oitenta e nove cêntimos) nos termos da responsabilidade contratual decorrente do seguro de responsabilidade civil com cláusula indemnizatória por incêndio; b) a condenação da primeira ré a pagar ao autor o valor de 35,00€/dia, a contar de 23/05/2022 até efetivo e integral pagamento a título de indemnização pela privação do uso e fruição do veículo, a apurar-se em sede de liquidação de sentença; Ou, caso se apure que o incêndio foi consequência de defeito no fabrico: c) a condenação da segunda ré a pagar ao autor o montante de 28.970,89€ (vinte e oito mil novecentos e setenta euros e oitenta e nove cêntimos) pela venda de coisa defeituosa; d) a condenação da segunda ré a pagar ao autor o valor de 35,00€/dia, a contar de 23/05/2022 até efetivo e integral pagamento, a título de indemnização pela privação do uso e fruição do veículo, a apurar-se em sede de liquidação de sentença; e) em qualquer dos casos, a condenação no pagamento de juros de mora desde a citação até integral pagamento. Para tanto alega, em síntese, que é proprietário do veículo da marca BMW, versão ..., com a matrícula ..-..-IF e número de chassi/identificação ..., adquirido à 2ª ré em 19/11/2021, pelo preço de 26.500,00 euros.

Por outro lado, celebrou com a 1ª ré um contrato de seguro, titulado pela apólice nº ..., com início em 17/03/2021, tratando-se de um seguro contra todos os riscos, incluindo incêndio, raio e explosão e com o capital seguro de 27.950,00 euros. Sucede que no dia 19/04/2022, pelas 06h30m, o autor circulava na “...”, na freguesia ..., Matosinhos, no sentido Maia/Porto, quando o veículo, que nunca até aí tinha apresentado qualquer problema e que ainda se encontrava na garantia, incendeia-se subitamente, começando a sair fumo pela zona do motor. O veículo foi totalmente consumido pelas chamas e veio a ser depositado nas instalações da 2ª ré, onde ainda se encontra. A 1ª ré declinou a responsabilidade, alegando que estão excluídos da cobertura do seguro os danos direta e exclusivamente provenientes de defeito de construção, reparação, montagem ou afinação, vício próprio ou má conservação do veículo seguro. Caso se conclua que a ré seguradora não é responsável, então deverá a 2ª ré responder pela venda de coisa defeituosa, porquanto o veículo ainda se encontrava no período de garantia.

A ré A... defendeu-se, em síntese, alegando que não é responsável pelo ressarcimento ao autor, porquanto a presente situação cai na cláusula de exclusão prevista para as situações em que os danos resultem de defeito de construção, reparação, montagem ou afinação, vício próprio ou má conservação do veículo seguro. Mais refere que a quantia prevista a título de privação do uso não é devida, porquanto a sua responsabilidade é contratual e não está contratada a garantia facultativa de veículo de substituição.

A ré B... – Unipessoal, Lda veio defender-se alegando, em síntese, que procedeu à vistoria e revisão do veículo ao autor, não tendo sido detetada nenhuma anomalia, também não existindo nenhuma campanha aberta para esta viatura. Assim, entende que cumpriu a sua obrigação de entregar a viatura em perfeitas condições, com a revisão e manutenção exigível, pelo que não se lhe pode assacar nenhuma responsabilidade.

A causa foi saneada e instruída. Após julgamento foi proferida sentença que decidiu: “decide-se julgar a presente ação parcialmente procedente por parcialmente provada e, em consequência: a) absolvo a 1ª ré dos pedidos formulados contra si; b) condeno a 2ª ré a pagar ao autor a quantia de 27.520,89 euros (vinte e sete mil, quinhentos e vinte euros e oitenta e nove cêntimos), acrescida de 35,00 € (trinta e cinco euros) diários a contar desde 23/05/2022 até à data em que o autor adquiriu outro veículo, esta a liquidar em execução de sentença. c) absolvo a 2ª ré do demais peticionado contra si.

Inconformada veio a 2º Ré interpor recurso o qual foi admitido como de apelação e tem efeito meramente devolutivo, nos termos dos art. 627º nº 1, 629º nº 1, 641º nº 1, 644º nº 1 al. a), 645º nº 1 al. a) e 647º nº 1 do Código de Processo Civil.


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2.1. Foram apresentadas as seguintes conclusões cujo restante teor se dá por reproduzido:

1.A Recorrida – Autora, intentou a presente ação judicial (…)

2.Alegou, ademais (…).

3. Sucede que, conforme resulta do exposto pelo Recorrente nos autos, não ficou

provada a existência de um defeito de fabrico

4. Na verdade, afigura-se evidente que o Autor, ora recorrido, não trouxe ao Tribunal prova necessária ao reconhecimento da existência do seu direito tal e qual se encontra a ser exigido com base em defeito de fabrico.

5. Não podendo deixar de se mencionar que o Recorrido – Autor, competia demonstrar o seu petitório e o seu invocado direito e demonstrar que o defeito a existir era um defeito de fabrico.

6. O julgamento do Tribunal a quo, no que contende com a apreciação da matéria de facto e de Direito afigura-se, na óptica da Recorrente, profundamente errado, infundado e injusto.

7. O presente recurso consubstancia, assim, o mais profundo inconformismo da Recorrente face à Sentença proferida pelo Mmo. Juiz a quo, versando sobre a matéria de facto e de Direito, nos termos que infra melhor se consignarão.

8. Em jeito sinóptico, alinha-se desde já o âmbito do presente Recurso, enunciando, por ordem lógica, os temas que agora se colocam à superior consideração do Tribunal da Relação: a. da falta de fundamentação da indicação dos factos considerados provados

b. Impugnação da matéria de facto considerada como provada;

9. Salvo devido e natural respeito pelo Tribunal a quo, entende a Recorrente que este não procedeu a uma análise crítica das provas, não indicando as razões pelas quais considerou assentes os factos nela indicados, nomeadamente o facto 35, como relevantes para a decisão da causa, nem qual a razão de ter sonegado a existência de uma diversidade de factos preponderantes para a boa decisão da causa, não os considerando sequer provados ou não provados, mas apenas atribuindo-lhes um papel de inexistência nos autos.

10. Relativamente à Sentença, o n.º 4 do artigo 607.º do Código de Processo Civil determina efectivamente que na fundamentação da sentença o Juiz além de indicar quais são os factos provados e os não provados, deve analisar criticamente as provas produzidas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, podendo o tribunal de recurso determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal da 1.ª instância a fundamente – art.º 662º, n.º 2, d), do Código de Processo Civil.

11. Assim, a não fundamentação da fixação da matéria de facto, não é causa de nulidade da sentença, mas sim motivo para o Tribunal de Recurso determinar ao Tribunal recorrido que proceda à fundamentação em falta, o que aqui expressamente se invoca para todos os efeitos legais.

b. IMPUGNAÇÃO DO JULGAMENTO DA MATÉRIA DE FACTO

12. Analisada a matéria de facto constante dos articulados e que deve ser incluída na relação da matéria de facto, e também analisada a matéria dada como provada na douta sentença por contraposição com a prova produzida nos autos, designadamente dos depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento, verifica-se que ocorreu ERRO DE JULGAMENTO NOTÓRIO E GRAVE, que conduz à alteração da matéria de facto e impõe uma decisão diversa da proferida, nos termos do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o que aqui expressamente se invoca para todos os efeitos legais.

13. O Ponto 35 foi inexplicavelmente considerado como provado por parte do Tribunal a quo, mas carece obrigatoriamente de uma fundamentação, que mão existe, para ser dado como PROVADO.

14. A verdade é que este facto, jamais poderá ser considerado como provado, uma vez que não encontram alicerce em qualquer meio probatório.

15. De facto, é notório que nem o Autor, nem a 1ª R, não lograram ou cumpriram o seu ónus probatório e demonstraram junto do Tribunal a quo que existe um defeito de fabrico. Porque o Autor – ora recorrido, e a 2ª R, não bastava alegar, tinha de demonstrar que existia um defeito de fabrico.

16.Se por um lado a 2ª R elabora um relatório, do mesmo não se consegue concluir que exista um defeito de fabrico da viatura, tanto que o mesmo Relatório refere que a analise foi feita exclusivamente por fotos sem desmontagem concluindo o relatório que para ter uma certeza cientifica só desmontando o motor algo que não foi efetuado.

17.No depoimento do Sr. Eng, BB, o mesmo atesta que para se saber o defeito tinha de haver desmontagem do motor, que não houve.

18. Mais atesta que se a peça tivesse defeito de fabrico não aguentaria 150.000Km, tendo o carro 155768Km.

19. uma testemunha, especialista em BMW, CC atesta de forma segura que sem desmontar era impossível verificar o local do incendio muito menos que existe defeito na peça ERG.

20. Desta feita com esta prova nunca o tribunal a quo poderia concluir, como concluiu pela existência de um defeito de fabrico na peça EGR.

21. Existem fotografias no Relatório apresentado pela 2ª R. suprarreferidas (fotos 64 a 67 do Relatório) que não deviam existir, pois a viatura não foi desmontada.

22. A posição do relatório é de que se exige uma perícia técnica e cientifica, este relatório não é conclusivo com o rigor que deveria.

23. Deve a sentença ser substituída opor uma outra que absolva a 2ª R aqui recorrente para que essa absolvição tenha suporte nos elementos provatórios do processo.

24. Com a absolvição da 2ª R aqui recorrente, será socorrida e salva de erros a sentença proferida em 1ª instancia.

Caso assim não se entende, que só por mera ótica académica se entende,

25. Deve ser realizado novo julgamento em 1ª instancia onde seja tema de prova os seguintes quesitos: A peça ERG que incendiou tinha defeito? Era um defeito de fabrico? Era um defeito causado pelo desgaste normal de vida útil da peça? Se era um defeito de fabrico a mesma duraria 150.000Km? Qual o local da fissura caso exista? Qual a sua extensão?

26. Nestes molde só com resposta a estes quesitos objetivos é que se consegue concluir de forma inequívoca e sem duvidas e com uma certeza firme a uma sentença justa e verdadeira.


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2.2. A ré seguradora contra-alegou, cujo teor de dá por integralmente reproduzido, concluindo que: há que concluir que não cometeu a Mma Juíza “a quo” qualquer erro, e muito menos grosseiro, de apreciação da prova, devendo manter-se imutável a matéria de facto provada e não provada, e, nada sendo de criticar quanto à aplicação do direito, antes devendo ser julgada improcedente a apelação deduzida pela Recorrente (…)

2.3. O autor apelado contra-alegou em apenas 33 páginas sem qualquer conclusão, conforme teor que se dá por integralmente reproduzido, dizendo em suma que: “Destarte, é manifesto a responsabilidade da 2ª Ré vendedora da viatura, por um defeito conhecido naquelas viaturas e como estava no período de garantia, a ela incumbe indemnizar o A., não só no valor da viatura, como no dano de paralização / perda de uso.”


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3. Questões a decidir

1. Apreciar a questão prévia suscitada

2. Apreciar a nulidade da sentença arguida

3. Apreciar o recurso sobre a matéria de facto.

4. verificar depois a justeza da conclusão jurídica.


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4. Da questão prévia

Requer a apelante que: “Deve ser realizado novo julgamento em 1ª instancia onde seja tema de prova os seguintes quesitos: A peça ERG que incendiou tinha defeito? Era um defeito de fabrico? Era um defeito causado pelo desgaste normal de vida útil da peça? Se era um defeito de fabrico a mesma duraria 150.000Km? Qual o local da fissura caso exista? Qual a sua extensão?”

Pretende, pois, a apelante, suscitando uma questão nova em matéria de conhecimento oficioso, pedindo que, nesta fase, seja determinada a realização de uma perícia ao motor do veículo.

Decidindo

Das fotos juntas aos autos parece que o veículo foi quase completamente queimado. Logo a perícia em causa não poderá ser feita por falta de objecto, mas apenas da forma indirecta como foi elaborado o relatório junto pela ré.

Acresce que, no momento próprio todas as partes não requereram quaisquer diligências que então pareciam inúteis.

Ora, não é por estarmos na fase de recurso que essa inutilidade passou a ter natureza de necessidade e utilidade.

A diligencia não é necessária para o objecto da causa, que recorde-se visa apenas determinar se ocorreu um incêndio e se este é um defeito do veículo. E, não é possível na sua completa extensão, pelo que assume natureza inútil.

Depois, o prazo para requerer esse meio de prova já decorreu sem que nenhuma das partes o tenha feito, apesar da ré seguradora ter junto com a sua contestação um parecer técnico sobre essa mesma matéria.

Em terceiro lugar, esse veículo foi completamente queimado e as fotos do mesmo, juntas aos autos demonstram a impossibilidade de essa perícia ser realizada. Acresce que essa impossibilidade é expressamente admitida pelo gerente de facto da ora requerente no seu depoimento[1]. Sendo que, finalmente, após o incendio esse veículo foi colocado nas instalações da apelante sem que esta no decurso desse período tenha realizado ou manifestado qualquer interesse na realização dessa ou qualquer outra perícia.
Por isso, como salienta o Ac do STJ de 18.10.18 Nº 1295/11.0TBMCN.P1.S2 (Rosa Coelho): “O princípio do inquisitório coexiste com outros igualmente consagrados no nosso CPC, como sejam “os princípios do dispositivo, da preclusão e da autorresponsabilidade das partes, de modo que não poderá ser invocado, para de forma automática, superar eventuais falhas de instrução que sejam de imputar a alguma das partes, designadamente quando esteja precludida a apresentação de meios de prova.”

Logo, a diligência requerida é impossível e manifestamente intempestiva não sendo necessária para a decisão da causa, pelo que é indeferida, pois, nos termos do art. 130º “Não é lícito realizar no processo atos inúteis”.


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5. da nulidade da sentença

“Em jeito sinóptico”, diremos que só por lapso se pode, neste caso, pretender que a sentença é nula por “falta de fundamentação da indicação dos factos considerados provados”.

A sentença em causa tem quase 4 páginas de fundamentação da matéria de facto e faz alusão sintética, mas mais do que suficiente, aos elementos de prova que foram considerados (ou não) pelo tribunal.

Logo o dever de fundamentação legal está mais do que cumprido, sendo que se assim não fosse o apelante nem sequer poderia ter recorrido demonstrando nas várias páginas das suas alegações ter entendido e compreendido essa fundamentação.

Improcedem, pois, as nulidades suscitadas.


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6. Do recurso sobre a matéria de facto

Pretende a apelante que “O Ponto 35 foi inexplicavelmente considerado como provado por parte do Tribunal a quo, mas carece obrigatoriamente de uma fundamentação, que não existe, para ser dado como PROVADO”.


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Mais uma vez a questão fundamental deste recurso é a valoração da prova.

Usando as palavras de um clássico[2], esta é “o conjunto de operações ou actos destinados a formar a convicção do juiz sobre a verdade das afirmações feitas pelas partes.”

Ora, neste caso parece seguro que o juízo probatório do tribunal a quo não merece qualquer censura, mas, pelo contrário, um elogio e a nossa total adesão já que existem múltiplos meios de prova coincidentes entre si e que apontam para a mesma conclusão.

1. Dos elementos objectivos conjugados com as regras da experiência

Basta, aliás usar os elementos objectivos constantes dos autos sem qualquer depoimento testemunhal.
Um veículo BMW incendiou-se seis meses após ter sido vendido pela ré (acordo partes).
Esse veículo estava em bom estado de funcionamento e circulação (acordo das partes).
Não sofreu qualquer acidente ou embate mas ardeu completamente (fotos aceites pelas partes).
Nesse modelo a marca acionou uma acção para substituir o radiador de circulação dos gases de escape (documentos juntos pela ré)[3].
Caso essa avaria não fosse reparada isso pode provocar
Nenhuma outra causa desse incêndio foi demonstrada.

Logo, parece seguro que se pode considerar como causa provável e próxima da mesmo essa eventual anomalia.

Se mais nenhuma causa provável ficou demonstrada (não basta para tal as meras possibilidades referida em depoimento do gerente de facto da ré que curiosamente incluem ratos a roer os cabos), podemos concluir pela elevada probabilidade de ser esta a causa real.

Com efeito, as presunções “são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido” (artigo 349º do CC).

Sendo que as presunções judiciais (naturais ou de facto), implicam que com base  nas lições da vida e no bom senso: “o juiz, no seu prudente arbítrio, deduz de certo facto conhecido um facto desconhecido, porque a sua experiência da vida lhe ensina que aquele é normalmente indício deste”[4].

Ora, as simples regras das provas de aparência ou prima facie, permitem concluir num juízo de normalidade, que os carros não se incendiam sem mais, e que se um determinado modelo padeceu de uma anomalia que impunha a sua substituição e que era apta a causar um incêndio a probabilidade de esta ser a causa deste acidente é elevada, porque, mais nenhuma outra causa foi comprovada (eg acidente, abalroamento).

Sendo que  conforme o próprio gerente de facto da ré admite “o veículo em causa registava uma  campanha técnica aberta, correspondente à verificação do radiador / válvula do sistema EGR”.[5] Ora, como vimos essa anomalia é apta a gerar um incendio no veículo.

2. Da ilição dessa conclusão

Como salienta MANUEL DE ANDRADE[6], “esta prova pode ser infirmada por simples contraprova (…) bastando portanto que o adversário demonstre circunstâncias que tornem não improvável, mas seriamente de tomar em conta a possibilidade de as coisas se terem passado de modo diverso do que seria normal em face daqueles termos e condições”.

Mas, nada disso foi feito pela apelante.

Basta dizer que esta não realizou ou requereu tempestivamente a realização de qualquer perícia técnica aos restos do veículo.

Depois, o único depoimento que, em rigor, aduz causas alternativas é o do seu gerente de facto (Sr. DD que admite essa qualidade no seu depoimento). Mas essas possibilidades foram afastadas [7] pelo próprio mecânico que lhe presta serviços (Sr.CC), que apesar de referir que, nada pode concluir sem ver o veículo, mas afirma que esse modelo “incendiava”.


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3. Do relatório junto pela ré seguradora e sua validade

Este tribunal já analisou a validade formal dos relatórios técnicos efectuados por pessoas que não foram nomeadas peritos processualmente, concluindo que [8]O CPC não impõe qualquer meio especial e taxativo para a produção de juízos técnicos, que podem ser carreados para os autos desde que respeitem os requisitos do meio de prova escolhido (testemunhal ou junção de parecer), e a sua pertinência para os temas de prova. A valoração desses elementos é que poderá ser diferente tendo em conta a sua (im)parcialidade concreta distinta, a qual será apreciada pelo tribunal de forma livre e racional.”

Ora, in casu esse Sr. Engenheiro (BB), depôs de forma directa, imediata e aparentemente isenta. Este confirma pormenorizadamente o seu relatório, referindo até que excluiu uma causa elétrica devido à análise dos materiais (eg. centralina) e que não foram detectados agentes aceleradores (combustível).

Note-se aliás que as fotos juntas no relatório demonstram a inadequação da questão suscitada pelo apelante.

Pretende este que essa “perícia” é inócua porque deveria ter sido desmontado o veículo conforme indicação da BMW. Questão essa tão relevante e pertinente que fundamenta até a realização de nova perícia e formulação de quesitos.

Ora, basta ver as fotos do veículo para se verificar que o mesmo está completamente destruído não sendo possível desmontar nenhuma parte do motor. Logo a exigência da ré/apelante é impossível e posta em causa (de forma inequívoca) pelas fotos que constam desse relatório.[9]

Ao minuto 26 o representante da apelante admite até (a pergunta do tribunal) que naquele estado todo queimado não era possível realizar uma peritagem[10].

Parece, pois, ser inteiramente credível[11] o relatório junto pela apelante seguradora (confirmado pelo seu autor em audiência) que concluiu “em nosso parecer técnico, as características e padrões identificados nos danos por incêndio constatados no veículo em estudo e sua localização são compatíveis com a origem por anomalia no sistema EGR, que poderá ser cabalmente comprovada com rigor científico mediante o estudo dos vários componentes do sistema em perícia colegial conjunta com técnicos nomeados pelo fabricante”.

4. Dos restantes meios de prova

Acresce que essa anomalia se apresenta em regra aos 150 mil quilómetros (depoimento do mesmo técnico), e este veículo tinha essa mesma quilometragem aproximada[12].

Depois, nenhuma acção externa foi indicada ou comprovada (note-se mais uma vez o depoimento do representante da ré que aventa as seguintes hipóteses, válvulas, fuga combustível, etc)[13], já que não ocorreu nenhum embate com o veículo.

Deste modo conclui-se que a causa do incêndio é necessariamente interna, isto é, proveniente do funcionamento do próprio veículo.

O Sr. CC (mecânico que presta serviços à ré especialista em BMW) diz além do mais que neste modelo é precisamente nessa peça (EGR) que “costumam” ter origem os incêndios.

Acresce que a hipótese de ratos terem ruido a cablagem é além de manifestamente anormal (seria necessário algum abandono do veículo que note-se era usado diariamente), destruída pela testemunha que elaborou o relatório.

Por fim, do depoimento de parte resulta que o carro nunca teve problemas durante o meio ano que o teve e na data do incendio o carro engasgou, parou e quando saiu viu e ouviu o incêndio do lado direito do capot (parte de baixo). Diz aliás que já teve um veículo semelhante no qual recebeu uma mensagem no computador de bordo para rever esse sistema. Quanto a este carro contactou a BMW (logo após a compra) que lhe disse que este veículo não precisava de qualquer inspecção.

O Sr. EE (colega do autor) diz que viu o incêndio e pegou ainda num extintor e tentou ajudar para apagar o incêndio.  Diz que o incêndio começou na zona do capot e confirma que nenhum choque ocorreu antes.

Por tudo isso, é seguro e evidente a improcedência do recurso sobre a matéria de facto improcedendo assim o pedido de alteração do facto provado nº 35.

7. Motivação de facto

1. O autor é o proprietário do veículo da marca BMW, versão ..., com a matrícula ..-..-IF, e número de chassi/ identificação ....

2. Esse veículo foi adquirido no estado de usado, à segunda ré, em 19-11-2021 pelo preço de € 26.500,00 (vinte e seis mil e quinhentos euros), conforme documento 2 junto com a petição inicial.

3. O autor destinou esse veículo ao seu uso pessoal e deslocações para o seu local de trabalho e em viagens de lazer.

4. A seguradora contratada pelo autor foi a A..., primeira ré.

5. Para outorga do contrato de seguro, o autor socorreu-se do mediador C..., Lda, com morada fiscal na Rua ..., ..., ....

6. À apólice foi atribuído o nº ..., com início em 17/03/2021, conforme documento 3 junto com a petição inicial.

7. Esse seguro inclui danos próprios do veículo, conhecido como seguro contra todos os riscos, incluindo incêndio, raio e explosão e com o capital seguro de € 27.950,00 (vinte e sete mil novecentos e cinquenta euros).

8. Assim também o referem as “Condições Gerais e Especiais” do seguro na parte relativa às “Condições Especiais das Coberturas Facultativas do Seguro Automóvel”, “Condição Especial 3” – Incêndio, Queda de Raio e Explosão, como consta do documento 4 junto com a petição inicial, na pág. 44.

9. No dia 19/04/2022, entre as 05h30m e as 06h00m, o autor circulava com a viatura na estrada conhecida por “...”, na freguesia ..., Matosinhos, no sentido Maia/Porto.

10. A certa altura, o veículo incendeia-se subitamente, começando a sair fumo pela zona do motor.

11. De imediato o autor parou, tentou abrir o capô e apagar as chamas, mas já não o conseguiu abrir e o motor já estava todo envolto em chamas.

12. Nos instrumentos de bordo, não apareceu qualquer aviso de subida de temperatura, muito menos de temperatura de água do radiador, pelo que foi imprevisível o início do incêndio no motor.

13. O veículo, até esse momento, não tinha apresentado qualquer problema.

14. À data ainda se encontrava dentro da garantia fornecida pela 2ª ré.

15. O autor sempre utilizou o veículo nas deslocações de e para o trabalho e para viagens de lazer, em família, a título particular.

16. O veículo foi totalmente consumido pelas chamas e ficou irreconhecível, encontrando-se o chassi todo queimado

17. O chassi e o que resta da viatura foi rebocado para as instalações da 2ª ré onde ainda se encontra, tendo o autor avisado a  2ª ré do sucedido e participou o sinistro à seguradora.

18. O autor comunicou o sinistro à 1ª ré seguradora A... e ao processo foi atribuído o número ....

19. Em resposta, a seguradora enviou em 09/05/2022 uma carta, rubricada pela colaboradora FF, onde declinava qualquer tipo de responsabilidade pela reparação dos danos, conforme documento 5 junto com a petição inicial.

20. Nessa carta de resposta, a 1ª ré alegava que o incêndio se tinha dado por defeito da viatura e que fora realizada uma análise técnica e pericial à viatura e que desta resultou que o sinistro se “deveu à anomalia/defeito no sistema EGR”.

21. Mais foi dito pela seguradora que o problema já tinha sido “identificado pela marca, pelo que temos conhecimento que existe uma campanha técnica aberta para verificação do radiador/válvula do sistema EGR”.

22. A 2ª ré mostrou surpresa pelo sucedido e não conseguiu encontrar justificação para o incêndio ocorrido.

23. Na carta referida em 19, a 1ª ré atribuiu um valor de reparação do veículo de 68.803,65 euros, avaliando o salvado em 250,00 euros.

24. Por não se conformar com a decisão, o autor, através de e-mail enviado pelo seu mandatário em 21/06/2022, pediu esclarecimentos à cerca da posição da seguradora, conforme documento 6 junto com a petição inicial.

25. Pela colaboradora FF, a 18/07/2022 foi dito que a decisão foi tomada com base num estudo técnico e que por isso a seguradora mantinha a sua posição, conforme documento 7 junto com a petição inicial.

26. A falta do veículo causou transtorno ao autor que desde aí recorreu ao aluguer de uma viatura junto da D..., para se deslocar para o seu trabalho e em 31 dias pagou € 1.020,89 (mil e vinte euros e oitenta e nove cêntimos), conforme documento 8 junto com a petição inicial.

27. Mas essa solução excedeu a sua capacidade económica, pelo que não pôde continuar com esta alternativa.

28. Situação que causou encargos adicionais que não teria se usasse a sua própria viatura ou possuísse um veículo de substituição.

29. O autor entregou os seus documentos no IMT, para proceder ao cancelamento da viatura, conforme documento 9 junto com a petição inicial.

30. O veículo ainda se encontrava nos primeiros 6 meses de garantia junto da 2ª ré, pois foi adquirido em 19/11/2021 e o sinistro ocorreu em 19/04/2022.

31. A A..., S.A., sociedade comercial anónima de direito português, foi incorporada na sociedade comercial anónima de direito espanhol denominada A..., Compañia de Seguros y Reaseguros, S.A.

32. Perante a participação do sinistro à 1ª ré, para apuramento das causas do dito incêndio, esta mandou proceder a uma averiguação, recorrendo para o efeito aos serviços de uma empresa externa, a E..., S.A.

33. No decurso de tal averiguação, veio a ser elaborado relatório de perícia técnica automóvel, do qual resulta que o incêndio que deflagrou no veículo propriedade do autor se deveu a defeito de fabrico do automóvel em questão, conforme documento 4 junto com a contestação da 1ª ré.

34. Foi nesse relatório que a ré se baseou para concluir que o sinistro estava a coberto de uma cláusula de exclusão.

35. O incêndio que deflagrou no veículo do autor ficou a dever-se a anomalia no sistema de recirculação de gases de escape (EGR), defeito esse já identificado pelo fabricante que tinha em curso ação de serviço com vista à correção de tal situação.

36. O contrato de seguro celebrado entre autor e 1ª ré vigorava com uma franquia de 2% (valor que em caso de sinistro fica a cargo do segurado), com um mínimo de €125 por sinistro, conforme documento 2 junto com a contestação da 1ª ré.

37. O veículo do autor sofreu danos que implicam a sua perda total, valendo os respetivos salvados € 250,00, montante que a empresa F... Unipessoal, Lda se comprometeu a pagar para os adquirir, o que foi comunicado pela ré

ao autor na carta referida em 19.

39. A viatura vendida foi vistoriada e entregue com a revisão feita.

40. A 2ª ré verificou a ficha técnica do veículo para saber o que tem a fazer, a titulo de manutenção ou qualquer outra advertência que venha a existir por parte da marca.

41. Normalmente as avarias ou informações técnicas são comunicadas ao condutor por avisos luminosos.

42. O autor não comunicou á 2ª ré qualquer tipo de anomalia.

43. A 2ª ré quando teve conhecimento do sucedido consultou a ficha técnica da viatura, em 15-06-2022, aí contendo a informação de “não existem campanhas”.

44. Posteriormente, foi a 2ª ré confirmar novamente a ficha técnica da viatura e apareceu uma campanha técnica aberta para a referencia 10011150700, com a data de 24/04/2023 – “substituir o radiador de recirculação dos gases de escape (alta temperatura), conforme documentos 2 e 3 juntos com a contestação da 2ª ré.

45. E ainda a campanha ... para programação das unidades de comando (DDE), conforme também documento 2 junto com a contestação da 2ª ré.

46. Em data não apurada, o autor adquiriu outro veículo para substituir o veículo ..-..-IF.


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8. Motivação Jurídica

Mantendo-se integralmente a factualidade provada as questões jurídicas a apreciar são escassas.

Resulta demonstrada a existência de um incêndio e a sua origem, pelo que a responsabilidade da apelada seguradora terá de ser afastada por força do clausulado.

Depois, estamos também perante uma compra e venda para consumo, nos termos dos artigos 874º do CCivil e 2º, 4º e 12º da Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96, de 31 de Julho), e (inicialmente) DL nº 67/2003, de 8.4.  .

Isto, porque existe relação de consumo já que o objecto do acto ou do contrato é um bem, serviço ou direito, destinado ao uso não profissional e as partes no contrato, não são profissionais. 

Neste diploma a noção de defeito, vício, encontra-se intimamente relacionado com descontinuidades materiais, com anomalias físicas do próprio bem.

Antes da entrada em vigor do DL 67/2003, nos termos do arts. 4, nº1 1 e 12 nº 1 da Lei de Defesa do Consumidor, foi consagrado o critério da conformidade, nos termos do qual os bens e serviços destinados ao consumo deviam ser aptos a satisfazer os fins a que se destinassem.

Este critério mantém-se no art. 2º, da versão aplicável que também dispõe “O vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda”.

Ora, um carro que se incendia não é apto a circular.

Pelo que cabe à apelante indemnizar o apelado de todos os danos causados que não foram postos em causa.

Improcedem, pois, as restantes questões suscitadas.


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9. Deliberação

Pelo exposto, este tribunal colectivo, julga a presente apelação não provida e, por via disso, confirma integralmente a decisão recorrida.

Custas a cargo da apelante porque decaiu completamente.


Porto em 7.3.2024
Paulo Duarte Teixeira
Isoleta de Almeida Costa
Ana Luísa Loureiro
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[1] Bem como pelo mecânico do mesmo que à pergunta do ilustre mandatário “depois de queimado não podíamos chegar lá” (…) exactamente.
[2] ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, III, 239
[3] Note-se aqui que essa acção foi demonstrada pelos documentos juntos pela ré apelante, que negou em tribunal a coincidência temporal da mesma com evento. Facto esse negado pelo depoimento do Sr. BB que além de a confirmar, diz que os elementos observados confirmam uma anomalia nesse sistema quer tenha sido ou não chamado pelo marca.
[4] RIBEIRO DE FARIA, Da Prova na Responsabilidade Médica, 125.
[5] Este pretende apenas que essa chamada foi iniciada após o evento, facto negado pelo perito que realizou o relatório. Note-se aliás que a credibilidade do representante da ré é a mesma que a sua versão de que “o perito nem sequer desmontou o motor”, “abriu o capot e tirou umas fotos”, mas tinha sempre de “acender uma luz”, e que afinal “a pessoa só foi lá tirar umas fotos”.
[6] MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 192
[7] Caso da gasolina das válvulas.
[8] Ac da RP de 9.2.23, nº 1879/21.8T8VFR (Paulo Teixeira).
[9] A foto 22 mostra bem o estado do actual estado do motor o qual é mais do que visível nas fotos restantes.
[10] Este Sr. DD (gerente de facto da apelante) refere que o autor já lhe comprou 3 viaturas, mas confirma a sua tese da contestação (que inexiste defeito de fabrico na carrinha vendida). Diz aliás que as campanhas técnicas da BMW só se iniciaram depois do evento, mas afirma que “pode eventualmente arder mas teria eventualmente de acender alguma luz ou dar algum sinal”.
[11] A decisão a quo considerou que “Esta testemunha, engenheiro automóvel, veio a Juízo responder pelo
relatório elaborado a pedido da 1ª ré, revelando um conhecimento exaustivo do mesmo e das características do motor do veículo, logrando convencer o Tribunal da realidade sobre que falou”.
[12] Facto admitido pelo apelante quando concluiu 1”8. Mais atesta que se a peça tivesse defeito de fabrico não aguentaria 150.000Km, tendo o carro 155768Km”.
[13] Note-se aliás o documento relativo aos avisos do veículo junto com a contestação que não tinha qualquer luz avisadora dessa avaria na última entrada (118006 km).