COMPETÊNCIA
TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS E FISCAIS
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
MUNICÍPIO
Sumário


1) Compete aos Tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas ou fiscais;
2) A competência dos tribunais da ordem judicial é residual, ou seja, são da sua competência as causas não legalmente atribuídas à competência dos tribunais de outra ordem jurisdicional;
3) Compete aos tribunais administrativos a apreciação de uma ação em que se peticiona a resolução de um contrato que a autora celebrou com o réu (Município) através da cedência de terreno, mediante a concessão de alvará de loteamento, com fundamento no incumprimento da obrigação assumida por este de construir uma escola pré-primária no terreno cedido pela autora.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

A) EMP01... - Construção, Compra e Venda de Propriedades, Lda, veio intentar ação declarativa com processo comum de condenação contra a Câmara Municipal ..., certamente pretendendo referir-se ao Município ..., onde conclui entendendo que a presente ação deverá ser julgada procedente, por provada e, em consequência:

(I) Ser declarada a resolução do Contrato, em virtude do incumprimento definitivo da ré e da impossibilidade de verificação da condição resolutiva a que o Contrato estava sujeito, com as respetivas consequências legais, designadamente com a restituição do Terreno à autora, o que deverá ser decretado em sede de Despacho Saneador, nos termos do disposto no artigo 595º, nº 1, alínea b) do CPC, atenta a desnecessidade de produção de prova adicional;
(II) Subsidiariamente, deverá ser declarada a resolução do Contrato em virtude da alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar;
(III) Em qualquer caso, e em consequência da resolução operada, deve ser declarado o cancelamento do registo da parcela cedida a favor da ré e ser esta condenada na entrega do Terreno à autora;
(IV) E, também em qualquer caso, deve a ré ser condenada no pagamento de, pelo menos, €473.400,00, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pela autora, deduzido do valor que deverá restituir à ré a título de taxas urbanísticas e da execução de infraestruturas (cfr. artigo 273º supra).
(V) Caso por algum motivo não equacionável pela autora, mas que por extrema cautela de patrocínio se equaciona, não seja possível a restituição do Terreno, deve, subsidiariamente ao pedido de condenação na sua entrega e de cancelamento do registo de aquisição a favor da ré (identificado em (III)), ser a autora indemnizada pelos danos emergentes e lucros cessantes que, de forma ilícita e culposa, lhe foram causados pela ré, no montante global de €1.805.025,00 (cfr. artigo 275º supra).
Para tanto alega, em síntese, a autora, que se dedica à construção e à compra e venda de imóveis e, em 1986 cedeu uma parcela de terreno com 1.500m2 à ré, para a construção de uma escola pré-primária, como contrapartida da isenção de pagamento de taxas urbanísticas e da execução de infraestruturas, relativas a um loteamento cujo deferimento ficaria, igualmente, condicionado à identificada cedência.
Sucede, porém, que não obstante a condição estipulada pelas partes no contrato, a ré nunca logrou construir a referida escola pré-primária, tendo a autora apresentado, em 14.9.2021, um requerimento de licenciamento com obras de urbanização para a parcela cedida, iniciando, assim, um processo para aprovação de um novo projeto de loteamento com vista à construção de moradias unifamiliares na parcela de terreno que a autora lhe cedeu, tornando o comportamento da ré evidente que a escola pré-primária nunca será construída e, consequentemente, inviabilizou o cumprimento da obrigação a que a esta se vinculou, motivo pelo qual a autora não pode aceitar manter o contrato celebrado, e vem, através da presente ação, declarar a respetiva resolução, que é legalmente fundamentada e encontra como causa o incumprimento definitivo das obrigações assumidas pela ré, devendo esta indemnizar a autora dos prejuízos sofridos, que indica.

*
Pelo réu Município ... foi apresentada contestação onde conclui entendendo que deve ser julgada procedente a alegada exceção de incompetência material, o que conduz à absolvição da instância do ora réu (ponto A da matéria de exceção da presente contestação).
Deve ainda ser julgada procedente a alegada exceção de caducidade do direito de reversão da autora, o que conduz à absolvição da instância (ponto B da matéria de exceção da presente contestação).
Caso assim não se entenda, deve ainda ser julgada procedente a alegada exceção de prescrição do direito de reversão da autora (ponto C da matéria de exceção).
Caso ainda assim não se entenda, o que por mera cautela se coloca, deve ainda ser julgada procedente a alegada exceção de caducidade do direito de ação da autora, o que conduz à absolvição da instância (ponto D da matéria de exceção).
Caso ainda assim não se entenda, o que por mera cautela se coloca, deve ainda ser julgada procedente a alegada exceção de prescrição do direito da autora, o que conduz à absolvição da instância (ponto E da matéria de exceção).
Caso se entenda julgar improcedentes todas as alegadas exceções, o que por mera hipótese se coloca, deve a presente ação ser julgada totalmente improcedente, com as legais consequências.
Caso se entenda ser de conceder provimento à ação da autora, o que por mera hipótese e cautela de patrocínio se coloca, deve ainda o pedido reconvencional do réu deduzido na presente ação ser julgado procedente, e por via dele, ser a autora condenada a pagar ao réu as quantias que este despendeu nas obras de urbanização, os valores das taxas de urbanização que suportou e ainda dos valores correspondentes ao lucro que a autora obteve com a venda dos lotes.
Para tanto alega o réu, em síntese, no que aqui respeita ao objeto do recurso, que:
- No dia 13 de novembro de 1986, perante a Exma. Notária Privativa do Município, compareceram como outorgantes a Exma. Presidente da Câmara Municipal ..., representante do ora réu, e os Exmos. Senhores AA e mulher BB, representantes da autora, para celebração de escritura de cedência de terreno para concessão de alvará de loteamento, em cumprimento da deliberação da Câmara Municipal de 7 de agosto de 1986.
Nesta escritura, os Senhores AA e mulher BB declararam, em representação da autora “… que o referido terreno, foi loteado na sua totalidade e o respetivo estudo de loteamento aprovado por deliberação da Câmara Municipal de sete de agosto do ano em curso, condicionado à cedência gratuita de mil e quinhentos metros quadrados de terreno, para construção da escola pré-primária prevista no Plano de Pormenor da Zona Norte.
Assim os segundos outorgantes cedem à Câmara Municipal, representada pelo primeiro outorgante, a título gratuito e nos termos da deliberação atrás citada, mil e quinhentos metros quadrados de terreno a destacar do prédio já citado” e, em contrapartida, a Presidente da Câmara Municipal ..., representante à data do ora réu, disse “serem verídicas as afirmações prestadas pelos segundos outorgantes e aceitar a cedência da referida parcela, cujo valor, nos termos da deliberação da Câmara Municipal de sete de Agosto do ano em curso é de quatro milhões oitenta mil cento e dezoito escudos. Disse ainda o primeiro outorgante que em face da presente cedência será emitido o alvará de loteamento número vinte e nove barra oitenta e seis, datado de hoje, do qual faz parte a parcela de terreno objeto da presente cedência e ficarão os segundos outorgantes, nos termos da deliberação atrás citada, isentos do pagamento da taxa de urbanização, cabendo à Câmara Municipal a realização das infraestruturas”.
Nessa sequência, no mesmo dia, a Exma. Presidente da Câmara Municipal ... emitiu o Alvará de Loteamento nº 29/86 a favor da autora e conforme consta do mesmo, a Câmara Municipal ... autorizou a constituição de 5 (cinco) lotes de terreno e, em contrapartida, a autora cedeu ao ora réu a área de 1.661 m2 para passeios e arruamentos; a área de 1.500m2 de terreno para construção da escola pré-primária, conforme escritura de cedência lavrada a folhas 16V e seguintes do livro de notas n.º ...4 da Notária Privativa da Câmara.
A 23 de abril de 1993, o réu doou duas parcelas de terreno, incluindo a parcela em causa, ao Estado para construção de Escola Pré-primária e a 2 de novembro de 1993, pela Assembleia Municipal ... foi aprovado o Plano Diretor Municipal ..., o qual foi ratificado por Resolução do Conselho de Ministros nº 31/94, publicado no Diário da República, 1ª Série, nº 111, a 13 de maio de 1994, Plano Diretor Municipal esse que passou a classificar a zona da parcela cedida, aqui em causa, como zona residencial, nomeadamente, como zona de “Espaços Urbanos e Urbanizáveis” “Aglomerado de 1ª Ordem”, não prevendo a edificação ou localização de quaisquer equipamentos públicos, designadamente, uma escola.
No dia 20 de julho de 2005, foi celebrada escritura de retificação do contrato de doação celebrada entre o réu e o Estado, no sentido de introduzir na escritura a seguinte cláusula de reversão: “Caso o donatário destine as parcelas de terreno objeto da presente escritura a fim diverso daquele consignado neste contrato, ou caso haja desinteresse na efetiva construção da mesma escola, desde que tal seja formalmente comunicado pelo segundo ao primeiro outorgante, resolver-se-á o presente contrato, revertendo, de imediato e sem direito a qualquer indemnização, a propriedade dos prédios para o primeiro outorgante”
Em data que não é possível precisar, o Estado demonstrou desinteresse na efetiva construção da Escola pré-primária, tendo devolvido os terrenos doados ao réu, onde se incluía a parcela em causa nos presentes autos.
Por outro lado, o réu veio invocar a exceção de incompetência em razão da matéria, referindo que se discute nos presentes autos a interpretação, validade, execução e qualificação jurídica do contrato de cedência de terreno celebrado entre a autora, entidade privada, e o réu, pessoa coletiva de direito público e a existência ou não de um direito indemnizatório na esfera jurídica da autora, por força da existência do referido contrato, que foi celebrado para concessão de alvará de loteamento à autora.
Refere consagrar a Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 212º nº 3 que "Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais".
Por sua vez, estatui o artigo 1º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, sob a epígrafe “Jurisdição administrativa e fiscal” estabelece que: 1. Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4º deste Estatuto, o0 qual no seu nº 1 determina que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
- “Interpretação, validade e execução de contratos administrativos” (cfr. Alínea e));
- “Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional” (cfr. Alínea f));
- “Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores” (cfr. Alínea o)).
Assim, só os Tribunais Administrativos e Fiscais poderão conhecer do pedido de indemnização deduzido pela autora, sendo também da competência exclusiva destes a apreciação da presente ação quanto à interpretação, validade, execução do contrato de cedência de terreno em causa, que claramente se traduz numa relação jurídica administrativa e fiscal.
No presente caso, o réu é uma entidade pública que atuou no exercício de um poder público e no âmbito da prossecução das suas competências - deferimento de um pedido de licenciamento e com vista à realização de um interesse público legalmente definido - a integração de uma parcela de terreno em causa no domínio público para equipamento público, através do regime da cedência previsto na legislação urbanística aplicável, pelo que estamos, assim, perante uma relação jurídica administrativa.
A infração das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do Tribunal, nos termos do artigo 96º, alínea a) do Código de Processo Civil, que constitui uma exceção dilatória, que obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa e que dá lugar à absolvição da instância, não se podendo conhecer sobre o pedido, de acordo com os artigos 278º, nº 1, alínea a), 576º, nº 2 e artigo 577º, alínea a) todos do C.P.C.
*
Pela autora EMP01... - Construção, Compra e Venda de Propriedades, Lda, foi apresentada réplica onde conclui entendendo que devem as exceções invocadas ser julgadas totalmente improcedentes, por não provadas, devendo os presentes autos prosseguir os seus termos até final.
Em acréscimo, deve ser indeferido o pedido reconvencional no que respeita aos pedidos (I) de condenação na entrega das quantias que a ré despendeu nas obras de urbanização (execução das infraestruturas), e ainda (II) dos valores correspondentes ao lucro que a autora obteve com a venda dos lotes, atualizados à data de hoje, nos termos do disposto no artigo 266º, nº 2, alínea a), do CPC, por não terem qualquer relação com o facto jurídico que origina a presente ação; ou, subsidiariamente, devem estes pedidos ser julgados manifestamente improcedentes em sede de despacho saneador, nos termos do disposto no artigo 595º, nº 1, alínea b), do CPC. Em qualquer caso, deve a presente ação prosseguir os seus termos e ser julgada integralmente procedente, por provada.
Para tanto alega, em síntese, que não devem as exceções invocadas pela ré ter qualquer provimento uma vez que:
a. O contrato é um contrato atípico misto, regulado pelo direito privado, ainda que uma das partes seja uma entidade pública;
b. O contrato foi assinado por imposição discricionária do Município, não resultando do bloco de legislação aplicável qualquer dever legal de ceder uma parcela que não integra o loteamento a aprovar;
c. São os tribunais judiciais os tribunais exclusivamente competentes para dirimir este litígio;
d. A autora não invoca o exercício do direito de reversão, associado apenas às cedências previstas no artigo 42º do Decreto-Lei nº 400/84, de 31 de dezembro (“Decreto-Lei n.º 400/84"), que, portanto, integram o loteamento (como um lote autónomo ou parcela municipal). Exerce – isso sim – o direito de resolução previsto nos artigos 802º, nº 1 e 432º, nº 1, do Código Civil (adiante, “CC”);
e
e. O direito de resolução do contrato não caducou nem prescreveu, porquanto (I) o Plano Diretor Municipal ... (adiante, “PDM...”), desde 1994, continua a permitir a construção da escola pré-primária na parcela transferida para o Município pelo Contrato, (II) só com a aprovação da operação de loteamento foi atribuído um fim distinto do contratualizado e, bem assim, (III) só com o registo desta operação de loteamento teve a autora conhecimento disso mesmo;
f. Não havendo, contudo, margem para quaisquer dúvidas de que, volvidos mais de 30 anos desde a celebração do contrato, a ré incumpriu definitivamente as obrigações contratualmente assumidas.
Razão pela qual devem improceder todas as exceções invocadas pela ré, devendo os presentes autos seguir os termos até final.
*
Realizou-se audiência prévia onde foi proferido o seguinte despacho:
“EMP01... – Construção, Compra e Venda de Propriedades, Lda, NIPC ...40, com sede na rua ..., ..., propôs a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra o Município ..., NIPC ...99, com sede na Praça ..., ..., peticionando a resolução do contrato de cedência de terreno para concessão de alvará de loteamento, celebrado entre ambas no dia 13 de novembro de 1986, com a consequente “restituição” à autora do terreno cedido por esta e o pagamento de uma indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais alegadamente sofridos no valor de €473.400,00, ou, caso não seja possível a restituição do terreno cedido, a condenação da ré no pagamento de uma indemnização pelos danos emergentes e lucros cessantes que, de forma ilícita e culposa, lhe foram causados pela ré, no valor global de €1.805.025,00.
Alegou, para o efeito e em síntese, que a ré não cumpriu a obrigação assumida naquele contrato celebrado entre ambas de construir uma escola pré-primária no terreno cedido pela autora, tendo iniciado um processo de loteamento tendente à construção de moradias unifamiliares para esse mesmo terreno.
Na contestação apresentada, o Município ... arguiu a incompetência material do Juízo Central Cível, defendendo que a competência material para a preparação e julgamento da presente ação pertence aos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Na réplica apresentada, a autora pronunciou-se sobre a exceção da incompetência material, pugnando pela competência material deste Tribunal, nos exatos termos aí expostos.
Cumpre decidir:
Na presente ação, a autora peticiona a resolução de um contrato de cedência de terreno para concessão de alvará de loteamento que celebrou com o Município ... no dia 13 de novembro de 1986, com fundamento no incumprimento da obrigação assumida por este de construir uma escola pré-primária no terreno cedido.
Ora, considerando quer o pedido principal, quer o pedido subsidiário, bem como a factualidade alegada na petição inicial, o Tribunal não pode deixar de classificar a relação jurídica em apreciação nos autos como uma “relação jurídica administrativa”, prevista, para a competência dos tribunais administrativos, pelo disposto na al. o) do nº 1 do art.º 4º do ETAF – note-se que esta alínea foi introduzida no ETAF pelo DL nº 214-G/2015, de 2 de outubro, após o qual se reforçou, na legislação comum, a ideia, já resultante do disposto no art.º 212º nº 3 da CRP, de que aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal compete dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
A descrição dos factos efetuada na petição inicial revela a atuação do réu nas vestes e com a competência própria da pessoa coletiva pública, uma atuação materialmente administrativa que, respeitando o princípio da liberdade negocial do art.º 405.º n.º1 do Código Civil, previa que à cedência da parcela de terreno, por parte da autora correspondesse sinalagmaticamente a aprovação de um loteamento e a emissão do respetivo alvará, com isenção do pagamento de taxas urbanísticas e de execução de infraestruturas que seriam da responsabilidade do Município ....
Neste sentido, por força ou pelo encontro de vontades entre a administração e o particular, comprometia-se a administração a gerar ou modificar uma relação jurídica regulada por normas de direito público, no que consistia o licenciamento (alvará) do loteamento requerido pela autora.
Por outro lado, o escopo do réu era, direta e materialmente, administrativo, consistindo na aquisição, ainda que pela via invocada do contrato, de terreno para aí instalar uma escola pré-primária.
Significa, pois, que o réu atuou no exercício de um poder público e no âmbito da prossecução das suas competências – deferimento de um licenciamento-, com vista à realização de um interesse público legalmente definido – a integração de uma parcela de terreno no domínio público para equipamento público, através do regime de cedência previsto na legislação urbanística aplicável.
A via contratual na execução do interesse público é pois, no caso concreto, meramente circunstancial e irrelevante para a exclusão do ato da competência dos tribunais da jurisdição administrativa.
Nestes termos, e considerando o disposto no art. 4º, nº 1, o) do ETAF, afigura-se que a competência, em razão da matéria, para conhecer da presente ação radica na jurisdição administrativa.
Pelo exposto, conclui-se que o Juízo Central Cível de Braga é incompetente em razão da matéria para conhecer e decidir a presente ação.
A infração das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal – art. 96º, al. a), do C.P.C-, pode ser arguida pelas partes ou ser suscitada oficiosamente pelo tribunal, até ser proferido despacho saneador ou, não havendo lugar a este, até ao início da audiência final – art. 97º, nº 2, do C.P.C- e implica a absolvição do réu da instância – art. 99º, nº 2, do C.P.C.
Nesta conformidade, julga-se este Juízo Central Cível de Braga incompetente em razão da matéria para conhecer e apreciar o presente processo, absolvendo-se o réu Município ... da instância.
Custas a cargo da A. – art. 527º, nº 1, do C.P.C.- dispensando o pagamento do remanescente da taxa de justiça – art. 6º, nº 7, do RCP – atendendo à linearidade da causa, ao facto de esta ter terminado em sede de audiência prévia com conhecimento da incompetência material do tribunal e porque a conduta processual das partes processou-se num quadro de cooperação de boa-fé processual, sem abuso dos meios processuais.
Registe e notifique.”
*
B) Inconformada com esta decisão veio a autora, EMP01... - Construção, Compra e Venda de Propriedades, Lda., interpor recurso que foi admitido como sendo de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito devolutivo (fls. 187).
*
Nas suas alegações, a apelante EMP01... - Construção, Compra e Venda de Propriedades, Lda, formula as seguintes conclusões:
A relação jurídica objeto dos presentes autos é de natureza privada (Secção 2)
(1) 115. Apesar de o réu ser uma entidade administrativa, a verdade é que celebrou o Contrato despido de quaisquer poderes públicos e de poderes de autoridade.
(2) 116. Neste contexto, é irrelevante que a celebração do contrato tenha em vista a prossecução do interesse público, já que tal prossecução constitui imposição constitucional à atividade de qualquer entidade pública.
(3) 117. Para efeitos de distinção entre contratos de natureza administrativa e privada releva, em particular, o regime a que estes se encontram sujeitos e, bem assim, a sua suscetibilidade para interferir em relações reguladas pelo direito administrativo.
(4) 118. O contrato objeto dos presentes autos (que é, pelo menos, um contrato similar a um contrato de compra e venda ou de doação de bem imóvel) não está sujeito à regulação administrativa, o que decorre com clareza do artigo 4º, nº 2, alínea d), do CCP, que exclui expressamente do seu âmbito de aplicação os “contratos de compra e venda, de doação, de permuta e de arrendamento de bens imóveis ou contratos similares”.
(5) As partes não fizeram uso do regime de cedência previsto na legislação urbanística abstratamente aplicável, sendo que a adoção da via contratual para efeitos de transmissão do direito de propriedade indicia a natureza jus-privatística da relação jurídica objeto dos presentes autos (Secção 2.1)
(6) 119. Apesar de o Tribunal a quo não ter identificado a concreta legislação urbanística “aplicável”, impõe-se clarificar que o regime das cedências constante do Decreto-Lei nº 400/84 não é aplicável ao presente caso, e não foi ao seu abrigo que as partes celebraram o Contrato.
(7) 120. O identificado regime apenas é aplicável às cedências que integrem a própria operação de loteamento, e que dela constituam condição de aprovação. Para esse efeito, as cedências têm de integrar a própria operação de loteamento, ficando assinaladas na planta de síntese da operação de loteamento (planta essa que constitui elemento necessário à concessão do alvará, nos termos do Decreto-Lei nº 400/84).
(8) 121. No presente caso, a transmissão da parcela de terreno objeto dos presentes autos nunca integrou qualquer planta de síntese, tendo, em acréscimo, sido necessária a formalização da transmissão de propriedade através de escritura pública.
(9) 122. Em acréscimo, a distinção entre cedência de terrenos para efeitos de aprovação de alvará (regime público) e cedência de terrenos no âmbito de uma relação jurídico-privada foi evidenciada no próprio Alvará de Loteamento emitido pelo réu a favor da autora:
“II. O titular do presente alvará cedeu à Câmara Municipal, a título gratuito, o terreno assinalado na planta e relativa a d) passeios e arruamentos, com a área de 1.661 m2.
III. Para integrar no domínio privado do Município, são também cedidas obrigatória e gratuitamente as seguintes parcelas de terreno: e) 1.500 m2 de terreno, para construção da escola pré-primária, conforme escritura de cedência (…)”
(10) 123. A transmissão da propriedade da parcela referida em II operou-se por mera emissão do alvará, e foi a emissão do alvará (que teve como correlativo direto a transmissão do direito de propriedade sobre esta parcela) que constituiu a relação jurídica administrativa correspondente à operação de loteamento. Aquela parcela foi assinalada na planta de síntese e integrou o domínio público.
(11) 124. Em consequência, esta parcela corresponde a uma cedência que satisfez integralmente as necessidades urbanísticas e parâmetros previstos para a operação de loteamento ser aprovada, e que, por esse motivo, é regulada pelas normas de direito administrativo.
(12) 125. Por sua vez, a parcela referida em III (objeto dos presentes autos), não tem aquele estatuto próprio e específico de uma cedência que integra a operação de loteamento, e, nas palavras do próprio réu, este receberia “em troca dessa cedência, e como contrapartida desta, a isenção do pagamento das taxas e a dispensa da realização das obras de urbanização que seriam executadas a expensas da Câmara Municipal.” O direito de propriedade sobre esta parcela não foi transmitido por via da emissão do alvará (tendo sido necessário um negócio jurídico posterior (o Contrato)) e integrou o domínio privado do Município.
(13) 126. Do próprio alvará decorre, pois, com clareza que a autora cedeu ao réu duas parcelas de terreno, através de procedimentos distintos, e que estas são reguladas, também, por regimes distintos, sendo que a vontade real das partes foi, inquestionavelmente, a de celebrar dois negócios diferentes, com efeitos autónomos: se assim não fosse por que motivo adotariam dois procedimentos independentes, adotando formalidades superiores num deles (através da celebração da escritura pública)?
(14) 127. Na verdade, negócios jurídicos como o aqui se discute foram prática comum das autarquias na década de 1980, promovida pelo enquadramento jurídico vigente à data, e relativamente aos quais já se pronunciou por diversas vezes a jurisprudência, que lhes reconhece a natureza privada, sendo estes casos tipicamente julgados pelos Tribunais Judiciais, e não pelos Tribunais Administrativos.
(15) 128. Flui do exposto que, no presente caso, o réu se limitou a celebrar com um privado um negócio jurídico também ele de natureza privada, destinado a integrar o “domínio privado” do Município, que assegurou a transferência dos terrenos para a esfera jurídica patrimonial desta pessoa coletiva pública através de escritura pública (assim se distinguindo de uma outra cedência, feita no mesmo âmbito e cuja intenção das partes foi a de incluir expressamente no âmbito da operação de loteamento).
(16) 129. Impõe-se, por conseguinte, concluir que o contrato de cedência objeto dos presentes autos não está também submetido a qualquer regime específico do direito de urbanismo (tendo-se previamente concluído que não está sujeito à regulamentação constante do CCP), consistindo, ao invés, em mera contrapartida da isenção do pagamento das taxas e da dispensa da realização das obras de urbanização (numa lógica de dação em cumprimento).
A parcela de terreno não foi integrada no domínio público (Secção 2.2)
(17) 130. Ao contrário do que concluiu o Tribunal a quo, a parcela de terreno que é objeto de análise nos presentes autos nunca se destinou a integrar o domínio público, e não o integra. Ao invés, decorre precisamente do alvará (que não teve a virtualidade de transmitir a propriedade do Terreno para a ré) que, ao contrário da parcela de terreno com a área de 1.661 m2, o terreno objeto de discussão nos presentes autos foi cedido para integrar o domínio privado do Município.
(18) 131. O terreno objeto da presente ação, para além de não constar evidentemente do elenco constante do artigo 84º, nº 1, da CRP, não é como tal classificado por lei, motivo pelo qual não merece a designação de imóvel pertencente ao domínio público.
(19) 132. Ademais, é característica dos bens pertencentes ao domínio público a sua inalienabilidade, o que significa que “[o]s imóveis do domínio público estão fora do comércio jurídico, não podendo ser objeto de direitos privados ou de transmissão por instrumentos de direito privado.” [Artigo 18º do Decreto-Lei nº 280/2007, de 7 de agosto (Regime Jurídico do Património Imobiliário Público)].
(20) 133. No presente caso, se a parcela de terreno relevante integrasse o domínio público, nunca o alvará para constituição de cinco lotes com vista à construção de moradias unifamiliares podia ter sido concedido, sem que a desafetação do domínio público tivesse ocorrido.
(21) 134. É, pois, evidente que a parcela de terreno objeto do presente processo nunca integrou, e não integra, o domínio público, motivo pelo qual também este “indício” evidenciado pelo Tribunal a quo constitui manifesto lapso, que importa, agora, reverter.
A celebração do Contrato não gerou nem modificou uma relação jurídica regulada por normas de direito público (Secção 2.3)
(22) 135. O ato, de natureza pública, através do qual se constituiu uma relação jurídica de Direito administrativo corresponde ao ato de emissão do alvará, e não à celebração do Contrato: foi através da sua emissão que o processo de loteamento foi deferido, tendo sido determinada a capacidade edificatória do terreno objeto do processo, e foi através da sua emissão que o direito de propriedade sobre a parcela de terreno de 1.661m2 se transmitiu, automaticamente, para a esfera da ré.
(23) 136. O Contrato objeto dos presentes autos não produziu qualquer um dos identificados efeitos, tendo-se mantido à margem da (paralela) relação jurídico-administrativa que culminou no deferimento do processo de loteamento e na emissão do alvará.
Os Tribunais Judiciais – e o Juízo Central Cível de Braga, em concreto – são materialmente competentes para dirimir o presente litígio (Secção 3)
(24) 137. Ao contrário do invocado pelo réu, o Tribunal a quo não considerou aplicável a alínea e), do nº 1, do artigo 4º, do ETAF, motivo pelo qual se impõe concluir que, na tese do Tribunal a quo, o presente não corresponde a um processo destinado a aferir da “validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes” – mesmo sabendo que a causa de pedir corresponde ao incumprimento (portanto, à execução) de determinado contrato, e que as relações jurídicas dele emergente são as únicas que constituem objeto da presente ação.
(25) 138. Em acréscimo, (I) o contrato em causa nos presentes autos não é um contrato administrativo, mas sim um contrato atípico misto de natureza privada, o que afasta o âmbito de aplicação da alínea e); (II) não se discute a responsabilidade civil extracontratual do Município ..., nem este atuou no exercício de poderes públicos, pelo que não se aplica a alínea f); e (III) em caso algum poderia concluir-se, como fez o Tribunal a quo, que a escritura de cedência constituiu uma relação jurídica administrativa (a qual apenas resulta do alvará, e nunca deste contrato), motivo pelo qual não é, igualmente, aplicável a alínea o), do nº 1, do artigo 4º, do ETAF.
(26) 139. Na medida em que não é aplicável ao presente caso nenhuma das normas constantes do artigo 4º do ETAF não é possível afirmar a atribuição de competência aos Tribunais Administrativos, motivo pelo qual a competência para dirimir este litígio (em que se requer a resolução de um contrato de direito privado nos termos das regras previstas no Código Civil) pertence exclusivamente aos tribunais judiciais, nos termos do disposto no artigo 211º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
(27) 140. O que, em qualquer caso, já resultava da circunstância de o objeto da presente instância ter sido configurado pela autora como correspondendo à violação de um contrato civil e às consequências do seu incumprimento, designadamente para efeitos resolutórios – e, naturalmente, a competência material do tribunal afere-se em função da configuração da instância levada a cabo pela autora.
(28) 141. Razão pela qual se requer, muito respeitosamente, a revogação da Decisão recorrida e a sua substituição por outra que, considerando competentes os Tribunais Judiciais, e, em concreto, o Juízo Central Cível de Braga, ordene o prosseguimento da ação.
D. PEDIDO
Termina entendendo que deverá o presente recurso de apelação ser julgado totalmente procedente, revogando-se a decisão do Tribunal de Primeira Instância, devendo ser afirmada a competência dos Tribunais Judiciais para dirimir o presente litígio, e, em consequência, ser ordenado o prosseguimento da ação.
*
Pelo réu e apelado Município ..., foi apresentada resposta, onde conclui:
1. Vem a autora, aqui recorrente, EMP01... - Construção, Compra e Venda de Propriedade, Lda., interpor recurso de douto despacho saneador-sentença proferido a 29 de novembro de 2023, pelo Juízo Central Cível de Braga, onde se julgou incompetente, em razão da matéria, para conhecer e apreciar o presente processo, absolvendo o réu, ora recorrido, da instância.
2. Entende a recorrente que estamos perante uma relação de natureza privada e, como tal, os Tribunais Judiciais são os Tribunais materialmente competentes para dirimir o presente litígio.
3. Sucede que não assiste qualquer razão à ora recorrente, não merecendo o douto despacho saneador-sentença qualquer reparo, conforme adiante melhor se demonstrará.
4. Em causa nos presentes está um contrato de cedência de terreno para concessão de alvará de loteamento.
5. Resulta, desde logo, das declarações negociais das partes que à cedência da parcela de terreno, por parte da recorrente, correspondeu sinalagmaticamente a aprovação de um loteamento e a emissão do respetivo alvará por parte do recorrido, com isenção do pagamento de taxas urbanísticas e de execução de infraestruturas.
6. A recorrente cedeu, assim, a parcela de terreno em causa;
7. Em contrapartida, o recorrido aprovou a operação de loteamento, o que fez nas vestes e com competência própria de pessoa coletiva pública, dotado de ius imperii - atuação materialmente administrativa.
8. Assim, atendendo à leitura e exame do contrato em causa, às circunstâncias de tempo e lugar que precederam a celebração da escritura, à finalidade visada pelas partes e ao próprio tipo negocial, não há dúvidas que estamos perante um contrato administrativo, mais propriamente, perante a celebração de um contrato típico de cedência de parcela de terreno, no âmbito de um processo de loteamento.
9. Este tipo de contrato é um contrato administrativo por natureza, que se integra na categoria de contratos administrativos prevista no artigo 280º, nº 1, alínea b), 1ª parte, do Código dos Contratos Públicos: “contrato com objeto passível de ato administrativo e demais contratos sobre o exercício de poderes públicos”, sujeito, como tal, ao regime do Direito Administrativo (a este propósito, MÁRIO DE AROSO DE ALMEIDA (in “Teoria Geral do Direito Administrativo – O novo Regime do Código do Procedimento Administrativo” Almedina, 3.ª Edição, págs. 402 e 403).
10. À data da celebração do contrato de cedência em causa, estava em vigor o Decreto-Lei nº 400/89, de 31 de dezembro, que regulava os pedidos de licenciamento de loteamento e as cedências de terreno realizadas ao abrigo deste, nomeadamente, nos seus artigos 42º e 43º, sendo este diploma totalmente aplicável ao caso nos presentes autos.
11. Não existindo quaisquer dúvidas da natureza de cedência da parcela em causa nos presentes autos - nem estas foram colocadas pela recorrente na petição inicial - que não só integra e integrou o procedimento de loteamento em causa, constando expressamente do alvará de loteamento, como foi pressuposto e causa para o seu deferimento.
12. “No domínio de aplicação do regime jurídico das operações de loteamento urbano consagrado no Dec.-Lei nº 400/84, de 31 de dezembro, a transferência para o domínio público (e também para o domínio privado) municipal, da propriedade das parcelas de cedência obrigatória, teria de ser feita por escritura pública, nos termos do então disposto na alínea a) do art.º 89º do Código do Notariado.” (cfr. sumário do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 09-03-2017, processo nº 1215/12.4TBVVD.G2).
13. Assim, a adoção da via contratual não permite, só por si, concluir que estamos perante uma relação de natureza jus-privatística, ao contrário do que pretende a recorrente defender.
14. Sendo certo que o que está em causa nos presentes autos é a cedência da área de “1.500m2 de terreno” para o domínio privado do recorrido e não a cedência da área de “1.661 m2 para passeios e arruamentos” para o domínio público do recorrido, cedência esta que, em momento algum, foi posta em causa pela autora, ora recorrente, que sempre reconheceu e reconhece tal parcela como sendo do domínio público do recorrido.
15. A parcela em causa nos presentes autos não integrou o domínio privado disponível da Administração, pelo que não pode a recorrente concluir, como faz, sem mais, pela aplicação de um regime de direito privado à mesma, apenas porque esta parcela faz parte integrante do domínio privado do recorrido.
16. No presente processo, em particular, na petição inicial, pede a recorrente a resolução do contrato de cedência de terreno celebrado entre a recorrente, entidade privada, e o recorrido, pessoa coletiva de direito público, ao abrigo de um processo de loteamento e por imposição do mesmo e, consequentemente, a reversão da parcela cedida ao abrigo desse contrato;
17. E, em qualquer caso, pede ainda a condenação do ora recorrido no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, alegadamente por si sofridos.
18. Está, assim, em causa no presente processo a interpretação, validade, execução e qualificação jurídica de um contrato administrativo e ainda o apuramento da responsabilidade civil extracontratual de uma entidade pública, neste caso, do recorrido.
19. Ora, os Tribunais competentes, em razão da matéria, para analisar e apreciar o mérito do presente processo e decidir pela procedência ou não procedência dos pedidos formulados pela autora, ora recorrente, são os Tribunais Administrativos e Fiscais, conforme decidido na douta decisão recorrida;
20. E não os Tribunais comuns, uma vez que não estamos perante uma relação jurídica privada, ao contrário do alegado pela recorrente, e conforme melhor exposto ao longo das presentes contra-alegações, mas uma relação jurídica administrativa.
21. “[T]êm de [se] considerar relações jurídicas públicas (seguindo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público”. (cfr. JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, “A Justiça Administrativa”, 16ª Edição, pág. 53 e Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 30-05-2018, processo nº 00298/17.5BEPNF).
22. No presente caso, o recorrido é uma entidade pública, que atuou no exercício de um poder público e no âmbito da prossecução das suas competências - deferimento de um pedido de licenciamento - e com vista à realização de um interesse público legalmente definido - a integração de uma parcela de terreno em causa no domínio público para equipamento público, através do regime da cedência previsto na legislação urbanística aplicável, e em cumprimento do Plano em vigor.
23. Estamos, assim, perante uma relação jurídica administrativa (cfr. Acórdãos do Tribunal de Conflitos, de 14-07-2022, processo nº 016/22 e de 22-03-2023, processo nº 023/22).
24. Assim, a decisão recorrida não merece qualquer reparo, uma vez que os Tribunais Administrativos e Fiscais são os tribunais competentes para apreciar o presente processo, nomeadamente, para analisar e averiguar do mérito da pretensão da recorrente e dos pedidos por ela formulados, em que se inclui, ainda que a título encoberto o exercício de um direito de reversão da parcela por si cedida no âmbito da operação de loteamento em causa e um pedido de indemnização cível, que convoca a aplicação de princípios públicos e normas específicas de direito do urbanismo.
25. Pelo que deve ser declarada a competência exclusiva dos Tribunais Administrativos e Fiscais, em função da matéria, para conhecer do presente processo, atendendo ao facto de que estamos perante uma relação jurídica administrativa (cfr. artigo 212º, nº 3 da CRP, e artigos 1º e 4º, nº 1, alíneas e), f) e o)) do ETAF), improcedendo, necessariamente, e na totalidade, as alegações de recurso apresentadas pela autora, ora recorrente.
Termina entendendo que deve o presente recurso interposto pela autora, Construções EMP01... – Construção, Compra e Venda de Propriedade, Lda., ora recorrente, ser julgado totalmente improcedente.
*
D) Foram colhidos os vistos legais.
E) A questão a decidir no recurso é a de saber qual o tribunal materialmente competente para julgamento da causa.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO

A) Os factos a considerar são os que constam do relatório que antecede.
*
B) O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente, não podendo o tribunal conhecer de outras questões, que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
*
C) Trata-se, na presente apelação de apurar qual o tribunal competente para apreciar a causa suscitada nos autos.
E, dir-se-á desde já, que o pedido formulado na ação, conforme se referiu é, 
(I) Ser declarada a resolução do Contrato, em virtude do incumprimento definitivo da ré e da impossibilidade de verificação da condição resolutiva a que o Contrato estava sujeito, com as respetivas consequências legais, designadamente com a restituição do terreno à autora, o que deverá ser decretado em sede de Despacho Saneador, nos termos do disposto no artigo 595º, nº 1, alínea b) do CPC, atenta a desnecessidade de produção de prova adicional;
(II) Subsidiariamente, deverá ser declarada a resolução do Contrato em virtude da alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar;
(III) Em qualquer caso, e em consequência da resolução operada, deve ser declarado o cancelamento do registo da parcela cedida a favor da ré e ser esta condenada na entrega do Terreno à autora;
(IV) E, também em qualquer caso, deve a ré ser condenada no pagamento de, pelo menos, €473.400,00, a título de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pela autora, deduzido do valor que deverá restituir à ré a título de taxas urbanísticas e da execução de infraestruturas (cfr. artigo 273º supra).
(V) Caso por algum motivo não equacionável pela autora, mas que por extrema cautela de patrocínio se equaciona, não seja possível a restituição do Terreno, deve, subsidiariamente ao pedido de condenação na sua entrega e de cancelamento do registo de aquisição a favor da ré (identificado em (III)), ser a autora indemnizada pelos danos emergentes e lucros cessantes que, de forma ilícita e culposa, lhe foram causados pela ré, no montante global de €1.805.025,00 (cfr. artigo 275º supra).
Vejamos.
A competência dos tribunais comuns é uma competência residual, como resulta do disposto do artigo 64º do NCPC.
A este propósito refere-se no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 15/03/2013, proferido no processo nº 024/13, disponível em www.dgsi.pt, onde se discute precisamente a competência material de uma ação de reivindicação intentada por um particular contra uma Junta de Freguesia, em que igualmente se formulam pedidos de indemnização pela alegada violação do direito de propriedade, que “o art. 212º, nº 3, da Constituição da República estatui:
“Compete aos Tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas ou fiscais”.
Em anotação a este preceito (então art. 214º), afirmam Gomes Canotilho e Vital Moreira — “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 3ª ed., pág. 815 — que estão em causa apenas os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (ou fiscais).
“Esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras:
(1) as ações e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público;
(2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob a ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal.
Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza “privada” ou “jurídico-civil”.
Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal.”
Decorre do preceito constitucional citado, que a competência dos tribunais da ordem judicial é residual, ou seja, são da sua competência as causas não legalmente atribuídas à competência dos tribunais de outra ordem jurisdicional — arts. 66º do Código de Processo Civil (anterior e, atualmente, artigo 64º NCPC) e 18º, nº 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei nº 3/99, de 13 de janeiro - LOFTJ [e, atualmente, artigo 40º nº 1 da Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ, Lei nº 62/2013, de 26/08)].
No que respeita à competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais importa ter em atenção os preceitos aplicáveis do ETAF, aprovado pela Lei 13/2002, de 19 de fevereiro (com as subsequentes alterações).
O Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, no art. 1º, nº 1, estatui:
“Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto”.
J. C. Vieira de Andrade, in “A Justiça Administrativa”, Lições, 2000, pág. 79, define a relação jurídica administrativa como sendo “aquela em que um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, atuando com vista da realização de um interesse público legalmente definido”.
No art. 4º do ETAF, enunciam-se, exemplificativamente, as questões ou litígios, sujeitos ou excluídos do foro administrativo, umas vezes de acordo com a cláusula geral do referido art. 1º, outras em desconformidade com ela.
Aquele normativo define, no âmbito da competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, além de outras, a competência para apreciação de litígios que tenham por objeto a tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares diretamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de atos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal.
Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, in “Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, vol. I, págs. 26 e 27, observam:
“É preciso, porém, não confundir os fatores de administratividade de uma relação jurídica com os fatores que delimitam materialmente o âmbito da jurisdição administrativa, pois, como já se disse, há litígios que o legislador do ETAF submeteu ao julgamento dos tribunais administrativos independentemente de haver neles vestígios de administratividade ou sabendo, mesmo, que se trata de relações ou litígios dirimíveis por normas de direito privado.
E também fez o inverso: também atirou relações onde existiam fatores indiscutíveis de administratividade para o seio de outras jurisdições”.
O atual ETAF eliminou o critério delimitador da natureza pública ou privada do ato de gestão que gera o pedido.
O critério material de distinção assenta, agora, em conceitos como relação jurídica administrativa e função administrativa — conjunto de relações onde a Administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público — cfr. Vieira de Andrade, “A Justiça Administrativa”, 9ª edição, 103, e Margarida Cortez, “Responsabilidade Extracontratual do Estado, Trabalhos Preparatórios da Reforma”, 258.
Tal entendimento encontrou acolhimento no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12.02.07, in www.dgsi.pt, em cujo sumário se pode ler:
“I. O âmbito da jurisdição administrativa abrange todas as questões de responsabilidade civil envolventes de pessoas coletivas de direito público, independentemente de as mesmas serem regidas pelo direito público ou pelo direito privado;
II. Os conceitos de atividade de gestão pública e de gestão privada dos entes públicos já não relevam para determinação da competência jurisdicional para a apreciação de questões relativas à responsabilidade civil extracontratual desses entes por tribunais da ordem judicial ou da ordem administrativa”.
Fernandes Cadilha, in “Dicionário de Contencioso Administrativo”, 2007, págs. 117/118, sustenta:
“Por relação jurídico-administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjetivas.
Pode tratar-se de uma relação jurídica intersubjetiva, como a que ocorre entre a Administração e os particulares, intradministrativa, quando se estabelecem entre diferentes entes administrativos, no quadro de prossecução de interesses públicos próprios que lhes cabe defender, ou interorgânica, quando se interpõem entre órgãos administrativos da mesma pessoa coletiva pública, por efeito do exercício dos poderes funcionais que lhes correspondem.
Por outro lado as relações jurídicas podem ser simples ou bipolares, quando decorrem entre dois sujeitos, ou poligonais ou multipolares, quando surgem entre três ou mais sujeitos que apresentam interesses conflituantes relativamente à resolução da mesma situação jurídica (quanto às características de uma relação jurídica deste tipo, Gomes Canotilho, “Relações jurídicas poligonais, ponderação ecológica de bens e controlo judicial preventivo”, Revista Jurídica do Urbanismo e do Ambiente, nº 1, Junho 1994, págs. 55 e ss.)”.
No caso sub judice, estamos perante um pedido de resolução do contrato de cedência de terreno para concessão de alvará de loteamento, com a restituição à autora do terreno cedido por esta e o pagamento de uma indemnização dos alegados danos patrimoniais e não patrimoniais sofrido, competência esta que a douta decisão recorrida entendeu ser da jurisdição administrativa, por força do disposto no artigo 4º nº 1 alínea o) do ETAF.
 No mesmo sentido se pronunciou o Acórdão do Tribunal de Conflitos de 14/07/2022, no processo 016/22, in www.dgsi.pt, relatado pela Conselheira Teresa de Sousa, apreciando uma questão semelhante à presente, onde refere que “compete aos Tribunais Administrativos apreciar ação sobre um contrato de cedência da parcela de terreno, o qual funcionou verdadeiramente como uma alternativa a um processo de expropriação visando um fim de interesse público prosseguido pelo réu Município” e que “através de tal contrato o dito prédio passou a pertencer ao domínio público municipal, pretendendo agora os autores, com a resolução do contrato, por alegado incumprimento do réu, ver “revertida” a situação do referido bem (como pedido principal), sendo a situação reconduzível ao disposto no art. 4º, nº 1, alínea o), do ETAF.”
E acrescenta que “é consabida a jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos segundo a qual a ação em que se peça a declaração de propriedade sobre uma coisa e a condenação do réu, que a detenha, a restitui-la, consubstancia uma reivindicação, e que esse tipo de ações reais não se incluem em qualquer das hipóteses do art. 4º, nºs 1 e 2 do ETAF, devendo ser julgadas pelos tribunais comuns, cuja competência é residual (cfr., v.g., os acs. de 13.12.2010, Proc. nº 043/18, de 24.05.2017, Proc. nº 01/17, de 26.01.2017, Proc. nº 052/14 e de 04.02.2016, Proc. nº 04.02.2016, todos consultáveis no sítio supra indicado).
No entanto, no caso presente não estamos perante uma reivindicação de propriedade, já que a alegação dos autores é a de que entre estes e o réu foi celebrado um acordo pelo qual cederam àquele a parcela de terreno em causa nos autos, mediante determinadas contrapartidas. Acordo de cedência esse destinado a servir o interesse público prosseguido pelo Município de “construção de uma rotunda no âmbito da reabilitação da EM 595 no cruzamento de …… com ……”. Evitando assim “o réu o dispendioso processo de expropriação e como contrapartida obrigou-se a realizar determinadas obras de urbanização”, tendo aquando dos preliminares que antecederam o acordo e na celebração deste proposto aos AA., em troca da cedência do terreno, a garantia de um loteamento no local, sem quaisquer custos ou encargos para estes.
Acordo este, que pelas suas características não pode ser considerado uma doação (cfr. art. 940º e seguintes do Código Civil).
Tal acordo não tem, pois, uma natureza jurídico-privada, mas, antes, consubstancia uma relação jurídica administrativa.
Sobre a noção de “relação jurídica administrativa escreveu J.C. Vieira de Andrade, in A Justiça Administrativa, 18ª ed. Coimbra, 2020, pág. 53, o seguinte: “na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir-se do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa” no sentido estrito tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a administração. (…)
A determinação do domínio material da justiça administrativa continua, assim, a passar pela distinção entre o direito público e o direito privado, uma das questões cruciais que se põem à ciência jurídica. (…) lembraremos apenas que se têm de considerar relações jurídicas públicas (seguindo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, atuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”.
Ora, no caso concreto o réu Município atuou no exercício de um poder público e com vista à realização de um interesse público - a de integrar no domínio autárquico a parcela de terreno constante do contrato celebrado, sem necessidade de proceder a uma expropriação - (como os próprios autores alegam), comprometendo-se em contrapartida a “realizar os arruamentos conforme planta em anexo” e “a realizar as obras de urbanização conforme as medições e orçamento em anexo” [cfr. o referido doc. nº ... – Ata da Reunião Ordinária de 27 de Junho de 2007 da Câmara Municipal ...].”
Neste esmo sentido se pronunciou o Acórdão do STJ de 02/02/2023, no Processo 4208/20.4T8CBR.C1.S1, www.dgsi.pt, relatado pelo Conselheiro Vieira e Cunha.
Ora, como se nos afigura evidente, um contrato de cedência de terreno para concessão de alvará de loteamento, não se pode considerar como um acordo de natureza puramente privada, dado que não está na disponibilidade de privados concederem, como contrapartida um alvará de loteamento, uma vez que tal poder compete aos Municípios e não aos particulares, que dele não dispõe, não se trata, p. e., de ato semelhante à aquisição de material de escritório ou de limpeza, por uma entidade pública, nomeadamente por um Município que, aqui, fora de dúvidas, atua na veste de um qualquer particular ou empresa privada que faça igual aquisição, não há resquício de ato de natureza administrativa, como sucede no caso dos autos.
E não se diga que no contrato em causa é necessário indicar-se que a cedência é feita nos termos do disposto no artigo 16º do Decreto-Lei nº 448/91, de 29/12, diploma este que, aliás, revogou o Decreto-Lei nº 400/84, de 31/12, a que a apelante fugazmente se refere - que aprovou o regime jurídico dos loteamentos urbanos - para que tal diploma seja aplicável e se constate que o contrato tem natureza jurídico administrativa, como, efetivamente, tem.
Importa notar que, ainda que a cedência do terreno integre o domínio privado do Município, sempre o correspetivo desta cedência, que se traduziu na isenção do pagamento de taxas e na dispensa da realização de obras de urbanização, a serem executadas a expensas da Câmara Municipal, traduzem uma ato de natureza administrativa, próprio dos Municípios a que nenhum particular, tem acesso, por ser específico da competência destas autarquias.
Tanto basta para que se reconheça ao acordo em questão a natureza de contrato administrativo e, como tal seja da competência dos tribunais administrativos a apreciação das pretensões formuladas.
Pelo exposto, resulta que a douta decisão recorrida terá de ser confirmada e, em consequência, julgada a apelação improcedente.
 Face ao total decaimento do recurso, a responsabilidade pelas custas recai sobre a apelante (artigo 527º nº 1 e 2 NCPC), sem prejuízo do apoio judiciário.     
*
III. DECISÃO

Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmar a douta decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Notifique.
*
Guimarães, 11/04/2024

Relator: António Figueiredo de Almeida
1ª Adjunta: Desembargadora Raquel Baptista Tavares
2ª Adjunta: Desembargadora Alexandra Rolim Mendes