CONTRAORDENAÇÃO
DISPENSA DE COIMA
LEI DA AMNISTIA
PESSOAS COLECTIVAS
Sumário

I – Em processo relativo à prática de contraordenação só é aplicável sanção de substituição (dispensa de coima) se estiver prevista na lei da contraordenação sectorial, caso contrário, só existe a sanção de substituição prevista no RGCO, que é a admoestação.
II - A Lei nº 38-A/2023 de 02 de agosto, não se aplica às pessoas coletivas.
III – A Lei nº 38-A/2023 de 02 de agosto também não abrange as coimas relativas a contraordenações praticadas por pessoas singulares, independentemente do seu limite máximo abstrato quer do valor concretamente aplicado.

Texto Integral

Processo nº 1056/23.3T9AVR.P1
Comarca de Aveiro
Juízo Local Criminal de Aveiro – Juiz 3

Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO

    Por decisão administrativa proferida no dia 28/12/2022 pelo Ministério da Administração Interna – Comando Territorial de Aveiro da Guarda Nacional Republicana – Secção Proteção da Natureza e Ambiente, foi aplicada à arguida “A... LDA.” a coima de €800,00 (oitocentos euros), pela prática de uma contraordenação p. e p. pelos arts. 15º nºs 2 a) e 38º nºs 1, 2 a) 3 e 4, ambos na redação da Lei nº 76/2017 de 17/08, vigente no dia 01/06/2021 do D.L. nº 124/06 de 28 de junho (Sistema Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios – SNDFCI), porquanto a arguida não procedeu com o cuidado a que estava obrigada.


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     Inconformada, a arguida interpôs impugnação judicial da referida decisão administrativa para o Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo Local Criminal de Aveiro – Juiz 3.

     Por despacho-sentença de 03/07/2023, depositado em 12/07/2023, o Juízo Local Criminal de Aveiro – Juiz 3 decidiu julgar totalmente improcedente o recurso de impugnação judicial interposto pela arguida A... LDA., mantendo a decisão proferida pela autoridade administrativa condenando esta pela prática de uma contraordenação prevista e punida pelo disposto nos artigos 15º nº 2, al. a) e 38º nºs 1, 2, al. a), 3 e 4 do Decreto-Lei nº 124/2006, de 28 de Junho, na coima de 800,00€ (oitocentos euros).


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     Uma vez mais inconformada, a arguida “A... LDA.” em 12/09/2023, interpôs o presente recurso da decisão, extraindo da motivação as seguintes conclusões:

“1ª O presente recurso é interposto da sentença recorrida que manteve a decisão proferida pela entidade administrativa que condenou a Recorrente no pagamento de coima no valor de € 800,00 (oitocentos euros) pela prática de uma contraordenação prevista e punida no disposto nos artigos 15º, n. º2, al. a) e Artº 38º, nº 1, 2, al. a), 3 e 4 do Decreto-Lei n.º 124/2006, de 28.06 (que prevê o Sistema Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios);

2ª Entende a sociedade recorrente que além de existir erro notório na apreciação da prova, a factualidade dada como provada é insuficiente para a manutenção da decisão de condenação de que se recorre;

3ª Da análise desses documentos probatórios (registos fotográficos extraídos do google hybrid) a que a própria sentença recorrida se refere, entende a defesa, salvo melhor e douto entendimento, não deverem ser considerados tais documentos como meio de prova bastante para a condenação na pratica da infracção descrita na al. a), n.º 2, do art.º 15 e nas alínea a) e d), do art.º 38, ambos do DL 124/2006, de 28 de junho;

4ª Com efeito, inexiste qualquer documento junto aos autos que sustente as mediadas não cumpridas, designadamente, “… a largura não inferior a 50 m , medida a partir da alvenaria exterior do edifício, sempre que esta faixa abranja terrenos ocupados com floresta, matos ou pastagens naturais; …”, nem “… a distância ente copas das árvores devendo ser no mínimo de 10 metros nos num terreno povoado com pinheiro bravo e eucalipto …”

5ª Assim, nem o auto de notícia, nem a decisão administrativa indicam as medidas concretamente verificadas na situação concreta dos autos, por   confronto com a norma legal prevista nos artigos 15º, n.º2, al. a), d DL 124/2006, de 28 de junho e respetivo Anexo.;

6ª Na verdade, quer o auto da notícia, quer a decisão administrativa limitam-se a reproduzir de uma forma genérica e abstracta o que se encontra estipulado na al. a), do n.º 2, do art.º 15, do DL 124/2006, de 28 de junho não fazem uma aplicação concreta à situação decidida;

Nos termos do art.º 58, n.º 1, RGCO a “…indicação das provas obtidas …não se basta com um registo fotográfico retirado da Internet em que apenas é legível a indicação do local, encontrando-se desfocada a data dos aludidos registos fotográficos pelo que não pode tal bastar para condenar qualquer pessoa;

8ª Ainda que se admita que o processo contraordenacional não tenha de ter o rigor legal da acusação em processo penal, ainda assim é exigível que a prova documental (in casu), que sustenta a condenação da prática da infração seja submissível aos elementos objetivos da infração, o que não se verifica de todo no caso concreto dos autos;

9ª Assim, verifica-se a nulidade da decisão administrativa, por não ter respeitado o disposto no Artº 58 do RGCO;

10ª As circunstâncias de facto levadas à motivação não têm correspondência e/ou suporte na matéria de facto provada, o que impedia a sua consideração em tal motivação/fundamentação e faz incorrer a sentença no alegado vício de insuficiência da matéria de facto provada e não provada para a decisão de direito, por falta de elementos objetivos e subjetivos suficientes para dar por verificada e imputar à arguida a infração por que foi condenada.

11ª Estamos assim perante o vício de sentença previsto no artigo 410º nº 2 al. a) do CPP, ou seja, a insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito.

12ª Não obstante e sem prescindir, importa ainda referir que a Divisão de Fiscalização do Município de Aveiro registou que a Recorrente, á data 31.08.2021, procedeu à “gestão de combustíveis”, mais concretamente ao abate integral de toda e qualquer árvore no terreno (v. folhas 41 e 42 do referido processo de administrativo pelo que deixa ser qualificado como um espaço florestal ou espaço rural previsto e descrito no Art. 3º, n.º 1, al. h) e i), do DL ,124/2006, de 28 de junho.

13ª Nestes termos, deveria a Recorrente ter sido dispensada da pena nos termos do art. 74º, do Código Penal aplicável por força do disposto no art. 32º, do RGCO, por se verificarem os requisitos previstos no n.º 1, ilicitude do facto e culpa do agente diminutas; dano reparado; e a essa dispensa não se opõem razões de prevenção, o que em última instância desde já se requer que seja aplicável á Recorrente.

14ª Por último, a Recorrente requer que lhe seja aplicado o perdão de penas e amnistia de infrações previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto “.


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     O Ministério Público apresentou resposta em 28/09/2023, pronunciando-se pelo não provimento do recurso, concluindo nos termos que seguem:

“A\ Não existe erro notório na apreciação da prova, nem insuficiência da matéria de facto provada para a decisão condenatória, porquanto a sentença encontra-se devidamente fundamentada e de acordo com os elementos documentais instruídos pela autoridade administrativa competente.

B\ O instituto da dispensa de pena previsto no direito penal não é aplicável ao direito contraordenacional.

C\ O perdão ínsito na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto apenas é aplicável a sanções acessórias e não a coimas.

D\ Entende o Ministério Público que o recurso deve ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se a decisão judicial in totum “.


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     Neste Tribunal de recurso a Exmª Procuradora-Geral Adjunta no parecer que emitiu, acompanhando a resposta do Ministério Público junto da 1ª Instância, pugna pelo não provimento do recurso, acrescentando o seguinte: “no que concerne ao perdão da coima concreta aplicada à arguida por força do disposto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, em vigor desde 1 de setembro, a Mmª Juiz a quo já apreciou a questão, no despacho de admissão do recurso, indeferindo-a, com fundamento em que a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, diz expressamente, no seu artigo 5.º, que estando em causa contraordenações, o perdão respeita às “sanções acessórias relativas a contraordenações cujo limite máximo de coima aplicável não exceda 1000€ e que, no presente caso, não foi aplicada qualquer sanção acessória., mas apenas uma coima.

       De facto, e tal como bem refere o MP na sua resposta, “a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto apenas previu o perdão de sanção acessória aplicada em processo contraordenacional, dentro de certos limites (artigos 2º e 5º). Foi uma opção do legislador a não inclusão de coimas no perdão”.

     Ora, apesar da argumentação aduzida no recurso da arguida (que reconhece que o perdão das coimas aplicadas não está abrangido no perdão concedido pela Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto) o certo é que é reconhecido pacificamente na nossa doutrina e jurisprudência, que as leis de amnistia e perdão não são suscetíveis de interpretação extensiva,

   De facto, tratando-se de providências de exceção, não comportam, por essa mesma razão, aplicação analógica, tal como estatuído no artigo 11.º do Código Civil, nem tão pouco admitem interpretação extensiva ou restritiva.

    Assim sendo, devem as normas da referida Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto ser interpretadas nos exatos termos em que estão redigidas, com respeito pelo preceituado no artigo 9.º do Código Civil.

    Pelo exposto, sou do parecer de que a arguida não pode beneficiar do perdão da coima de 800€ em que foi condenada, por tal não estar legalmente previsto “.


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     Cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do Cód. Proc. Penal, não foi apresentada resposta.
     Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.

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II – FUNDAMENTAÇÃO

     No processo contraordenacional existe um ónus de alegar e de formular o pedido recursivo, sendo este que delimita inicial e essencialmente o objeto do recurso e os poderes de cognição do tribunal “ad quem” (arts. 41º nº 1 e 74º nº 4 RGCO e 412º nº 1 CPP)([1]), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do art. 410º do CPP – cfr. Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no D.R. Série I-A, de 28/12/95.

     Assim, tendo em consideração a limitação dos poderes de cognição do tribunal de recurso no âmbito do direito de mera ordenação social, imposta pelo art. 75º nº 1 do RGCO, as questões a decidir, atentas as conclusões apresentadas pela recorrente, são as seguintes:

a insuficiência para a decisão (de manutenção da condenação) da matéria de facto provada (art. 410º nº 2 a) do CPP);

2ª o erro notório na apreciação da prova;

a (não) aplicação do instituto da dispensa da pena;

a aplicação do perdão previsto na Lei nº 38-A/2023 de 02 de agosto.


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     O despacho-sentença proferido na 1ª Instância, na parte que ora releva, tem o seguinte teor (transcrição parcial):

(…)

Da nulidade do auto de notícia

    A recorrente sustenta que o auto de notícia é nulo por não descrever factos concretos dos quais se poderia extrair a violação das normas invocadas, sustentando que tal auto não satisfaz as exigências contidas nos artigos 32.º, n.º1 da CRP, 50.º e 58.º do RGCO e 283.º do CPP, na vertente do direito de defesa da arguida, sendo legalmente inadmissível causar sem factos.

    O artigo 50.º do RGCO dispõe que «não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessória sem antes se ter assegurado ao arguido a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contraordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre.».

    No caso em apreço, resulta documentado nos autos que a recorrente foi notificada para exercício do direito de audiência e defesa, tendo-lhe sido remetida cópia do auto de notícia (AN_...9/DPMF/...21, lavrado pela Divisão de Polícia Municipal e Fiscalização da Câmara Municipal de Aveiro).

     Da análise do auto de notícia resulta claro que são identificados os factos que constituem a infracção e as circunstâncias em que esta foi verificada – na sequência da deslocação ao local no dia 1 de Junho de 2021 de agentes da Polícia Municipal - os elementos de identificação da pessoa colectiva; a identificação da testemunha e da autuante e qualidade em que elaborava o auto de notícia; são ainda indicados de forma clara os meios de prova (documentos identificados); sendo a qualificação jurídica efectuada de forma igualmente clara e consentânea com a decisão final que veio a ser proferida.

      Com efeito, resulta claro do teor do auto de notícia que ali se sustenta que na deslocação realizada a 1 de Junho de 2021, à Rua ..., em ..., Aveiro, verificou-se que não foram realizados trabalhos de gestão de combustível pela arguida, na qualidade de proprietária dos prédios inscritos na matriz predial rústica n.º ...49 e ...51, ali se consignando que se trata de prédios confinantes a edifícios inseridos em espaço rural, ocupados com floresta e mato, nomeadamente não cumprindo com a distância entre as copas das árvores- devendo ser no mínimo de 10 metros num terreno povoado com pinheiro bravo e eucalipto – numa largura não inferior a 50 metros, medida a partir da alvenaria exterior do edifício; tendo os agentes fiscalizadores efectuado reportagem fotográfica do local, anexada ao auto.

     No que concerne ao elemento subjectivo do tipo contraordenacional, importa igualmente referir que o auto de notícia não constitui qualquer acusação, não tendo que conter os mesmos elementos desta, sendo que processo contraordenacional assume uma natureza própria e expedita em face do processo criminal e, na fase administrativa, assenta na necessidade de celeridade e de especialidade da entidade decisória. Nesta fase inexiste qualquer acusação à imagem do processo penal.

     Seguindo de perto o aresto do Tribunal da Relação de Évora de 26 de abril de 2016, processo n.º 463/15.0T8STC.E1, disponível em www.dgsi.pt, sendo certo que no processo contraordenacional se consagram direitos à imagem processual penal, «(…) essa “imagem” processual penal não é, não pode ser, sob pena de se negar a sua própria existência por inutilidade, uma cópia do processo penal. E onde não deve ser “igual” é na necessidade de existência de uma “acusação” para que uma entidade administrativa decida, sob pena de estarmos a atribuir a esta uma “imagem” judicial plena».

      Assim, dúvidas não restam de que a recorrente foi notificada de forma clara do prazo de que dispunha para se pronunciar por escrito sobre os factos imputados e respectiva qualificação jurídica, bem como de que poderia requerer a realização de diligências probatórias, tendo-lhe sido comunicada a qualificação jurídica, os factos imputados e constantes do auto de notícia e todos os elementos necessários para que ficasse a conhecer a totalidade dos aspectos relevantes para a decisão, sendo que na sequência de tal comunicação a arguida exerceu o seu direito de defesa, dirigindo aos autos de contraordenação requerimento com apresentação de defesa escrita – desde logo sustentando que no auto de notícia se faz errada invocação da exigência legal de distanciamento entre as copas das árvores num mínimo de 10 metros num terreno povoado com pinheiro bravo e eucalipto, assumindo-se que o proprietário do terreno não observa a distância de 50 metros medida a contar da alvenaria exterior da edificação e que nessa área existe estrato arbóreo, o que não se verifica no caso concreto do terreno rústico - mais argumentando que procedeu ao corte das árvores na área que legalmente deverá corresponder à faixa desprovida de combustível (50 metros de distância a contar da alvenaria exterior do urbano confinante), constatando que importaria proceder à desramação até metade de altura de algumas das árvores ali existentes, o que, em 28 de Julho de 2021, disse que iria fazer de imediato e mais sustentando que procedeu à correcta gestão de combustíveis ao cortar, limpar e remover a biomassa vegetal no terreno de que é proprietária.

      Assim, não se verifica a violação do disposto nos artigos 32.º, n.º1 da CRP, 50.º do RGCO e 283.º do CPP, na vertente do direito de defesa da arguida, julgando-se improcedente a nulidade do auto de notícia “.

(…).

A) DOS FACTOS

Factos Provados

Com relevo para a decisão a proferir, resultam provados os seguintes factos:

1. No dia 1 de Junho de 2021, pelas 9h25, agentes da Polícia Municipal de Aveiro deslocaram-se aos prédios rústicos com os artigos matriciais n.ºs ...49 e ...51, sitos na Rua ..., freguesia ..., propriedade da arguida A..., LDA.

2. Uma vez nos prédios rústicos aludidos em 1), os agentes da Polícia Municipal de Aveiro constataram que tais prédios rústicos confinam com edifício industrial, sendo que numa faixa com largura mínima não inferior a 50 metros - medida a partir da alvenaria exterior do edifício – ali então existiam árvores de eucalipto e pinheiro bravo, sem que se verificasse a distância mínima de 10 metros entre as copas das árvores ali existentes e sem que se tivesse procedido à desramação em pelo menos 50% da altura de tais árvores que atingiam os 8 metros ou um mínimo de 4 metros de desramação nas árvores ali existentes de altura superior aos 8 metros.

3. Ao não garantir a distância mínima de 10 metros entre as copas das árvores e a realização dos trabalhos de desramação das árvores de eucalipto e pinheiro bravo existentes numa faixa com largura mínima não inferior a 50 metros - medida a partir da alvenaria exterior do edifício - a arguida não agiu com a prudência e diligência que lhe eram exigíveis e de que era capaz, revelando falta de cuidado que podia e devia ter tido para evitar o incumprimento da obrigação a que estava sujeita, resultado que, de igual modo, podia e devia ter previsto, mas nem sequer previu, não podendo deixar de

saber que o incumprimento das obrigações legais a poderia fazer incorrer em responsabilidade por factos ilícitos de natureza contraordenacional.

Mais se provou que:

4. Após o dia 1 de Junho de 2021, em data concretamente não apurada mas situada antes de 31 de Agosto de 2021, a arguida veio a proceder ao abate de todas as árvores florestais adultas que existam no local aludido em 2).

Factos Não Provados

Com relevo para a decisão a proferir, considerando o alegado pela arguida em sede de impugnação judicial, não se provaram quaisquer factos decisivos para o conhecimento do mérito do recurso “.


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    “Motivação

    A convicção do Tribunal formou-se no concernente aos factos provados e não provados, com base na conjugação da prova documental junta aos autos.

    Concretizando importa dizer, desde logo, que dos elementos dos autos nos quais consta a pronúncia da recorrente quanto aos factos imputados, resulta claro que, apesar de sustentar que mantinha uma faixa de terreno limpa, a arguida não deixou de se assumir que, em parte do terreno, existiam “alguns exemplos arbóreos de pequeno porte” com distanciamento entre eles superior a 8 metros, sendo que após deslocação ao local verificou ser necessário proceder à desramação até metade da altura de algumas das árvores ali existentes, o que iria fazer de imediato (conforme anunciou no e-mail de 28 de Julho de 2021).

     Ora, apesar do alegado pela arguida, não só os agentes da polícia municipal constataram em 1 de Junho de 2021 (pelas 9h25) que numa faixa com largura não inferior a 50 metros (medida a partir da alvenaria exterior do edifício) existiam árvores de eucalipto e pinheiro bravo com copas que distavam entre si menos de 10 metros e que não se havia procedido à desramação até metade da altura das árvores (o que é claramente visível na fotografia anexa ao auto de notícia), como, ouvido na qualidade de testemunha, AA, gerente comercial da recorrente, reconheceu que apesar de até ao final de Março todos os anos limparem o terreno e removerem os combustíveis, em deslocação ao  terreno em Julho de 2021, a proprietária verificou ser necessário proceder à desramação, o que veio a fazer.

     Acresce que, na sequência do determinado pela Divisão de Apoio Jurídico da Câmara Municipal de Aveiro, a 5 de Agosto de 2021, a 31 de Agosto de 2021, em nova deslocação ao local, os agentes da polícia municipal constaram que a arguida procedeu ao abate das árvores, o que a testemunha AA confirmou, quando ouvido a 10 de Novembro de 2021.

     Importa ainda salientar que resulta dos autos que a Secção de Proteção da natureza e Ambiente da GNR de Aveiro carreou para os autos elementos dos quais resultam claras as características dos terrenos em causa e sua localização, mormente no que concerne à medição da faixa de gestão de combustível, com 50 metros de largura, medida a partir da alvenaria exterior dos edifícios inseridos em espaço rural, resultando claro das imagens produzidas com recurso a imagens aéreas do Google Hybrid, em 26 de Dezembro de 2022 e à Carta de Uso e Ocupação de Solo de Portugal Continental para 2018 da Direcção-Geral do Território, que parte da aludida fixa com 50 metros de largura, contem terreno classificado como “florestas de eucalipto”.

     Em face do exposto e considerando as diligências efectuadas, não ficou o Tribunal com qualquer dúvida, suscetível de ser resolvida a favor da arguida, quanto à que era a configuração dos terrenos a 01 de Junho de 2021 e existência na faixa de gestão de combustível de árvores que não respeitavam o legalmente previsto quanto à distância das copas e quanto à desramação; sendo que igualmente resulta da prova produzida confirmado o alegado pela arguida quanto à posterior regularização da situação e abate das árvores.

     No que concerne ao vertido em 3) importa notar que, considerando os graves incêndios que assolaram o país em 2017 e 2018, foram amplamente divulgadas as normas legais relativas às obrigações que impendem sobre os proprietários dos terrenos, mormente ao nível da “limpeza dos terrenos” e necessária gestão de combustível, bem como quanto às eventuais consequências de essas obrigações não serem cumpridas, com os órgãos de comunicação social a noticiarem operações de fiscalização e de sensibilização, pelo que, agindo com a normal diligência, naturalmente, a arguida não poderia deixar de, antes de para o efeito ter sido (como foi) interpelada, cumprir as exigências legais quanto à distância das copas e à desramação.

     Relativamente aos factos não provados, cumpre apenas dizer que não foi junta aos autos qualquer prova documental nem produzida na fase administrativa prova testemunhal que permitisse dar como provados outros factos com relevo para a decisão a proferir, para além dos que, nessa qualidade, se descreveram supra.


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B) DO DIREITO

Do enquadramento jurídico

    Conforme dispõe o artigo 1.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro constitui contraordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comina uma coima.

    A recorrente foi condenada pela prática de uma contraordenação prevista e punida pelo disposto nos artigos 15.º, n.º2, al.a) e 38.º, n.ºs 1, 2, al.a), 3 e 4 do Decreto-Lei n.º 124/2006, de 28 de Junho (Sistema Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios – SNDFCI).

    O Decreto-Lei n.º 124/2006, de 28 de Junho estabelecia as medidas e acções a desenvolver no âmbito do Sistema Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios, tendo sido revogado pelo Decreto-Lei n.º 82/2021, de 13 de Outubro.

    No âmbito das medidas de organização do território, de silvicultura e de infraestruturação, em matéria de defesa de pessoas e bens, concretamente de redes secundárias de faixas de gestão de combustível, previa-se no n.º2 do artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 124/2006, de 28 de Junho que os proprietários, arrendatários, usufrutuários ou entidades que, a qualquer título, detenham terrenos confinantes a edifícios inseridos em espaços rurais, são obrigados a proceder à gestão de combustível, de acordo com as normas constantes no anexo do presente decreto-lei e que dele faz parte integrante, numa faixa com as seguintes dimensões: a) Largura não inferior a 50 m, medida a partir da alvenaria exterior do edifício, sempre que esta faixa abranja terrenos ocupados com floresta, matos ou pastagens naturais; b) Largura definida no PMDFCI, com o mínimo de 10 m e o máximo de 50 m, medida a partir da alvenaria exterior do edifício, quando a faixa abranja exclusivamente terrenos ocupados com outras ocupações, ali mais se prevendo que tais trabalhos devem decorrer entre o final do período crítico do ano anterior e 30 de Abril de cada ano.

    Do disposto no artigo 215.º da Lei n.º 75-B/2020, de 31 de Dezembro, resulta que, em 2021, independentemente da existência de Plano Municipal de Defesa da Floresta contra Incêndios (PMDFCI) aprovado: a) Os trabalhos definidos nos n.ºs 2, 10 e 13 do artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 124/2006, de 28 de Junho, devem decorrer até 15 de Março; b) Os trabalhos definidos no n.º 1 do artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 124/2006, de 28 de junho, devem decorrer até 31 de Maio.

    Em matéria contraordenacional, mais dispunha o artigo 38.º do Decreto-Lei n.º 124/2006, de 28 de Junho:

«1 - As infrações ao disposto no presente decreto-lei constituem contraordenações puníveis com coima, de (euro) 140 a (euro) 5000, no caso de pessoa singular, e de (euro) 1500 a (euro) 60 000, no caso de pessoas coletivas, nos termos previstos nos números seguintes.

2 - Constituem contraordenações:

a) A infração ao disposto nos n.ºs 1, 2, 9, 10, 12, 13 e 14 do artigo 15.º;

(…)

d) A violação dos critérios de gestão de combustível, definidos no anexo do presente decreto-lei e que dele faz parte integrante;

(…)

3 - A determinação da medida da coima é feita nos termos do disposto no regime geral das contraordenações.

4 - A tentativa e a negligência são puníveis.»

   O Decreto-Lei n.º 82/2021, de 13 de Outubro estabelece o Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais no território continental e define as suas regras de funcionamento, ali se continuando a prever a obrigação de proceder à gestão de combustível, no artigo 49.º aludindo-se à rede secundária de faixas de gestão de combustível (tendo por função reduzir os efeitos da passagem de incêndios, protegendo de forma passiva vias de comunicação, infraestruturas e equipamentos sociais, zonas edificadas e formações florestais e agrícolas de valor especial e isolar potenciais focos de ignição de incêndios), desenvolvendo-se nas envolventes da rede rodoviária e ferroviária; das linhas de transporte e distribuição de energia elétrica e de transporte de gás e de produtos petrolíferos; das áreas edificadas; dos estabelecimentos hoteleiros, parques de campismo e parques de caravanismo, das infraestruturas e parques de lazer e de recreio, das áreas de localização empresarial e dos estabelecimentos industriais, postos de abastecimento de combustíveis, das plataformas logísticas e dos aterros sanitários; das instalações de produção e armazenamento de energia elétrica e de gás e das infraestruturas de suporte ao Sistema Integrado de Redes de Emergência e Segurança de Portugal (SIRESP).

    Mais resulta do disposto no citado artigo 49.º que:

«(…)

6 - Na envolvente das áreas edificadas, quando confinante com territórios florestais, os proprietários, arrendatários, usufrutuários ou entidades que, a qualquer título, aí detenham terrenos asseguram a gestão de combustível numa faixa envolvente com largura padrão de 100 m a partir da interface de áreas edificadas.

7 - Os proprietários, arrendatários, usufrutuários ou entidades que, a qualquer título, detenham terrenos a menos de 50 m de edifícios que estejam a ser utilizados para habitação ou atividades económicas não previstas no n.º 5 são obrigados a proceder à gestão de combustível, de acordo com o regulamento do ICNF, I. P., a que se refere o n.º 3 do artigo 47.º, numa faixa com as seguintes dimensões:

a) Largura padrão de 50 m, medida a partir da alvenaria exterior do edifício, caso esta faixa abranja territórios florestais;

b) Largura de 10 m, medida a partir da alvenaria exterior do edifício, caso a faixa abranja territórios agrícolas.

(…)».

Em matéria contraordenacional prevê-se no artigo 72.º do diploma em referência que:

«1 - Sem prejuízo da responsabilidade criminal que possa resultar dos mesmos factos, nos termos da lei, constitui contraordenação a realização das seguintes ações:

(…)

e) O incumprimento dos deveres de gestão de combustível estabelecidos nos termos dos n.os 2 e 4 a 6 do artigo 49.º;

f) O incumprimento dos deveres de gestão de combustível estabelecidos nos termos do n.º 7 ou do n.º 9 do artigo 49.º;

2 - As contraordenações previstas no número anterior são puníveis com as seguintes coimas:

a) No caso das contraordenações previstas nas alíneas f) e s) do número anterior, qualificadas como 'leves', coima de valor entre:

i) (euro) 150 e (euro) 1500, no caso de pessoas singulares; e

ii) (euro) 500 e (euro) 5000, no caso de pessoas coletivas;

b) No caso das contraordenações previstas nas alíneas a) a e), g), j) a l), n), o), r), v) e x) a bb) do número anterior, qualificadas como 'graves', coima de valor entre:

i) (euro) 500 (euro) e (euro) 5000, no caso de pessoas singulares; e

ii) (euro) 2500 (euro) e (euro) 25 000, no caso de pessoas coletivas;

(…)

(…)

3 - A tentativa é punível nas contraordenações qualificadas como «muito graves» e «graves», nos termos das alíneas b) e c) do número anterior.

4 - A negligência é sempre punível, sendo os limites mínimos e máximos da respetiva coima reduzidos a metade.

…)».

    Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, representa como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime, actuando sem se conformar com essa realização; ou não chega, sequer, a representar a possibilidade de realização do facto (artigo 15.º do Código Penal).

    Na modalidade de negligência consciente o agente admite e prevê como possível a realização da condutatípica, confiando que a mesma se não vai realizar, quando podia e devia não confiar. Porém não se conforma com a produção do resultado típico.Na modalidade da negligência inconsciente o agente não prevê, como podia e devia fazê-lo, a realização do facto típico.

     Ora, no caso dos autos, resulta provado que no dia 1 de Junho de 2021, pelas 9h25, agentes da Polícia Municipal de Aveiro deslocaram-se aos prédios rústicos com os artigos matriciais n.ºs ...49 e ...51, sitos na Rua ..., freguesia ..., propriedade da arguida A..., LDA.

    Uma vez nos prédios rústicos supra aludidos, os agentes da Polícia Municipal de Aveiro constataram que tais prédios rústicos confinam com edifício industrial, sendo que numa faixa com largura mínima não inferior a 50 metros - medida a partir da alvenaria exterior do edifício – ali então existiam árvores de eucalipto e pinheiro bravo, sem que se verificasse a distância mínima de 10 metros entre as copas das árvores ali existentes e sem que se tivesse procedido à desramação em pelo menos 50% da altura de tais árvores que atingiam os 8 metros ou um mínimo de 4 metros de desramação nas árvores ali existentes de altura superior aos 8 metros.

     Mais se provou que ao não garantir a distância mínima de 10 metros entre as copas das árvores e a realização dos trabalhos de desramação das árvores de eucalipto e pinheiro bravo existentes numa faixa com largura mínima não inferior a 50 metros - medida a partir da alvenaria exterior do edifício - a arguida não agiu com a prudência e diligência que lhe eram exigíveis e de que era capaz, revelando falta de cuidado que podia e devia ter tido para evitar o incumprimento da obrigação a que estava sujeita, resultado que, de igual modo, podia e devia ter previsto, mas nem sequer previu, não podendo deixar de saber que o incumprimento das obrigações legais a poderia fazer incorrer em responsabilidade por factos ilícitos de natureza contraordenacional.

    Ora, considerando os factos provados, dúvidas não nos restam quanto ao preenchimento dos elementos objectivos e subjectivo do ilícito contraordenacional em apreço, tendo a arguida actuada com negligência inconsciente.

    Não se verificando qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, estando em causa actuação verificada não a título doloso, mas antes negligente, não pode deixar de manter-se a condenação.

    Com efeito, apesar de a arguida sustentar que deu cumprimento ao seu dever legal de “gestão de combustível”, fazendo apelo à definição prevista no artigo 3.º, n.º1, al. r) do Decreto-Lei n.º 124/2006, de 28 de Junho - ali se prevendo que consiste na “criação e manutenção da descontinuidade horizontal e vertical da carga combustível nos espaços rurais, através da modificação ou da remoção parcial ou total da biomassa vegetal, nomeadamente por pastoreio, corte e ou remoção, empregando as técnicas mais recomendadas com a intensidade e frequência adequadas à satisfação dos objetivos dos espaços intervencionados” – sustentando que cortou, limpou e removeu a biomassa vegetal nos terrenos de que é proprietária, omitiu parte das suas obrigações de acordo com os critérios previstos no Anexo ao aludido diploma, dado que ali se prevê de forma expressa que, no estrato arbóreo, estando em causa povoamentos de pinheiro bravo e eucalipto, como acontecia no caso dos autos, a distância entre as copas das árvores deveria ser no mínimo de 10 metros, devendo estar desramadas em 50 % da sua altura até que esta atinja os 8 m, altura a partir da qual a desramação deveria alcançar no mínimo 4 m acima do solo.

    Tendo o Decreto-Lei n.º 124/2006, de 28 de Junho sido revogado pelo Decreto-Lei n.º 82/2021, de 13 de Outubro, resulta claramente do supra exposto que a conduta em causa nestes autos continuou a ser punível à luz do pelo Decreto-Lei n.º 82/2021, de 13 de Outubro, sendo o sancionamento previsto neste diploma claramente mais favorável, desde logo considerando as molduras aplicáveis (no diploma de 2006 de (euro) 1500 a (euro) 60 000 e no diploma de 2021 de (euro) 500 e (euro) 5000, no caso de pessoas coletivas e com limite mínimo e máximo reduzido a metade no caso da negligência, importando pois, ainda, atentar no disposto no artigo 3.º do RGCO quanto à aplicação da lei mais favorável.


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Da determinação da medida da coima

    Sendo de manter a condenação da arguida, importa ora aferir da justeza da concreta sanção a aplicar.

    Quanto à determinação da medida da coima, decorre do disposto no artigo 18.º do RGCO que esta se faz em função da gravidade da contraordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contraordenação, sendo que no caso em apreço a coima aplicável situou-se muito próxima do mínimo legal e, atenta a gravidade da contraordenação em causa (conforme se salienta em sede de decisão administrativa, podendo colocar em risco infraestruturas/edificações, obrigando à alocação de meios de combate, para proteção de tais infraestruturas, com prejuízo da mobilização de meios para o combate do próprio incêndio florestal, com consequente aumento da perda de recursos naturais tantas vezes insubstituíveis) e reposição da legalidade efectuada pela arguida (que procedeu até ao abate das árvores), considera-se estar em causa coima adequada e suficiente, nenhuma norma legal tendo sido violada na sua fixação, pelo que importa manter a coima aplicada.


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      Não sendo a decisão ora proferida favorável à arguida, responde esta pelas respectivas custas (cfr. artigos 93º, n.ºs 3 e 4 e 94.º n.º3, ambos do RGCO), fixando-se a taxa de justiça a pagar pela recorrente e a acrescerà taxa de justiça já paga pela interposição do recurso –atenta a complexidade dos presentes autos–em uma unidade de conta e meia (cfr. artigo8.º do RCP e Tabela III Anexa) “.

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Apreciação do recurso

1ª questão: da insuficiência para a decisão (de manutenção da condenação) da matéria de facto provada (art. 410º nº 2 a) do CPP).

     A recorrente alega que a factualidade dada como provada é insuficiente para a manutenção da decisão de condenação uma vez que a decisão administrativa é nula por não ter respeitado o disposto no art. 58º nº 1 b) do RGCO por dela não constarem descritos os factos concretos que preenchem o tipo objetivo da infração contraordenacional por que vem condenada, p. e p. pelo art. 15º nº 2 a) do D.L. nº 124/2006 de 28([2]) de junho e respetivo Anexo, limitando-se a reproduzir de uma forma genérica e abstrata o que se encontra estipulado na citada norma, não fazendo a sua aplicação à situação de facto em causa nestes autos.

     Concretizando, diz que nem no auto de notícia elaborado pela Divisão da Polícia Municipal de Aveiro, nem na decisão administrativa, estão indicadas as medidas concretamente verificadas pelos Srs. agentes da polícia municipal, para se poder afirmar que a recorrente não cumpre com a distância entre copas das árvores que deve ser no mínimo de 10 metros num terreno povoado com pinheiro bravo e eucalipto, por confronto com a norma legal prevista nos arts. 15º nº 2 a) do D.L. nº 124/2006 de 28 de junho na sua redação atual e respetivo Anexo e ainda que inexiste qualquer documento de prova, registo fotográfico ou planta topográfica que sustente que não cumpriram “… nem com a largura não inferior a 50 m , medida a partir da alvenaria exterior do edifício, sempre que esta faixa abranja terrenos ocupados com floresta, matos ou pastagens naturais; “, porque a indicação das provas obtidas não se basta com um registo fotográfico retirado da internet em que apenas é legível a indicação do local, encontrando-se desfocada a data dos aludidos registos fotográficos, sob pena de qualquer registo fotográfico servir para condenar qualquer pessoa.

     Em seu entender, a prova documental que sustenta a condenação da prática da infração deve ser subsumível aos elementos objetivos da infração, o que não sucede na presente situação.

     Cumpre decidir.

     O art. 58º do RGCO que dispõe sobre os requisitos que devem constar, oficiosamente, da decisão condenatória (obrigatoriamente na forma escrita, no âmbito do processo administrativo, por forma que seja passível de controlo jurisdicional impulsionado pelo arguido) prescreve no seu nº 1 b), que a decisão que aplica uma coima ou sanções acessórias deve conter a descrição  dos factos ou omissões contraordenacionais dados como provados (e imputados), incluindo a data da infração e os factos que consubstanciam o dolo ou a negligência, com indicação das provas obtidas.

     Como se menciona no Ac. do STJ de 21/09/2006([3]), “Para saber quais são os «factos imputados» cuja descrição se pede à decisão condenatória, há que fazer apelo ao art. 283º nº 3 al. b) do CPP, aplicável subsidiariamente ao processo de contra-ordenações (art. 41º nº 1 do RGCC): só situando no espaço, no tempo e no modo de execução, incluindo neste último os aspectos activo (ou passivo) e volitivo, se pode descrever uma acção ou omissão com virtualidade para ser punida pelo direito penal ou contra-ordenacional “.

     Na mesmo sentido pronunciou-se o Ac. do STJ de 06/11/2008([4]) dizendo que “Uma imputação de factos tem de ser precisa e não genérica, concreta e não conclusiva, recortando com nitidez os factos que são relevantes para caracterizarem o comportamento contra-ordenacional, incluindo as circunstâncias de tempo e de lugar “.

       A arguida sustenta que na descrição dos factos não se identifica um único facto, pois todas as palavras que aí constam são vagas, conclusivas ou mera reprodução genérica e abstrata de expressões legais constantes do art. 15 nº 2 a) do D.L. nº 124/2006 de 28 de junho([5]), não se indicando nem no auto de notícia, nem na decisão administrativa as medidas concretamente verificadas na situação concreta dos autos.

        Ou seja, a arguida pretendia que a descrição dos factos incluísse as concretas distâncias verificadas (pelos Srs. agentes da polícia municipal) entre as copas das árvores (pinheiros bravos e eucaliptos) e, considerando a sua altura, a medida do início da ramagem, contada a partir do solo, no terreno de que é proprietária, inscrito na matriz predial rústica de Aveiro sob os nºs ...49 e ...51, sito na Rua ..., freguesia ..., concelho de Aveiro.  

         O D.L. nº 124/2006 de 28 de junho estabelece um conjunto de medidas e ações a desenvolver no âmbito do Sistema Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios, dizendo-se no seu preâmbulo, entre o mais, que “A política de defesa da floresta contra incêndios, pela sua vital importância para o País, não pode ser implementada de forma isolada, mas antes inserindo-se num contexto mais alargado de ambiente e ordenamento do território, de desenvolvimento rural e de protecção civil, envolvendo responsabilidades de todos, Governo, autarquias e cidadãos, no desenvolvimento de uma maior transversalidade e convergência de esforços de todas as partes envolvidas, de forma directa ou indirecta “.
          Estabelece-se no seu art. 12º([6]) que:
 “1 - As redes regionais de defesa da floresta contra incêndios (RDFCI) concretizam territorialmente, de forma coordenada, a infra-estruturação dos espaços rurais decorrente da estratégia do planeamento regional de defesa da floresta contra incêndios.
2 - As RDFCI integram as seguintes componentes:
a) Redes de faixas de gestão de combustível;”.

          O art. 13º dispõe que:
“1 - A gestão dos combustíveis existentes nos espaços rurais é realizada através de faixas e de parcelas, situadas em locais estratégicos para a prossecução de determinadas funções, onde se procede à modificação e à remoção total ou parcial da biomassa presente.
2 - As faixas de gestão de combustível constituem redes primárias, secundárias e terciárias, tendo em consideração as funções que podem desempenhar, designadamente:
a) Função de diminuição da superfície percorrida por grandes incêndios, permitindo e facilitando uma intervenção directa de combate ao fogo; “.
b) Função de redução dos efeitos da passagem de incêndios, protegendo de forma passiva vias de comunicação, infra-estruturas e equipamentos sociais, zonas edificadas e povoamentos florestais de valor especial;
c) Função de isolamento de potenciais focos de ignição de incêndios “.
        Estas normas devem ler-se em articulação com o disposto no art. 3º do referido diploma que tem por epígrafe «Definições», constando da alínea r) a definição de «gestão de combustível»: “a criação e manutenção da descontinuidade horizontal e vertical da carga combustível nos espaços rurais, através da modificação ou da remoção parcial ou total da biomassa vegetal, nomeadamente por pastoreio, corte e ou remoção, empregando as técnicas mais recomendadas com a intensidade e frequência adequadas à satisfação dos objetivos dos espaços intervencionados;”.

        Os referidos trabalhos de «gestão de combustível» devem realizar-se, de acordo com o nº 3 do art. 15º do D.L. nº 124/2006 de 28 de junho, “entre o final do período crítico do ano anterior e 30 de abril de cada ano”, prazo este que foi prorrogado até 15 de maio de 2021 pelo nº 1 do art. 35º-C do D.L. nº 22-A/2021 de 17 de março.
        Prescreve o 15º nº 2 do referido diploma, norma infringida pela aqui arguida e recorrente, que “2 - Os proprietários, arrendatários, usufrutuários ou entidades que, a qualquer título, detenham terrenos confinantes a edificações, designadamente habitações, estaleiros, armazéns, oficinas, fábricas ou outros equipamentos, são obrigados a proceder à gestão de combustível numa faixa de 50 m à volta daquelas edificações ou instalações medida a partir da alvenaria exterior da edificação, de acordo com as normas constantes no anexo do presente decreto-lei e que dele faz parte integrante “.
          O nº 19 do art. 15º estipula que “Nas superfícies a submeter a gestão de combustível são aplicados os critérios definidos no anexo do presente decreto-lei e que dele faz parte integrante”.

          O aludido Anexo, estabelece no seu nº 1 que:

Para efeitos de gestão de combustíveis no âmbito das redes secundárias de gestão de combustível envolventes aos edifícios, aglomerados populacionais, equipamentos e infraestruturas, aos estratos arbóreos, arbustivos e subarbustivos, não integrados em áreas agrícolas, com exceção das áreas de pousio e de pastagens permanentes, ou de jardim, aplicam-se os seguintes critérios:
a) No estrato arbóreo a distância entre as copas das árvores deve ser no mínimo de 10 m nos povoamentos de pinheiro bravo e eucalipto, devendo estar desramadas em 50 /prct. da sua altura até que esta atinja os 8 m, altura a partir da qual a desramação deve alcançar no mínimo 4 m acima do solo; “.

        A infração a estas normas (art. 15º nº 2 e nº 1 a) do Anexo) é punível, nos termos do art. 38º nº 1 do mesmo diploma legal, com coima de € 800,00 a € 60.000,00 no caso de pessoa coletiva.

       De acordo com a definição do art. 1º do RGCO, contra-ordenação é o facto ilícito e censurável que realiza um tipo legal no qual se comina uma coima.

         Para que alguém possa ser responsável pela prática de uma contraordenação, é necessário que o facto praticado seja típico, ilícito e censurável a título de dolo ou negligência – cfr. art. 8º do RGCO – e projetável numa moldura de coima previamente definida na estatuição típica.

         A decisão final da autoridade administrativa que aplica uma coima deve conter o relato dos factos (ações ou omissões contraordenacionais) integradores dos elementos objetivo e subjetivo da contraordenação (para além da indicação dos meios de prova em que se estribam tais factos, a qualificação jurídica dos mesmos, as sanções aplicáveis e o prazo para a apresentação da defesa).

         O nº 3 b) do art. 283º do CPP aplicável ex vi do art. 41º nº 1 do RGCO, exige, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, sendo, neste caso, de uma coima, incluindo se possível, o lugar, o tempo, e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e as circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada, tratando-se de facto doloso; estando em causa ação ou omissão negligente, a descrição da ação ou omissão objetivamente violadora do dever objetivo de cuidado adequados à produção do resultado que se pretende evitar através da conduta adequada à observância do dever objetivo de cuidado.

        Como se adverte no Ac. da R.G. de 17/10/2023([7]) “ (…) «a descrição dos factos imputados» a que se reporta o art. 58º nº 1 b) do RGCO, de todos eles, sejam os que sustentam a conduta típica objetiva sejam os que se reportam à culpa do infrator (atuação a título de dolo ou negligência), deve ser operada de modo preciso e concreto, não bastando a alegação genérica, conclusiva ou meramente reprodutora de conceitos jurídicos, porquanto só dessa forma se asseguram as garantias mínimas de defesa constitucionalmente consagradas (art. 32º, nº 10 da Constituição da República Portuguesa), na medida em que sem o conhecimento pelo arguido dos concretos factos imputados poderá ser colocada em crise a avaliação a operar pelos destinatários da decisão e demais membros comunitários sobre a justiça da condenação, o inerente direito ao recurso e, em última instância, a salvaguarda do ne bis in idem  “ – destacado nosso; e no Ac. da R.E. de 27/03/2012([8]), “Esses factos deviam constar da decisão da autoridade administrativa (equivalente à "acusação") e, não constando, não podem ser levados à sentença da primeira instância (como o foram), sob pena de violação do princípio do acusatório”.

    No caso presente, o delito contraordenacional consubstancia-se na violação ao disposto no art. 15º nº 2 a) do D.L. nº 124/2006 de 28 de junho (na redação da Lei nº 76/2017 de 17 de agosto, vigente em 01/06/2021), visto que os referidos trabalhos de gestão de combustível devem realizar-se no prazo previsto no supra aludido nº 3 do art. 15º, prorrogado até 15 de maio de 2021 pelo nº 1 do art. 35º-C do D.L. nº 22-A/2021 de 17 de março.

         Essa violação traduz-se em factos, em acontecimentos da vida real/eventos materiais e concretos e quaisquer mudanças operadas no mundo exterior([9]), apreensíveis pelos sentidos, verificados em situação de contrariedade à imposição legal prevista na norma do nº 2 a) do art. 15º.  

          A dita contraordenação foi constatada no caso destes autos, pelos agentes fiscalizadores da Divisão da Polícia Municipal de Aveiro na deslocação que fizeram até aos terrenos de que a recorrente é proprietária no dia 01 de junho de 2021, pelas 14.30 horas, ou seja, já após a data limite concedida aos proprietários para procederem à «gestão do combustível».

         Pode ler-se no ponto 5 da decisão administrativa no segmento onde se faz o elenco dos factos considerados como provados (verificados e testemunhados pelos militares), o seguinte:

b. Assim, no dia 01 de junho de 2021, pelas 14.30 horas, os elementos da Divisão da Polícia Municipal e Fiscalização da Câmara Municipal de Aveiro deslocaram-se à Zona Industrial ..., Rua ..., freguesia ..., concelho de Aveiro, verificaram que o(a) arguido(a) proprietário(a) do prédio rústico em causa, não procedeu à gestão de combustível numa faixa com largura mínima não inferior a 50 m, medida a partir da alvenaria exterior dos edifícios, infringindo assim o estipulado na alínea a) do nº 2 conjugado com o nº 19, ambos do artigo 15 do SNDFCI.

c. Em concreto, verificou-se o desrespeito do disposto no Anexo do SNDFCI, que estabelece que, para efeitos de gestão de combustível no âmbito das redes secundárias de gestão de combustível envolventes aos edifícios, se aplicam os seguintes critérios:

 i) No estrato arbóreo de povoamentos de eucalipto e pinheiro-bravo, a distância entre as copas das árvores deve ser no mínimo de 10 m, devendo estar desramadas em 50% da sua altura até que estas atinjam os 8 m, altura a partir da qual a desramação deve alcançar no mínimo 4 m acima do solo”.

         Podemos concordar, que a forma como se descreve a “factualidade” integradora da violação da norma em questão imputada à arguida não é a mais feliz, sendo algo conclusiva, conclusão essa que poderia extrair-se da constatação, no local, de que a distância entre as copas de eucaliptos e pinheiros-bravos ou simplesmente inexistia (formando no seu conjunto uma massa arbórea densa, compacta, sem qualquer espaço aéreo livre entre si) ou pelo menos formava um intervalo variável numa escala que poderia ir de 1 metro a 9, 9 metros, mas sempre inferior a 10.

          Ou seja, a imputação do desrespeito à norma não é feita a partir de valores/medições concretos(as) verificado/as no local entre as copas de eucaliptos e pinheiros-bravos  (como pretende a arguida recorrente), pelo menos em média (já que seria tarefa mais ou menos árdua, dependendo da extensão do prédio rústico, para os agentes fiscalizadores fazer medições entre as copas de todos os elementos arbóreos ali existentes).

          Mas dessa afirmação ainda que genérica e conclusiva, retira-se claramente que a distância verificada entre as copas de eucaliptos e pinheiros-bravos que povoam o terreno propriedade da recorrente era inferior aos exigidos 10 metros.

          É esta a situação de facto proibida pelo elemento objetivo da norma, a realidade que se pretende evitar, para melhor defender as florestas contra incêndios nas duas dimensões de defesa das pessoas e dos bens e da defesa dos recursos naturais, “envolvendo responsabilidades de todos, Governo, autarquias e cidadãos, no desenvolvimento de uma maior transversalidade e convergência de esforços de todas as partes envolvidas, de forma directa ou indirecta”, como consta do preâmbulo do D.L. nº 124/2006 de 28/06.

           Aliás, no âmbito do direito de audiência e defesa nos termos do art. 50º do RGCO (cfr. ainda art. 32º nº 10 da CRP), a arguida havia alegado que a imputação que lhe é feita, “lhe transfere a tarefa, vedada, de sondar nas entrelinhas quais os concretos factos ilícitos que se diz terem sido cometidos, os concretos e muito claros factos em que incorreu…”por a alegada descrição dos factos não passar de um bloco de afirmações genéricas e difusas, sem conexão evidente com a realidade do terreno e do prédio confinante.

         Porém, não corresponde à realidade que a arguida desconheça, de todo, quais os concretos factos ilícitos objetivos, que lhe são imputados e fundamentam a sua condenação.

        Com efeito, perante aquela alegação da arguida, a autoridade administrativa demonstrando ter levado em conta a defesa apresentada, fez constar, no aludido ponto 5 da decisão condenatória (segmento que contém o elenco dos factos considerados como provados), na sua alínea h., que “(…) não se tratando de uma mera suposição por parte da participante, uma vez que a infração é verificada pela participante e testemunha, uma vez que as copas das árvores florestais se tocam, o que consubstancia efetivamente a infração, o que se verifica simultaneamente nos registos fotográficos que complementam a própria defesa do arguido “. E na alínea j. acrescenta” (…) ora, as copas das árvores (eucalipto e pinheiro-bravo) devem estar distas entre si, a uma distância de pelo menos 10 metros, o que não se verificava na altura da fiscalização produzida, tendo sido essa de facto a infração verificada”.  Diz ainda na alínea k.: “De igual modo, a infração que sustenta o auto de notícia por contraordenação é verificada nos registos fotográficos que complementam a defesa do arguido, em concreto, os registos fotográficos nº 1, nº 3, nº 4, nº 5 e nº 6, onde se verifica que as copas dos eucaliptos e pinheiro-bravo do prédio rústico do arguido, se tocam entre si, não existindo qualquer dúvida, respeitante à existência concreta e objetiva da infração”.

          Em resumo, teria melhor agradado à arguida recorrente que a autoridade administrativa, no ponto 5 dos factos provados, alínea b., em vez do que disse e consta supratranscrito, tivesse dito o seguinte: “Assim, no dia 01 de junho de 2021, pelas 14.30 horas, os elementos da Divisão da Polícia Municipal e Fiscalização da Câmara Municipal de Aveiro deslocaram-se à Zona Industrial ..., Rua ..., freguesia ..., concelho de Aveiro, verificaram que o(a) arguido(a) proprietário(a) do prédio rústico em causa, povoado com pinheiro-bravo e eucalipto, mantinha as copas dos eucaliptos e pinheiro-bravo do referido prédio, tocando-se entre si, numa largura não inferior a 50 metros, medida a partir da alvenaria exterior dos edifícios, infringindo assim o estipulado na alínea a) do nº 2 conjugado com o nº 19, ambos do artigo 15 do SNDFCI”.

        Mas apesar de não ter sido redigido desta forma, o certo é que nas alíneas h., j. e k. do segmento identificado pelo ponto 5., intitulado “…consideram-se como provados os seguintes factos”, consta a descrição factual completa do elemento objetivo do ilícito contraordenacional imputado à arguida recorrente, assim  delimitando o objeto do processo, pelo que carece de qualquer fundamento a arguição de nulidade da decisão administrativa por suposto desrespeito do que vem estipulado no art. 58º do RGCO, nomeadamente, no seu nº 1 b), primeira parte.

        Vejamos agora o que consta da decisão proferida em 1ª Instância aqui sob recurso.

        No que concerne aos elementos constitutivos da infração, a Sra. Juiz a quo fez constar do despacho-sentença a seguinte matéria de facto dada como provada:

1. No dia 1 de Junho de 2021, pelas 9h25, agentes da Polícia Municipal de Aveiro deslocaram-se aos prédios rústicos com os artigos matriciais n.ºs ...49 e ...51, sitos na Rua ..., freguesia ..., propriedade da arguida A..., LDA.

2. Uma vez nos prédios rústicos aludidos em 1), os agentes da Polícia Municipal de Aveiro constataram que tais prédios rústicos confinam com edifício industrial, sendo que numa faixa com largura mínima não inferior a 50 metros - medida a partir da alvenaria exterior do edifício – ali então existiam árvores de eucalipto e pinheiro bravo, sem que se verificasse a distância mínima de 10 metros entre as copas das árvores ali existentes e sem que se tivesse procedido à desramação em pelo menos 50% da altura de tais árvores que atingiam os 8 metros ou um mínimo de 4 metros de desramação nas árvores ali existentes de altura superior aos 8 metros.

3. Ao não garantir a distância mínima de 10 metros entre as copas das árvores e a realização dos trabalhos de desramação das árvores de eucalipto e pinheiro bravo existentes numa faixa com largura mínima não inferior a 50 metros - medida a partir da alvenaria exterior do edifício - a arguida não agiu com a prudência e diligência que lhe eram exigíveis e de que era capaz, revelando falta de cuidado que podia e devia ter tido para evitar o incumprimento da obrigação a que estava sujeita, resultado que, de igual modo, podia e devia ter previsto, mas nem sequer previu, não podendo deixar de saber que o incumprimento das obrigações legais a poderia fazer incorrer em responsabilidade por factos ilícitos de natureza contraordenacional” – sublinhado da nossa autoria.

       Os vícios decisórios previstos no nº 2 do art. 410º do CPP (a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e c) o erro notório na apreciação da prova) consistem em defeitos estruturais da decisão final condenatória que aplica ou mantém a coima (e não do julgamento, que no caso não houve) e, por isso, a sua evidenciação, como dispõe a lei, só pode resultar do texto da decisão, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum([10]),e nunca em conjugação desta com o que consta de outros locais do processo; dito de outro modo, no que concerne à verificação dos referidos vícios decisórios, o texto da decisão recorrida deve ser autossuficiente.

        A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – art. 410º nº 2 a) do CPP – é um vício que ocorre quando a matéria de facto provada é insuficiente para a decisão de direito proferida (no caso presente, de manutenção da condenação da recorrente pela autoria material da contraordenação p. e p. pelos arts. 15º nºs 2 a) e 19, 38º nºs 1 e 2 a), 3 e 4 do D.L. nº 124/2006 de 28 de junho), o que sucede quando o tribunal recorrido deixou de apurar matéria de facto que lhe cabia apurar dentro do objeto do processo, tal como está circunscrito pela acusação e pela defesa([11]), ou, dito de outro modo, quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição([12]), ou ainda quando, após o julgamento, os factos colhidos não consentem, quer na sua objetividade, quer na sua subjetividade, dar o ilícito como provado([13]).

          Tendo presentes os elementos constitutivos da contraordenação imputada à arguida, verificamos que mais nenhum facto com interesse para a decisão jurídica adotada nos termos em que o foi, era necessário ter sido indagado.  

          Do elenco dos factos descritos no despacho-sentença, não se deteta, do ponto de vista do preenchimento do elemento objetivo da infração contraordenacional, qualquer lacuna de factos que careçam de ser descritos (por poderem e deverem ser indagados) para fundamentar a solução de direito encontrada, necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação ou absolvição da recorrente (art. 410º nº 2 a) do CPP aplicável ex vi do art. 41º nº 1 do RGCO).

          O que acaba de dizer-se vale também quanto ao elemento subjetivo da infração, já que todos são necessários para a preencher (cfr. arts. 1º e 8º nº 1 do RGCO) e fundamentar a condenação.

          As situações de negligência dos proprietários dos terrenos ocupados com eucaliptos e pinheiros-bravos que confinam com edifícios inseridos em espaços rurais configura-se quando, numa faixa de largura não inferior a 50 m, medida a partir da alvenaria exterior do edifício, permitem, para além do marco temporal previsto no art. 15º nº 3 do D.L. nº 124/2006 de 28/06 na redação da Lei nº 76/2017 de 17 de agosto com a prorrogação prevista no art. 35º-C nº 1do D.L. nº 22-A/2021 de 17 de março,  que as copas das referidas árvores distem menos de 10 metros umas das outras ou até que inexista qualquer intervalo entre umas e outras, formando todas uma massa arbórea única, compacta e também não procedam à desramação dessas árvores em 50% da sua altura até que esta atinja os 8 metros, altura a partir da qual a desramação deve alcançar no mínimo 4 m acima do solo.

         Os factos internos relativos à intenção criminosa nas contraordenações dolosas, ou à violação do dever objetivo de cuidado nos casos especialmente previstos na lei em caso de negligência (no caso presente, prevista no art. 38º nº 4 do D.L. nº 124/2006 de 28 de junho) na normalidade das situações, não resultam provados através de prova direta, mas de prova indiciária. É da prova de factos materiais e objetivos (factos indiciários) que não fazendo parte dos concretos factos integradores da infração que o tribunal, por inferência, no respeito das regras da lógica e da experiência comum, dará ou não como provados os factos integradores do tipo subjetivo.

        Dito de outro modo, para se concluir que o agente violou algum dever de cuidado a que estava obrigado é algo a que se chega partindo apenas dos factos objetivos, sem atender a algum facto subjetivo.

        Na decisão em apreço nos nºs 1 e 2 dos factos provados vêm descritos factos objetivos de onde pode retirar-se a conclusão de que os legais representantes da arguida violaram deveres de cuidado a que estavam obrigados e, consequentemente, atuaram com negligência inconsciente.

        Encontram-se, pois, (também) descritos os factos integradores do elemento subjetivo da infração.

         Por último, constata-se que na decisão condenatória da autoridade administrativa, também foi feita referência à negligência da arguida aqui recorrente na alínea w. do ponto 5, ainda que de forma imperfeita:” Com a conduta descrita, o(a) arguido(a), revelou desatenção e irrefletida inobservância das normas no âmbito do Sistema de Defesa da Floresta contra Incêndios, atuando com manifesta falta de cuidado e prudência que a defesa da floresta contra incêndios no momento se lhe impunha, agindo de forma livre e consciente, não se avistando factos que retirem a censurabilidade à contraordenação realizada”.

         Como bem se refere no segmento motivação da decisão de facto no despacho-sentença recorrido, “importa notar que, considerando os graves incêndios que assolaram o país em 2017 e 2018, foram amplamente divulgadas as normas legais relativas às obrigações que impendem sobre os proprietários dos terrenos, mormente ao nível da “limpeza dos terrenos” e necessária gestão de combustível, bem como quanto às eventuais consequências de essas obrigações não serem cumpridas, com os órgãos de comunicação social a noticiarem operações de fiscalização e de sensibilização, pelo que, agindo com a normal diligência, naturalmente, a arguida não poderia deixar de, antes de para o efeito ter sido (como foi) interpelada, cumprir as exigências legais quanto à distância das copas e à desramação “.

        Pelo exposto, sendo suficientes os factos descritos para integrar os elementos constitutivos contraordenação imputada à arguida, não ocorre o apontado vício do art. 410º nº2 a) do CPP – a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

        Improcede, pelo exposto, este primeiro fundamento do recurso.


*

2ª questão: o erro notório na apreciação da prova.

         A recorrente alega que a decisão recorrida enferma do vício decisório do erro notório na apreciação da prova, embora nem no corpo da motivação e, logicamente nas conclusões que dela extraiu, fundamente esta sua alegação.

        No corpo da motivação alega apenas que a decisão administrativa incumpre o disposto no art. 58º nº 1 b) segunda parte, do RGCO porque, em seu entender, não se basta com um registo fotográfico retirado da internet em que apenas é legível a indicação do local, encontrando-se desfocada a data dos registos fotográficos, sob pena de qualquer registo fotográfico servir para condenar qualquer pessoa. Afirma a arguida que se exige que a prova documental que (no caso presente) sustenta a condenação da prática da infração seja subsumível aos elementos objetivos da infração, o que não se verifica no caso concreto dos autos, sendo também por este motivo nula a decisão administrativa.

         Também nesta parte carece de razão a recorrente.

         Desde logo porque, o vício do erro notório na apreciação da prova deve resultar do texto da decisão recorrida por si só ou em conjugação com as regras da experiência e não por contraposição entre a decisão e o que consta de outros locais do processo, nomeadamente dos registos fotográficos juntos aos autos alegadamente com a data desfocada, visto tratar-se de um vício inerente à decisão, à sua estrutura interna e não ao erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida.

        O vício decisório do erro notório da apreciação da prova (art. 410º nº 2 c) do CPP), consiste num vício de raciocínio na apreciação das provas, que se apresenta como evidente aos olhos do homem médio. Trata-se de uma tomada de decisão desconforme ao que efetivamente se provou ou não provou, ou de uma decisão que dá como provado o que não podia.
        Ilustrando o que acaba de dizer-se, incorre em erro notório na apreciação da prova, uma decisão que viole as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis ou que, contra dados do conhecimento público generalizado, se emita um juízo sobre a verificação ou não de certa matéria de facto e se torne incontestável a existência de tal erro de julgamento sobre a prova produzida; é o que acontece, respetivamente, quando, por forma manifesta e sem adequada justificação, se dá como não provada matéria constante de documento com força probatória plena sem que o mesmo tenha sido arguido de falso, ou quando se afirme como existente ou inexistente um facto, que seja do conhecimento público não se ter ou se ter produzido([14]).
        Conforme decidiu o Ac. da R.P. de 14/09/2023([15]) verifica-se o invocado vício, quando «no texto e no contexto da decisão recorrida,…existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza  uma apreciação manifestamente ilógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável([16])…e essa «incongruência   há-de resultar de uma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revele, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas, apreciada não por simples projeções de probabilidade, mas segundo as regras da experiência comum».
        No caso presente, percorrendo o texto da decisão recorrida sem o recurso a elementos a ela externos, verificamos que nenhuma das apontadas situações ocorre; da análise crítica do conjunto da prova produzida, em lado nenhum se detetam raciocínios ilógicos, arbitrários ou que com toda a evidência atentem contra as regras da experiência comum.

        Conforme se pode ler no segmento Motivação da decisão da matéria de facto vertida no despacho- sentença ora impugnado, “(…). Ora, apesar do alegado pela arguida, não só os agentes da polícia municipal constataram em 1 de Junho de 2021 (pelas 9h25) que numa faixa com largura não inferior a 50 metros (medida a partir da alvenaria exterior do edifício) existiam árvores de eucalipto e pinheiro bravo com copas que distavam entre si menos de 10 metros e que não se havia procedido à desramação até metade da altura das árvores (o que é claramente visível na fotografia anexa ao auto de notícia), como, ouvido na qualidade de testemunha, AA, gerente comercial da recorrente, reconheceu que apesar de até ao final de Março todos os anos limparem o terreno e removerem os combustíveis, em deslocação ao terreno em Julho de 2021, a proprietária verificou ser necessário proceder à desramação, o que veio a fazer.

     Acresce que, na sequência do determinado pela Divisão de Apoio Jurídico da Câmara Municipal de Aveiro, a 5 de Agosto de 2021, a 31 de Agosto de 2021, em nova deslocação ao local, os agentes da polícia municipal constaram que a arguida procedeu ao abate das árvores, o que a testemunha AA confirmou, quando ouvido a 10 de Novembro de 2021.

     Importa ainda salientar que resulta dos autos que a Secção de Proteção da natureza e Ambiente da GNR de Aveiro carreou para os autos elementos dos quais resultam claras as características dos terrenos em causa e sua localização, mormente no que concerne à medição da faixa de gestão de combustível, com 50 metros de largura, medida a partir da alvenaria exterior dos edifícios inseridos em espaço rural, resultando claro das imagens produzidas com recurso a imagens aéreas do Google Hybrid, em 26 de Dezembro de 2022 e à Carta de Uso e Ocupação de Solo de Portugal Continental para 2018 da Direcção-Geral do Território, que parte da aludida fixa com 50 metros de largura, contem terreno classificado como “florestas de eucalipto”.

      Em face do exposto e considerando as diligências efectuadas, não ficou o Tribunal com qualquer dúvida, suscetível de ser resolvida a favor da arguida, quanto à que era a configuração dos terrenos a 01 de Junho de 2021 e existência na faixa de gestão de combustível de árvores que não respeitavam o legalmente previsto quanto à distância das copas e quanto à desramação; sendo que igualmente resulta da prova produzida confirmado o alegado pela arguida quanto à posterior regularização da situação e abate das árvores.

     No que concerne ao vertido em 3) importa notar que, considerando os graves incêndios que assolaram o país em 2017 e 2018, foram amplamente divulgadas as normas legais relativas às obrigações que impendem sobre os proprietários dos terrenos, mormente ao nível da “limpeza dos terrenos” e necessária gestão de combustível, bem como quanto às eventuais consequências de essas obrigações não serem cumpridas, com os órgãos de comunicação social a noticiarem operações de fiscalização e de sensibilização, pelo que, agindo com a normal diligência, naturalmente, a arguida não poderia deixar de, antes de para o efeito ter sido (como foi) interpelada, cumprir as exigências legais quanto à distância das copas e à desramação.

     Relativamente aos factos não provados, cumpre apenas dizer que não foi junta aos autos qualquer prova documental nem produzida na fase administrativa prova testemunhal que permitisse dar como provados outros factos com relevo para a decisão a proferir, para além dos que, nessa qualidade, se descreveram supra “.

        O mesmo sucede (ausência de erro notório na apreciação da prova) na decisão administrativa da qual consta expressamente que foram considerados como prova (apreciados criticamente):

- relatório fotográfico anexado ao auto de notícia, composto por 1 fotografia e a localização geográfica do prédio rústico propriedade da arguida;

- as fotografias nºs 1, 3, 4, 5 e 6, juntas pela própria recorrente com a defesa;

- o depoimento da testemunha AA, gerente comercial, arrolada pela defesa, o qual afirmou em 10/11/2021 ao ser inquirido: “A sociedade proprietária procede à limpeza do terreno e remoção integral dos combustíveis todos os anos até final de Março. Não obstante, em deslocação ao referido terreno em Julho de 2021, a proprietária verificou ser necessário proceder à desramação, o que veio a fazer a correta gestão de combustíveis ao cortar, limpar e remover biomassa vegetal na faixa de terreno à edificação ali existente. A testemunha alegou ainda que todas as árvores que se encontravam no terreno foram abatidas, encontrando-se atualmente desarborizado”;

- imagens aéreas do Google Hybrid, datadas de 26/12/2022 e Carta de Uso e Ocupação de Solo de Portugal Continental para 2018 da Direcção-Geral do território onde se verifica a inserção do terreno de propriedade da arguida em polígono classificado como «floresta de eucalipto».

      O art. 75º nº 1 do D.L. nº 82/2021 de 13 de outubro, que entrou em vigor em 01/01/2022 sem prejuízo do disposto nos nºs 2 e 3 do art. 81º, prescreve que “1 — As imagens registadas por sistemas de videovigilância, por vigilância aérea ou por outros meios de captura de imagem em meios fixos ou móveis, no âmbito da rede de vigilância e deteção de incêndios definida nos termos do artigo 55.º, podem ser usadas para efeitos de prova em processo penal ou contraordenacional, nas fases de levantamento de auto, inquérito, instrução e julgamento, ou nas fases administrativas e de recurso judicial, por órgão de polícia criminal que conduza a investigação, ou pelas autoridades judiciárias competentes “.

      Nesta medida os elementos documentais recolhidos pela Guarda Nacional Republicana podem e devem ser usados porquanto têm cabimento legal nos arts. 55º e 75º do referido diploma legal, como bem refere o MºPº na resposta.

      Também por este motivo não pode considerar-se incumprido o disposto no art. 58º nº 1 b) segunda parte do RGCO, não padecendo a decisão administrativa condenatória da invocada nulidade.

       Da leitura da decisão ora impugnada, onde foram considerados os elementos documentais e a prova pessoal  conjugada com as regras da experiência comum, facilmente se percebe que a mesma é escorreita, doutamente fundamentada e os juízos que são feitos são apreendidos pelo leitor comum, isto é, são lógicos, prudentes, não arbitrários e estribam-se nas referidas regras da experiência.

     O erro vício em apreço não tem nada a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido proferida pelo próprio recorrente([17]); ou seja, a convicção do tribunal não pode ser tida por errada apenas porque o recorrente, eventualmente, valora a prova de modo diverso, como sucede.

         Por tudo isto não se verifica o vício invocado pelo recorrente.

         Improcede, pelo exposto mais esta vertente do recurso.


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3ª questão: a (não) aplicação do instituto da dispensa da pena.

      A recorrente defende que, tendo resultado provado no despacho-sentença aqui sob recurso que “Após o dia 1 de Junho de 2021, em data concretamente não apurada mas situada antes de 31 de Agosto de 2021, a arguida veio a proceder ao abate de todas as árvores florestais adultas que existam no local aludido em 2)”, o prédio rústico da arguida deixa de ter arvoredo/floresta, não podendo tal terreno ser qualificado como um espaço florestal ou espaço rural previsto e descrito no art. 3º nº 1 h) e i) do D.L. nº 124/2006 de 28/06.

      Entende que, em consequência, deveria a recorrente ter sido dispensada de pena nos termos do art. 74º do Código Penal aplicável por força do disposto no art. 32º do RGCO, por se verificarem os requisitos previstos no nº 1, ilicitude do facto e culpa do agente diminutas; dano reparado; e a essa dispensa não se oporem razões de prevenção, o que requer que lhe seja aplicável.

        Apreciando.

        A pretensão do recorrente carece de fundamento e deve improceder por duas ordens de razões.

         Em primeiro lugar, porque não é ao Tribunal (recorrido e do mesmo passo, ao Tribunal de recurso) que compete qualificar um terreno como um espaço florestal (assim classificado segundo os critérios definidos no Inventário Florestal Nacional, como expressamente consta da norma do art. 3º alínea h) do D.L. nº 124/2006 de 28 de junho) ou um espaço rural previstos e descritos no art. 3º nº 1 alíneas h) e i) do D.L. nº 124/2006 de 28 de junho ( e posteriormente definidos no art. 3º nº 1 alíneas r) e s) do D.L. nº 82/2021 de 13/10, que revogou o D.L. nº 124/2006 de 28/06 ), apenas porque o proprietário do prédio classificado como espaço florestal (depois de ter sido fiscalizado e punido pela prática de infração contraordenacional prevista naquele diploma) procedeu ao abate integral de toda e qualquer árvore no terreno, mas a outras entidades relacionadas com a política florestal dentro do Ministério da Agricultura do Desenvolvimento Rural e das Pescas (quiçá o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas I.P. ou este organismo em conjugação com as autarquias e de acordo com os planos especiais e municipais de ordenamento do território).

     E falha também o segundo argumento invocado pela recorrente para obter uma pretensa dispensa da coima.

     Vejamos antes do mais o que prevê a lei em sede de medidas de flexibilização:

- atenuação especial prevista nos arts. 9º nº 2, 18º nº 3 e 16º nº 3 todos do RGCO (até este ponto trata-se não de sanção substituição, mas de modo de determinação da sanção abstratamente aplicável nos casos de erro censurável sobre ilicitude, de tentativa e de - cumplicidade);

- a atenuação especial do art. 18 nº 3 do RGCO é diversa do art. 73º nº 1 c) do Cód. Penal;

- a sanção de substituição, como a admoestação (por escrito) prevista no art. 51º do RGCO, é aplicável a qualquer área de contraordenação;

-  a prestação de trabalho a favor da comunidade prevista no art. 89º A do RGCO aditado pelo D.L. nº 244/95 de 14 de setembro, pressupõe que o regime jurídico de uma área contraordenacional preveja, como modo de satisfação da coima, meio diverso de pecuniae;

- o AUJ de 26/09/2018 publicado no D.R. I SÉRIE, nº 219, de 14/11/2018, decidiu que a admoestação prevista no art. 51º do RGCO não é aplicável às contraordenações graves previstas no art. 34º nº 2 do D.L. nº 78/2004 de 3 de abril (ambientais);

- no âmbito das contraordenações por infração às normas de concorrência, previstas na Lei nº 18/2003 de 11 de junho e na Lei nº 39/2006 de 25 de agosto:

 - no art. 3º sob a epígrafe «âmbito subjetivo», diz-se que: “Podem beneficiar de dispensa ou atenuação especial da coima (…)”;

- no seu art. 4º , prevê-se a  dispensa da coima;

- no art. 5º atenuação especial da coima a partir de 50%;

- no art. 6º atenuação especial da coima até 50%;

- o art. 10º rege quanto à decisão sobre o pedido de dispensa ou atenuação especial da coima.

      Aqui chegamos somos levados a concluir que a dispensa da coima não vem prevista na lei das contraordenações do sector em causa nos presentes autos, pois nem o D.L. nº 124/2006 de 28/06 na redação da Lei nº 76/2017 de 17 de agosto nem o D.L. nº 82/2021 de 13 de outubro, preveem a dispensa de coima.

       A dispensa de coima também não vem prevista no RGCO.

        Dito de outro modo, só é aplicável sanção de substituição se estiver prevista na lei da contraordenação sectorial, caso contrário só há sanção de substituição prevista no RGCO é a admoestação.

        E cremos que tanto bastava para negar provimento ao pedido formulado pela recorrente.

        Acresce ainda que o instituto da dispensa da pena previsto no Código Penal destina-se a resolver bagatelas penais([18]), pelo que na senda da recorrente teríamos aqui que considerar que a infração cometida equivale a uma “bagatela contraordenacional” e é uma espécie de admoestação, permitida apenas nos termos do art. 51º do RGCO.

        Ora no art. 38º nºs 1 e 2 a) do D.L. nº 124/2006 de 28 de junho (na redação da Lei nº 76/2017 de 17 de agosto) vigente ao tempo da prática da infração, não consta um escalão classificativo de gravidade das contraordenações - leve, grave e muito grave – e diferentes montantes das coimas aplicar, consoante essa graduação. Apenas se estabelece uma moldura de coima para as pessoas coletivas que oscila entre os € 800,00 e os € 60.000,00.

          Porém, o nº 2 do art. 3º do RGCO estabelece que “Se a lei vigente ao tempo da prática do facto for posteriormente modificada, aplicar-se-á a lei mais favorável ao arguido, salvo se este já tiver sido condenado por decisão definitiva ou transitada em julgado e já executada “.

          O D.L. nº 124/2006 de 28 de junho foi revogado pelo D.L. nº 82/2021 de 13 de outubro e a conduta da arguida violadora do disposto no seu art. 49º nºs 1 c) e 7 a), continuou a ser classificada como contraordenação, mas graduada como leve, nos termos do art. 72º nº 1 alínea f) (“1 - Sem prejuízo da responsabilidade criminal que possa resultar dos mesmos factos, nos termos da lei, constitui contraordenação a realização das seguintes ações:  f) O incumprimento dos deveres de gestão de combustível estabelecidos nos termos do nº 7 ou do nº 9 do artigo 49º;”) e punível de acordo com o disposto nesse art. 72º nº 2 alínea a) e subalínea ii) e nº 4, que dispõe:

“2 - As contraordenações previstas no número anterior são puníveis com as seguintes coimas: a) No caso das contraordenações previstas nas alíneas f), s) e u) do número anterior, qualificadas como leves, coima de valor entre:

 ii) (euro) 500 e (euro) 5000, no caso de pessoas coletivas;

4 - A negligência é sempre punível, sendo os limites mínimos e máximos da respetiva coima reduzidos a metade”.

        O que significa que a coima prevista para a infração contraordenacional cometida pela arguida a título negligente, classificada como contraordenação leve ao abrigo do D.L. nº 82/2021 de 13 de outubro, tem um limite mínimo de € 250,00 e um limite máximo de € 1.250,00.

        É assim claramente mais favorável à arguida o regime sancionatório previsto no D.L. nº 82/2021 de 13 de outubro, o qual deve ser-lhe aplicado em bloco.

        Porém, no D.L. nº 82/2021 de 13 de outubro, tal como já sucedia no domínio do D.L. nº 124/2006 de 28 de junho, não vem expressamente previsto o instituto da dispensa de pena e, por sua vez, o RGCO que regula integralmente o regime de coimas nos seus arts. 17º a 26º e no art. 51º, a admissibilidade de admoestação, não previu a dispensa de coima.

        Resta então saber se por aplicação do disposto no art. 32º do RGCO, como defende a recorrente, é possível aplicar a «Dispensa de pena» prevista no art. 74º do Código Penal às contraordenações e às coimas que lhes são cominadas.

      Quanto a esta concreta questão tem sido entendimento pacífico na jurisprudência ao longo do tempo([19]) que o instituto da dispensa de pena é privativo das infrações de natureza criminal e não extensivo às contraordenações([20]).

       Neste sentido, decidiu o Ac. da R.P. de 18/09/2002, no proc. nº 572/02, relatado por Isabel Pais Martins que “ I – A dispensa de pena é um instituto de direito penal que só vale para as penas principais de prisão ou de multa, contendo em si algo de uma pena de substituição. II – Não tendo o Regime Geral das Contra-Ordenações previsto a dispensa de coima, é esta inadmissível, tanto mais que existem obstáculos intransponíveis à aplicação subsidiária do art. 74º do CP, pois existe impossibilidade de verificação dos seus pressupostos formais no âmbito do direito de ordenação social “.

       E a propósito, o Ac. da R.E. de 06/02/2018 aqui citado em nota de rodapé, alude ao decidido no Ac. da R.C. de 15/05/2013([21]), relatado por Luís Coimbra, para o qual “A dispensa de pena prevista no artigo 74º nº 1 do CP, é um instituto do direito penal, inaplicável, por conseguinte, mesmo que adaptado, no âmbito do processo contra-ordenacional” bem como ao Ac. desta R.P. de 30/03/2011([22]), relatado por Araújo de Barros, segundo o qual “O instituto da dispensa de pena, previsto no art. 74º do Código Penal, não é correspondentemente aplicável em matéria contra-ordenacional “.

       No mesmo sentido pronunciou-se o Ac. da R.E. de 26/11/2013([23]), aí se escrevendo que  “I - O RGCO, sem prejuízo do esteja previsto no regime específico de certas classes de contra-ordenações, regula de forma exaustiva a panóplia de sanções cominadas às infracções de natureza contra-ordenacional, sem que seja necessário lançar mão, nessa matéria, da aplicação subsidiária das normas de direito criminal. II - O instituto da dispensa de pena é privativo das infracções de natureza criminal e não é extensivo às contra-ordenações “ e mais recentemente o Ac. da R.L. de 09/10/2019([24]), decidindo que “I. O instituto da dispensa de coima não é geralmente aplicável às contra-ordenações e também não às laborais por não apresentação pelo motorista das folhas do registo tacógrafo relativas ao período dos 28 dias anteriores a que alude o art.º 25.º, n.º 1, alínea a) do RPCLSS. II.  Isto porque: (i) o RGCC regula integralmente o regime de coimas nos art.os 17º a 26º e no 51.º a admissibilidade de admoestação, tal como no artº 48º do RPCLSS, mas não previu a dispensa de coima; (iii) se fosse intenção da lei permitir a dispensa de coima tê-lo-ia dito de forma expressa, como fez no caso das contra-ordenações tributárias (artº 32º nº 1 do RGIT) e até no caso de certas contra-ordenações laborais (artº 560º do CT) “.

         Não encontrando outros argumentos a acrescentar aos já expostos, concluímos ser inviável a aplicação á recorrente, no lugar da coima por que vem aqui condenada, da pretendida dispensa de coima.

          Resta então saber se lhe poderia ser aplicável uma sanção de «Admoestação» permitida pelo art. 51º do RGCO, a qual depende da verificação cumulativa da reduzida gravidade da infração e da culpa do agente, espelhados, a título meramente exemplificativo, na qualificação da infração como sendo “leve”, na atuação qualificada como negligente e na ausência de antecedentes contraordenacionais.

           Pese embora a tentativa, que saiu lograda, deste Tribunal de recurso em obter informação sobre o comportamento da recorrente anterior aos factos por que vem condenada (referência 17794978), sucede que os fatores indicados (exceção feita ao eventual passado contraordenacional da recorrente) foram sopesados pelo Tribunal a quo ao decidir manter a coima aplicada pela autoridade administrativa no valor de €800,00, entendendo que essa coima “(…) situou-se muito próxima do mínimo legal e, atenta a gravidade da contraordenação em causa (conforme se salienta em sede de decisão administrativa, podendo colocar em risco infraestruturas/edificações, obrigando à alocação de meios de combate, para proteção de tais infraestruturas, com prejuízo da mobilização de meios para o combate do próprio incêndio florestal, com consequente aumento da perda de recursos naturais tantas vezes insubstituíveis) e reposição da legalidade efectuada pela arguida (que procedeu até ao abate das árvores), considera-se estar em causa coima adequada e suficiente, nenhuma norma legal tendo sido violada na sua fixação, pelo que importa manter a coima aplicada “, coima essa que, note-se, é inferior a metade do limite máximo abstratamente aplicável ( € 1.250,00), atendendo, portanto, à qualificação da infração como “leve”, podendo afirmar-se, como no Ac. da R.E. de 06/02/2018 que “o tribunal foi tão longe quanto lhe era possível no abrandamento da reação sancionatória à conduta da arguida”, sempre sem esquecer o âmbito da intervenção do Tribunal de recurso em matéria de penas, aplicável também quanto a coimas (cfr. arts. 18º, 32º e 75º nº 1 do RGCO), elencados no Ac. da R.L. de 02/06/2022([25]): “A intervenção dos tribunais de 2ª instância na apreciação das penas fixadas pela 1ª instância deve ser parcimoniosa e cingir-se à correção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factos que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação dos fatores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de atuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não sindicar a determinação, dentro daqueles parâmetros da medida concreta da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, a desproporção da quantificação efetuada([26])([27]), ou o afastamento relevante das medidas das penas que vêm sendo fixadas pelos tribunais de recurso para casos similares([28]) “– destacado e sublinhados da nossa autoria. 

       Improcede, também neste ponto, a alegação da recorrente.


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4ª questão: a aplicação do perdão previsto na Lei nº 38-A/2023 de 02 de agosto.

       A recorrente requer ainda que lhe seja aplicado o perdão de penas e amnistia de infrações previsto na Lei nº 38-A/2023 de 02 de agosto, apesar de reconhecer ser tal Lei omissa quanto a coimas aplicadas a título principal no âmbito das contraordenações, alegando que cumpre tanto o requisito temporal como o do montante da coima aplicada, no valor de € 800,00, inferior ao valor máximo estipulado no diploma legal.

        Acrescenta ainda que a Lei nº 38-A/2023 de 02 de agosto ao prever apenas no art. 3º nº 2 a) um perdão das penas de multa até 120 dias a título principal e não prevendo esse mesmo perdão para as sanções decorrentes da prática de contraordenações sancionadas com coima a título principal, causa controvérsia e desigualdade na sua aplicação.

        Apreciando.

       O Tribunal a quo, em despacho proferido em 15/09/2023 (referência 129020387) decidiu quanto ao ora o requerido, o seguinte:

“Nos autos foi proferida sentença julgar totalmente improcedente o recurso de impugnação judicial interposto pela arguida A... LDA, mantendo a decisão proferida pela autoridade administrativa condenando esta pela prática de uma contraordenação prevista e punida pelo disposto nos artigos 15º, nº2, al.a) e 38º, nºs 1, 2, al.a), 3 e 4 do Decreto-Lei nº 124/2006, de 28 de Junho, na coima de 800,00€ (oitocentos euros).

    A arguida, para além de ter interposto recurso da sentença, veio requerer a aplicação da Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto.

    Quanto à aplicação da Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, importa dizer que, resulta expresso do disposto no artigo 5º que, estando em causa contraordenações, o perdão respeita às “sanções acessórias relativas a contraordenações cujo limite máximo de coima aplicável não exceda 1000 (euro)”, in casu não tendo sido aplicada qualquer sanção acessória, mas apenas coima, pelo que o requerido carece de fundamento legal, indeferindo-se”.

         Na resposta, o MºPº entendeu ter sido opção do legislador a não inclusão de coimas no perdão, pugnando pelo não provimento do recurso também quanto a esta questão.

        A Exmª Sra. PGA junto desta Instância recursiva acrescenta que “é reconhecido pacificamente na nossa doutrina e jurisprudência, que as leis de amnistia e perdão não são suscetíveis de interpretação extensiva. De facto, tratando-se de providências de exceção, não comportam, por essa mesma razão, aplicação analógica, tal como estatuído no artigo 11.º do Código Civil, nem tão pouco admitem interpretação extensiva ou restritiva. Assim sendo, devem as normas da referida Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto ser interpretadas nos exatos termos em que estão redigidas, com respeito pelo preceituado no artigo 9.º do Código Civil “.

        Coloca a recorrente a questão de saber se o perdão de penas e amnistia de infrações previsto na Lei nº 38-A/2023 de 02/08 é ou não aplicável ao caso dos autos e mais precisamente se as coimas relativas a contraordenação praticada até às 00.00 horas de 19 de junho de 2023, estão ou não excluídas do perdão contemplado naquele diploma legal.

         A esta questão, acrescentamos uma outra que se contém no pedido formulado pela recorrente que é a de saber se esse perdão de penas e amnistia de infrações abrange também as pessoas coletivas e os demais agentes indicados no art. 11º nº 2 do Cód. Penal.

         Os factos constitutivos da contraordenação em causa nos autos foram praticados antes das 00.00 horas do dia 19 de junho de 2023, pela sociedade comercial por quotas denominada “A... Lda.”.

         A referida Lei nº 38-A/2023 de 02 de agosto, dispõe no seu art. 1º que “A presente lei estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude”.

       O seu art. 2º, sob a epígrafe «Âmbito», estabelece que “1 - Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3º e 4º.

2 - Estão igualmente abrangidas pela presente lei as:

a) Sanções acessórias relativas a contraordenações praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 5º;

b) Sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 6º “.

       A propósito, ensina Pedro José Esteves de Brito([29]) que “a delimitação subjetiva estabelecida para as infrações e sanções penais (arts. 2º nº 1, 3º e 4º) não é aplicável às sanções acessórias relativas a contraordenações e às infrações disciplinares (cfr. arts. 5º e 6º). (…). Contudo, ao contrário do que se passa com as infrações e sanções penais, no que se refere às sanções acessórias relativas a contraordenações e às infrações disciplinares, a Lei aplica-se às infrações praticadas até à meia-noite de 18/06/2023, independentemente da idade do agente à data dos respetivos factos”.

      O referido normativo nada prevê quanto a coimas relativas a contraordenações praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023.

       E também não diz que se aplica a pessoas jurídicas (sociedades comerciais), entes coletivos e demais agentes elencados no art. 11º nº 2 do Cód. Penal.

       O art. 5º, prescreve que “São perdoadas as sanções acessórias relativas a contraordenações cujo limite máximo de coima aplicável não exceda 1000 (euro) “, sem mais, donde se poderia retirar, numa leitura apressada, que abrange as sanções acessórias aplicadas também a pessoas coletivas por contraordenações cujo limite máximo abstrato de moldura se contenha naquele valor.

        No entanto, o art. 5º é um desenvolvimento ou concretização do disposto no art. 2º nº 2 quanto a sanções acessórias relativas a contraordenações, tendo que ser interpretado em conjugação com esta norma, caso contrário não teria sentido a locução «nos termos definidos no artigo 5º» contida na parte final do nº 2 a) do art. 2º.

        O problema colocado (quanto a coimas aplicadas por contraordenação quer quanto à delimitação subjetiva/grupo de agentes abrangidos) é um problema de interpretação, cujo resultado só poderá ser de cariz declarativo, isto é, de descoberta daquele sentido normativo que, assente no texto da norma ou das normas, efetivamente corresponda ao pensamento legislativo.

      Na reconstituição do pensamento legislativo chegamos à conclusão de que o legislador ao enumerar que grupos de pessoas (singulares) e sanções são abrangidas pelo perdão nos diversos tipos de procedimentos – penal, contraordenacional, disciplinar e disciplinar militar – se quisesse nele abranger as pessoas coletivas e as coimas relativas ao processo contraordenacional, tê-lo-ia dito expressamente nas normas dos arts. 2º e 5º, e esta solução interpretativa teria a sua plena validade fundada na letra da lei.

      Cremos por isso, em primeiro lugar, que foi intenção do legislador excluir as pessoas coletivas do seu âmbito de aplicação, tanto mais que a referida Lei foi pensada e elaborada por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude. 

       Conforme ensina José de Sousa Brito([30]), “A Lei nº 38-A/2023 poderá ser classificada como Amnistia pessoal, por serem amnistiados factos típicos praticados por certa categoria de agentes (…) e como Amnistia por magnanimidade, em que são amnistiados factos por bondade e amor, por motivos festivos, por uma occasio publicae excecional, de que são exemplo, entre outras, a Lei nº 17/82, por ocasião da visita a Portugal do Papa”.  

       O STJ em diferentes ocasiões tem decidido que “A amnistia, bem como perdão, devem ser aplicados nos seus precisos limites dos diplomas que os concedem, sem ampliações nem restrições. E na determinação do sentido dos mesmos diplomas não é admitida a interpretação extensiva, restritiva ou analógica, mas sim e só a interpretação declarativa “([31]).

        Por sua vez o art. 9º do Cód. Civil dispõe no seu nº 1 que “A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada “.

       No nº 2 prescreve que “Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso “.

       Por fim, diz-se no nº 3 que “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.

       Consideramos, pois, que pensar-se como faz implicitamente a recorrente, que as pessoas coletivas estão igualmente contempladas pela Lei nº 38-A/2023 de 2 de agosto no que respeita a infrações contraordenacionais, não tem no seu texto um mínimo de apoio.

       Na mesma senda decidiu o Ac. da R.P. de 24/01/2024([32]) dizendo que “O direito de graça ou de clemência inclui a amnistia, o perdão genérico e o perdão individual, integrando-se, neste último, o indulto e a comutação de penas. De acordo com a doutrina e jurisprudência maioritária, as leis de amnistia e perdão são entendidas como leis de «graça e de clemência» e deverão ser entendidas como leis de exceção cujo fim é unicamente o que o legislador entendeu expressar na sua letra. Como leis excecionais que são não comportam, por essa mesma razão, aplicação analógica, tal como o estatuído no artigo 11º do Código Civil, e no campo penal nem tão pouco admitem interpretação extensiva ou restritiva. Assim sendo, devem ser interpretadas nos exatos termos em que estão redigidas, com respeito pelo preceituado no artigo 9º do Código Civil”.

        Por sua vez no Ac. da R.E. de 18/12/2023([33]), entendeu-se que “A Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, que decretou medidas de clemência de amnistia e perdão de penas, estabeleceu uma diferenciação de tratamento entre os cidadãos que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto (os beneficiários dessas medidas de clemência) e os demais (excluídos da aplicação das medidas); Essa diferenciação surge ancorada, de modo razoável e materialmente fundado, na intenção de favorecer os cidadãos da faixa etária dos destinatários das Jornadas Mundiais da Juventude com as medidas que, sem o evento a eles especialmente dedicado, não seriam decretadas;     

     Cabe na discricionariedade normativa do legislador ordinário eleger a categoria geral de pessoas abrangida pelas medidas de clemência e, fazendo-o em função de critérios objetivos, que determinam a aplicação das mesmas regras nas situações objetivamente iguais, não ocorre qualquer inconstitucionalidade, designadamente por violação do princípio da igualdade e da proibição da discriminação;”.

       Vejamos agora da questão do tipo de sanções aplicadas no âmbito do processo contraordenacional abrangidas pelo perdão.

    Também nesta sede a Lei nº 38-A/2023 é clara: exclui as coimas aplicadas pela prática de contraordenação.

      No caso destes autos a recorrente foi punida com coima cujo limite máximo excede € 1.000,00 (€ 1.250,00, cfr. arts. 31º nº 2 e 22º nº 2 do D.L. nº 257/2007 de 16 de julho), não lhe tendo sido aplicadas quaisquer sanções acessórias (cfr. art. 34º do D.L. nº 257/2007 de 16 de julho).

        Ou seja, pese embora no caso presente esteja verificado o requisito temporal, encontram-se excluídas da aplicação do perdão aqui em causa quer as pessoas coletivas quer as coimas aplicadas no âmbito do processo de contraordenação, exclusão essa que,

quanto a coimas, é independente quer do seu limite máximo abstrato quer do valor concretamente aplicado.

        A mesma situação ocorre também quanto às contraordenações rodoviárias (arts. 131º e 132º do Cód. da Estrada) da competência da ANSR, ou seja, o perdão previsto na lei é relativo apenas às sanções acessórias das contraordenações cujo limite máximo de coima aplicável não exceda 1000€, mas não isenta o infrator do pagamento da coima.

        Em conclusão, pelos motivos indicados, não beneficia a aqui recorrente do perdão previsto na Lei nº 38-A/2023 de 02 de agosto.

        No que respeita à alegação da recorrente quanto à violação do princípio da igualdade, também não lhe assiste razão.

        Citando mais uma vez José de Sousa Brito([34]), “Ora o principio da igualdade não significa proibição de normas especiais ou excecionais relativas a categorias de interessados, (…), mas sim proibição de normas diversas para situações objetivamente iguais, com o corolário de que normas diversas regulem situações objetivamente diversas do ponto de vista da razão da norma”.

          Tem sido pacífico na jurisprudência o entendimento segundo o qual a amnistia e o perdão, sendo medidas de exceção, o órgão legiferante goza de uma certa discricionariedade normativa, sendo-lhe permitido, com base em critérios objetivos,  limitar o seu campo de aplicação e, por outro lado, tais medidas de clemência são de aplicação geral e abstrata, tratando de forma igual todos os que se encontram na mesma

situação, portanto, em número indeterminado, não violando, pelo exposto, o princípio da igualdade consagrado no art. 13º da CRP([35]).

        Por sua vez o T.C. já se pronunciou, por diversas vezes, no sentido da conformidade constitucional das normas que restringem o âmbito de aplicação do perdão e amnistias([36]).

         Improcede assim também esta questão e o recurso. 


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III – DECISÃO

       Pelo exposto o Tribunal da Relação do Porto decide negar provimento ao recurso interposto pela arguida e em consequência, manter a decisão recorrida.

       Custas pela recorrente fixando-se em 4 UC a taxa de justiça– cfr. arts. 513º nº 1 do CPP e 8º nº 9 do RCP, com referência à Tabela III anexa ao referido diploma legal, aplicáveis ex vi do art. 41º nº 1 do RGCO.

        Notifique – cfr. art. 425º nº 6 do CPP.


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Sumário:
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Porto, 06/03/2024
Lígia Trovão
José Quaresma
Castela Rio
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[1] Cfr. Ac. da R.P. de 11/04/2012, proc. nº 2122/11.3TBPVZ.P1, relatado por Joaquim Gomes, acedido in www.dgsi.pt
[2] Sempre sem esquecer, na redação da Lei nº 76/2017 de 17/08, vigente na data da prática dos factos.
[3] Cfr. proc. nº 06P3200, relatado por Santos Carvalho, acedido in www.dgsi.pt
[4] Cfr. proc. nº 08P2804, relatado por Rodrigues da Costa, acedido in www.dgsi.pt
[5] Cujas normas continuam em vigor, pese embora revogado pelo D.L. nº 82/2021 de 13 de outubro, por força do disposto nos nºs 3 e 4 do seu art. 79º.
[6] Na redação da Lei nº 76/2017 de 17 de agosto.
[7] Cfr. proc. nº 483/21.5T8VLN.G1, relatado por Paulo Correia Serafim, acedido in www.dgsi.pt
[8] Cfr. proc. nº 1167/11.8TBOLH.E1, relatado por João Amaro, acedido in www.dgsi.pt
[9] Cfr. Prof. Alberto dos Reis in “Código de Processo Civil Anotado”, III, págs. 206 e 207.
[10] Cfr. Ac. do STJ de 07/01/1999, no proc. nº 1055/98 da 3ª Secção, relatado por Hugo Lopes, in Sumários dos Acs. do STJ, www.dgsi.pt
[11] Cfr. Ac. do STJ de 07/01/1999, no proc. nº 1055/98 da 3ª Secção, relatado por Hugo Lopes, in Sumários dos Acs. do STJ, www.dgsi.pt
[12] Cfr. Ac. do STJ de 05/12/2007 no proc. nº 07P3406, relatado por Raúl Borges, disponível in www.dgsi.pt
[13] Cfr. Ac. do STJ de 25-03-1998, BMJ 475º pág. 502, apud, Ac. do STJ de 05/12/2007.
[14] Cfr. Acs. da R.G. de 21/06/2010, no proc. 2894/06.7TABRG.G1 relatado por Maria Augusta Fernandes e do STJ de 08/01/1997, no proc. nº 48516, 3ª Secção, ambos disponíveis in www.dgsi.pt
[15] Cfr. proc. nº 92/21.9GBSTS.P1, relatado por José Carreto, não publicado na base de dados do MJ.
[16] Cfr. Ac. do STJ de 09/02/1995, no proc. 04P4721, apud citado Ac. da R.P. de 14/09/2023.
[17] Cfr. Ac. do STJ de 01/07/98 no proc. 98P548, relatado por Augusto Alves, disponível in www.dgsi.pt
[18] Cfr. Miguez Garcia e Castela Rio, in “Código Penal Parte Geral e especial com Notas e Comentários”, 2015, 2ª Edição, págs. 397 e 398.
[19] Cfr. Ac. da R.P. de 18/02/2002, no proc. nº 0240572, relatado por Isabel Pais Martins, cujo sumário tem o seguinte teor: “A dispensa de pena prevista no artigo 74º do Código Penal, é um instituto de direito penal que só vale para as penas principais. Em matéria contra-ordenacional o legislador não previu a dispensa de coima. Trata-se de uma opção legislativa e não de uma omissão a carecer de integração.
Por isso, não tem qualquer sentido invocar o artigo 32 do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas, com vista à aplicação subsidiária do Código Penal “, acedido in www.dgsipt.
No mesmo sentido, cfr. o Ac. da R.P. de 22/09/2010, no proc. nº 2789/09.2TBVCD.P1, relatado por Coelho Vieira, enunciando que: “A dispensa de pena não tem aplicação no ilícito de mera ordenação social “.
[20] Cfr. Ac. da R.E. de 06/02/2018, proc. nº 3910/16.0T8LLE.E1, relatado por João Amaro, acedido in www.dgsi.pt.
[21] Cfr. proc. nº 661/12.8TBCBR.C1, acedido in www.dgsi.pt
[22] Cfr. proc. nº 469/09.8TBBAO.P1, acedido in www.dgsi.pt
[23] Cfr. proc. nº 3342/12.9TASTB.E1, relatado por Sérgio Corvacho, acedido in www.dgsi.pt
[24] Cfr. proc. nº 2277/18.6T8BRR.L1-4, relatado por Alves Duarte, acedido in www.dgsi.pt
[25] Cfr. proc. nº Cfr. proc. nº 593/18.6PBAGH.L2, relatado por João Abrunhosa, não publicado.
[26] Cfr. Acs. do STJ de 27/05/2009 no proc. nº 09P0484, relatado por Raúl Borges e de 29/01/2004 no processo nº 03P1874 relatado por Pereira Madeira, ambos in www.dgsi.pt. No mesmo sentido, Cfr. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 2ª Reimpressão, 2009, pág. 197 e Simas Santos e Marcelo Ribeiro, in “Medida Concreta da Pena”, Vislis.
[27] Cfr. Ac. da R.P. de 02/10/2013 relatado por Joaquim Gomes no processo nº 180/11.0GAVLP.P1, in www.dgsi.pt
[28] Cfr. Relevantes nos termos do art. 8º nº 3 do Código Civil, com o seguinte teor: “Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito “.
[29] Cfr. Pedro José Esteves de Brito in “Notas práticas referentes à Lei nº 38-A/2023 de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude”, Revista Julgar Online, agosto de 2023, pág. 6.
[30] Cfr. Revista Jurídica, nº 6, 1986, págs. 15 e segs., apud Ema Vasconcelos in “Amnistia e perdão – Lei nº 38-A2023, de 2 de Agosto”, publicado na Revista Julgar Online, janeiro de 2024, pág. 2.
[31] Cfr. Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ nº 3/94, de 21/09/1994, publicado no D.R. n.º 255/1994, Série I-A de 1994-11-04.
[32] Cfr. proc. nº 628/08.0PAVZ-X.P1, relatado por Raúl Esteves, acedido in www.dgsi.pt.
[33] Cfr. proc. nº 401/12.1TAFAR-E.E1, relatado por Jorge Antunes, acedido in www.dgsi.pt
[34] Cfr. Revista Jurídica, nº 6, 1986, págs. 15 e segs., apud Ema Vasconcelos in “Amnistia e perdão – Lei nº 38-A2023, de 2 de Agosto”, publicado na Revista Julgar Online, janeiro de 2024, pág. 2.
[35] Cfr. os Acs. da R.C. de 22/11/2023 no proc. nº 39/07.5TELSB-H.C1, relatado por João Abrunhosa, da R.P. de 27/11/2023 no proc. nº 24/21.4PEPRT-B.P1, relatado por Raúl Cordeiro, da R.E. de 18/12/2023, no proc. nº 401/12.1TAFAR-E.E1, relatado por Jorge Antunes, da R.E. de 09/01/2024 no proc. nº 47/20.0YREVR-E.E1, relatado por João Carrola, da R.C. de 24/01/2024 no proc. nº 14/23.2GTCBR.C1, relatado por Isabel Valongo, da R.L. de 20/02/2024 no proc. nº 2033/22.7PFLSB.L1-5, relatado por Sandra Oliveira Pinto,
[36] Cfr. Acs. do T.C. nºs 39/88 de 09/02/1988, 149/93 de 28/01/1993, 152/95 de 15/03/1995, 444/97 de 25/06/1997, 488/2008 de 07/10/2008, 273/2016 de 04/05/2016 e 809/2022, apud Ac. da R.G. de 23/01/2024 no proc. nº 438/07.2PBVCT-AE.G1, relatado por Anabela Varizo Martins, acedido in www.dgsi.pt.