DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
NEGLIGÊNCIA DA PARTE
CONTRADITÓRIO
Sumário

I - Impõe-se ao juiz – por força do dever de gestão processual previsto no art. 6.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, e por força do princípio da cooperação previsto no art. 7.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil – a adoção de uma posição clara na gestão do andamento do processo, por forma a que seja inequívoco para as partes que o processo se encontra a aguardar a prática de um ato que incumbe à parte (e só a esta) realizar, para lhe permitir perceber que o andamento do processo depende do seu impulso processual.
II - A observância do princípio do contraditório (art. 3.º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil) não impõe ao juiz que, em todos os casos, previamente ao julgamento da deserção da instância, notifique as partes para exercerem o contraditório: o juiz não tem que advertir as partes – pelo menos quando estão representadas por advogados, que devem conhecer a lei, quer quanto aos ónus, quer quanto aos efeitos da sua falta de cumprimento – para a ocorrência de determinada consequência legalmente prevista, quando a tramitação processual permite, de forma inequívoca, apreender que o andamento do processo está dependente exclusivamente da atuação/impulso processual da parte onerada com a prática do ato.
III - Quando tal não suceda – ou seja, quando a situação, no caso concreto, não seja inequívoca –, a observância dos referidos princípios – do contraditório e da cooperação –e deveres – de gestão processual – justificam a necessidade de tal clarificação, sob pena de, inclusive, ficar afastada a existência do pressuposto da negligência da parte, uma vez que a afirmação desta pressupõe a afirmação do conhecimento ou do dever de conhecimento da situação de paragem do andamento do processo e da existência do ónus (exclusivo) da parte na prática do ato ou atos passíveis de impulsionarem o andamento do processo ou fazerem cessar a sua paragem.

Texto Integral

Processo – Apelação n.º 4212/16.7T8MTS.P1

Tribunal a quo – Juízo Central Cível da Póvoa do Varzim – J 3

Recorrente(s) – AA

Recorrido(a/s) – BB, CC, DD


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Sumário

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Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório:

Identificação das partes e indicação do objeto do litígio

A autora AA intentou em 02-09-2016 ação de processo comum contra a herança de EE e contra os réus BB, CC e DD.

Peticionou a autora, na qualidade de herdeira legitimária do seu falecido avô FF, pai do seu pré-falecido pai, EE, a declaração de nulidade, por simulação, de quatro negócios jurídicos referentes a imóveis, que identifica, e, ‘em consequência’, se retifiquem as escrituras e os registos de aquisição efetuados na Conservatória do Registo Predial, por forma a que todos esses bens imóveis passem ‘a integrar a massa da herança [aberta por óbito] de FF’.

Alega que três desses negócios consistiram em aquisições de imóveis, efetuadas com dinheiro do falecido a terceiros vendedores, mas com a intervenção nas escrituras, como compradores, dos réus pessoas singulares, para sonegar bens à herança do identificado avô e assim prejudicar a legítima que caberia ao seu falecido pai, tendo de igual modo sido esse o intuito subjacente ao quarto negócio, consistente numa doação efetuada pelo referido EE, seu avô, aos réus CC e DD (filhos do falecido EE e da ré BB, casados que foram em segundas núpcias daquele) da raiz de um imóvel, com reserva de usufruto para si, por conta da quota disponível.

Citados os réus BB, CC e DD, apresentaram os mesmos contestação, excecionando a falta de personalidade e capacidade judiciárias da ‘herança’ demandada, impugnando parcialmente a factualidade alegada e concluindo pela improcedência da ação.

Em 17-04-2017 (ref. 379311728) foi proferido despacho a convidar a autora “a deduzir o incidente da intervenção principal dos vendedores nos contratos de compra e venda supra identificados como associados dos RR. por forma a assegurar a legitimidade passiva na presente acção.”

Em 28-04-2017 (ref. 381109549) a autora deduziu incidente de intervenção principal provocada passiva dos vendedores intervenientes nas referidas 3 escrituras públicas, tendo requerido, além do mais, a intervenção principal provocada de GG e de HH, que eram dois dos diversos vendedores do prédio urbano sito na Rua .../Estrada ..., ..., da freguesia ..., concelho de Matosinhos, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o n.º ..., que outorgaram, nessa qualidade de vendedores, a escritura de compra e venda celebrada em 17/07/1991, no Primeiro Cartório Notarial de Matosinhos, junta como Doc.18 da Petição inicial.

Por decisão de 01-06-2017 (ref. 382133595) foi admitida a intervenção principal provocada passiva, como associados dos réus, dos seguintes interessados: 1. II e mulher JJ; 2. GG e mulher HH; KK e mulher LL; MM e marido NN; OO e marido PP;  QQ; RR e marido SS; TT; UU;  VV; WW; XX e marido YY; e 3. ZZ e mulher AAA, e ordenada a sua citação nos termos e para os efeitos do art. 319.º do Cód. Proc. Civil.

Efetuadas as diligências para citação dos chamados, intervieram no processo:

a) RR e marido, SS; UU; QQ; e TT, mediante contestação deduzida em 30-07-2017 (ref. 15775058);

b) HH, mediante contestação deduzida em 29-09-2017 (ref. 16282852), na qual alega, além do mais, ser viúva do também chamado GG, falecido a 30 de março de 2009, juntando assento de óbito;

c) o Ministério Público, mediante contestação apresentada em 16-03-2020 (ref. 25449415), em representação do chamado KK, ausente em parte incerta, citado editalmente;

d) o Ministério Público, mediante contestação apresentada em 23-05-2021 (ref. 28994365), em representação da chamada LL, ausente em parte incerta, citada editalmente.

Em 11-07-2018 (ref. 19425796) a autora intentou incidente de habilitação de herdeiros, que correu termos por apenso, com o n.º 4212/16.7T8MTS-A, peticionando a habilitação dos sucessores de diversos vendedores falecidos, cuja intervenção principal provocada passiva havia sido deferida, tendo, designadamente, e além de outros, requerido a habilitação da interveniente HH, como sucessora habilitada do chamado GG, falecido em 30-03-2009.

Em 08-07-2020 (ref. 415740578) foi proferido, no processo principal, despacho a declarar suspensa a instância nos termos do art. 270.º, n.º 1, do CPC, “Em face do apenso de habilitação de herdeiros por óbito dos intervenientes aí melhor ids”.

Por decisão proferida em 22-09-2021 (ref. 428426732), foram declarados habilitados como herdeiros dos seguintes chamados falecidos, para prosseguirem os termos da ação:

a) HH, como herdeira habilitada do chamado GG;

b) BBB, CCC, DDD,  EEE, FFF e GGG, como herdeiros dos chamados NN e esposa MM;

c) HHH, III e JJJ, como herdeiros dos chamados OO e marido PP;

d) KKK, LLL e MMM, como herdeiros da chamada VV;

e) NNN, como herdeira da chamada WW.

Em 03-11-2021 (ref. 429111020) foi proferido despacho-saneador que, por falta de personalidade judiciária, absolveu da instância a ‘ré herança aberta por óbito de FF’, fixou como objeto do litígio “Pedido de declaração de nulidade, por simulação, dos negócios infra ids”, e selecionou factos assentes, fixando ainda os temas da prova.

Seguiu-se tramitação instrutória, para recolha de elementos de prova, tendo sido designado para julgamento o dia 13-09-2022.

Em 08-09-2022 (ref. 33202600) a autora apresentou requerimento de ampliação do pedido.

Por despacho de 12-09-2022 (439919038) foi suspensa a instância até nomeação de novo patrono à interveniente HH, atenta a informação existente nos autos do óbito da patrona que se encontrava nomeada à mesma, tendo sido dada sem efeito a audiência de julgamento.

Tal despacho foi notificado aos ilustres mandatários das partes constituídos no processo por notificações eletrónicas de 12-09-2022.

Em 19-09-2022 (ref. 440166479) foi enviada carta registada à interveniente HH informando-a que “consta dos autos o falecimento em 12/05/2020 da sua patrona Drª OOO”.

Em 29-09-2022 (ref. 33400942) foi junta ao processo essa carta, devolvida ao tribunal com a informação de que a destinatária “Faleceu”.

As partes não foram notificadas dessa devolução da carta com a informação nela aposta.

Em 29-09-2022 (ref. 33401535) foi remetida pelo CDOA comunicação ao tribunal informando o novo patrono nomeado à interveniente HH.

Em 04-10-2022 (ref. 440471558) foi proferido o seguinte despacho: “Notifique o ilustre patrono nomeado em substituição informando que a última notificação dirigida à sua patrocinada veio devolvida com a indicação do seu falecimento. O tribunal passará a encetar diligência para confirmar o facto.

Obtenha e imprima o assento de óbito da interveniente principal ao lado dos réus, HH.

Tal despacho foi notificado aos mandatários das partes e ao novo patrono nomeado em 06-10-2022.

Em 06-10-2022 (ref. 440843040) foi inserida pela secretaria no processo eletrónico (Informação de Base de Dados) o Auto de Declaração de Óbito, ocorrido em 25 de julho de 2022, da interveniente HH.

Tal Auto de Declaração de Óbito não foi notificado às partes.

Em 12-10-2022 (ref. 440843207) foi proferido o seguinte despacho:

Declaro suspensa a instância, nos termos do art. 270.º, n.º 1, do CPC.

Informe o ilustre patrono nomeado à interveniente falecida.

Em 13-10-2022 foram notificados os mandatários das partes, o patrono nomeado e o Ministério Público do teor do aludido despacho.

Em 24-11-2023 (ref. 33984181) o patrono nomeado à interveniente HH apresentou requerimento, na sequência da recusa de pagamento de honorários pela secretaria judicial, solicitando a confirmação do pedido de pagamento de honorários.

Em 27-02-2023 (ref. 444539179) foi proferido despacho sobre tal requerimento, do qual consta, além do mais:

Veio o ilustre patrono nomeado à ré HH reclamar da não confirmação pela unidade de processos dos factos determinantes do registo de honorários por si apresentado.

Alega que foi nomeado patrono da ré em substituição de ilustre patrona falecida, tendo direito a registar honorários, nos termos do art. 25.º, n.º 6, da Portaria n.º 10/2008, de 3 de Janeiro, independentemente de a substituição ter operado já após o falecimento da ré e de, por isso, não ter praticado qualquer acto no processo. (…)

Ora o facto determinante da compensação, no caso das nomeações isoladas para processos, como é a presente, ao abrigo do art. 25.º, n.º 6, deste diploma, os factos determinantes da compensação são o trânsito em julgado na decisão ou a constituição de mandatário, nos termos do art. 28.º, n.º 2, alínea b), do mesmo diploma.

Nenhum destes factos ocorreu nos presentes autos, pelo que improcede a reclamação.

Pelo exposto decide-se julgar improcedente a reclamação formulada. (…)”.

Tal despacho foi notificado em 30-01-2023 ao patrono nomeado e aos mandatários das partes.

Em 04-05-2023 (ref. 447936697) foi proferido despacho que “Considerando a falta de impulso processual do autor há mais de seis meses”, julgou “deserta a instância, nos termos do art. 281.º, n.º 1, do CPC.

Em 05-05-2023 foi notificado tal despacho aos ilustres mandatários das partes.

Em 09-05-2023 (ref. 35569156) a autora apresentou requerimento no qual requer se “declare a nulidade da notificação com a ref.ª 441099809, datada de 13/10/2022, com o despacho de 12/10/2022, assim como os actos processuais derivados desse erro ou omissão, incluindo a sentença agora notificada proferida em 04/05/2023, da qual foi a Autora notificada com a ref.ª 448012610, por força dos arts.195º n.º s 1 e 2, 270º n.º 2 e 157º n.º s 5 e 6”.

Em 13-05-2023 (ref. 35621554) os réus pronunciaram-se pela improcedência do requerimento.

Em 05-06-2023 (ref. 449074375) foi proferido despacho que julgou improcedente a arguida nulidade, nos seguintes termos:

Veio a autora invocar nulidade processual.

Para tanto alega em suma falta de notificação do assento de óbito da falecida interveniente principal, que deu lugar à suspensão da instância, que levou a autora relacionar a suspensão da instância com o falecimento da patrona da mesma ré, em data próxima, ficando induzida em erro quanto à necessidade de requerer um incidente de habilitação.

Os réus deduziram oposição, argumentando com a intempestividade da arguição, posto que há muito poderia a autora ter conhecimento da nulidade arguida, agindo com a devida diligência.

A nulidade invocada não se enquadra nos arts. 186.º a 194.º, do CPC.

Nos termos do art. 195.º, n.º 1, do CPC, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.

Nos termos do art. 439.º, do CPC, devem ser notificados às partes documentos requisitados pelo tribunal na instrução de processo.

Efectivamente, o assento de óbito da interveniente principal HH, junto em 6/10/2022, não foi notificado às partes, nomeadamente à autora, pelo que se verifica a omissão de um acto prescrito na lei.

Prescreve o art. 199.º, n.º 1, do CPC, que quanto às outras nulidades (…) o prazo para arguição conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum acto praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência.

O prazo para arguir a nulidade é de dez dias, nos termos do art. 149.º, n.º 1, do CPC.

A autora, agindo com a devida diligência, poderia conhecer da nulidade invocada logo quanto recebeu o despacho de suspensão da instância, com menção específica à disposição legal que determina a suspensão por falecimento de uma parte. Sobretudo quando, poucos dias antes, tinha sido notificada do despacho de 4/10/2022, que mencionava expressamente a informação sobre o falecimento da interveniente em causa.

Mas ainda que, perante estes dados se considerasse que a autora não poderia ter tomado conhecimento da nulidade que ora invoca, agindo com a devida diligência, a autora foi notificada em 2/02/2023 do despacho de 27/01/2023 em que de novo é mencionado expressamente o óbito da interveniente.

Pelo que se conclui que, em 9/05/2023, data em que a autora arguiu a nulidade, há muito estava esgotado o prazo de dez dias sobre o momento em que a autora poderia conhecer a nulidade ora arguida, agindo com a devida diligência.

Pelo exposto decide-se julgar improcedente a arguida nulidade, por omissão de notificação à autora do assento de óbito da interveniente principal HH.

Custas pela autora, fixando em uma UC a taxa de justiça.

A autora, em 06-06-2023 (ref. 35861557), interpõe recurso de apelação do despacho que julgou deserta a instância (proferido em 04-05-2023), tendo apresentado as seguintes conclusões:

I.Nulidade do despacho de 12/10/2022, com a ref. ª 441099809, onde consta apenas: “Declaro suspensa a instância, nos termos do art. 270.º, n.º 1, do CPC. Informe o ilustre patrono nomeado à interveniente falecida.”, nos termos da parte final do nº 1 e nº 2, do artigo 195.º do CPC, pelo facto do mesmo ser omisso quanto à indicação da sua motivação da matéria de facto, violando o disposto do art. 205º nº 1 da CRP e art. 154.º do CPC

2ª CONCLUSÃO:

A (…) sentença recorrida (…) [fundou-se] em factos relativamente aos quais pela Secretaria do Tribunal, e pelo Tribunal não (…) foi dado cabal conhecimento da situação factual ocorrida nos autos [nem] enviados, com as notificações efectuadas os respectivos documentos dos actos processuais (…).

(…)

6ª CONCLUSÃO:

(…) em 06/10/2022 foi a Autora/Recorrente notificada com a ref.ª 439920669 (apenas) do despacho 04/10/2022, desacompanhado de qualquer documento, o qual se transcreve…

Notifique o ilustre patrono nomeado em substituição informando que a última notificação dirigida à sua patrocinada veio devolvida com a indicação do seu falecimento. O tribunal passará a encetar diligência para confirmar o facto.


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Obtenha e imprima o assento de óbito da interveniente principal ao lado dos réus, HH.

Faz-se notar que a notificação deste despacho recebido, veio desacompanhado de qualquer documento anexo, ou mesmo da informação da data e do local do referido óbito. (…)

Fazendo-se notar ainda, que o despacho antes transcrito, apesar de notificado tambémà Autora/Recorrente como parte nos autos, para concretização de diligências processuais, dirige-se apenas ao “… ilustre patrono nomeado em substituição” da Ré HH, bem como à Secretaria do Tribunal.

7ª CONCLUSÃO:

Posteriormente, em 13/10/2022, foi a Autora notificada com a ref. ª 441099809, mais uma vez (apenas) com o despacho de 12/10/2022, (…) Despacho este não completamente esclarecedor, ao não referir e identificar concretamente quem alegadamente havia falecido, ou seja, omisso na indicação da sua fundamentação da matéria de facto, violando assim o disposto no art.º 205º nº 1 da CRP e o art. 154º do CPC.

8ª CONCLUSÃO:

O dever de fundamentação das decisões judiciais resulta, desde logo, de imposição constitucional, nos quadros do n.º 1 do art. 205º da Constituição da República Portuguesa, densificando-se legalmente, desde logo, no art. 154º do Código de Processo Civil.

Tal dever constitucional e legal tem por objectivo a explicitação por parte do julgador acerca dos motivos pelos quais decidiu em determinado sentido.

Enfermado por essa irregularidade o despacho que suspendeu a instância nos termos do art. 270.º, n.º 1, do CPC, assim como os actos processuais derivados desse erro ou omissão, incluindo a sentença notificada e agora recorrida, são nulos, nos termos da parte final do nº 1 e nº 2, do artigo 195.º do Código do Processo Civil.

II. – Nulidade da notificação pela Secretaria Judicial do antes referido despacho, nos termos da parte final do nº 1 e nº 2, do artigo 195.º do CPC, por a mesma ter vindo desacompanhado de qualquer documento anexo (certidão de óbito), ou mesmo da informação da data e do local do referido óbito, em violação do disposto no nº 2 do art. 270º do mesmo código.

9ª CONCLUSÃO:

(…) a notificação deste último despacho recebido, veio desacompanhado de qualquer documento anexo (certidão de óbito), ou mesmo da informação da data e do local do referido óbito (preterição de formalidade essencial), [o que] viola o disposto no nº 2 do art. 270º do CPC.

10ª CONCLUSÃO:

Pelo que, com a omissão do envio à Autora/Recorrente do documento que comprovasse o falecimento da Ré HH, pela Secretaria do Tribunal, a acompanhar a notificação do supradito despacho da suspensão da instância por falecimento de uma parte, o mesmo não pode produzir validamente efeitos, por não estar documentalmente fundamentado nos termos da lei na sua externalização aos destinatários. (…)

12ª CONCLUSÃO:

Pelo que necessariamente se concluiu, que a notificação efectuada pela Secretaria Judicial, do despacho notificado em 13/10/2022, o qual suspendeu a instância ao abrigo do disposto no art. 270.º, n.º 1, do CPC, omissa no esclarecimento e comprovação desse facto essencial do acto notificado, que influiu séria e decisivamente no exame da causa pelo Tribunal, bem como na tramitação processual posterior pela Autora/Recorrente.

Enfermado por essa irregularidade (preterição de formalidade legal essencial), assim como os actos processuais derivados desse erro ou omissão, incluindo a sentença notificada e agora recorrida, são nulos, nos termos da parte final do nº 1 e nº 2, do artigo 195.º do Código do Processo Civil.

III.Nulidade da sentença recorrida, de 04/05/2023, com a referência n.º 447936697, onde consta o seguinte: “Considerando a falta de impulso processual do autor há mais de seis meses, julgo deserta a instância, nos termos do art. 281.º, n.º 1, do CPC.” nos termos da parte final do nº 1 e nº 2, do artigo 195.º do CPC, pelo facto da mesma violar os princípios do contraditório e da cooperação, plasmados, respectivamente, no disposto do nº 3 do art.º 3º, nº 1 do art.º 7º e nº 1 do art. 281º, todos do CPC, por omissão de advertência prévia à Autora/Recorrente.

13ª CONCLUSÃO:

(…) a sentença proferida e recorrida, assentou em erro sobre os pressupostos de facto e de direito, violando o disposto no nº 3 do art.º 3º, nº 1 do art.º 7º e nº 1 do art. 281º, todos do CPC.

Como se extrai da antes referida norma, a mesma não consagra nenhuma presunção de negligência da parte.

14ª CONCLUSÃO:

É jurisprudência pacífica a propósito desta norma, que a extinção da instância por deserção pressupõe a verificação de dois pressupostos:

- Um de caráter objetivo: decurso do prazo de seis meses sem andamento do processo, quando ele dependa do impulso processual das partes; e

- Outro de natureza subjetiva: tal inércia deve-se ou é imputável a negligência da parte.

Salvador da Costa3 (3 In “Os Incidentes da Instância”, 12ª edição (revista e ampliada), Almedina, 2023, págs. 187/188.), refere que um dos pressupostos da declaração de deserção da instância é a negligência das partes, decorrido o referido prazo sem o seu devido impulso processual, propende em considerar que o juiz deve ordenar a notificação das partes a fim de, no decêndio posterior, se pronunciarem sobre a omissão, nos termos do nº 3 do art.º 3º e do nº 1 do art.º 7º do Código de Processo Civil. Após a sua resposta ou o termo do referido decêndio, o juiz decide a questão da extinção ou não da instância por deserção, ponderada a censurabilidade da omissão, tendo em conta que o referido semestre começa na data em que as partes conheceram do despacho determinante da suspensão da instância, a contar nos termos do art.º 279º, alínea c) do Código Civil.

No mesmo sentido refere ainda José Lebre de Feitas 4 (4 In “Da nulidade da declaração de deserção da instância sem Precedência de advertência à Parte” por José Lebre de Freitas.):

A advertência às partes das possíveis consequências desvantajosas de certas atuações (cf. arts. 590.º-4, CPC e 591.º-c, CPC) e a própria garantia, pelo juiz, dum contraditório efetivo (art. 3.º-3, CPC) são manifestações também deste dever de cooperação. o mesmo se pode dizer da imposição de transparência nos atos de comunicação entre o tribunal e as partes (cf., por exemplo, os arts. 131.º-4 e 219.º-3 do CPC), as garantias destas perante as omissões e erros do tribunal (cf. arts. 157.º-6 e 191.º, n. os 2 e 3, do CPC) e a imposição das formalidades a observar no ato de citação (art. 227.º, CPC).

… são manifestações paralelas dum princípio geral do sistema jurídico que limita as consequências desvantajosas dos atos e omissões dos sujeitos de direito com o fim de lhes possibilitar ainda a efetivação dos seus direitos. ora, ao longo dos anos, este princípio geral tem sido progressivamente acentuado na lei processual e na sua interpretação. Com ele de modo algum se conciliam interpretações da lei que, longe de se inserirem no percurso histórico atrás sumariado, recuam a soluções há muito afastadas (19).

O despacho judicial que advirta a parte para a possibilidade da deserção da instância não é, pois, dispensável, quer se entenda que só a partir dele correm os seis meses do art. 281.º-1, CPC, quer se entenda que basta que o juiz o profira, no decurso desse prazo ou depois dele concluído, desde que a parte tenha a possibilidade de praticar seguidamente o ato omitido(20). A jurisprudência, acima referida, que se tem formado em torno da interpretação do art. 281.º-1, CPC, na linha da anterior interpretação dominante do art. 285.º do CPC de 1961, é, pois, aquela que se conforma com a Constituição da república e com os princípios gerais do atual sistema do processo civil português.

A norma do art. 281.º-1, CPC, tem assim sete requisitos, dos quais seis evidenciados na letra do seu texto e o último decorrente da sua interpretação à luz dos referidos princípios gerais:

1. que lei especial, ou o tribunal por despacho de adequação formal do processo,

imponha à parte um ónus de impulso processual subsequente;

2. que o ato que a parte deva praticar seja por ela omitido;

3. que o processo fique parado em consequência dessa omissão;

4. que a omissão se prolongue durante mais de seis meses;

5. que o processo se mantenha, por isso, parado durante este período de tempo;

6. que a omissão seja imputável à parte, por dolo ou negligência;

7. que o juiz alerte a parte onerada para a deserção da instância que ocorrerá se o ato não for praticado (segundo a corrente mais exigente, só a partir da notificação deste despacho de advertência se contando os seis meses).

4. A consequência da nulidade

Ocorrendo os sete requisitos da norma do art. 281.º-1, CPC, que acabam de ser apontados, o juiz julga deserta a instância.

Ocorrendo os seis primeiros requisitos, mas não sendo feita a advertência judicial à parte, se o juiz proferir o despacho a declarar deserta a instância, verifica-se a omissão de um ato que devia ser praticado antes dessa declaração, pelo que este é nulo nos termos do art. 195.º-1, CPC: o ato processual da notificação à parte constitui pressuposto do  despacho de deserção.

15ª CONCLUSÃO:

Face ao antes alegado na Jurisprudência e na Doutrina antes transcritas, verifica-se que a sentença recorrida, de 04/05/2023, com a referência n.º 447936697, onde consta o seguinte: “Considerando a falta de impulso processual do autor há mais de seis meses, julgo deserta a instância, nos termos do art. 281.º, n.º 1, do CPC.” é nula nos termos da parte final do nº 1 e nº 2, do artigo 195.º do CPC, pelo facto da mesma violar os princípios do contraditório e da cooperação, plasmados, respectivamente, no disposto do nº 3 do art.º 3º, nº 1 do art.º 7º e nº 1 do art. 281º, todos do CPC, por omissão de advertência prévia à Autora/Recorrente.

IV.Nulidade da sentença recorrida, de 04/05/2023 (…), pelo facto da mesma violar o disposto no nº 1 do art. 281º, todos do CPC, por objectiva e materialmente de facto não ter ocorrido por parte da Autora/Recorrente, a negligência na tramitação processual, ínsita na referida norma, como o comprova a sua constante diligência documentada nos autos.

16ª CONCLUSÃO:

Sem prescindir do antes alegado, no entender da Autora/Recorrente e da Doutrina citada, relativamente à imposição legal, nos termos do disposto no nº 3 do art.º 3º, nº 1 do art.º 7º e nº 1 do art. 281º, todos do CPC, da necessidade de advertência prévia à Autora/Recorrente, antes de ser julgada deserta a instância nos termos do disposto no nº 1 do art. 281º do CPC.

Considera ainda a Autora/Recorrente, que mesmo que não se considere uma imposição legal a advertência prévia, antes de ser julgada deserta a instância nos termos do disposto no nº 1 do art. 281º do CPC.

Apesar disso, nesse desiderato, o julgamento e imputação de eventual de negligência processual à parte ao abrigo da norma em causa, carecerá sempre de uma avaliação em função dos elementos objectivos que resultarem no processo, tal como se julgou e consta do Sumário do acórdão do STJ, de 05/05/2022, proferido no proc. 1652/16.5T8PNF.P1.S.1, http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/5080b57e63f0209280258839005dbcca?OpenDocument .

17ª CONCLUSÃO:

Por isso, o Tribunal deverá apurar o enquadramento factual, tendo presente o desenvolvimento processual relevante, que lhe permita concluir pela qualificação de negligente do comportamento da parte que tinha o ônus do impulso processual.

Reiterando de novo, que a referida falta de impulso processual da Autora/Recorrente, por mais de seis meses, não se deveu à inércia ou negligência da sua parte, mas sim, a um encadeado de factos circunstanciais e próximos, concatenadas com erros ou omissões, certamente involuntários e de boa-fé, em que incorreram a Secretaria Judicial, o Tribunal e a Autora/Recorrente, já antes referidos.

18ª CONCLUSÃO:

Uma vez que a Autora/Recorrente estava convicta que, apenas, a mandatária da interveniente principal HH havia falecido e não a própria parte.

Pois a coincidência dos óbitos da mandatária e sua representada, em momentos muito próximos no tempo, e sem ter sido a Autora/Recorrente notificada do óbito da parte principal, gerou alguma obscuridade e ambiguidade sobre os factos, assim como uma convicção errada sobre os mesmos por parte da Autora/Recorrente.

19ª CONCLUSÃO:

De notar que a Autora/Recorrente teve sempre o cuidado de requerer atempadamente os anteriores necessários incidentes de habilitação de sucessores, de todos os intervenientes processuais que nos autos lhe foi dado devido e formal conhecimento da declaração do seu falecimento.

Só não tal requereu relativamente a esta última interveniente principal - HH, porque desconhecia tal falecimento.

20ª CONCLUSÃO:

A diligência que a Autora/Recorrente comprovadamente sempre demonstrou nos autos, indicam que o erro ocorrido não se deveu a negligência da sua parte.

Pois que só quando foi a mesma notificada da sentença acima referida e recorrida, que recebeu em completa surpresa, é que a sua mandatária judicial telefonou para a Secretaria do Tribunal, e aí foi informada da morte da parte – HH.

Nunca tendo sido a Autora/Recorrente notificada do seu comprovado falecimento com a junção, pela Secretaria do Tribunal, da devida e imprescindível certidão de óbito, para que pudesse proceder em conformidade, despoletando um incidente de habilitação de sucessores.

Acresce que, com as leis de protecção de dados, sem essa informação da data e local do óbito e documentação basilar (a certidão de óbito), a Autora/Recorrente também não conseguiria obter informações nas competentes Conservatórias de Registo Civil ou Serviço de Finanças.

21ª CONCLUSÃO:

Ora, os elementos objectivos que constam do processo, demonstram e comprovam especificada e documentalmente, nunca a Autora/Recorrente evidenciou qualquer negligência processual nos presentes autos.

Pois, anteriormente, sempre que a Autora/Recorrente nos presentes autos tomou efectivo e cabal conhecimento do óbito dos vários intervenientes principais, logo interpôs o necessário incidente de habilitação de sucessores.

Os quais a Autora/Recorrente, com a diligência necessária, foi requerendo para ser corrigido e/ou acrescentado, conforme informações que foi obtendo posteriormente através dos autos, de modo a que o processo judicial fosse o mais célere possível, como se vai referir e consta objectivamente dos autos. (…)

24ª CONCLUSÃO:

Pelo que se concluiu pelo antes alegado neste ponto, numa busca objectiva da verdade material na justa composição de um litígio judicial, que a sentença recorrida, de 04/05/2023, com a referência n.º 447936697, onde consta o seguinte: “Considerando a falta de impulso processual do autor há mais de seis meses, julgo deserta a instância, nos termos do art. 281.º, n.º 1, do CPC.” enferma de nulidade nos termos da parte final do nº 1 e nº 2, do artigo 195.º do CPC, pelo facto da mesma violar o disposto no nº 1 do art. 281º, todos do CPC, por objectiva e materialmente de facto não ter ocorrido por parte da Autora/Recorrente, a negligência na tramitação processual, ínsita na referida norma, como o comprova a sua constante diligência documentada nos autos.

Conclui pela revogação da sentença e determinação do prosseguimento dos autos.

Os réus/apelados responderam às alegações, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, defendendo, em síntese, a improcedência do recurso, por se verificarem os pressupostos da deserção da instância: a suspensão do processo sem movimentação desde a data da notificação da suspensão da instancia (13-10-2022) e até ao despacho que declarou extinta a instância, e a negligência da autora em promover o andamento do processo, dado que, face ao teor dos despachos de 04/10/2022 (data em que a anterior patrona nomeada já havia falecido e já se nomeara outro patrono) e de 12-10-2022, quando a autora/apelante foi notificada do despacho de suspensão da instância, dispunha de todas as condições para concluir que não fora notificada da certidão de óbito com base na qual o tribunal ordenou a suspensão da instância e aludiu à interveniente falecida, tendo ficado sanada a nulidade de falta de notificação da certidão de óbito, ao não ter sido arguida em tempo.

Por despacho de 15-10-2024 (Ref. 452549128) o tribunal a quo admitiu o recurso interposto, atribuindo-lhe efeito devolutivo, e remetendo, quanto à arguição de nulidade, para a decisão proferida em 05-06-2023 (ref. 449074375).

Após os vistos legais, cumpre decidir.

II – Questões a decidir:

Face às conclusões das alegações de recurso da apelante (que – exceto quanto a questões de conhecimento oficioso – delimitam o objeto e âmbito do recurso, nos termos do disposto nos arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 e n.º 2, ambos do Cód. Proc. Civil), são as seguintes as questões suscitadas no recurso interposto:

1. Nulidade do despacho proferido em 12-10-2022, que ordenou a suspensão da instância, por falta de fundamentação.

2. Nulidade do ato de notificação do despacho, por falta de envio da certidão de óbito da interveniente ou de informação da data e local do óbito.

3. Nulidade do despacho de deserção da instância proferido em 04-05-2022, recorrido, por omissão de advertência prévia à autora.

4. Falta de verificação dos pressupostos da deserção da instância.

III – Fundamentação:

De facto:

Os factos a considerar são os que estão descritos no relatório.

Subsunção dos factos ao direito:

1. Nulidade do despacho de suspensão da instância de 12-10-2022 por falta de fundamentação

Invoca a apelante – neste recurso interposto do despacho proferido em 04-05-2023, que julgou deserta a instância – a nulidade de antecedente despacho que suspendeu a instância e que foi proferido em 12-10-2022, por falta de fundamentação de facto, designadamente, ao não referir e identificar concretamente quem havia falecido.

A decisão que é objeto do presente recurso é a decisão que julgou deserta a instância, proferida em 04-05-2023, e não o despacho proferido em 12-10-2022, cerca de 6 meses e meio antes, pelo que está vedado à apelante invocar, neste recurso interposto de outra decisão, a nulidade por falta de fundamentação de um despacho relativamente ao qual não interpôs, oportunamente, recurso.

Se entendia que o despacho que suspendeu a instância, proferido em 12-10-2022 – “Declaro suspensa a instância, nos termos do art. 270.º, n.º 1, do CPC. Informe o ilustre patrono nomeado à interveniente falecida.” – constituía um despacho nulo por falta de fundamentação, passível de preencher a hipótese legal do art. 615.º, n.º 1, al. b), e n.º 4,  ex vi art. 613.º, n.º 3, todos do Cód. Proc. Civil, tinha a apelante que ter reagido mediante a interposição do competente recurso desse despacho, dentro dos prazos processuais previstos para o efeito.

Não sendo esse despacho proferido em 12-10-2022 a decisão aqui recorrida, não pode este tribunal conhecer da nulidade desse despacho no âmbito deste recurso que foi interposto do despacho proferido em 04-05-2023, que julgou deserta a instância.

Concluímos, assim, pela impossibilidade de conhecimento, neste recurso, da arguida nulidade do despacho de 12-10-2022, que não é a decisão/despacho recorrido.

2. Nulidade do ato de notificação do despacho de suspensão da instância de 12-10-2022  

A apelante, em 09-05-2023 (ref. 35569156), apresentou perante o tribunal a quo requerimento arguindo a irregularidade da notificação do despacho de 12-10-2022, que lhe foi efetuada pela secretaria em 13-10-2022, por tal notificação ter sido desacompanhada de qualquer documento anexo (certidão de óbito), ou mesmo da informação da data e do local do referido óbito, aí peticionando que fosse declarada a “nulidade da notificação com a ref.ª 441099809, datada de 13/10/2022, com o despacho de 12/10/2022, assim como os actos processuais derivados desse erro ou omissão, incluindo a sentença agora notificada proferida em 04/05/2023, da qual foi a Autora notificada com a ref.ª 448012610, por força dos arts. 195º n.º s 1 e 2, 270º n.º 2 e 157º n.º s 5 e 6”.

Tal arguição de nulidade foi devidamente efetuada perante o tribunal a quo e pelo mesmo apreciada, tendo sido julgada improcedente, nos termos que constam do despacho proferido em 05-06-2023 (ref. 449074375), transcrito no relatório.

Com efeito, as irregularidades geradoras de nulidade atinentes à tramitação processual – erro de procedimento –, seguem o regime previsto nos arts. 195.º, 196.º, 2.ª parte, 197.º a 199.º, todos do Cód. Proc. Civil, sendo, por conseguinte, perante o tribunal a quo que tem que ser arguidas e por este conhecidas, sendo então dessa(s) decisão(ões) que aprecia(m) e decide(m) sobre a (in)existência e procedência ou improcedência da arguida nulidade que pode ser interposto recurso. Só as nulidades previstas no art. 615.º do Cód. Proc. Civil é que podem ser arguidas em sede de recurso.

Não pode este tribunal de recurso, assim, conhecer aqui – e novamente – da arguida irregularidade, que até já foi apreciada e decidida pelo tribunal a quo. Sobre o assunto, ver o Ac. deste TRP de 15-12-2021, proc. n.º 515/14.3TBVCD-G.P1 [1].

Concluímos, deste modo, pela impossibilidade de apreciação das arguidas irregularidades na notificação do despacho de 12-10-2022, por as mesmas, enquadrando nulidades de procedimento e não de julgamento, não sendo de conhecimento oficioso e até já tendo sido (devidamente) arguidas e decididas pelo tribunal a quo, não poderem ser arguidas por meio de recurso nem, por maioria de razão, aqui apreciadas.

3. Nulidade do despacho de deserção da instância proferido em 04-05-2022, recorrido, por omissão de advertência prévia à autora

Defende a apelante que o despacho recorrido, que julgou deserta a instância, é nulo “nos termos da parte final do nº 1 e nº 2, do artigo 195.º do CPC, pelo facto da mesma violar os princípios do contraditório e da cooperação, plasmados, respectivamente, no disposto do nº 3 do art.º 3º, nº 1 do art.º 7º e nº 1 do art. 281º, todos do CPC, por omissão de advertência prévia à Autora/Recorrente”.

Discordamos da interpretação defendida pelo Prof. Lebre de Freitas na citada publicação doutrinária “Da nulidade da declaração de deserção da instância sem Precedência de advertência à Parte” – invocada pela apelante – de que é pressuposto da deserção da instância a existência de uma expressa advertência efetuada pelo juiz a alertar a parte onerada com a prática do ato para a deserção da instância que ocorrerá se o ato não for praticado.

De igual modo não se nos afigura possível afirmar que o princípio do contraditório (art. 3.º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil) imponha ao juiz que, em todos os casos, previamente ao julgamento da deserção da instância, notifique as partes para exercerem o contraditório. O que se impõe ao juiz – por força do dever de gestão processual previsto no art. 6.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, e por força do princípio da cooperação previsto no art. 7.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil – é a adoção de uma posição clara na gestão do andamento do processo, por forma a que seja inequívoco para as partes que o processo se encontra a aguardar a prática de um ato que incumbe à parte (e só a esta) realizar, para lhe permitir perceber que o andamento do processo depende do seu impulso processual. O juiz não tem que advertir as partes – pelo menos quando estão representadas por advogados, que devem conhecer a lei, quer quanto aos ónus, quer quanto aos efeitos da sua falta de cumprimento – para a ocorrência de determinada consequência legalmente prevista, quando a tramitação processual permite, de forma inequívoca, apreender que o andamento do processo está dependente exclusivamente da atuação/impulso processual da parte onerada com a prática do ato.

Já quando tal não suceda – ou seja, quando a situação, no caso concreto, não seja inequívoca –, a observância dos referidos princípios e deveres pelo juiz justificam a necessidade de tal clarificação, sob pena de, inclusive, ficar afastada a existência do pressuposto da negligência da parte, uma vez que a afirmação desta pressupõe a afirmação do conhecimento ou do dever de conhecimento da situação de paragem do andamento do processo e da existência do ónus (exclusivo) da parte na prática do ato ou atos passíveis de impulsionarem o andamento do processo ou fazerem cessar a sua paragem.

Nesse sentido vai a jurisprudência do nosso Supremo Tribunal de Justiça [2], como emerge da leitura dos seguintes arestos:

Ac. do STJ de 05-05-2022, proc. 1652/16.5T8PNF.P1.S1, o qual, na apreciação do argumento, invocado pelo apelante, da necessidade, no despacho de suspensão da instância, da advertência das partes para a cominação prevista no n° 1 do artigo 281° do CPC, se pronunciou no sentido de que «(…) Não se reconhece razão ao argumento indicado. As partes, através dos seus mandatários devem conhecer as disposições legais e os efeitos decorrentes da sua aplicação, motivo pelo qual estão assessoradas em juízo, excepto se o legislador impuser ao juiz que realize uma determinada advertência específica de modo expresso – norma que o recorrente não indica ter sido violada. (…)».

Ac. do STJ de 07-12-2023, proc. 18860/16.1T8LSB.L2.S1, com o seguinte sumário:

«I – A deserção da instância exige que a falta de impulso processual decorra da negligência das partes e esta deve ser avaliada casuisticamente.

II – Neste caso, recaia sobre a A. o ónus de providenciar pela habilitação, tendo a sua conduta processual dado origem a uma injustificável paragem do processo susceptível de ser sancionada com a extinção da instância.

III – E o Tribunal não estava obrigado a adverti-la desse seu encargo, nem o devia fazer, à luz dos princípios da autoresponsabilização das partes e da imparcialidade do Juiz.»

Ac. do STJ de 10-10-2023, proc. 1783/17.4T8AVR.P1.S1, o qual se pronunciou no sentido de que «(…) Não se desconhecem, mas não se acompanham, os argumentos que, em contrário, são aduzidos, na doutrina e na jurisprudência, por quem, sobre a possibilidade de ser decretada a deserção da instância quando constatada a negligência das partes no impulso processual dos autos e o decurso do prazo legal, nos casos em que o despacho de suspensão da instância não contenha a cominação que resulta da sua inércia, faz depender a validade da decisão de deserção da instância, do contraditório prévio sobre os respectivos pressupostos (artigo 3.º do Código de Processo Civil).

Antes de adere, na sequência aliás do entendimento que vem sendo adoptado pelo Supremo Tribunal de Justiça, à ideia de que tal cominação está inequivocamente expressa na lei e a parte em falta não pode invocar a existência de uma decisão-surpresa quando nenhuma atitude tomou no sentido de alertar o Tribunal para a impossibilidade ou dificuldade em impulsionar os autos dentro do prazo previsto na lei. (…)».

Ac. do STJ de 16-03-2023, proc. 543/18.0T8AVR.P1.S1, no qual, apreciando a questão – suscitada pela apelante – da violação do princípio da cooperação e do princípio do contraditório pela decisão que julgou deserta a instância, com fundamento no entendimento de que tal decisão só poderia ser proferida “depois de indagar junto dela as razões pelas quais nada havia praticado em juízo que pudesse ser tido como impulso processual interruptivo do prazo de deserção em curso”, foi emitida a seguinte pronúncia:

«(…) O princípio do contraditório, afirmado no art.º 3.º do Código de Processo Civil visa garantir que as partes são ouvidas sobre as questões de facto ou de direito que ao longo do processo sejam decididas. Nele próprio se ressalvam os casos de manifesta desnecessidade como a situação que estamos a analisar. O princípio do contraditório não existe para superar ónus processuais. Assim, o tribunal não notifica o réu que não contestou para averiguar se ele tinha condições para contestar, se percebeu o conteúdo da citação e os efeitos que para si decorrem de não contestar da acção. O réu é citado com expressa menção das consequências da não contestação e, se contestar contesta, se não contestar aplica-se o efeito cominatório da falta de contestação. O réu é citado na sua pessoa, a generalidade das pessoas não são juristas. Depois da citação provavelmente procurará o aconselhamento de um advogado, mas sempre está numa situação de maior fragilidade que o autor numa acção representado por advogado, que teve oportunidade de procurar o aconselhamento deste especialista em direito para submeter a juízo a sua pretensão de acordo com uma estratégia previamente desenvolvida.

Assim o invocado princípio do contraditório afigura-se como imprestável para a presente situação onde tudo foi notificado e esclarecido ao autor e demais intervenientes processuais, e, apenas se aguardava que ele apresentasse um dos mais simples incidentes que o Código de Processo Civil prevê.

Já sobre o artigo 7.º - princípio da cooperação – haverá que analisar que em obediência a ele as partes não devem suscitar questões infundadas. No seu número 1 estabelece o que consideramos ser o princípio basilar de toda a vida em sociedade vertido para a actuação processual.

Não se vislumbra que quebra deste dever haja o tribunal de 1.ª instância ou o tribunal recorrido incorrido já que colaboraram com o autor da forma ali mencionada, alertando o primeiro para que se mostrava em curso o prazo de deserção da instância e esclarecendo o segundo as questões que suscitou no recurso. Tão pouco se alcança que mais esclarecimentos ou advertências devesse o tribunal ter adoptado para que o autor cumprisse o ónus processual que sobre ele impendia sob pena de poder ser interpretado que, deselegantemente, estaria a considerar que o mandatário do autor não dominava os conceitos processuais em jogo.

A lei não impõe qualquer obrigação de notificar o autor para indagar das razões pelas quais manteve o processo parado, pendente do seu impulso processual. No art. 281º do Código de Processo Civil quando menciona que: “(…) considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses” não pretendeu o legislador que o tribunal abrisse um inquérito sobre as razões que levaram o autor a agir como agiu quando poderia ter agido diversamente e deduzido o incidente de habilitação em falta. A expressão – por negligência das partes – tem em vista circunscrever a deserção da instância às situações em que o processo se encontre parado por falta de impulso processual das partes não sendo aplicável quando o processo se encontra parado por motivos imputáveis ao próprio tribunal ou a terceiros. Tal negligência preenche-se com a violação de um dever de cuidado, neste caso de deduzir o incidente de habilitação e permitir, assim a regular tramitação do processo cujo ónus incumbia ao autor e não se mostra satisfeito.

Este ónus poderia ter sido afastado pelo autor se, actuando com obediência ao princípio da cooperação, caso se defrontasse com qualquer impedimento à dedução do incidente de habilitação de herdeiros, viesse, oportunamente, dar disso conta ao tribunal e solicitar apoio na remoção desse eventual obstáculo. Naturalmente que há sempre obstáculos para os quais o tribunal não é meio próprio para facilitar a remoção, mas, em todo o caso, compete à parte de quem depende a prática de um acto para normal processamento dos autos, como aqui acontece com a autora, usar da sua capacidade para o remover e pedir a intervenção do tribunal se tal se justificar para remover qualquer obstáculo à dedução do incidente.

A deserção da instância é um instrumento que o legislador faculta aos tribunais para se libertarem dos processos em que o autor, por qualquer razão, não tem mais interesse em prosseguir. O prazo de deserção da instância foi encurtado exactamente para permitir uma melhor gestão dos recursos do tribunal e constranger as partes, sobretudo o autor a não entorpecerem a acção da justiça. Foi anulada a interrupção da instância, para que o tribunal tivesse de usar menos do seu tempo útil com um processo que aparenta já “estar moribundo”. O tribunal não só não está obrigado a inquirir as partes sobre a razão da sua inércia como o não deve fazer por ser um terceiro imparcial que não deve intrometer-se nas decisões que as partes têm liberdade de adoptar como seja, não prosseguir com um processo que instauraram.

Criar artificialmente neste procedimento um incidente de prova da negligência da parte, para além da negligência objectiva de deixar o processo pendente sem praticar neles atempadamente os actos devidos, num mau uso, quando não num uso abusivo dos recursos públicos, sobretudo quando se litiga com o benefício de apoio judiciário pago pelo erário público, para recolher desculpas, notificar delas a parte contrária, vir a considerá-las fundadas ou infundadas e só depois poder declarar a deserção da instância, inviabilizará concretamente o referido encurtamento do prazo estabelecido pelo legislador, tanto mais que sempre poderão ser praticados actos até ao terceiro dia útil depois do prazo concedido e este não deverá ser inferior a 10 dias para cada parte, multiplicando o trabalho do tribunal sem razão justificável.

Se ocorrer um motivo sério que impediu a parte de praticar o acto devido no prazo legal, circunstância que a recorrente não alegou, e que será de ocorrência rara, sempre a parte poderá lançar mão da arguição do justo impedimento nessa prática e fazer prosseguir os autos. Este instrumento processual é adequado a garantir plenamente o princípio de auto-responsabilização das partes, permitindo simultaneamente ultrapassar as situações que justificadamente impediram a parte de agir diligentemente no processo. Durante o curso do prazo de deserção da instância se existirem circunstâncias justificadoras da inacção processual incumbe à parte dá-las a conhecer no processo para evitar que se complete o prazo de deserção da instância.

A consequência processual da deserção da instância é a extinção da instância que nem sequer tem como consequência a perda do direito que se pretendia fazer valer em juízo e que se poderá exercitar mais tarde, quando o nível de motivação e zelo da autora se revelar em nível superior. (…)».

Deste modo, a existência de um despacho com a expressa advertência efetuada pelo juiz a alertar a parte onerada com a prática do ato para a deserção da instância que ocorrerá se o ato não for praticado não constitui pressuposto de verificação necessária para o julgamento da deserção da instância, nem se impõe sempre, sob pena de violação dos princípios do contraditório e da cooperação, que previamente à prolação do despacho de deserção da instância seja facultado o contraditório às partes.

Tal não se confunde com a obrigação, a cargo do juiz, a quem cabe a gestão do processo, de verificar e se assegurar que é inequívoco para as partes que o processo se encontra parado a aguardar a prática de ato cuja realização incumbe à parte, o que justifica que, nos casos em que «(…) o juiz gere o processo fazendo-o aguardar um ato da parte, por entender que se está perante um caso em que o impulso apenas a esta cabe, tem a obrigação de o proclamar nos autos, ficando os contendores notificados plenamente conscientes de que a demanda aguarda o seu impulso pelo prazo de deserção.» - cfr. Paulo Ramos de Faria, O Julgamento da Deserção da Instância Declarativa — Breve Roteiro Jurisprudencial, JULGAR on line – 2015 –, pág. 17 [3].

E, numa atuação prudencial, até será sempre aconselhável que, em todos os casos, mesmo naqueles em que é evidente que o processo se encontra parado a aguardar o impulso da parte, o juiz  esclareça «(…) os restantes sujeitos processuais sobre o estado dos autos, despachando no sentido de os informar que: a) o processo aguarda o impulso do demandante; b) a inércia deste determinará a extinção da instância (em data que indicar, ou decorridos seis meses sobre a data que indicar); c) não haverá novo convite à prática do ato, sendo declarada deserta a instância, logo que decorrer o prazo apontado (art. 281.º, n.º 1); d) qualquer circunstância que impeça o autor de praticar o ato deverá ser imediatamente comunicada ao tribunal. A advertência deve surgir logo que o juiz constate que os autos carecem do impulso da parte.

Esta notificação deve ser dirigida a todas as partes, pois, ainda que não tenham o

ónus de impulsionar os autos, podem elas ter o direito de o fazer. (…)». – Cfr. Paulo Ramos de Faria, O Julgamento, cit., pág. 17.

Mas a justificada adoção pelo juiz de tal atuação prudencial, nos quadros do exercício do dever de gestão processual e em consonância com os princípios do contraditório e da cooperação (como acima ficou dito, a existência de uma situação processual que não seja absolutamente clara, permitindo a existência de equívocos, contende com a afirmação do pressuposto da negligência da parte como causa da paragem do processo), não se confunde nem se traduz na elevação da existência de despacho de advertência da parte onerada com a prática do ato para a deserção da instância que ocorrerá se o ato não for praticado, a um dos pressupostos de preenchimento necessário para a verificação da deserção da instância, que o art. 281.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil não contempla.

Concluímos, nestes termos, pela não verificação da arguida nulidade da decisão recorrida, por violação dos princípios do contraditório e da cooperação, decorrente da omissão de despacho judicial a alertar a parte da ocorrência da deserção da instância na falta de dedução, pela apelante, de incidente de habilitação de herdeiros da interveniente falecida.

4. Falta de verificação dos pressupostos da deserção da instância.

Defende, por fim, a apelante, a não verificação dos pressupostos da deserção da instância em virtude de a falta de impulso processual não se dever à “inércia ou  negligência da sua parte, mas sim, a um encadeado de factos circunstanciais e próximos, concatenadas com erros ou omissões, certamente involuntários e de boa-fé, em que incorreram a Secretaria Judicial, o Tribunal e a Autora/Recorrente”, nomeadamente, a coincidência dos óbitos da patrona da interveniente e desta, geradora de  “alguma obscuridade e ambiguidade sobre os factos”, referentes ao falecimento da interveniente HH, uma vez que a autora nunca foi “notificada do seu comprovado falecimento com a junção, pela Secretaria do Tribunal, da devida e imprescindível certidão de óbito, para que pudesse proceder em conformidade, despoletando um incidente de habilitação de sucessores.”, sendo que, “com as leis de protecção de dados, sem essa informação da data e local do óbito e documentação basilar (a certidão de óbito), a Autora/Recorrente também não conseguiria obter informações nas competentes Conservatórias de Registo Civil ou Serviço de Finanças.

Acrescenta que “os elementos objectivos que constam do processo, demonstram e comprovam especificada e documentalmente, [que] nunca a Autora/Recorrente evidenciou qualquer negligência processual nos presentes autos.”, “Pois, anteriormente, sempre que a Autora/Recorrente nos presentes autos tomou efectivo e cabal conhecimento do óbito dos vários intervenientes principais, logo interpôs o necessário incidente de habilitação de sucessores., Os quais a Autora/Recorrente, com a diligência necessária, foi requerendo para ser corrigido e/ou acrescentado, conforme informações que foi obtendo posteriormente através dos autos, de modo a que o processo judicial fosse o mais célere possível.”, concluindo que a decisão recorrida “enferma de nulidade nos termos da parte final do nº 1 e nº 2, do artigo 195.º do CPC, pelo facto da mesma violar o disposto no nº 1 do art. 281º, todos do CPC, por objectiva e  materialmente de facto não ter ocorrido por parte da Autora/Recorrente a negligência na tramitação processual, ínsita na referida norma, como o comprova a sua constante diligência documentada nos autos.”.

Dispõe o art. 281.º do Cód. Proc. Civil (Deserção da instância e dos recursos), no que aqui releva, nos seguintes termos:

1 – Sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.

(…)

3 - Tendo surgido algum incidente com efeito suspensivo, a instância ou o recurso consideram-se desertos quando, por negligência das partes, o incidente se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.

4 - A deserção é julgada no tribunal onde se verifique a falta, por simples despacho do juiz (…).

5 – No processo de execução, considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.

São, assim, pressupostos da deserção da instância a paragem do processo, motivada pela omissão de ato da parte, omissão essa negligente, que dure por mais de 6 meses.

Exige ainda a lei, para que a deserção seja atendível, a existência de uma decisão  judicial que a reconheça e declare. Sobre a natureza do despacho de deserção (constitutiva, sendo a decisão a causa da extinção da instância, ou declarativa, cfr. Paulo Ramos de Faria, O Julgamento da Deserção da Instância Declarativa — Breve Roteiro Jurisprudencial, JULGAR on line – 2015 –, págs. 9 e 13 a 15 [4].

Começaremos por dizer que a falta de preenchimento do requisito da negligência da conduta omissiva – falta de prática do ato tendente a impulsionar o processo – não gera nulidade da decisão que julga a deserção, antes constituindo erro de julgamento na prolação dessa decisão de deserção, determinando a sua revogação, e não a sua nulidade.

Cumpre, assim, apreciar se, no caso, está ou não verificado o pressuposto da negligência da autora/apelante na paragem do processo, o que pressupõe a afirmação de que a falta de andamento do processo lhe é exclusivamente imputável, estando unicamente dependente da sua atuação.

A afirmação da negligência da parte (onerada com a prática do ato) na paragem do processo pressupõe necessariamente que a parte esteja em condições de praticar o ato de que depende o andamento do processo e não o faça. «A conduta negligente é, assim, a omissão não subtraída à vontade da parte, isto é, a omissão que não resulta de facto de terceiro (estranho à parte) ou de força maior que impede o demandante de praticar o ato.

O omitente mantém os restantes sujeitos processuais e o sistema de justiça implicado no processo inutilmente ocupados e pendentes, aguardando que se digne a impulsionar a demanda que iniciou, podendo, por esta razão, admitir-se que admitir-se que a sua conduta é criticável. No entanto, a deserção da instância prescinde de um juízo de culpa (censura) sobre a conduta do demandante. Por exemplo, ainda que não se censure o autor por, antes de praticar o ato em falta, passar largos meses tentando chegar a acordo com o réu – o que se admite, embora sem conceder, pois as demoradas tentativas de acordo devem ser ensaiadas antes de se provocar o funcionamento da pesada e onerosa máquina judiciária –, tal comportamento será de qualificar como negligente, para os efeitos que nos ocupam.

Resulta do exposto que negligente significa aqui imputável à parte (causalmente imputável), e não a terceiro – como a uma conservatória que se atrasa na entrega de uma certidão – ou ao tribunal 12.. Em suma, a assunção pelo demandante de uma conduta omissiva que, necessariamente, não permite o andamento do processo, estando a prática

do ato omitido apenas dependente da sua vontade, é suficiente para caracterizar a sua negligência 13. (…)» - assim, Paulo Ramos de Faria, O Julgamento, op. cit., págs. 5 e 6.

A afirmação da imputabilidade da paragem do processo à negligência da parte pressupõe assim, necessariamente, que a mesma conheça ou devesse conhecer que o andamento do processo depende unicamente da prática de um ato que só a si incumbe praticar, e que a ausência da prática desse ato se deva à omissão da diligência normal exigível à parte, sendo que a afirmação dessa falta de diligência normal tem que ser efetuada face às circunstâncias do caso concreto. Neste sentido, vd. Ac. do STJ de 20-04-2021, proc. 27911/18.4T8LSB.L1.S1 [5]; Ac. do TRP de 22-01-2024, proc. 1117/14.0T8VNG-J.P1 [6].

No caso concreto, a tramitação processual relevante é a ocorrida a partir do despacho proferido em 12-09-2022 (ref. 439919038) – o qual suspendeu a instância até nomeação de novo patrono à interveniente HH, atenta a informação existente nos autos do óbito da patrona que se encontrava nomeada à mesma, tendo sido dada sem efeito a audiência de julgamento – até ao despacho recorrido, que julgou deserta a instância, proferido em 04-05-2023 (ref. 447936697).

Da análise desses atos e despachos verifica-se que só há dois despachos em que é feita referência ao falecimento da interveniente:

1.º) – Despacho de 04-10-2022, que – embora notificado a todas as partes – é dirigido ao patrono nomeado e à secretaria, ordenando a notificação ao patrono “que a última notificação dirigida à sua patrocinada veio devolvida com a indicação do seu falecimento. O tribunal passará a encetar diligência para confirmar o facto.”, e ordenando à secretaria que “Obtenha e imprima o assento de óbito da interveniente principal ao lado dos réus, HH.

No mesmo dia em que tal despacho foi notificado às partes, a secretaria inseriu no processo eletrónico o Auto de Declaração de Óbito, ocorrido em 25 de julho de 2022, da interveniente HH, mas não notificou as partes do teor de tal documento.

2.º) – Despacho de 12-10-2022 com o seguinte teor: “Declaro suspensa a instância, nos termos do art. 270.º, n.º 1, do CPC. Informe o ilustre patrono nomeado à interveniente falecida.

Em 13-10-2022 os mandatários das partes, o patrono nomeado e o Ministério Público foram notificados do teor do aludido despacho, e apenas do teor desse despacho.

Ou seja, não obstante o juiz ter determinado a realização das diligências destinadas a confirmar se tinha ou não tinha ocorrido o falecimento da referida interveniente principal passiva, nomeadamente, ordenando à secretaria que obtivesse e imprimisse o assento de óbito da mesma interveniente principal ao lado dos réus, HH, as partes não foram notificadas desse documento, mas apenas do despacho que suspende a instância, nos termos do art. 270.º, n.º 1, do CPC, e que ordenou se ‘Informe o ilustre patrono nomeado à interveniente falecida’.

Nos termos do disposto no art. 269.º, n.º 1, al. a), do CPC, o falecimento de alguma das partes determina a suspensão da instância, estando tal suspensão dependente da junção ao processo do documento que prove o falecimento (art. 270.º, n.º 1, do CPC: «Junto ao processo documento que prove o falecimento (…) de qualquer das partes, suspende-se imediatamente a instância (…)».

Tendo o tribunal ordenado a obtenção oficiosa do aludido documento (e disso dado conhecimento às partes), e tendo, em despacho subsequente, suspendido a instância “nos termos do art. 270.º, n.º 1, do CPC” (sem expressa indicação do nome da interveniente falecida e sem notificação do auto de óbito obtido), consideramos que, neste particular enquadramento, a notificação às partes desse documento que prova o falecimento da interveniente constitui um ato que o tribunal se encontrava obrigado a praticar, surgindo assim a notificação do referido documento como pressuposto para a afirmação do ónus da apelante de dedução do incidente de habilitação de sucessores da interveniente falecida: só a partir do conhecimento pela autora do documento que prova o falecimento e cuja obtenção foi determinada pelo tribunal é que esta toma efetivo e comprovado conhecimento da ocorrência do óbito da interveniente e das informações referentes ao local e data do óbito que são passíveis de possibilitar à parte a obtenção dos elementos necessários à instauração do incidente de habilitação de herdeiros.

Para se poder afirmar a negligência da apelante na omissão da prática do ato apto a fazer cessar a suspensão da instância – instauração do incidente de habilitação dos herdeiros da parte falecida – tinha que se poder afirmar que esta estava consciente e esclarecida de que o andamento do processo estava carecido unicamente da sua atividade, e tal afirmação não pode ser efetuada, dada a falta de notificação às partes, pelo tribunal, do auto de óbito cuja obtenção o mesmo, oficiosamente, determinou, uma vez que só a partir do conhecimento pela apelante da junção aos autos de tal documento e do teor do mesmo é que esta dispunha de todos os elementos que lhe permitiam  concluir que o andamento do processo dependia, a partir de então e em exclusivo, do seu impulso processual.

Concluímos, assim, pela falta de preenchimento de todos os pressupostos de que dependia o julgamento da deserção da instância, com a consequente procedência do recurso.

5. Responsabilidade pelas custas

A decisão sobre custas da apelação, quando se mostrem previamente liquidadas as taxas de justiça que sejam devidas, tende a repercutir-se apenas na reclamação de custas de parte (art. 25.º do Reg. Cus. Proc.).

A responsabilidade pelas custas da apelação cabe aos réus, por terem ficado vencidos (art. 527.º do Cód. Proc. Civil).

IV – Dispositivo:

Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso de apelação e, em consequência, revoga-se a decisão proferida pelo tribunal a quo, determinando-se o prosseguimento da instância.

Custas do recurso a cargo dos réus/apelados, nos termos do artigo 527.º Cód. Proc. Civil.

Notifique.


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Porto, 7 de março de 2024
Ana Luísa Loureiro
Ana Vieira
Judite Pires
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[1] Acessível na íntegra na base de dados do IGFEJ - http://www.gde.mj.pt/jtrp.nsf/.
[2] Todos acessíveis, na íntegra, na base de dados de jurisprudência do IGFEJ – http://www.gde.mj.pt/jstj.nsf/
[3] https://julgar.pt/o-julgamento-da-desercao-da-instancia-declarativa/.
[4] https://julgar.pt/o-julgamento-da-desercao-da-instancia-declarativa/.
[5] Acessível na base de dados de jurisprudência do IGFEJ – http://www.gde.mj.pt/jstj.nsf/
[6] Acessível na base de dados de jurisprudência do IGFEJ – http://www.gde.mj.pt/jtrp.nsf/