REGULAÇÃO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
DIREITO DE VISITA
ASCENDENTE
SUPERIOR INTERESSE DO MENOR
Sumário

I - O artigo 1887.º-A, do Código Civil estabelece um direito de convívio entre avós e netos em nome das relações afetivas existentes entre certos membros da família e do auxílio entre gerações;
II - O convívio entre avós e netos permite uma integração numa família mais alargada, promove a formação e transmissão da memória familiar e do sentido de pertença, fortalece recíprocos laços de afetividade, correspondendo, presumidamente, a um benefício em termos de desenvolvimento e formação da personalidade das crianças, direito que se encontra consagrado constitucionalmente.
III - No caso vertente, os progenitores da CC não lograram demonstrar que os convívios com os requerentes sejam necessariamente lesivos para o superior interesse da criança, subsistindo a presunção do carácter benéfico, em termos gerais e abstractos, do convívio das crianças com os avós.
IV - Reconhece-se, contudo, que as circunstâncias que emergem dos vários e intensos conflitos familiares que opõem requerentes e requeridos e mesmo, outros familiares, tornam particularmente difícil o restabelecimento dos convívios entre avós e neta, em condições securizantes para esta.
V - Assim, por ora, importa que esses convívios, para que sejam um momento tranquilo e psicologicamente recompensador, ocorram num meio tido como seguro para a criança e de modo que esta não receie que deles advenha qualquer consequência menos boa para o seu relacionamento com os pais.

Texto Integral

Recurso de Apelação - 3ª Secção
ECLI:PT:TRP:2024:445/23.8T8GDM.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
AA e marido, BB, residentes na Rua ..., ... ..., vieram requerer a regulamentação do direito de visita à menor, sua neta, CC contra, DD e EE, residentes na Rua ..., Rés-do-Chão, Dtº Traseiras, freguesia ..., concelho de Valongo, onde concluíram pedindo que seja determinada “a regulamentação do direito de visita dos requerentes, avós da CC e o direito ao convívio com a menor, sua neta”.

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Foi agendada data para a conferência, na qual não foi obtido consenso e foram as partes remetidas para a realização de audição técnica especializada, procedimento que terminou sem possibilidade de acordo, conforme relatório de 05.05.2023.
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As partes foram notificadas para, querendo, apresentarem alegações, nos termos previstos no artigo 39º, nº 4, ex vi artigo 67º, do RGPTC.
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Os requerentes apresentaram alegações em 02.06.2023.
Alegaram, em síntese, que coadjuvaram os requeridos nos cuidados a prestar à sua neta desde os três meses de idade, que a mesma frequentava a sua casa diariamente, onde convivia com um irmão mais velho, consanguíneo, e onde era feliz, tendo sido criados laços afectivos muito fortes entre avós e neta, estando os requerentes a sofrer muito com a recusa, que consideram injustificada, dos requeridos, de permitirem o seu convívio com a neta CC, que acreditam estar, igualmente, a sofrer por tal motivo.

Os requeridos também apresentaram alegações em 05.06.2023.
Alegaram, em síntese, que os requerentes, enquanto conviviam com a neta, desrespeitavam regularmente as orientações dos requeridos no referente a alimentação e outros aspectos.
Acrescentaram que os requerentes permitiram, até Junho de 2022, que os requeridos explorassem um café, mediante o pagamento de renda, e que, sem motivo justificativo, nessa ocasião, cessaram, não se preocupando se os requeridos ou a sua filha tinham meios de subsistência.
Mais alegaram, que, ainda assim, os requeridos continuaram a permitir o convívio dos requerentes com a neta, até Outubro de 2022, com a sua vigilância, mas aqueles provocaram frequentes desacatos e proferiram afirmações desajustadas, o que transtornava a criança, daí que os requeridos proibiram o contacto da criança com os avós, o que se revelou potenciador de maior estabilidade emocional para a criança.
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Foi determinada a realização de relatório social, o qual foi junto em 26.07.2023.
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Procedeu-se à realização da audiência de julgamento com observância das formalidades prescritas na lei.
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Foi proferida sentença em que se julgou a acção procedente e decidiu-se que os requerentes, avós paternos da CC, poderão conviver com a neta do seguinte modo:
- numa primeira fase, com a duração de quatro meses, nas instalações e mediante supervisão de entidade especializada (CAFAP), que avaliará continuamente a conveniência dos convívios para o superior interesse da CC, devendo os mesmos cessar, de imediato, caso seja detectado que se revelam prejudiciais para a criança;
- caso a primeira fase decorra em termos favoráveis, numa segunda fase, os convívios passarão a realizar-se na casa e mediante supervisão da avó materna do requerido, mãe da requerente mulher;
- a execução deste regime será alvo de acompanhamento pelos serviços da EMAT, nos termos do artigo 40º, nºs 6 e 7 do RGPTC, devendo ser apresentado um relatório informativo findos quatro meses do início dos convívios supervisionados no CAFAP, e outro relatório, findos quatro meses do início dos convívios supervisionados pela avó materna do requerido, caso estes venham a ocorrer;
- findo o segundo período de quatro meses, caso tenha existido, os convívios deverão continuar mediante supervisão da referida avó materna do requerido durante o tempo que se revele necessário, designadamente, até que a eventual melhoria das relações familiares ou a idade da CC permitam a dispensa da supervisão.
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Com vista ao início da execução do regime deverá a secretaria contactar as diversas entidades conhecidas que proporcionem o serviço de CAFAP, de modo a que a supervisão se inicie por aquela que mais cedo apresente vaga para o efeito.
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Não se conformando com a decisão proferida, os recorrentes DD e EE vieram interpor o presente recurso de apelação, em cujas alegações concluem da seguinte forma:

I.Em 05/12/2023, o Douto Tribunal a quo julgou a ação intentada pelos Requerentes, ora Recorridos, totalmente improcedente, por entender que, deveria ser determinada uma medida que estabelecesse o direito de visita dos Requerentes à filha dos Requeridos.

II. Por os Recorrentes não se conformarem com a decisão final proferida pelo Douto Tribunal a quo, interpõe o presente recurso com a seguinte motivação: factualidade não dada como provada indevidamente e errada interpretação e aplicação do artigo 1887 - A do Código Civil.

III. Os Recorrentes requerem desde já que seja decretado o efeito suspensivo do presente recurso uma vez que, caso assim não se entenda e sujeitando-se a menor CC a visitas ao avós paternos nos termos designados pela Douta Sentença de que ora se recorre a mesmo vai desde logo contra a vontade expressa da Menor CC e ainda o perigo de se sujeitar prematuramente a menina às referidas visitas resultará em diversos danos quer a nível psicológico, como sociológico e cognitivo, assim e tendo em conta o superior interesse da criança deverá o presente recurso ter efeito suspensivo até que o Tribunal da Relação do Porto se pronuncie quanto às questões abaixo elencadas.

IV. Quanto à factualidade dada como não provada erradamente deverão de ser incluídos como provados os seguintes factos que resultam da prova produzida na audiência de Julgamento e que o Tribunal ad quo entendeu desvalorizar, a saber:

V. O Avô da CC, Requerente, provocou diversos desacatos no estabelecimento comercial explorado pelos Requeridos tornando-se violento, muitas vezes na presença da Menor CC.

VI. O que provocou na Menina CC um sentimento de medo e de insegurança de estar na presença do avô que a intimida.

VII. O Requerido avô disse à Menor CC que a mãe desta ia morrer, provocando pavor e medo na menina que passou a viver amedrontada com o risco de perder a mãe.

VIII. Nesse mesmo dia à noite e porque a menina se mostrava demasiado alterada os Requeridos tendo confrontado a menina esta confirmou-lhe que o avô lhe teria dito que a mãe iria morrer.

IX. Após este episódio a menina andou bastantes dias fragilizada psicologicamente tendo pedindo para dormir junto da mãe com bastante medo de a perder.

X. Os Avôs Requerentes omitiram deliberadamente aos pais da CC que a bisavó da Menor, com quem habitavam era portadora de HIV.

XI. Tal comportamento omissivo de uma informação de tamanha relevância colocou
em risco a saúde da menor bem como assim dos seus pais.

XII. O art. 1887º - A do CC consagra que “que não podem os pais, injustificadamente, privar os filhos do convívio com os ascendentes”.

XIII. Estabelecendo-se assim uma presunção de que a relação da criança com os avós e irmãos é benéfica para esta, o que nem sempre acontecerá conforme se demonstrou no presente caso in juice.

XIV. Isto porque o interesse da criança prevalece sempre relativamente ao interesse dos avós, devendo o direito de visita ser limitado ou suprimido se prejudicar ou afetar negativamente a criança na sua estabilidade psicológica, desenvolvimento ou segurança.

XV. Em caso de conflito entre os pais e os avós da criança, o critério para conceder ou
negar o direito de visita é o interesse da criança. Para ser decretado um direito de visita da criança relativamente aos avós ou aos irmãos, basta que tal medida esteja de acordo com o interesse da criança.

XVI. Com a entrada em vigor do artº. 1887º-A do Código Civil (aditado pela Lei 84/95 de 31/8), os menores passaram a ser titulares de um direito autónomo ao relacionamento com os avós e com os irmãos, que pode designar-se como um amplo direito de visita e que não pode ser injustificadamente derrogado pelos pais, também assumido como um direito recíproco de visitas de avós e netos, ou de um direito de avós e netos às relações pessoais recíprocas, por o seu âmbito ir além de um simples regime de visitas no sentido literal do termo.

XVII. A verdade é que neste momento a Menor CC não tem qualquer interesse em conviver com os avós em face das atitudes nefastas que estes decidiram livremente levar a cabo, prejudicando assim a afetuosa relação dos avós com a neta.

XVIII. Ora que a CC tem neste momento apenas 4 anos de idade, em tenra idade os avós e em especial o Avô não se abstiveram de levar a cabo diversas atitudes que prejudicassem o bem-estar integral da sua neta, prejudicando-a muitas das vezes em detrimento do seu próprio conforto e bem-estar.

XIX. Desta forma claramente os avós pretendem assim que o seu interesse seja prevalecido em detrimento do superior interesse da neta, o que desde já não se poderá admitir.

XX. É certo que o amor e a criação de laços afetivos não se podem impor por decisão do tribunal.

XXI. Isto porque o amor não se impõe por decreto ou por sentença, conquista-se com
paciência e afeto!

XXII. Sempre se considerará que estes avós que ora reclamam o “direito” de visitas à neta não se compadeceram de igual forma em demonstrar e cuidar dos laços afetivos com o seu respetivo filho e pai da menina CC.

XXIII. Querendo agora a todo o custo que tais conflitos preexistentes e originados por estes com o filho não produzam efeitos negativos na sua relação com a neta, o que desde já não se compreende.

XXIV. Ora, na verdade os pais da CC têm vários motivos para não permitir que a CC prive atualmente com os avós, em especial a vontade expressa da menina em não querer visitar os avós paternos.

XXV. Acontece que, nos convívios familiares sempre houve várias desavenças familiares entre os pais do DD e os pais deste.

XXVI. Os avós nunca respeitaram a vontade dos pais no que toca às opções alimentares oferecendo para a neta alimentos que bem sabiam serem prejudiciais para a saúde e bem-estar da menina.

XXVII. A CC desde que deixou de estar com os avós é uma menina muito mais comunicativa e socialmente mais integrada.

XXVIII. A CC não mostra interesse em conviver com os avós.

XXIX. A verdade é que os Requerentes não cuidaram de manter relações com o filho, mas a todo o custo querem manter relações com a neta.

XXX. A menina tem medo do avô e não quer estar na presença dos avós.
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Foram apresentadas contra-alegações.
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Colhidos que se mostram os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.

2. Factos provados
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
1. A requerida, EE vive em União de Facto, com o Requerido DD, há mais de cinco anos.
2. Dessa união nasceu uma filha, em ../../2018, CC.
3. A ora Requerente, AA e o seu marido, BB são pais do requerido DD e avós da menor CC.
4. Sucede, que desde o nascimento da menina, esta ficava habitualmente com a avó, pois os seus pais exploram e trabalham num café snack-bar, perto da casa da avó, sito na mesma freguesia ....
5. Acontece, que e por forma a evitar que a menina ficasse longos períodos num café e por forma a ajudar o filho e a companheira deste, possibilitando que os mesmos pudessem trabalhar tranquilamente, a avó, AA, disponibilizou-se a tomar conta da menina desde que nasceu, tendo ficado com a mesma na sua casa durante todo o dia, após o que o seu filho DD ou a companheira vinham buscar a criança a casa da avó.
6. E foi assim a rotina da menina e a convivência diária com os seus avós durante quatro anos, e convivia com o seu irmão, FF, fruto da relação do DD com outra senhora, na casa dos avós aos fins de semana,
7. Naturalmente, que foram-se criando laços muitos fortes entre os avós e a menina, e com o seu irmão, quando lá estava em casa dos avós, sua neta e da menina com os avós, por quem nutria muito amor e carinho.
8. Ora, acontece que de há um ano a esta parte, sensivelmente em Outubro de 2022, e motivos de desavenças do filho DD e da sua companheira com a avó deste, portanto com a mãe do pai do DD, e bisavó da CC, o DD e a sua companheira proibiram os contatos dos avós, ora requerentes, com a neta, chegando mesmo a privar a requerente e o seu marido de ver a neta, no café, de conviver com a menina, CC de 5 anos, na sua casa, e nem permitem que a menina atenda os telefonemas dos avós.
9. A menor sempre conviveu com os avós paternos, desde que nasceu, os quais tomaram conta dela e foi na casa dos requerentes que a mesma passava os seus dias, feliz, a brincar e a rir.
10. A menina frequentava diariamente a casa dos avós, e acompanhada maioritariamente do pai e da mãe no Natal e ano Novo, festividades que passavam sempre todos juntos e na casa dos requerentes, por vezes também juntamente como seu irmão, FF de nove anos.
11. Pelo que, a menina, pelo menos, tinha grande afecto pelos avós paternos e estes têm grande afecto pela menina.
12. A requerente, avó da CC, sofre imenso com a ausência da neta, pois havia muita convivência entre ambas.
13. Mas, o filho só lhe diz “a menina não vai mais para aí…porque a avó, (que é bisavó da menina), vive perto e não a quero em contato com a CC…
14. Não obstante, a requerida e requerido se encontrar a trabalhar a curta distância da casa dos Requerentes, os mesmos não deixam a criança vir visitar os Avós, preferindo, deixar a criança no café que actualmente exploram.
15. Os requerentes, avós da menor CC andam desolados e desgostosos com a privação de visitas da neta e sentem a sua falta, a sua alegria e a convivência da menina para as brincadeiras com os avós que a menina tanto gostava.
16. Os requerentes, já chegaram a implorar ao requerido, DD, que os deixasse ver a menina, mas a resposta é sempre a mesma, “NÃO VÃO VER MAIS A MENINA!”
17. Isto, porque, os pais de DD continuam a conviver com a bisavó da menina, avó do DD, depois desta lhes pedir para entregar o café que anteriormente exploravam, que era sua propriedade, e com quem os requeridos estavam desavindos também por motivos de discussões com o irmão mais novo do requerido, em que aquela teria tomado o partido daquele, bem como, ainda, porque a referida avó do requerido prestou depoimento testemunhal em processo relacionado com as responsabilidades parentais do filho mais velho do requerido, a favor da ex-companheira deste.
18. O DD e a companheira, EE não aceitaram bem estas condutas da avó, D. GG, e pretenderam que também os requerentes deixassem de com aquela conviver, e a partir daqui, romperam todos os contatos e convivência com os pais, ora requerentes e com o irmão do DD, proibindo terminantemente que os pais vissem a menina e que tomassem conta dela, como sempre fizeram desde o nascimento da pequena CC.
19. Agora, desde que proibiram a criança de estar em casa dos avós e destes a visitar, a menina passou a estar durante, pelo menos, algumas horas no café que os pais exploram.
20. Quando a CC estava em casa dos avós, tinha o seu próprio quarto, com os seus brinquedos onde podia livremente brincar, tinha o baloiço que os avós compraram para a menina brincar ao ar livre e que tanto gostava….
21. Era aqui em casa dos avós que a CC convivia com o seu irmão, FF, e com quem brincava e ria, pois o pai, DD, deixou também de conviver com o seu filho, FF, deixando de o vir buscar e levar para sua casa ou de o visitar.
22. Os avós sentem muita falta de conviver e de estar com a sua neta.
23. Era na casa dos avós, onde ficava a brincar, onde fazia as refeições e onde muitas vezes pernoitava.
24. A CC gostava de passar o tempo a brincar, por vezes juntamente com o seu irmão FF, que também ele, passava muito tempo em casa dos avós.
25. E foi assim a rotina da menina e a convivência diária com os seus avós durante quatro anos, e convivia com o seu irmão, FF, fruto da relação do DD com outra senhora, na casa dos avós, sobretudo aos fins de semana.
26. Os requeridos mantêm boa relação com a avó materna do requerido, mãe da requerente AA.
27. Os requeridos manifestam não se opor a que a CC, quando crescer, se assim o entender, venha a conviver com os avós paternos.
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3. Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar:
Das conclusões formuladas pelos recorrentes as quais delimitam o objecto do recurso, tem-se que as questões a resolver no âmbito do presente recurso prendem-se com saber:
- Da impugnação da matéria de facto;
- Do regime de convívios entre os avós e a neta.

4. Conhecendo do mérito do recurso
4.1 Da impugnação da matéria de facto
Os apelantes em sede recursiva manifestam-se discordantes da decisão que apreciou a matéria de facto.
Pugnam que o Tribunal a quo deveria ter dados como provados os seguintes factos aditando-os aos factos provados:
“a. O Avô da CC, Requerente, provocou diversos desacatos no estabelecimento comercial explorado pelos Requeridos tornando-se violento, muitas vezes na presença da Menor CC.
b. O que provocou na Menina CC um sentimento de medo e de insegurança de estar na presença do avô que a intimida.
c. O Requerido avô disse à Menor CC que a mãe desta ia morrer, provocando pavor e medo na menina que passou a viver amedrontada com o risco de perder a mãe.
d. Nesse mesmo dia à noite e porque a menina se mostrava demasiado alterada os Requeridos tendo confrontado a menina esta confirmou-lhe que o avô lhe teria dito que a mãe iria morrer.
e. Após este episódio a menina andou bastantes dias fragilizada psicologicamente tendo pedindo para dormir junto da mãe com bastante medo de a perder.
f. Os avós dos Requerentes omitiram deliberadamente aos pais da CC que a bisavó da Menor, com quem habitavam era portadora de HIV.
g. Tal comportamento omissivo de uma informação de tamanha relevância colocou em risco a saúde da menor bem como assim dos seus pais.”
Vejamos, então.
No caso vertente, mostram-se minimamente cumpridos os requisitos da impugnação da decisão sobre a matéria de facto previstos no artigo 640.º do Código de Processo Civil, nada obstando a que se conheça da mesma.
Entende-se actualmente, de uma forma que se vinha já generalizando nos tribunais superiores, hoje largamente acolhida no artigo 662.º do Código de Processo Civil, que no seu julgamento, a Relação, enquanto tribunal de instância, usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância (artigo 655.º do anterior Código de Processo Civil e artigo 607.º, n.º 5, do actual Código de Processo Civil), em ordem ao controlo efectivo da decisão recorrida, devendo sindicar a formação da convicção do juiz, ou seja, o processo lógico da decisão, recorrendo com a mesma amplitude de poderes às regras de experiência e da lógica jurídica na análise das provas, como garantia efectiva de um segundo grau de jurisdição em matéria de facto; porém, sem prejuízo do reconhecimento da vantagem em que se encontra o julgador na 1ª instância em razão da imediação da prova e da observação de sinais diversos e comportamentos que só a imagem fornece.
Como refere A. Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, págs. 224 e 225, “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”.
Importa, pois, por regra, reexaminar as provas indicadas pelos recorrentes e, se necessário, outras provas, máxime as referenciadas na fundamentação da decisão em matéria de facto e que, deste modo, serviram para formar a convicção do Julgador, em ordem a manter ou a alterar a referida materialidade, exercendo-se um controlo efectivo dessa decisão e evitando, na medida do possível, a anulação do julgamento, antes corrigindo, por substituição, a decisão em matéria de facto.
Reportando-nos ao caso vertente, constata-se que a Senhora Juiz a quo, após a audiência e em sede de sentença, motivou a sua decisão sobre os factos nos seguintes meios de prova:
“O tribunal formou a sua convicção com base na análise conjugada de toda a prova produzida, de natureza testemunhal, por declarações de parte e documental, sendo de destacar o seguinte:
Assento de nascimento da criança, junto ao requerimento inicial;
Depoimentos testemunhais:
Felicidade Pimenta, mãe e sogra, respectivamente, dos requerentes e avó do requerido, em conflito com este, declarou que os requeridos a proibiram, primeiro, a si, de ver a bisneta, CC, que esta frequentava diariamente a casa dos requerentes, avós da criança e também convivia consigo diariamente, tendo até chegado a residir, com os pais, em sua casa, que confina com a dos requerentes, sendo boa a relação de todos; declara supor que os requeridos a proibiram de conviver com a bisneta por ser portadora de HIV, o que aqueles descobriram quando a requerida EE encontrou o seu medicamento na casa de banho; mais declarou que a CC brincava na piscina com os avós, adorava o avô e sentia-se bem na casa dos avós, onde também convivia com o irmão mais velho, FF, igualmente filho do requerido; declarou ainda que é proprietária do café que os requeridos exploraram até Junho de 2022 e que os proibiu de continuar tal exploração algum tempo antes, conferindo-lhes um prazo para a desocupação, porque a proibiram de conviver com a bisneta; a motivação por si apresentada não se afigurou inteiramente coerente, até porque referiu que os requeridos ainda continuaram a viver em sua casa e a permitir o convívio da depoente com a bisneta mais alguns meses após a descoberta da sua doença (o que foi confirmado pelas declarações da requerente AA e do requerido DD); posteriormente, também os requerentes foram proibidos pelos requeridos de conviver com a CC, o que, segundo lhe terá sido transmitido pelo requerente, se terá devido a um ultimato dirigido pelo requerido aos seus pais, exigindo-lhes que escolhessem entre continuarem a conviver com a depoente ou com a sua neta, ultimato a que aqueles não acederam.
Esta versão resulta confirmada, no tocante ao referido ultimato, pelos requerentes, nas declarações de parte prestadas.
Assim, nas suas declarações de parte, a requerente AA manifestou considerar que para o corte de relações entre o seu filho e a sua sogra terá contribuído a doença desta última; que desde que souberam do facto, os requeridos quiseram procurar uma casa para si, mas ainda ficaram na casa da bisavó mais cerca de meio ano e a criança continuou a ir regularmente para casa dos avós; que tomou conta da CC desde bebé; depois, em Outubro de 2022, a sua sogra terá sido testemunha da mãe do FF em Tribunal (em processo relacionado com as responsabilidades parentais) e, nesse mesmo dia, de tarde, o seu filho foi ter consigo e proibiu-a de voltar a ver a neta; à noite, quando o seu marido se deslocou ao café A..., como habitualmente, para ver a neta, terá sido impedido pelo filho, que terá chamado a polícia, tendo dito ao pai que não admitia que escolhesse a sua mãe, pelo que o proibia de voltar a ver a neta.
Nas declarações de parte, o requerente BB manifestou a impressão de que os convívios entre a sua mãe e a criança foram proibidos devido ao problema do processo referente ao FF; referiu que o seu filho DD estava de más relações com a avó, também devido a um desaguisado que teria havido com o seu filho mais novo, e que quis que o depoente escolhesse entre a sua mãe e a CC; numa primeira fase, a CC terá continuado a poder ir a casa dos avós, mas na condição, imposta pelos requeridos da inexistência de convívios com a bisavó; um dia, quando o requerido foi buscar a filha a casa dos requerentes, a mãe do requerente terá aparecido no terraço onde se encontravam e o requerido, pensando que a filha teria estado a conviver com a bisavó, passou a proibir a ida da CC a casa dos avós; numa segunda fase, o requerente passou, então, a ir ver a sua neta CC ao novo café dos requeridos, até que o requerido também o proibiu, dizendo-lhe “vós sois todos iguais” e que andavam “todos a tramar”, chamando a polícia, desde então não mais tendo os requerentes qualquer contacto com a neta.
Ambos os requerentes negaram alguma vez ter dito à CC que a sua mãe ia morrer.
Por seu turno, nas suas declarações, o requerido DD, afirmou que o corte com a sua avó se ficou a dever a um acumular de situações: por um lado, devido ao que manifestou entender como uma diferença desfavorável de tratamento entre si e o seu irmão e, por outro, por entender que a avó, ao terem ido residir para sua casa e não os ter avisado da sua doença, os colocou em risco quanto à sua saúde, atendendo à necessidade de precauções para evitar o contágio; reconheceu, contudo que após saberem da doença ainda ficaram em casa da avó cerca de 4 meses e mesmo depois de saírem daquela casa, ainda continuaram os convívios entre a CC e a bisavó (pelo que se conclui não ter sido esse o motivo); a proibição dos convívios com a bisavó deveu-se, sim, ao facto de esta ter tomado o partido do irmão do requerido numa grande discussão ocorrida por altura do Natal de 2021 (ocorrência confirmada pelo requerente); já a proibição de convívios com os requerentes ter-se-á devido a considerar que a criança ficava alterada com a presença do avô, tendo medo dele, e que a filha, após a interrogarem, na sequência do relatado pela testemunha HH (abaixo referido), terá acabado por dizer que fora o avô que lhe dissera que a mãe ia morrer (este facto, igualmente referido pela requerida EE, negado, como se referiu, por ambos os requerentes, acrescendo que a requerida também admitiu que filha sempre teve muito medo de perder a mãe, tudo sem qualquer outra possibilidade de confirmação, não foi possível estabelecer com suficiente segurança). Declarou que consideram, por isso, os requeridos que o convívio da CC com os avós é prejudicial para a estabilidade emocional da criança. No mesmo sentido foram as declarações da requerida EE.
O requerido não mencionou o facto de a avó ter prestado depoimento como testemunha no processo referente às responsabilidades parentais do seu filho mais velho (actualmente com cerca de 10 anos de idade), a favor da mãe da criança; contudo, tal situação afigurou-se relatada com particular coerência e rigor cronológicos, pela requerente AA e resulta também do confronto cronológico com o relato do requerente BB (resultando igualmente da descrição contida no relatório de ATE).
II, ex-companheira do requerido, mãe do seu filho mais velho e de relações cortadas com aquele, declarou que o seu filho FF, actualmente, não quer ir a casa do pai, não pode conviver com a irmã, CC, de quem tem muitas saudades e sentia-se desconfortável na casa do pai; declarou ainda que o FF continua a conviver regularmente com os avós paternos e que estes nunca o negligenciaram ou trataram mal.
JJ, amigo de todos os envolvidos, declarou ter presenciado, no café dos requeridos, discussões com o requerente, tendo, chegado a ser presenciadas pela criança, que ficava assustada, tendo a testemunha tido de chegar a intervir na discussão, porque o requerente estaria muito exaltado; chegou a frequentar a casa dos requeridos, onde assistia ao convívio dos requerentes com a neta, que lhe parecia normal, brincando o avô com a neta e não tendo aí presenciado discussões; frequenta regularmente o actual café dos requeridos durante a tarde, onde vê a criança, que brinca com os clientes e também brinca com a sua neta, quando aí a leva ao Domingo, parecendo-lhe estar mais comunicativa.
KK, irmã da requerida, declarou considerar que a CC, desde que deixou de conviver com os avós, lhe parece estar mais comunicativa e alegre; desconhecia o motivo concreto das desavenças familiares, embora manifestasse a impressão de que os requerentes tratavam o requerido de forma mais desfavorável do que o irmão deste, o que o magoava.
HH, cliente do café dos requeridos (quer do anterior, quer do actual), declarou ter presenciado conflitos entre requerente e requerido, no actual café deste (café A...); declarou ainda que a CC, já no café A..., lhe perguntou se a mãe ia morrer, tendo a testemunha procurado desviar a conversa a fim de distrair a criança, que parecia querer chorar, mas tendo, depois, reportado à requerida o sucedido; no desentendimento que terá presenciado entre o requerente e o requerido no café A..., a criança estaria na cozinha; considera que actualmente a CC está mais alegre e convive mais com os clientes do café; quando existiam convívios entre os avós e a neta, parecia-lhe que era uma relação normal e que os avós gostam bastante da neta, que o avô brincava com a neta, o que a testemunha presenciava, porque frequentava a casa dos requerentes; a CC dava-se bem com o irmão FF e parecia gostar de estar na casa dos avós; declarou ainda nunca ter visto os requeridos a discutirem entre si na frente da criança; chegou a ver a requerente a chegar ao café com a CC, aparentemente vinda da escola.
A questão das orientações alimentares da criança foi esclarecida em termos que se afiguraram coerentes pela requerida, que referiu ter a mesma algumas alergias alimentares, mas afigurou-se, do confronto da globalidade da prova, não ter sido esse o elementos determinativo da proibição dos convívios, e sim, o corte de relações familiares entre requeridos e requerentes, originado pelo conflito do requerido com a sua avó paterna; admitiu, não obstante, que a CC gostava muito, principalmente, do avô.
Atendeu-se ainda ao relatório de ATE, de 05.05.2023, e relatório social junto em 26.07.2023, bem como ao documento escolar junto com as alegações dos requeridos, de que se extrai uma boa evolução da CC.
Não foi, contudo, possível, estabelecer com suficiente segurança que a CC haja tido qualquer relevante evolução positiva devido ao facto de ter deixado de conviver com os avós, por se revelarem subjectivas as impressões manifestadas a tal respeito nos depoimentos e por não ser, de igual modo, suficiente para o efeito, o relatório escolar junto às alegações dos requeridos.
Quanto à demais factualidade, não provada, tal deveu-se à insuficiência ou total ausência de prova nesse sentido produzida.
Não foi produzida qualquer outra prova de relevo.”
Conforme atrás referimos os recorrentes pretendem, reduzidos ao essencial, o aditamento dos seguintes factos:
“1. O Avô da CC provocou diversos desacatos no estabelecimento comercial explorado pelos requeridos (aqui recorrentes) tornando-se violento, muitas vezes na presença da menor CC.”
Estribam-se, no que a este facto diz respeito, no texto da sentença recorrida quando aí se refere ao depoimento da testemunha JJ, a qual terá “presenciado no café dos requeridos discussões com o requerente, tendo chegado a ser presenciadas pela criança, que ficava assustada, tendo a testemunha chegado a intervir na discussão porque o requerente (avô paterno) estaria muito exaltado.”
No mesmo sentido, a testemunha HH declarou “ter presenciado conflitos entre requerente e requerido no atual café deste (café A...).”
Factualidade que, segundo os Recorrentes, se assume como relevante para a decisão da causa, pois que a menor manifesta medo em estar na presença do avô paterno.
“2. O requerido (avô da CC) disse à menor que a mãe desta ia morrer.”
Relativamente a este facto que, segundo os Apelantes, deveria ter sido dado como assente pela decisão recorrida, os mesmos socorrem-se do texto desta na parte em que se refere ao depoimento da testemunha HH, a saber “tendo a testemunha afirmado ainda que a CC, já no café A..., lhe perguntou se a mãe ia morrer, tendo a testemunha procurado desviar a conversa a fim de distrair a criança, que parecia querer chorar, mas tendo, depois, reportado à requerida o sucedido.”
Bem como às declarações prestadas pelo Recorrente quando disse que “a criança ficava alterada com a presença do avô, tendo medo dele, e que a filha, após a interrogarem, na sequência do relatado pela testemunha HH (abaixo referido), terá acabado por dizer que fora o avô que lhe dissera que a mãe ia morrer.”
Considerando os Recorrentes com base nessa factualidade que “o convívio da CC com os avós é prejudicial para a estabilidade emocional da criança”.
Alegam ainda os Recorrentes que após este episódio a menina andou fragilizada psicologicamente durante alguns dias.
“3. Os avós da CC omitiram deliberadamente aos pais da menor que a bisavó desta, com quem habitavam, era portadora de HIV.”
Relativamente a esta factualidade alegam os Recorrentes que foi a própria bisavó da menor, a testemunha Felicidade Pimenta, que confirmou perante o Tribunal que, na sua opinião, “os requeridos a proibiram de conviver com a bisneta por ser portadora de HIV, o que aqueles descobriram quando a requerida EE (mãe da menor) encontrou o seu medicamento na casa de banho”.
Concluem os Apelantes que a referida omissão colocou em risco a saúde da menor e a dos seus pais, mostrando-se a referida factualidade com igual relevo para a decisão da causa.
Tendo presentes estes elementos probatórios e demais motivação, vejamos então se, na parte colocada em crise, a referida análise crítica corresponde à realidade dos factos ou se a matéria em questão merece, e em que medida, a alteração pretendida pelos apelantes.
Vejamos, então.
A respeito do primeiro facto que, segundo os Apelantes, o Tribunal a quo deveria ter dado como assente, entendemos que não resulta do texto da decisão recorrida ou sequer do depoimento das testemunhas identificadas pelos Recorrentes que o avô paterno da menor tivesse provocado diversos desacatos no estabelecimento comercial explorado pelos requeridos (aqui recorrentes) tornando-se violento, mas antes que foram presenciadas discussões e conflitos entre o Recorrente e o Recorrido, ocorrendo uma ou outra na presença da menor, que ficou muito assustada, sendo que numa delas o Recorrido estaria muito exaltado, não se concretizando, porém, em que actos tal exaltação se traduziu.
Factualidade à qual, de resto, não ficou alheio o Tribunal a quo, pois que a sopesou na decisão recorrida quando refere que “em face de tão intenso e generalizado conflito familiar como revelam os autos, é praticamente impossível que uma criança não se aperceba da situação e não sinta o natural desconforto inerente à convivência que houvesse de ocorrer na presença dos envolvidos, o que seria, com toda a probabilidade, prejudicial para o seu bem-estar integral.”
Para, a partir daí, concluir pela necessidade, pelo menos numa fase inicial, de uma supervisão dos convívios da menor com os avós, mediante a intervenção de técnicos especializados e, posteriormente, com a mediação e/ ou supervisão de pessoa da confiança de ambas as partes de modo a procurar assegurar, na medida do possível, o interesse da criança.
Já no que tange ao segundo facto que os Recorrentes pretendem ver dado como assente, ou seja, de que o avô da menor terá dito a esta que a mãe iria morrer, a decisão recorrida fundamentou, com rigor, por que motivo não deu como provado tal facto, não nos merecendo a mesma qualquer reparo nesse particular. Com efeito, a formação da convicção do juiz não pode resultar de partículas probatórias, mas tem necessariamente de provir da análise global do conjunto de toda a prova produzida.
Por último, quanto ao último dos factos que os Apelantes pretendem ver dado como assente - o de que os avós da CC terão omitido deliberadamente aos pais da menor que a bisavó desta, com quem habitavam, era portadora de HIV - para daí extraírem a conclusão de que com isso colocaram em risco a sua saúde e a da menor, entendemos que a referida factualidade não afecta o sentido da decisão recorrida até porque ficou demonstrado em sede de audiência de discussão e julgamento, com reflexo no texto da decisão, que os Recorrentes após saberem da doença daquela ainda ficaram em casa da mesma cerca de quatro meses e que mesmo depois de saírem os convívios entre a CC e a bisavó continuaram a ocorrer, tendo a proibição dos convívios com esta ficado a dever-se à circunstância desta ter tomado o partido do irmão mais novo do Recorrente no âmbito de uma discussão que terá ocorrido por alturas do Natal de 2021.
Entendemos, assim, que da leitura da motivação da matéria de facto ressaltam claramente os motivos que levaram a Sr.ª Juiz a quo a relevar determinados factos e a não atender outros, sendo percetível – pela sua clareza e objetividade – todo o raciocínio lógico percorrido pela mesma, pelo que não merece censura a sentença recorrida.
Não esqueçamos, conforme já salientamos, que a formação da convicção do juiz não pode resultar de partículas probatórias, mas tem necessariamente de provir da análise global do conjunto de toda a prova produzida.
Improcede, por isso, a impugnação/aditamento da matéria de facto.
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4.2. Do regime de convívios entre os avós e a neta
O artigo 1887º-A do Código Civil, aditado pela Lei n.º 84/95, de 31 de Agosto, que dispõe que “os pais não podem injustificadamente privar os filhos do convívio com os irmãos e ascendentes”, veio consagrar um direito autónomo da criança ao relacionamento com os avós e com os irmãos, que pode designar-se como um amplo direito de visita e que não pode ser, de modo infundamentado, afastado pelos pais, devendo ainda ser entendido como um direito recíproco de visitas de avós e netos ou um direito de avós e netos às relações pessoais recíprocas - cf. neste sentido, Rosa Martins e Paula Távora Vítor, O direito dos avós às relações pessoais com os netos na jurisprudência recente, in Revista Julgar, n.º 10 - Janeiro - Abril 2010.
Decorre do referido normativo legal a existência de uma presunção no sentido de que a relação da criança com os avós é benéfica para esta, de modo que se os pais quiserem impedir, com êxito, esse convívio terão de invocar e demonstrar razões concretas para a proibição – cf. neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14-07-2020, processo n.º 24889/19.0T8LSB-A.L1-6.
O fim principal visado será o de promover o direito ao desenvolvimento da personalidade da criança, concretizado através das relações com outras pessoas, sendo seguro que a relação que se estabelece entre avós e netos contribui para a formação moral e para o desenvolvimento dos últimos, atento o seu cariz afectivo e a contribuição que aqueles prestam para a satisfação da necessidade emocional da criança.
Através desse convívio garante-se ainda o direito à historicidade pessoal, mediante o conhecimento dos antepassados, a sua integração na família e o acesso às origens.
Enquanto direito pessoalíssimo e direito de personalidade, o direito ao convívio com os ascendentes representa uma densificação do direito fundamental ao desenvolvimento da personalidade e do direito à historicidade pessoal do neto - cf. artigo 26º da Constituição da República Portuguesa.
Como sustentam Rosa Martins e Paula Távora Vítor, o direito dos avós às relações pessoais com os netos enquadra-se na categoria dos poderes funcionais: há um titular do poder - os avós; e o titular do interesse que através dele se prossegue - o neto. O seu exercício tem, pois, por critério orientador o interesse do neto - cf. op. cit., pág. 69.
Inicialmente, quem avaliará do interesse da criança em manter o relacionamento com os avós serão os pais, a quem o exercício das responsabilidades parentais está confiado, e que poderão, em determinado momento, identificar uma causa justa para impedir o contacto entre avós e netos.
O conteúdo deste direito deve delinear-se não necessariamente pela periodicidade dos contactos, mas pela exigência de uma certa regularidade e por períodos suficientes para que seja fomentada uma comunicação inter relacional entre as partes, ou seja, deve ser visto como um direito dos avós às relações pessoais com os netos.
Não obstante a amplitude que lhe deve ser reconhecida, é importante destacar a diferença entre o direito dos avós e os poderes-deveres abrangidos pelas responsabilidades parentais (cf. artigo 1878º do Código Civil), desde logo, o primeiro não abrange, como os segundos, o poder-dever de guarda sobre a criança, que, por regra, cabe aos pais (cf. art.ºs 1901º e 1905º do Código Civil), nem tão-pouco se identifica com o “direito de visita” de um dos progenitores (o não guardião), porque tem menor amplitude, não cabendo também aos avós uma actuação no âmbito do exercício de outros poderes funcionais, como o poder-dever de educação.
O ponto fulcral é que será o interesse do neto que irá configurar o direito dos avós, enquanto poder funcional, que deve ser orientado e justificado posto que se revele adequado àquele interesse. O direito “de visita” dos avós pode, pois, ser limitado ou até mesmo suprimido quando seja susceptível de causar maior prejuízo ou afectar negativamente a criança.
Como referem Andreia Martins, Bruno Alcarva e Débora Marques, o direito dos avós está sempre condicionado ao superior interesse da criança, que deve ser também o objectivo final do respectivo exercício, tal como decorre do disposto no artigo 3º, n.º 1 da Convenção dos Direitos da Criança, Adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990, e do artigo 24º, n.º 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, Proclamada em 7 de Dezembro de 2000; tendo isto em conta, o direito pode ser exercido a qualquer momento, seja por iniciativa da criança, seja por iniciativa de quem pretenda obter ou manter a relação com ela. Ponto é que, em caso de conflito com as necessidades dos adultos é o interesse da criança que deve prevalecer - cf. Children in Post-Modern Families: The Right of Children To Have Contact With Attachment Figures, in ebook Direito da Família - Vária, Outubro 2018, pág. 92.
Os pais podem limitar ou recusar o direito dos avós, cabendo ao tribunal apreciar se o motivo da recusa constitui uma causa justa, o que deve ser avaliado “de acordo com os parâmetros da proporcionalidade em sentido estrito, da necessidade e da adequação em relação ao interesse do filho” - cf. Rosa Martins e Paula Távora Vítor, op. cit., pág. 75.
Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4-10-2018, processo n.º 195/15.9T8AMD-D.L1-2, no desenvolvimento do estatuído no n.º 2 do artigo 1878º do Código Civil quanto à autonomia da criança na organização da sua vida e à atendibilidade da sua opinião, o menor tem “o direito de conviver com quem quiser, excepto nos casos em que houver motivo justificado para ser privado desse convívio, mas mesmo nestes casos terão de ser tidas em consideração a sua idade e maturidade. E ninguém, por isso mesmo, o pode obrigar a qualquer convívio: o menor não é objecto de qualquer direito de visita. Tem direito ao desenvolvimento da sua própria personalidade, podendo escolher as pessoas com quiser conviver, salvo se essa escolha se mostrar contrária ao seu interesse”.
Face ao patente conflito entre os progenitores da menor, ora recorrentes e os seus avós, ora recorridos, impõe-se, naturalmente, a consideração do superior interesse da criança na fixação do direito de visita ou convívio, sendo que, no caso, aquele não se compadece com a extinção dos convívios tal como pretendem os recorrentes.
Como é sabido, o interesse superior da criança deve ser entendido como “o direito da criança ao desenvolvimento são e normal no plano físico, intelectual, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade.” - cf. art.º 4º, a) da LPCJP; Tomé d`Almeida Ramião, Regime Geral do Processo Tutelar Cível Anotado e Comentando, pág. 23.
Por se tratar de um conceito vago e genérico, existem vários factores relativos à criança e aos pais que devem ser ponderados na concretização de qual seja o superior interesse da criança, identificando-se os seguintes: as necessidades físicas, religiosas, intelectuais e materiais da criança, a sua idade, sexo, grau de desenvolvimento físico e psíquico, a sua adaptação ao ambiente (escola, família, amigos, actividades extra-escolares), a sua maturidade emocional e estabilidade psicossocial, entre outros.
Tendo presente os dados factuais apurados e que foram correctamente tidos em consideração na decisão recorrida, concorda-se com esta quando afirma que não existem, no caso, motivos bastantes para impedir a manutenção dos contactos entre os apelados e a neta, tanto mais que, desde o seu nascimento aqueles auxiliaram os progenitores a tomar conta dela, existindo na altura uma boa relação entre todos.
Mais do que isso, resultou positivamente demonstrado que a menor gosta dos avós.
Todavia, face à conflituosidade existente entre os avós e os progenitores e aos próprios receios manifestados pela criança, seguro é que o restabelecimento dos convívios, tal como foi estabelecido pela 1ª instância, se afigura adequado a promover o serenar dos conflitos, permitir a ligação dos avós com a neta e a aumentar a confiança de ambas as partes, que, mais à frente, possa permitir um aligeiramento da regulação das condições em que tais convívios devem ter lugar.
Como bem se refere na decisão recorrida, o importante é que as visitas satisfaçam o interesse da menor quanto ao estabelecimento das suas próprias relações significantes com a família alargada.
Atento o princípio da subsidiariedade da intervenção do Estado na família, a possibilidade de impor judicialmente um direito de visita contra a vontade dos pais só deve concretizar-se em casos extremos e desde que a intervenção do Tribunal possa resolver o conflito funcionando como um factor pacificador – cf. neste sentido, Maria Clara Sottomayor, Regulação do Exercício do Poder Paternal nos Casos de Divórcio, 3ª edição, Almedina, pág. 102 e seguintes apud acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 7-04-2022, processo n.º 1369/21.9T8BRG-B.G1.
Além disso, enquanto poder funcional que é, o direito dos avós às relações pessoais com o neto não pode interferir na relação da criança com os pais nem com os poderes-deveres destes característicos das responsabilidades parentais.
Como tal, reconhecendo a importância dos convívios da menor com os avós, tanto mais que dela cuidaram desde o nascimento, há que admitir que, apesar dos conflitos com os pais, tal convívio terá a virtualidade de fortalecer os laços de afectividade e do sentido de pertença da menor, o que constitui um benefício em termos de desenvolvimento e formação da sua personalidade.
Na realidade, não se demonstra que o convívio da criança com os avós paternos, só por si, seja de ter por prejudicial à criança. Com efeito, os progenitores manifestam não se opor a que a CC, quando crescer, se assim o entender, venha a conviver com os avós paternos; mas é de prever que, cortando-se os laços com aqueles na tenra idade em que a criança está, será reduzida a probabilidade de que venha, mais tarde, a manifestar tal interesse.
Importará considerar, assim, que os progenitores da CC não lograram demonstrar que os convívios com os requerentes sejam necessariamente lesivos para o superior interesse da criança, subsistindo a presunção do carácter benéfico, em termos gerais e abstractos, do convívio das crianças com os avós.
Reconhece-se, contudo, que as circunstâncias que emergem dos vários e intensos conflitos familiares que opõem requerentes e requeridos e mesmo, outros familiares, tornam particularmente difícil o restabelecimento dos convívios entre avós e neta, em condições securizantes para esta.
Assim, por ora, importa que esses convívios, para que sejam um momento tranquilo e psicologicamente recompensador, ocorram num meio tido como seguro para a criança e de modo que esta não receie que deles advenha qualquer consequência menos boa para o seu relacionamento com os pais, daí que devam ter lugar tal como determinado pela 1ª instância.
Com efeito, só assim será possível o atenuar do clima hostil entre os avós e os progenitores, potenciando a sua aproximação em defesa e promoção do interesse da menor, de modo a que tais convívios possam ser gratificantes e sadios para esta, sem a constante percepção ou receio de que os pais não gostem de algo, evitando-se, assim, que a criança seja obrigada a uma escolha de lealdades e que se sinta insegura, o que poderia ocorrer se tais convívios, num momento em que as partes ainda não conseguiram ultrapassar os seus desentendimentos.
Como tal, não se descortinam razões para dissentir da fundamentação aduzida na decisão recorrida, reconhecendo a adequação do regime estabelecido pela sua proporcionalidade face aos factos apurados e por atender ao interesse da menor CC na manutenção dos laços de afectividade com os avós.
Impõe-se, por isso, o não provimento da apelação.
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Sumariando em jeito de síntese conclusiva:
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5. Decisão
Nos termos supra expostos, acordamos neste Tribunal da Relação do Porto, em julgar não provido o recurso interposto, confirmando a decisão recorrida.
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Custas a cargo dos apelantes.
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Notifique.

Porto, 07 de Março de 2024
Os Juízes Desembargadores
Paulo Dias da Silva
João Venade
António Carneiro da Silva

(a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas e por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)