RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
CONFIRMAÇÃO IN MELLIUS
INDEMNIZAÇÃO
ADMISSIBILIDADE
REJEIÇÃO PARCIAL
IRRECORRIBILIDADE
PENA ÚNICA
CÚMULO JURÍDICO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
ABUSO SEXUAL DE MENORES DEPENDENTES
Sumário


I – Nos termos das disposições conjugadas nos artigos 400º, n.ºs 1, als. e) e f), e 432º, n.º 1, al. b), ambos do CPP, não é admissível recurso para o STJ da decisão do tribunal da relação que confirme, ainda que in mellius e mesmo in pejus, no caso daquela al. e), a decisão condenatória do tribunal de primeira instância quanto às penas concretamente aplicadas não superiores a 5 nem a 8 anos de prisão, devendo, se tiver sido interposto e admitido, ser rejeitado nessa parte.

II – Essa irrecorribilidade decorrente da designada “dupla conforme” abrange a medida das penas e quaisquer outras questões de natureza jurídica às mesmas direta e exclusivamente atinentes que no caso se pudessem colocar quanto a nulidades, inconstitucionalidades e vícios da decisão recorrida, outrossim à atenuação especial das penas, da unidade, continuação ou pluralidade criminosa e aos princípios da presunção da inocência, do in dubio pro reo, da livre apreciação da prova e da culpabilidade.

III - E, após a entrada em vigor da atual redação dos artigos 432º e 434º do CPP, introduzida pela Lei n.º 94/21, de 21.12, os recursos interpostos para o STJ “de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400º”, previstos na al. b) do n.º 1 daquele primeiro preceito, não podem ter como fundamento os vícios e nulidades referidas no artigo 410º, n.ºs 2 e 3, do mesmo diploma legal.

IV - Nesses casos, ainda que tenha sido admitido pelo tribunal da relação sem qualquer restrição, decisão que não vincula o tribunal ad quem, o recurso tem de ser rejeitado parcialmente, por inadmissibilidade legal, nos termos das citadas disposições legais, conjugadas com as dos artigos 414º, n.ºs 2 e 3, e 420º, n.º 1, al. b), também do CPP, sem prejuízo, naturalmente, do seu conhecimento oficioso, se do texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, tais vícios e nulidades resultarem evidentes.

V –Também quanto às indemnizações arbitradas, se o seu montante não exceder a alçada do tribunal da relação ou verificando-se a “dupla conforme”, ainda que in mellius, da sua decisão não será admissível recurso para o STJ, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 400º, n.ºs 2 e 3, do CPP e 629º, n.ºs 1 e 2, a contrario, e 671º, n.º 3, do CPC e 44º, n.º 1, da LOSJ, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26.08, com as consequências referidas no ponto anterior.

VI – Dessa irrecorribilidade, como é jurisprudência uniforme do STJ e do TC, também acolhida doutrinalmente, não resulta qualquer violação das garantias de defesa do arguido, nomeadamente quanto ao direito ao recurso, que a CRP impõe, pelo menos (mas apenas) num grau, o suficiente para assegurar o duplo grau de jurisdição, em respeito pelos ditames dos seus artigos 20º e 32º, que consagram o direito fundamental de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva e as garantias do processo criminal, e correspondentes instrumentos de direito internacional a que Portugal se encontra vinculado, designadamente a Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (CEDH – artigo 2.º do Protocolo n.º 7), a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE – artigo 48º) e o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP - artigo 14.º, n.º 5).

VII – Conforme tem sido entendimento pacífico e uniforme na jurisprudência e na doutrina, a atenuação especial opera apenas quanto às penas parcelares e não já no âmbito da pena única resultante de cúmulo jurídico das penas aplicadas aos crimes em concurso.

VIII – Atentas as elevadas exigências de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir, sob pena de postergação da proteção dos bens jurídicos que com as incriminações se pretendem acautelar, o da liberdade e autodeterminação sexual, valor supremo de um Estado de direito, fundado na dignidade e na inviolabilidade da pessoa humana, constitucional e legalmente consagrado, que aqui foi alvo de duplo e plúrimo atentado, a pena conjunta de 11 (onze) anos e 8 (oito) meses de prisão, resultante do cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas aos 22 crimes de abuso sexual de crianças e de menores dependentes, é justa, adequada e fixada de harmonia com os princípios da necessidade e da proporcionalidade, sem ultrapassar a medida da culpa do arguido, e de acordo com a referencial jurisprudencial do STJ para situações similares.

Texto Integral



Processo n.º 320/19.0JABRG.G1.S1.


(Recurso Penal)


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Acordam, em Conferência, na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça


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I. Relatório


1. Por acórdão de 29.02.2023, do Juízo Central Criminal de ... (J.....) – J ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, foi o arguido AA, nascido a ... de ... de 1969, com os demais sinais dos autos, condenado, nos termos do seguinte dispositivo, que se transcreve na parte que ora releva:


«(…)


Pelo exposto, decide-se:


A. ABSOLVER o arguido AA, pela prática, em autoria material e concurso efectivo, de:


(…)


B. CONDENAR o arguido AA, pela prática, em autoria material e concurso efectivo, de:


i. para 1 (um) crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 1 do C.P. e 177.º, n.º 1, al. b) [na pessoa da menor BB - factos sob o ponto 12], ambos do C.P., a pena de 3 (três) anos de prisão;


ii. 2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 3 als. a) e c) e 177.º, n.º 1, al. b) [na pessoa da menor BB - factos sob os pontos 11 e 13], ambos do C.P., na pena parcelar de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, para cada um deles; e,


iii. 6 (seis) crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, al. b), ambos do C.P. [na pessoa da menor BB - factos sob os pontos 7, 8, 9, 10 e 14], na pena parcelar de 5 (cinco) anos de prisão, para cada um deles;


iv. 2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 1 do C.P. e 177.º, n.º 1, al b) [na pessoa da menor CC factos sob os pontos 21, 22 e 26], ambos do C.P., na pena parcelar de 3 (três) anos de prisão, para cada um deles;


v. 1 (um) crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 3, al. c) e 177.º, n.º 1, al. b), ambos do C.P. [na pessoa da menor CC factos sob o ponto 28], na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;


vi. 9 (nove) crimes de abuso sexual de crianças agravados, p. e p. pelos arts. 171º, n.º 2 e 177º, n.º 1, al. b), ambos do C.P., na pena parcelar de 5 (cinco) anos de prisão, para cada um deles; e,


vii. 1 (um) crime de abuso sexual de menor dependente, p. e p. pelos arts. 172.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. b), ambos do C.P., na pena de 4 (quatro) anos de prisão.


viii. em cúmulo jurídico, vai condenado na pena única de 11 (onze) anos e 8 (oito) meses de prisão.


C. ARBITRAR, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 67.º-A, n.º 1, al. b) e 82.º-A, ambos do C.P.P. e do art. 16.º, n.º 2 do Estatuto da Vítima, as seguintes indemnizações:


- à vítima BB, a quantia de 33.000,00€ (trinta e três mil euros);


- à vítima CC, a quantia de 45.000,00€ (quarenta e cinco mil euros)».


2. Inconformado, interpôs o referido arguido, em 9.05.2023, recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães (TRG), que, por acórdão de 14.11.2023, o julgou parcialmente procedente, nos termos do seguinte dispositivo, que igualmente se transcreve:


«(…)


Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em:


- Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido AA revogando-se a decisão recorrida no que concerne ao arbitramento de indemnização às vítimas, nos seguintes termos:


- Decide-se arbitrar, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 67.º-A, n.º 1, al. b) e 82.º-A, ambos do C.P.P. e do art. 16.º, n.º 2 do Estatuto da Vítima, as seguintes indemnizações:


- à vítima BB, a quantia de 25.000,00€ (vinte e cinco mil euros);


- à vítima CC, a quantia de 30.000,00€ (trinta mil euros).


- Mantendo-se, em tudo o mais, o acórdão recorrido nos seus precisos termos


Sem Custas».


3. Ainda inconformado, interpôs o arguido AA, em 18.12.2023, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), apresentando as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):


«A) CONCLUSÕES DE RECURSO


I- Vem o presente recurso interposto do douto acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido nos autos de processo acima identificado, que julgou improcedente a Apelação confirmando a sentença recorrida, proferida em sede de 1.ª Instância, a qual resultou na condenação do Recorrente.


II- O presente recurso tem como objecto a matéria de direito do acórdão proferido nos presentes autos no que é relativo ao aqui Recorrente que foi condenado como autor material, de 1 (um) crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 1 do C.P. e 177.º, n.º 1, al. b) [na pessoa da menor BB - factos sob o ponto 12], ambos do C.P., a pena de 3 (três) anos de prisão; 2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 3 als. a) e c) e 177.º, n.º 1, al. b) [na pessoa da menor BB - factos sob os pontos 11 e 13], ambos do C.P., na pena parcelar de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, para cada um deles; 6 (seis) crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, al. b), ambos do C.P. [na pessoa da menor BB - factos sob os pontos 7, 8, 9, 10 e 14], na pena parcelar de 5 (cinco) anos de prisão, para cada um deles; 2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 1 do C.P. e 177.º, n.º 1, al b) [na pessoa da menor CC factos sob os pontos 21, 22 e 26], ambos do C.P., na pena parcelar de 3 (três) anos de prisão, para cada um deles; 1 (um) crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 3, al. c) e 177.º, n.º 1, al. b), ambos do C.P. [na pessoa da menor CC factos sob o ponto 28], na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão; 9 (nove) crimes de abuso sexual de crianças agravados, p. e p. pelos arts. 171º, n.º 2 e 177º, n.º 1, al. b), ambos do C.P., na pena parcelar de 5 (cinco) anos de prisão, para cada um deles; 1 (um) crime de abuso sexual de menor dependente, p. e p. pelos arts. 172.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. b), ambos do C.P., na pena de 4 (quatro) anos de prisão; em cúmulo jurídico, condenado na pena única de 11 (onze) anos e 8 (oito) meses de prisão, e a um arbitramento no montante global de € 55.000,00 (cinquenta e cinco mil euros) a título indemnizatório, nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 67º-A, n.º 1 alínea b) e n.º 3, e 82º-A do C.P.P. e 16º n.º 2 do Estatuto da Vítima.


III- Ora, a pena única aplicada ao arguido em cúmulo jurídico mostra-se excessiva assim como as penas parcelares da qual aquela resultou, tendo em conta os parâmetros legais que deverão ser considerados aquando da aplicação concreta da sanção, nomeadamente os ínsitos nos artigos 40.º, 70.º e 71.º do CP.


IV- Entende o Recorrente que, face à factualidade dada como provada em juízo e ao Direito aplicável, a decisão recorrida não só viola, no caso sub judice, o sentimento ético-jurídico de Justiça que ao caso cabe e ainda que tal solução, na aplicação do direito, consubstancia uma violação da lei substantiva, na vertente do erro de interpretação da mesma, não pode conformar-se com o douto Acórdão recorrido, devendo mesmo acrescentar que, além da inconformação, o mesmo se revela destituído de qualquer fundamentação que, de per se, afastasse de uma perceção normal dos factos em causa, quer do direito aplicável ao caso concreto, o que motiva o presente recurso.


V- O artigo 127º do C.P.P ao consagrar o princípio da livre apreciação da prova elege como ideia, que o julgador não se encontra sujeito às regras rígidas da prova, o que não poderá significar que a atividade de valoração da prova seja arbitrária, mas sim vinculativa à busca da verdade e limitada pelas regras da experiência comum e por restrições legais.


VI- Assim, ao legislador cabe apreciar e ponderar a prova “segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.


VII- O Julgador deve ser livre de decidir segundo normas de bom senso, as regras da experiência comum e da lógica, mantendo sempre a sua capacidade crítica, o distanciamento e a ponderação.


VIII- Inexistindo uma prova coerente e imparcial, o tribunal deve concluir pela inconcludência da prova e ser remetido do in dúbio pro reo, dando por via disso como não provado os factos constantes da acusação.


IX- Destarte, não se pode conceber que, à luz do princípio matricial da presunção de inocência, consagrado no artigo 32º nº 2 da CRP, o Tribunal assente o seu juízo sobre os elementos de prova na credibilidade que determinado meio de prova oferece.


X- Com efeito o artigo 127º não pode ser utilizado como proteção para que o julgador possa tecer determinadas considerações sobre a postura e conduta dos arguidos, aqui recorrentes e ainda por cima valorá-las na decisão final.


XI- No processo de decisão, o julgador deve apreciar, livre e criticamente, cada elemento de prova, tendo presente que o sistema jurídico lhe impõe limites ao próprio juízo probatório, como o princípio da presunção de inocência, a existência de meios e elementos de prova subtraídos à livre apreciação do julgador e o recurso a normas de bom senso, regras de experiência comum e lógica


XII- A atividade da apreciação da prova tem como limite o princípio da presunção da inocência, constitucionalmente consagrado no artigo 32º nº 2 da CRP.


XIII- Princípio este que deve ser aplicado em todos os momentos do processo penal, nomeadamente no momento da apreciação da prova e na forma como é conseguida, pelo que deverá nortear o julgador até no juízo sobre a credibilidade de um depoimento.


XIV- Assim, os factos cuja veracidade seja duvidosa, deverão ser tidos como provados ou não provados consoante seja mais favorável à arguida.


XV- De facto, a presunção de inocência impede ao juiz de valorar contra reum, a própria conduta da arguida durante a audiência de julgamento, uma vez que qualquer dúvida sobre as suas declarações deve ser resolvida do modo que lhe seja mais favorável.


XVI- Ademais a apreciação da prova está vinculada, e impõe, o recurso a regras de bom senso, a regras de experiência comum e da lógica.


XVII- Pretendeu, o legislador com este limite exigir do julgador uma atividade decisória que se coadune com a própria comunidade.


XVIII- Tal adequação só é possível se o julgador, na sua ponderação, tiver em conta o quadro de valores da sociedade em geral e da comunidade local onde terão ocorrido os factos, sob pena de a sua decisão não poder produzir as finalidades da prevenção geral e especial.


XIX- Ora, em face dos factos dados como provados e não provados, é possível afirmar que ocorreu erro crasso na apreciação da prova.


XX- Com efeito mal andou o douto tribunal recorrido ao basilar a sua apreciação nas declarações Ofendidas/menores, que aliás se revelam incoerentes, não curando da correta interpretação do depoimento prestado.


XXI- Sendo que se fosse tido realmente em conta o depoimento de todas as testemunhas, esta não seria a convicção formada pelo tribunal.


XXII- No mesmo sentido, é inconstitucional o acórdão proferido pelo Tribunal a quo que, numa ponderação vaga, subjectiva e imprecisa, não se refere em específico quais os factos que estão determinados e dados como provados contra o Recorrente.


XXIII- Ao não prevalecer a inocência do Arguido e ignorar a inexistência de prova viola-se, em conclusão, a presunção de inocência do Arguido.


XXIV- Os depoimentos em audiência de julgamento e as declarações para memória futura de duas menores, com uma relação muito afetiva com o Arguido, não podem ser suficientes para o tribunal condenar o Recorrente com base principal neste meio de prova (notoriamente insuficientes).


XXV- Ao existir dúvida fundada deve prevalecer o p. in dubio pro reo.


XXVI- A resolução criminógena a que o Recorrente foi condenado, inexistindo fixação do objecto, não existindo actos de execução, deve o mesmo ver-se ser Absolvido.


XXVII- Não existindo correcto funcionamento de culpa, por violação do p. da legalidade, verifica-se uma inconstitucionalidade por incapacidade de circunstanciação temporal.


XXVIII- O acórdão proferido viola o p. da culpa e viola, em concreto, o artigo 32.º da CRP, sendo por isso ferido de inconstitucionalidade.


XXIX- É nulo o acórdão que não fundamente o teor da condenação e que não examine criticamente a prova.


XXX- Os acórdãos têm que ver respeitado um dever de fundamentação nos termos do artigo 379.º n.º 1 alínea a), 374.º n.º 2 e 122.º, ambos do CPP, sob pena de nulidade.


XXXI- Ao não fundamentar a decisão, por se basear o Tribunal na convicção formada apenas em declarações das menores, deverá ser julgado nulo porque tal não pode ser suficiente a uma condenação.


XXXII- Os pressupostos de culpabilidade p. no artigo 388.º do CPP não foram indagados nos autos no que respeita à actuação do Arguido, ignorando-se qual a culpa e qual a razão da sua conduta, sendo por isso o acórdão nulo.


XXXIII- Acresce, a todos estes factos, o Relatório de Perícia de Natureza Sexual em Direito Penal (cfr. fls. 146 a 148), elaborado pelo Gabinete Médico-Legal e Forense ..., relativamente as menores considerou o seguinte: “(…) Analisando a informação relativa à situação em análise e o exame objetivo efetuado e acima descrito, pode considerar-se que a compatibilidade entre essa informação e o exame efetuado é provável, mas não demonstrável.”


XXXIV- Nessa medida, e em conclusão, deverá ser considerada errada a qualificação jurídica dos crimes e deverá ser o Arguido condenado apenas na prática de DOIS crimes de abuso sexual de menor nos termos do artigo 171.º n.º 3 alínea a) e c) do Código Penal, na moldura penal atendendo à prisão, suspensa na sua execução.


XXXV- Sabido como é que a realidade da vida a que nos referimos é uma realidade resultante da referência, no caso, negação, de valores jurídico-penais, bens jurídicos.


XXXVI- É também clara a conexão espacial e temporal.


XXXVII- Por outro lado, decorre dos factos que, a ocorrerem, sem violência, resistência da ofendida, sem abuso de poder, medo ou ameaças, ou qualquer tipo de coação por parte do Arguido.


XXXVIII- Diga-se, aliás, que nas declarações em audiência de julgamento e também para memória futura das Ofendidas, elas indicaram que gostavam do Arguido e possuíam uma boa relação com este.


XXXIX- Portanto, a provada factualidade não permite estabelecer que houve vinte e duas resoluções criminosas.


XL- Outros elementos teriam de ser dados por provados para que se pudesse concluir no sentido pretendido.


XLI- Cada uma das condutas do arguido – cada relação sexual – não é autónoma em relação às outras, sujeita a um juízo de censura único, a uma unidade de resolução, constituindo, assim, UM ÚNICO CRIME (neste caso, dois), previsto e punível pelo artigo 171º, nº 1 , n. 2 e n. 3 e 177º, n.º 1, b) do C.P.,


XLII- Atendendo a todos os pressupostos elencados do artigo 50.º do Código Penal, deverá o Tribunal ad quem alterar a pena de prisão aplicada, reduzindo-a para o limite mínimo (em face da necessária atenuação especial) e, também, suspendendo-a em qualquer caso na sua execução.


XLIII- O Arguido não tem antecedentes criminais por crimes da mesma natureza.


XLIV- O próprio relatório social do Arguido, conclui que na eventualidade do arguido ser condenado, e se a pena concretamente aplicada o permitir, afigura-se-nos existirem condições para a execução de medida na comunidade que contemple uma avaliação especializada e eventual intervenção estruturada no âmbito dos comportamentos sexuais abusivos, visando a interiorização do desvalor da sua conduta e a prevenção da reincidência.


XLV- Acresce o facto do Arguido já não viver com as menores, nem terem qualquer convivência.


XLVI- No mesmo sentido, não deverá ser arbitrada nenhuma reparação às ofendidas/vítimas, nos termos do artigo 82º-A, do Código de Processo Penal, e do artigo 16º, este do Estatuto da Vítima.


XLVII- Para além de não terem sido demonstrados, em concreto, a existência de danos nas ofendidas/vítimas, para além de incómodos sofridos pela actuação do arguido, sem que, porém, estes assumam uma gravidade tal que mereçam a tutela do direito.


XLVIII- Nem na fase de inquérito, nem na fase de julgamento, as ofendidas/vítimas, nem o seu pai, nem a sua mãe, se pronunciaram quanto ao arbitramento da reparação dos prejuízos, pelo que esta inação contém também implícita uma oposição a tal reparação.


XLIX- Nessa medida, o Arbitramento de Indemnização deverá ser sempre improcedente.


L- Sem prejuízo, o Arbitramento da Reparação de Prejuízos é exagerado e reputa-se desproporcional, revelando-se excessivo o montante fixado pelo Tribunal a quo, pelo que, a ser arbitrada qualquer indemnização, deverá a mesma ser fixado em montante bem inferior.


LI- Na verdade, o montante arbitrado é manifestamente exagerado, especialmente se tivermos em conta que não se provou que os ilícitos criminais realmente se perpetraram, para além de a situação pessoal e económica do Recorrente não ser particularmente favorável, devendo ser sempre reduzido.


LII- Face ao exposto, não pode aceitar-se o quantum indemnizatório porque se afigura manifestamente injusto e desajustado às possibilidades económicas do recorrente, conforme foi dado como provado no douto Acórdão.


LIII- Com o acórdão recorrido violaram-se os artigos, 32.º, 205.º da Constituição da República Portuguesa, 8.º e 483º do Código Civil, 379.º n.º1 alínea a), 374.º nº2 e 122.º, ambos do Código de Processo Penal, 122.º e 368.º do Código de Processo Penal, 187.º, 188.º, 189.º do Código de Processo Penal, 355.º do Código de Processo Penal, 410.º do Código de Processo Penal, 323.º alínea f) e 327.º n.º 2 do Código de Processo Penal, 343.º n.º 2 do Código de Processo Penal, 323.º alínea f) e 327.º n.º 2 do Código de Processo Penal, 412.º do Código de Processo Penal e 170.º, 171.º do Código Penal.


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TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO, Se requer muito respeitosamente a V/ Exas. que admitam o presente recurso e que o julguem totalmente procedente e, consequentemente, por via do presente recurso, ser o acórdão recorrido revogado e ser o Recorrente absolvido dos crimes em que veio a ser condenado ou, caso assim não se entenda, o que não se concede e apenas concebe por mera cautela, ser alterada a qualificação jurídica do crime, e, em relação à pena de prisão aplicada, reduzindo-a para o limite mínimo (em face da necessária atenuação especial) e, também, suspendendo-a em qualquer caso na sua execução


FAZENDO ASSIM, VOSSAS EXCELÊNCIAS, A INTEIRA E HABITUAL, JUSTIÇA!!!!».


4. O recurso foi admitido por despacho do Juiz Desembargador relator, de 4.01.2024, para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.


5. O Ministério Público junto do TRG respondeu, em 7.02.2024, ao recurso do arguido, pronunciando-se pela sua inadmissibilidade parcial, nomeadamente quanto às penas parcelares e às indemnizações cíveis arbitradas oficiosamente às vítimas, e pela sua improcedência quanto às nulidades e vícios da decisão recorrida, qualificação jurídico-criminal nela efetuada dos factos provados e à espécie e medida da pena única em que o arguido e recorrente foi condenado


6. Neste Tribunal, o Ministério Público, em 25.02.2024, emitiu fundamentado parecer, que rematou com a seguinte síntese conclusiva:


«(…)


VI.I. Delimitação do objecto do recurso


Nos termos do art. 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, recorre-se para o STJ de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do art. 400.º.


O art. 400.º, n.º 1, do CPP, por sua vez, preceitua que não é admissível recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância [al. e)] e de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas Relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos [al. f)].


Quanto aos poderes de cognição, o art. 434.º do CPP estabelece que o recurso interposto para o STJ visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do art. 432.º.


Conforme previamente referido, o acórdão do TRG confirmou o acórdão do tribunal coletivo do jcc... na parte criminal.


O arguido foi condenado em três penas parcelares de 1 ano e 6 meses de prisão, em quinze penas parcelares de 5 anos de prisão, em três penas parcelares de 3 anos de prisão e numa pena parcelar de 4 anos de prisão.


Diante dos citados arts. 432.º, n.º 1, al. b), e 400.º, n.º 1, al. e), do CPP, o acórdão do TRG é, por isso, irrecorrível no que respeita às penas parcelares.


Por outro lado, como tem sido enfatizado na jurisprudência do STJ, «estando este, por razões de competência, impedido de conhecer do recurso interposto de uma decisão, estará também impedido de conhecer de todas as questões processuais ou de substância que digam respeito a essa decisão, tais como os vícios da decisão indicados no artigo 410.º do CPP, respectivas nulidades (artigo 379.º e 425.º, n.º 4) e aspectos relacionadas com o julgamento dos crimes que constituem o seu objecto, aqui se incluindo as questões relacionadas com a apreciação da prova – nomeadamente, de respeito pela regra da livre apreciação (artigo 127.º do CPP) e do princípio in dubio pro reo ou de questões de proibições ou invalidade de prova –, com a qualificação jurídica dos factos e com a determinação da pena correspondente ao tipo de ilícito realizado pela prática desses factos ou de penas parcelares em caso de concurso de medida não superior a 5 ou 8 anos de prisão, consoante os casos das alíneas e) e f) do artigo 400.º do CPP, incluindo nesta determinação a aplicação do regime de atenuação especial da pena previsto no artigo 72.º do Código Penal, bem como questões de inconstitucionalidade suscitadas neste âmbito


(…)


E quanto ao arbitramento oficioso da indemnização?


De acordo com o art. 400.º, n.º 2, do CPP, sem prejuízo do disposto nos arts. 427.º e 432.º do CPP, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.


O n.º 3 do mesmo preceito acrescenta que mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil.


Em matéria cível, a alçada dos tribunais da Relação é de 30 000 Euros [art. 44.º, n.º 1, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto)].


(…)


Deste conjunto normativo surpreendem-se «as seguintes condições cumulativas, de admissibilidade do recurso cível:


- Em primeiro lugar, é preciso que o valor do pedido enxertado exceda a alçada do Tribunal da Relação.


- Depois, é ainda necessário que o recorrente tenha decaído em valor superior a metade daquela alçada.


- Por fim, e tratando-se, como in casu se trata, de acórdão do Tribunal da Relação tirado em recurso de decisão final de 1.ª instância, exige-se, igualmente, a inverificação da dupla conformidade, ou seja – art. 671.º n.º 3 do CPC – , ou que não tenha sido confirmado o segmento do dispositivo do acto recorrido – sendo, contudo, confirmativa a decisão in mellius –, ou que tenha sido lavrado voto de vencido, ou/e que tenha sido mobilizada fundamentação essencialmente diferente» (acórdão do STJ de 14 de julho de 2022, processo 32/14.1JBLSB.L1-A.S1, relatado pelo conselheiro Eduardo Loureiro, não publicado, que seja do nosso conhecimento, em qualquer base de dados).


In casu, não é possível recorrer ao primeiro critério em virtude de a indemnização ter sido arbitrada oficiosamente.


Conforme previamente referido, o tribunal coletivo do jcc... arbitrou às vítimas as indemnizações de 33.000 Euros (BB) e de 45.000 Euros (CC).


O TRG, por unanimidade e com a mesma fundamentação legal (v. as respetivas págs. 150 a 156), confirmou a decisão do jcc... mas, apelando a critérios de equidade, reduziu o valor das indemnizações para 25.000 Euros (BB) e 30.000 Euros (CC).


Conforme mencionado a propósito da confirmação in mellius, o «conceito de dupla conformidade tem de ser interpretado, não em termos empíricos de coincidência puramente numérica ou matemática dos valores pecuniários das condenações constantes das decisões já proferidas pelas instâncias, mas com apelo a um elemento normativo, funcionalmente adequado à actual fisionomia dos recursos e do acesso ao STJ. E, nesta perspectiva, não faria o menor sentido admitir que a parte que viu a sua condenação ser atenuada pelo acórdão proferido pela Relação tivesse a possibilidade de aceder ao Supremo – quando seguramente a não teria se o acórdão proferido em 2.ª instância tivesse mantido, nos seus precisos termos, o montante condenatório mais elevado, arbitrado na sentença proferida em 1.ª instância. Constituiria, na verdade, seguramente solução normativa qualificável como arbitrária ou discricionária a que se traduzisse em conceder o direito ao recurso à parte beneficiada pela decisão da 2.ª instância – quando era inquestionável que não poderia recorrer se a Relação, em vez de proferir decisão mais favorável para o recorrente, se tivesse limitado a manter, ipsis verbis, a condenação mais gravosa, decretada na sentença proferida na 1.ª instância» (acórdão do STJ de 10 de maio de 2012, processo 645/08.0TBALB.C1.S1, relatado pelo conselheiro Lopes do Rego, www.dgsi.pt. No mesmo sentido, assinalando, com citação de várias decisões, que «a jurisprudência largamente maioritária do STJ, seja nas secções cíveis, seja nas secções criminais, tem vindo a defender um conceito de dupla conforme na sua interpretação mais ampla, ou seja, abrangendo a confirmação in mellius», v. o acórdão do STJ de 4 de junho de 2020, processo 8641/14.2RDLSB.C1.S1, relatado pela conselheira Helena Moniz, https://jurisprudencia .csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:8641.14.2RDLSB.C1.S1/).


À vista do que vem de ser exposto, também quanto à questão da indemnização, o recurso deve, por isso, ser rejeitado em razão da sua inadmissibilidade legal (arts. 414.º, n.ºs 2 e 3, e 420.º, n.º 1, al. b), do CPP).


VI.II. A medida da pena única


Não se vislumbrando que a realidade de facto assente esteja inquinada de quaisquer vícios de que o STJ possa conhecer oficiosamente (cf. o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, relatado pelo conselheiro Sá Nogueira, publicado no DR, I Série-A, n.º 298, de 28 de dezembro de 1995), passemos, então, à única questão cognoscível.


(…)


No caso em apreço o ilícito global é constituído por um total de vinte e um crimes de abuso sexual de crianças e de um crime de abuso sexual de menores dependentes, todos agravados em razão do disposto no art. 177.º, n.º 1, al. b), do CP, ou seja, crimes que tutelam os bens jurídicos da liberdade de autodeterminação sexual da criança menor de 14 anos (abuso sexual de crianças) e do menor entre 14 e 18 anos (abuso sexual de menores dependentes).


As duas vítimas eram enteadas do arguido.


Os factos sucederam-se ao longo de um período de tempo superior a um ano (entre o verão de 2017 e fevereiro de 2019).


O arguido atuou sempre com dolo direto para «libertar e satisfazer os seus impulsos sexuais».


Os dezoito crimes agravados de abuso sexual de crianças dos arts. 171.º, n.º 1, e 171.º, n.º 2, do CP e o crime agravado de abuso sexual de menores dependentes do art. 172.º, n.º 1, do CP, são considerados crimes especialmente violentos (cf. o art. 1.º, al. l), do CPP).


As necessidades de prevenção geral em crimes desta natureza, diante do sentimento de repulsa e do alarme social que provocam, são, consabidamente, bastante expressivas e demandam punições rigorosas.


Contra o recorrente militam ainda as suas «dificuldades de análise acerca das consequências deste tipo de crime para as vítimas, designadamente ao nível da compreensão dos danos físicos e morais, eventualmente provocados» e, pese embora respeitem a crimes de diferente natureza e inferior gravidade, os seus antecedentes criminais.


Na ponderação de tudo quanto vem de ser exposto, e tendo presente que o cúmulo é punível com prisão de 5 anos a 25 anos, entendemos que a pena única de 11 anos e 8 meses de prisão fixada pelo jcc... e mantida pelo TRG, no limite do primeiro terço da referida moldura penal, revela-se equilibrada e ajustada aos critérios legais estabelecidos nos arts. 71.º, n.ºs 1 e 2, e 77.º, n.º 1, do Código Penal e aos princípios da necessidade e proporcionalidade que devem presidir à determinação da pena.


(…)».


7. Observado o contraditório, o arguido, por requerimento de 8.03.2024, respondeu ao parecer do Ministério Público, dele divergindo e mantendo a posição expressa no seu recurso, quanto à recorribilidade do acórdão do TRG relativamente a todas as questões suscitadas no recurso, sob pena de violação do direito ao recurso previsto no artigo 32º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), e à sua revogação ou modificação nos termos das conclusões retiradas da respetiva motivação.


8. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.


II. Objeto do recurso


1. Considerando a motivação e conclusões do recurso, as quais, como é pacífico, delimitam o respetivo objeto1, as questões nele colocadas cingem-se:


a) à violação dos princípios da livre apreciação da prova, do in dubio pro reo, da presunção da inocência, da culpa e inconstitucionalidade do acórdão, nos termos dos artigos 127º e 368º do CPP e 32º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP) [conclusões IV a XXVIII];


b) à nulidade do acórdão recorrido por falta de fundamentação e exame crítico das provas, nos termos conjugados dos artigos 122º, 355º, 368º, 374º, n.º 2, e 379º, n.º 1, al. a), do CPP [conclusões XXIX a XXXIII] e ao “erro crasso” na apreciação da prova [conclusões XIX a XXI], que se poderia reconduzir ao erro notório na apreciação da prova previsto no artigo 410º, n.º 2, al. c), do mesmo diploma legal;


c) ao erro da qualificação jurídica dos factos provados – continuação/unidade criminosa relativamente a cada uma das menores ofendidas [conclusões XXXIV a XLI];


d) à medida e espécie das penas de prisão parcelares e única aplicadas, atenuação especial e suspensão da execução desta última [conclusões III e XLII a XLV];


e) ao arbitramento oficioso de indemnização, por renúncia/oposição implícita das vítimas e dos seus representantes, e/ou redução dos respetivos montantes [conclusões XLVI a LII].


2. Antes delas, porém, deverá conhecer-se da questão prévia suscitada pelo Ministério Público na resposta ao recurso apresentada no TRG e no parecer emitido neste STJ, qual seja a da rejeição parcial do recurso, por inadmissibilidade legal2


III. Fundamentação


1. O acórdão recorrido confirmou integralmente o acórdão da 1ª instância, de facto e de direito, salvo quanto ao montante das indemnizações arbitradas, que reduziu nos termos sobreditos.


Os factos considerados provados e não provados no acórdão da 1ª instância e que o acórdão recorrido confirmou sem qualquer alteração e que, por conseguinte, são imodificáveis, salvo ocorrência de algum vício ou nulidade de conhecimento oficioso pelo STJ, foram os seguintes (transcrição):


«(…)


II- FUNDAMENTAÇÃO


(…)


Importa apreciar as enunciadas questões e decidir.


Para tanto, deve considerar-se como pertinentes ao conhecimento do objeto do recurso os factos considerados na decisão recorrida (…):


“(…)


II. Fundamentação de facto


2.1. Factos provados


Com interesse para a decisão da causa, mostram-se provados os seguintes factos:


1. BB (doravante BB) e CC (doravante CC), irmãs gémeas, nascidas a ........2005, são filhas de DD e de EE (doravante EE).


2. Desde a separação dos pais, as menores BB e CC ficaram entregues à guarda e cuidados da progenitora, EE, com a qual passaram a viver na casa sita na ..., juntamente com o irmão FF (doravante FF).


3. Desde data que não foi possível apurar do verão de 2016, a progenitora EE e o arguido AA iniciaram uma relação de namoro.


4. Em inícios de Janeiro de 2017, o arguido passou a viver em comunhão de vida análoga à dos cônjuges - ou seja em coabitação de comunhão de leito, mesa e habitação - com EE na residência desta, onde aí passou a viver e conviver, também, com os filhos desta, nomeadamente os menores BB, CC e FF, deles cuidando e prestando-lhe a assistência necessária como se de um pai se tratasse.


5. Quando já aí residia e sensivelmente por volta do verão do ano de 2017, e no interior da residência, o arguido, bem sabendo da tenra idade das filhas da sua companheira, na altura cada uma com 12 anos de idade, começou a mexer e apalpar as partes íntimas das crianças, ou seja, as suas mamas e a sua zona vulvar primeiro por cima e, depois, por baixo da roupa, tocando directamente nas suas zonas erógenas.


6. Os toques referidos aconteciam quer no interior da residência onde habitavam, quer no interior da viatura do arguido, quando iam passear e/ou levar a cadela de nome “V......” e estacionava a viatura em locais ermos, todos na localidade de ....


7. Assim, em dia não concretamente apurado do ano de 2017 e posterior ao período de tempo referido no ponto 5, mas quando a BB tinha ainda 12 anos de idade, encontrando-se esta no sofá da sala, o arguido começou a apalpar as suas mamas, a tocar a sua zona vulvar e suas as nádegas, primeiro por cima da roupa e depois por dentro, tendo o arguido metido os seus dedos no interior da vagina de BB, o que lhe causou dores fortes.


8. Em datas não concretamente apuradas do ano de 2017 e posterior ao período de tempo referido no ponto 5, mas quando BB tinha 12 anos de idade, saiu com o arguido de carro, para passear a cadela “V......” no monte das “...”, o qual após ter imobilizado o veículo e já no seu exterior, introduziu os dedos no interior da vagina da BB, enquanto a tentava beijar na boca.


9. Após, de pé e com BB de costas viradas para si, o arguido desapertou o cinto das suas calças, tirou o pénis para fora e aproximou-o, erecto, da vagina da BB, fazendo força e introduziu-o, pelo menos parcialmente, provocando-lhe dores fortes.


10. Em datas não concretamente apuradas, mas entre o verão de 2017 e finais de Fevereiro de 2019, no interior da casa, quer no quarto da BB, quer no quarto da sua mãe, o arguido por diversas vezes (não menos que três) apalpou as nádegas, as mamas, a zona vulvar desta e introduziu-lhe os dedos e o pénis erecto no interior da vagina, provocando-lhe dores fortes.


11. Em dia concretamente não apurado, mas sempre a partir do período de verão referido no ponto 10, tinha a BB entre os 12 e os 13 anos, quando esta seguia de carro com o arguido, aquele imobilizou o veículo, desapertou as suas calças, exibiu-lhe o pénis, acariciou-o com as mãos, iniciou movimentos rítmicos em sentido ascendente e descendente, até que ejaculou.


12. No mesmo período, em diversas ocasiões cujas datas não se apuraram, o arguido pegou na mão de BB e esfregou-a no seu pénis erecto.


13. Nesse mesmo período, por uma vez e em data que não se logrou apurar, o arguido exibiu à BB filmes pornográficos de sexo entre adultos.


14. No dia 22 de Fevereiro de 2019, no interior do quarto de dormir de BB, o arguido com a mão acariciou e meteu-lhe o pénis erecto no interior da sua vagina, provocando-lhe dores fortes.


15. Em todas as ocasiões, o arguido disse à BB para não contar nada a ninguém do que faziam juntos e, por vezes, ofereceu-lhe pequenas importâncias monetárias.


16. A partir de data em concreto não apurada de 2017, mas a partir do período de verão referido no ponto 5, quando a CC tinha 12 anos de idade, o arguido começou a tocar-lhe com a mão e com a língua a sua zona vulvar e a introduzir-lhe o pénis erecto no interior da sua vagina.


17. Assim, em dia não concretamente apurado do verão de 2017, o arguido convidou a CC para saírem na sua viatura, com a cadela “V......” e com a finalidade de irem buscar o irmão FF, a ....


18. A pretexto de soltar a cadela, o arguido imobilizou a viatura numa zona conhecida por ..., em ....


19. Após soltar a cadela, o arguido ficou no interior da viatura com a CC, friccionou as suas mãos na zona vulvar desta, primeiro por cima e depois por baixo da roupa; em seguida, desviou os calções e as cuecas que esta vestia para o lado, e introduziu-lhe os dedos no interior da sua vagina, provocando-lhe dores fortes.


20. Nessa ocasião o arguido disse à CC que o que lhe estava a fazer era para saber se tinha “tudo direito” e para “saber o que fazer”.


21. No dia seguinte e em nova viagem de carro, o arguido imobilizou o veículo sensivelmente na mesma zona, mandou a CC para o banco de trás da viatura, disse-lhe que lhe iria “ensinar como se namora”, ao mesmo tempo que lhe friccionava as mamas com as mãos.


22. Em acto contínuo, o arguido baixou-lhe as cuecas e colocou a língua na zona vulvar da CC, lambendo-a.


23. Noutras alturas, em dias não concretamente apurados, mas certamente ocorridas quando CC tinha entre os 12 e os 13 anos, a pretexto de levarem a cadela à rua, o arguido dirigia o seu carro até vários locais ermos (..., em ..., e um monte perto da ..., em ...) e, após imobilizar o carro e soltar a cadela, o arguido introduzia o seu pénis erecto no interior da vagina da CC, o que fazia no interior do veículo.


24. Tal ocorreu, em pelo menos, três ocasiões distintas, sempre que o arguido tinha oportunidade de estar sozinho com a CC.


25. Em datas não concretamente apuradas, mas certamente ocorridas quando CC tinha entre 12 e 13 anos de idade, no interior da residência, pelo menos por quatro ocasiões, uma na casa de banho, duas no sofá da sala e outra no quarto de dormir da mãe, o arguido introduziu o seu pénis erecto no interior da vagina da CC, provocando-lhe dores fortes.


26. Em datas não concretamente apuradas, no interior da habitação, mas certamente ocorridas quando CC tinha entre 12 e 13 anos de idade, por vezes, o arguido pedia-lhe para tocar no pénis, e, como aquela se recusava, o mesmo agarrava na mão desta, colocava-a sobre o seu pénis erecto, acariciando-o e fazendo movimentos para cima e para baixo até ejacular.


27. Em dia não concretamente apurado, mas certamente nesse mesmo período de tempo, na sala, o arguido, munido de um boneco (tipo vibrador) introduziu-o no interior da vagina da CC.


28. Nesse mesmo período, em diversas ocasiões cujas datas não se apuraram, o arguido colocava-se a ver filmes pornográficos de sexo entre adultos, com a CC ao seu lado.


29. No dia 26 de Fevereiro de 2019 e já com 14 anos completados, no sofá da sala, o arguido, após retirar as roupas da CC, introduziu-lhe o seu pénis erecto na vagina ou parte dele, provocando-lhe dores fortes.


30. Por várias vezes, o arguido ofereceu pequenas quantias em dinheiro à CC.


31. À data de todos os actos supra descritos, as menores BB e CC não estavam, ainda, menstruadas.


32. Ao actuar da forma descrita, o arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, prevendo e querendo libertar e satisfazer os seus impulsos sexuais, através do contacto físico (sexualizado) com as menores (abusando, para o efeito, da sua relação afectiva e familiar, enquanto companheiro da mãe das mesmas, e da imaturidade e inexperiência sexual das ofendidas), não obstante estar ciente da sua relação familiar, da idade das mesmas e de que a sua conduta atentava o livre desenvolvimento da personalidade das menores na esfera sexual.


33. Aquando das situações supra descritas, o arguido tinha conhecimento da idade de cada uma das menores.


34. Em consequência das condutas supra descritas do arguido, as menores BB e CC sentiram dores e constrangimentos, bem como tristeza e desilusão, chorando-o inúmeras vezes sozinhas e sem que ninguém as visse.


35. O arguido, tendo agido como agiu, bem sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.


Mais se provou que:


36. O arguido é natural de freguesia rural do concelho de ..., sendo o mais novo de sete descendentes, de um casal de humilde condição sócio-económica. O pai operário no sector do calçado e a mãe doméstica, garantiram aos descendentes a resposta às necessidades básicas, num contexto normativamente orientado.


O arguido mantinha uma relação afectiva próxima com o núcleo familiar de origem, tanto com os pais como com os irmãos, constituindo o progenitor uma figura mais disciplinadora, embora sem indicadores de violência. Esta dinâmica manteve-se ao longo da trajectória do arguido, mesmo após o falecimento dos progenitores, existindo uma relação solidária entre irmãos.


Concluiu o 1.º ciclo do ensino básico, tendo abandonado a escolaridade para se iniciar profissionalmente como operário de calçado aos 13 anos. A relação com os adultos era mais superficial, por ser uma criança tímida e envergonhada.


Casou com 17 anos com uma jovem cinco anos mais velha, tendo necessitado da permissão dos progenitores para o efeito em razão da idade. Percepciona esta relação de forma muito negativa, descrevendo vários episódios de ciúme e violência por parte da companheira sobre si. Esta relação durou cerca de dois anos e dela resultou o nascimento da sua primeira filha. Após a separação, o casal manteve uma elevada conflitualidade, o que justificou o afastamento relacional e educativo da descendente.


O arguido trabalhou como operário de calçado na mesma empresa entre os 13 e os 23 anos, tendo abandonado esta actividade de forma intempestiva. Permaneceu em situação de desemprego alguns meses, até obter colocação numa empresa de limpeza onde trabalhou cerca de cinco anos.


Simultaneamente jogava futebol em clubes desportivos e com 29 anos teve um acidente do qual resultou uma fratura num dos membros inferiores. Nesse período de convalescença, por influência de um irmão, iniciou-se no consumo de heroína “para aliviar as dores” (sic) e abandonou o trabalho.


O arguido estabeleceu posteriormente novo relacionamento afectivo que durou cerca de seis anos e do qual resultou o nascimento dos seus três filhos mais novos (todos do sexo masculino). Este contexto familiar/relacional foi positivo e significativo, ainda que tenha mantido um baixo envolvimento ao nível parental. A separação conjugal ocorreu em virtude do agravamento da dependência de drogas por parte do arguido, levando-o a afastar-se do núcleo familiar.


Os anos que se seguiram foram de relativa desorganização pessoal associada a um quadro de dependência de estupefacientes, trabalhos precários e irregulares e envolvimento em pequenos delitos. Este contexto conduziu ainda ao envolvimento com o sistema judicial e a condenações em multa/trabalho comunitário. Neste período manteve alguns relacionamentos afectivos superficiais e beneficiou de apoio por parte da família de origem, mantendo asseguradas condições básicas de habitação e alimentação.


No verão de 2016, o arguido iniciou relação afectiva de namoro com EE, mãe das menores.


Em Janeiro de 2017, iniciou a coabitação com EE, residente em bairro municipal com os três filhos menores: o mais filho velho, à data com cerca de 15 anos e as duas menores gémeas, com 12 anos.


Os técnicos de intervenção social local assinalaram, nesse período, indicadores de negligência relativamente aos cuidados básicos de higiene e alimentação com os jovens a cargo e com a habitação.


Existia uma relação de conflitualidade significativa com o pai dos menores, o que constituía com frequência um foco de tensão também na relação familiar.


Neste período, o arguido trabalhava na empresa de calçado C......, da qual saiu, segundo refere, por encerramento da mesma em março de 2019. EE era doméstica, tendo desenvolvido uma actividade como operária têxtil durante pouco tempo. A situação económica era contida e respondia às necessidades materiais básicas do agregado com dificuldade.


O arguido mantinha, desde 2008, acompanhamento clínico no Centro de Respostas Integradas de ..., Equipa Técnica Especializada de ..., realizando terapia de substituição. Registava períodos de recaída pontuais no consumo de estupefacientes, mas não foi referida interferência relevante na sua vida familiar e profissional à data dos factos.


(…)


No dia 6 de Março de 2019, o arguido deixou a residência onde vivia com a companheira e com as menores, passando a pernoitar em casa de familiares, em decorrência dos presentes factos.


Em Setembro de 2019, o casal arrendou uma habitação em ..., retomando a coabitação. A relação conjugal e a intimidade do casal é referenciada de modo satisfatório, ainda que a ocorrência de uma recaída temporária no consumo de drogas por parte do arguido tenha vindo a constituir um fator de tensão recente entre o casal.


As duas menores ficaram ao cuidado do pai e dos avós paternos e não mantêm actualmente qualquer relação com o arguido ou com a progenitora.


AA iniciou, em Agosto de 2022, actividade profissional como operário de calçado por conta da empresa relevo constante “R..., Lda”, auferindo o salário mínimo, sendo que a companheira (progenitora das menores) mantém a situação de desemprego desde 2019. A título de despesas, pagam de renda da habitação 110€ e o arguido as uma prestação de 100€ relativos à prestação de alimentos do seu filho mais novo. O casal mantém uma situação económica precária recorrendo com frequência ajuda de familiares para fazer face as necessidades materiais básicas.


Na comunidade onde reside actualmente, o arguido apresenta uma imagem social sem indicadores de rejeição e ao nível da interacção social não foram identificados em indicadores passíveis de constituir factor de reactividade social.


Ainda que censure comportamentos da mesma natureza, mostra dificuldades de análise acerca das consequências deste tipo de crime para as vítimas, designadamente ao nível da compreensão dos danos físicos e morais, eventualmente provocados. Expressa, ainda, várias crenças e racionalizações acerca de situações análogas envolvendo crianças/adolescentes.


37. O arguido sofreu as seguintes condenações:


- no processo sumário n.º 844/10.5..., do então ...Juízo Criminal de ..., por decisão de 14.07.2010, transitada em julgado em 06.08.2010, foi condenado pela prática, em 14.07.2010, de um crime de desobediência, na pena de 70 dias de multa, a uma taxa diária de 7€, pena essa extinta em 31.05.2011;


- no processo sumário n.º 1174/10.8..., do então ... Juízo Criminal de ..., por decisão de 29.09.2010, transitada em julgado em 19.10.2010, foi condenado pela prática, em 14.09.2010, de um crime de desobediência, na pena de 60 dias de multa, a uma taxa diária de 7€, substituída por 53 horas de trabalho a favor da comunidade, pena essa extinta em 17.04.2012;


- no processo comum singular n.º 619/10.1..., do então ... Juízo Criminal de ..., por decisão de 07.05.2013, transitada em julgado em 06.06.2013, foi condenado pela prática, em 14.07.2010, de um crime de desobediência qualificada, na pena de 80 dias de multa, a uma taxa diária de 5€, substituída por 80 dias de trabalho a favor da comunidade, pena essa extinta em 02.08.2014;


- no processo sumaríssimo n.º 107/13.4..., do então ... Juízo Criminal de ..., por decisão de 03.10.2013, transitada em julgado em 03.10.2013, foi condenado pela prática, em 15.11.2012, de um crime de falsidade de testemunho, na pena de 80 dias de multa, a uma taxa diária de 6€, pena essa extinta em 07.02.2015;


- no processo abreviado n.º 1958/16.3..., do Juízo Local Criminal de ..., J., por decisão de 19.04.2017, transitada em julgado em 19.05.2017, foi condenado pela prática, em 30.06.2016, de um crime de falsidade de testemunho, na pena de 200 dias de multa, a uma taxa diária de 6€, substituída por 200 horas de trabalho a favor da comunidade, pena essa extinta em 01.09.2018.


**


2.2. Factos não provados


Com interesse para a decisão da causa não se provaram quaisquer outros factos, nomeadamente que:


a) desde data não concretamente apurada do verão de 2016, o arguido AA tivesse passado a viver em comunhão de vida com EE na residência desta;


b) os actos descritos no ponto 5 tivessem ocorrido algum tempo depois de o arguido começar a residir na residência da companheira;


c) de entre os actos descritos no ponto 5, o arguido também tocasse ou atingisse o ânus das menores;


d) de entre os actos descritos no ponto 10, o arguido tivesse tocado no ânus da BB;


e) numa dessas ocasiões o arguido introduziu, pelo menos parcialmente, o pénis no ânus da BB, provocando-lhe fortes dores nessa parte do corpo;


f) o arguido tivesse exibidos filmes pornográficos de sexo entre adultos à BB em mais ocasiões para além da descrita no ponto 13;


g) de entre os actos referidos no ponto 16, o arguido tivesse introduzido o seu pénis erecto no ânus da CC e, por vezes mesmo, os dedos;


h) nessas mesmas circunstâncias referidas no ponto 16, o arguido tivesse colocado a mão e a língua no interior da vagina da CC;


i) nas circunstâncias descritas no ponto 19, o arguido tivesse friccionado as suas mãos na vagina da CC, primeiro por cima e depois por baixo da roupa;


j) nas circunstâncias de tempo referidas no ponto 22 o arguido tivesse colocado a língua no interior da vagina da CC;


k) nas circunstâncias descritas no ponto 23, o arguido tivesse introduzido o seu pénis erecto no ânus da CC;


l) nas circunstâncias descritas no ponto 25, o arguido tivesse introduzido, algumas vezes, o seu pénis erecto no ânus da CC;


m) até final do ano de 2017, o arguido tivesse integrado o agregado da irmã GG, coabitando com esta e com a sobrinha, adolescente à data, passando alguns fins-de-semana na habitação da companheira e das menores;


n) a coabitação com a progenitora das menores, EE, se tivesse iniciado apenas em finais do ano de 2017 ou inícios de Janeiro de 2018.


(..)»


**


2. Avancemos para a apreciação das questões antes enunciadas e que delimitam o objeto do recurso, segundo a regra da sua precedência lógica também ali referida.


2. 1. A questão prévia da rejeição parcial do recurso, por inadmissibilidade legal.


O arguido interpôs recurso da decisão do TRG quanto à medida de todas as penas, parcelares e única, em que foi condenado, outrossim relativamente à sua condenação no pagamento às ofendidas de indemnizações oficiosamente arbitradas, o qual foi admitido sem qualquer restrição pelo mesmo Tribunal.


O Ministério Público, na resposta apresentada ao recurso no TRG e no parecer emitido neste STJ, suscitou, no entanto, a questão prévia da sua rejeição parcial, por inadmissibilidade legal, no que tange às penas concretamente aplicadas não superiores a 5 nem a 8 anos de prisão e às indemnizações arbitradas, nos termos das disposições conjugadas nos artigos 400º, n.ºs 1, als. e) e f), 2 e 3, 414º, n.º 3, 420º, n.º 1, al. b), e, 432º, n.º 1, al. b), todos do CPP e 629º, n.ºs 1 e 2, a contrario, e 671º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC), convocando em abono da sua posição a jurisprudência uniforme e constante do STJ relativamente à designada “dupla conforme”, é dizer, a confirmação pelo tribunal da relação, ainda que in mellius e, no caso da al. e), mesmo que in pejus, se a pena aplicada não ultrapassar os 5 anos de prisão, da decisão condenatória do tribunal de primeira instância relativamente a penas e indemnizações que se contenham em tais medidas e circunstâncias3.


Como resulta do teor dos excertos supratranscritos das decisões condenatórias do J..... e do TRG, o recorrente foi condenado nas seguintes penas e indemnizações:


a) Quanto à ofendida BB


i. 3 (três) anos de prisão, para 1 (um) crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, al. b), ambos do Código Penal (CP) [factos sob o ponto 12];


ii. 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão para cada um dos 2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças agravados, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 3, als. a) e c), e 177.º, n.º 1, al. b), ambos do C.P, [factos sob os pontos 11 e 13];


iii. 5 (cinco) anos de prisão para cada um dos 6 (seis) crimes de abuso sexual de crianças agravados, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 2, e 177.º, n.º 1, al. b), ambos do C.P. [factos sob os pontos 7, 8, 9, 10 e 14], e,


iv. 25.000,00€ (vinte e cinco mil euros) [assim reduzindo os 33.000,00 (trinta e três mil euros) fixados na 1ª instância], nos termos das disposições conjugadas dos artigos. 67.º-A, n.º 1, al. b), e 82.º-A, ambos do CPP e 16.º, n.º 2, do Estatuto da Vítima, aprovado em anexo à Lei n.º 130/2015, de 4 de setembro.


b) Quanto à ofendida CC


i. 3 (três) anos de prisão, para cada um dos 2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, al b), ambos do CP [factos sob os pontos 21, 22 e 26];


ii. 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, para 1 (um) crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 3, al. c), e 177.º, n.º 1, al. b), ambos do CP [factos sob o ponto 28];


iii. 5 (cinco) anos de prisão, para cada um dos 9 (nove) crimes de abuso sexual de crianças agravados, p. e p. pelos artigos 171º, n.º 2, e 177º, n.º 1, al. b), ambos do CP [factos 19, 23, 24, 25 e 27];


iv. 4 (quatro) anos de prisão, para 1 (um) crime de abuso sexual de menor dependente, p. e p. pelos artigos 172.º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, al. b), ambos do CP [facto 29], e,


v. 30.000,00€ (trinta mil euros) [assim reduzindo os 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros) fixados na 1ª instância], nos termos das disposições conjugadas dos artigos 67.º-A, n.º 1, al. b), e 82.º-A, ambos do CPP e 16.º, n.º 2, do Estatuto da Vítima, aprovado em anexo à Lei n.º 130/2015, de 4 de setembro.


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c) em cúmulo jurídico das referenciadas 22 penas parcelares, na pena única de 11 (onze) anos e 8 (oito) meses de prisão.


*


2. 1. 1. Como referido, todas as penas parcelares foram confirmadas pelo TRG.


Concluiu-se, por isso, na resposta e parecer do Ministério Público, pela irrecorribilidade das penas parcelares aplicadas e indemnizações arbitradas, por todas elas se situarem nos patamares e condições da irrecorribilidade estabelecidos no artigo 400º, n.ºs 1, als. e) e f), 2 e 3, do CPP e 629º, n.ºs 1 e 2, a contrario, e 671º, n.º 3, do CPC, irrecorribilidade que abrangeria não apenas a respetiva medida, mas também quaisquer outras questões de natureza jurídica às mesmas atinentes que no caso se pudessem colocar e, efetivamente, colocam no que concerne às questões das nulidades, inconstitucionalidades e vícios da decisão recorrida, outrossim à da atenuação especial das penas, da unidade, continuação ou pluralidade criminosa e dos princípios da presunção da inocência, do in dubio pro reo, da livre apreciação da prova e da culpabilidade.


Ora, como diz o Ministério Público, em face da atual redação das citadas normas processuais, as vigentes à data da prolação das decisões sob escrutínio, e tal como é jurisprudência uniforme do STJ e do TC, também acolhida doutrinalmente, tem-se por indiscutível a irrecorribilidade das referidas penas parcelares, seja quanto à sua medida, seja quanto à apreciação das demais questões suscitadas no recurso a elas direta e exclusivamente referidas, sem que daí, como também afirma essa orientação jurisprudencial e doutrinal, resulte qualquer violação das garantias de defesa do arguido, nomeadamente quanto ao direito ao recurso, que a CRP impõe, pelo menos (mas apenas) num grau, o suficiente para assegurar o duplo grau de jurisdição, em respeito pelos ditames dos seus artigos 20º e 32º, que consagram o direito fundamental de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva e as garantias do processo criminal, e correspondentes instrumentos de direito internacional a que Portugal se encontra vinculado, designadamente a Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (CEDH – artigo 2.º do Protocolo n.º 7), a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE – artigo 48º) e o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (PIDCP - artigo 14.º, n.º 5).


Donde, sob o prisma penal, recorrível será somente, no caso em apreço, a pena única, na respetiva medida e espécie, que o recorrente pretende ver reduzida para o mínimo legal e suspensa na respetiva execução4, e outras questões que com a mesma possam contender, nomeadamente a da atenuação especial e das inconstitucionalidades alegadas pelo recorrente.


Aliás, lendo o acórdão recorrido, percebe-se que nele apenas foi apreciada a questão da pena única resultante do cúmulo jurídico efetuado das penas parcelares em que o recorrente foi condenado, precisamente por se ter considerado e nele se afirmar expressamente não ter o recorrente delas interposto recurso para o TRG.


De modo que a apreciação das questões atinentes às penas parcelares sempre estaria vedada ao STJ, por se tratar de questão nova e sobre a qual o acórdão recorrido não se pronunciou, sem qualquer questionamento do recorrente.


Termos em que, porque a admissão do recurso pelo tribunal recorrido não vincula o tribunal superior, se julga procedente a questão prévia da rejeição parcial do recurso em matéria penal, por inadmissibilidade legal, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 400º, n.º 1, als. e) e f), 414º, n.º 3, 420º, n.º 1, al. b), e 432º, n.º 1, al. b), do CPP, prosseguindo o seu conhecimento limitado às questões suscitadas relativamente à pena única resultante do cúmulo jurídico.


2. 1. 1. 1. Acresce que, conforme supra enunciadas, as questões suscitadas pelo recorrente no presente recurso, em matéria criminal, coincidem praticamente com as que havia suscitado no recurso interposto do acórdão da 1ª instância para o TRG e neste apreciadas e decididas no sentido da respetiva improcedência e da manutenção daquele primitivo acórdão, salvo quanto ao montante das indemnizações arbitradas às ofendidas.


Entre elas figura a da impugnação da matéria de facto, ainda que maquilhada (i) na violação dos princípios da livre apreciação da prova, do in dubio pro reo, da presunção da inocência, da culpa e na inconstitucionalidade do acórdão, nos termos dos artigos 127º e 368º do CPP e 32º, n.º 2, da CRP [conclusões IV a XXVIII], e (ii) na nulidade do acórdão recorrido por falta de fundamentação e exame crítico das provas, nos termos conjugados dos artigos 122º, 355º, 368º, 374º, n.º 2, e 379º, n.º 1, al. a), do CPP [conclusões XXIX a XXXIII] e no “erro crasso” na apreciação da prova [conclusões XIX a XXI], e errada qualificação jurídica (conclusão XXXIV).


Ora, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 434º e 432º, n.º 1, al. b), do CPP, “o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º”, sendo que na al. b) deste preceito se prevê precisamente a hipótese de recurso como o presente, é dizer aquele interposto para o STJ “de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º”.


Hipótese, portanto, em que, ao contrário do que sucede nas suas alíneas a) e c), relativas, respetivamente, aos recursos interpostos para o STJ “de decisões das relações proferidas em 1ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º” e “de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º”, não se contempla como fundamento do recurso os vícios e nulidades referidas neste artigo 410º, n.ºs 2 e 3.


Assim sendo, também por esta via, apesar de ter sido admitido pelo TRG sem qualquer restrição, esta decisão não vincula o tribunal ad quem e o recurso teria de ser rejeitado nessa parte, por inadmissibilidade legal, nos termos das citadas disposições legais, conjugadas com o disposto nos artigos 414º, n.ºs 2 e 3, e 420º, n.º 1, al. b), do mesmo diploma legal, sem prejuízo, naturalmente, do seu conhecimento oficioso, se do texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, tais vícios e nulidades resultarem evidentes, o que, manifestamente, aqui não ocorre5.


É essa, de facto, a orientação uniforme e constante da jurisprudência do STJ, após a entrada em vigor da atual redação daqueles artigos 432º e 434º do CPP, introduzida pela Lei n.º 94/21, de 21.12, com início de vigência no dia 20 de março de 2022, antes, portanto, do início do julgamento em 1ª instância e, consequentemente, aqui aplicável, nos termos do artigo 5º, n.º s 1, e 2, a contrario, do CPP6.


Ainda assim diga-se que, como resulta cristalino do texto de qualquer dos acórdãos escrutinados, por si ou conjugados com as regras da experiência comum, não ocorre, in casu, qualquer nulidade ou vício da decisão, nomeadamente os do erro notório na apreciação da prova e da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada7, tão pouco se verificando neles a violação do princípio da livre apreciação da prova, nomeadamente por valoração proibida de provas não produzidas e examinadas em julgamento ou por desrespeito dos princípios da presunção da inocência e do in dubio pro reo, o qual, relembra-se, “(…) como princípio atinente à apreciação e valoração da prova, só pode ser sindicada pelo STJ dento dos seus limites de cognição, devendo por isso resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do art. 410.º n.º 28, tal como se decidiu no acórdão do STJ, de 25.10/2023, proferido no processo n.º 96/16.3T9ALD.C1.S1, relatado pelo Conselheiro Lopes da Mota, disponível no sítio https://www.dgsi.pt.


No caso em apreço não se verifica, assim, qualquer violação do princípio da livre apreciação da prova convocado pelo recorrente, bastando para tanto ter em conta a fundamentação dos acórdãos recorrido e da 1ª instância por ele confirmado, nos quais, para além da indicação e identificação das provas consideradas, se procedeu ao seu exame crítico de modo objetivo e conjugado com as regras da experiência, numa cabal demonstração do iter racional percorrido na sua apreciação, valoração e contributo para a formação da convicção do tribunal, de molde a permitir o seu escrutínio externo pelos sujeitos processuais e pelos tribunais de recurso, sem que delas ressalte qualquer dúvida capaz de justificar a intervenção da “contra face” daquele princípio, é dizer o do in dubio pro reo, quanto a essa convicção, cuja violação poderia, na verdade, analisar-se também como vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410º, n.º 2, al. c), do CPP, como tem sido entendido pelo STJ9, mas que, repete-se, aqui não ocorre, porque plenamente respeitado o disposto no artigo 127º do CPP.


Acresce que no processo ou na decisão recorrida, bem como na por ela confirmada, também não se verifica qualquer nulidade da decisão ou do procedimento por violação de requisito de ato processual de que ela pudesse resultar, como seria a hipótese convocada pelo recorrente de violação do artigo 355º do CPP, embora apenas por referência a tal norma legal na conclusão LIII e sem qualquer suporte na motivação, como acontece, de resto, quanto à referência aí feita aos artigos 187º, 188º, 189º, 323º, al. f), 327º, n.º 2, al. i), e 343º, n.º 2, do mesmo diploma legal, pelo que, não constituem questão suscetível de conhecimento por este Tribunal, por serem incompreensíveis no seu contexto e, com acima explicitado, não integrarem o objeto do recurso.


Termos em que improcedem as questões aqui em apreço, suscitadas nas conclusões III, na parte em que se refere às penas parcelares, a XLI, com a consequente rejeição do recurso nessa parte.


2. 1. 2. Quanto aos montantes indemnizatórios arbitrados às ofendidas, o TRG manteve a decisão condenatória correspondente proferida na 1ª instância, quanto à matéria de facto e aos seus fundamentos jurídicos, apenas a modificando quanto aos respetivos montantes, reduzindo-os, por razões de equidade, para, respetivamente, € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros) e € 30.000,00 (trinta mil euros), o que equivale à verificação da designada “dupla conformein mellius e se contém dentro da alçada dos tribunais da relação, fixada em € 30.000,00 pelo artigo 44º, n.º 1, da LOSJ, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26.08, o que, só por si, poderia conduzir à inadmissibilidade também dessa parte do presente recurso, nos termos dos artigos 400º, n.º 2, do CPP e 629º, n.ºs 1 e 2, a contrario, do CPC, se analisadas individualmente as indemnizações arbitradas.


Seja como for e independentemente da sua natureza verdadeiramente indemnizatória ou meramente reparadora ou compensadora e efeito da condenação pela prática dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual das ofendidas, cabe questionar se a referida “dupla conforme” se integra na previsão do artigo 671º, n.º 3, do CPC, conjugada com o disposto no artigo 400º, n.ºs 2 e 3, do CPP, e, em consequência, conduz à inadmissibilidade do recurso (de revista) para o STJ.


Como se sustenta no parecer do Ministério Público e na doutrina e jurisprudência nele indicada e aqui referenciada, a orientação predominante, se não mesmo uniforme da jurisprudência do STJ aponta nesse sentido, como pode ver-se também no acórdão de 17.11.2020, proferido no processo n.º 9128/18.4T8SNT.L1.S1, relatado pelo Conselheiro Fernando Samões, disponível em https://www.dgsi.pt/jsts.nsf/, com o seguinte sumário publicado: «I - A verificação da dupla conforme impede a admissão do recurso de revista normal, nos termos do art. 671.º, n.º 3, do CPC. II - É de equiparar à dupla conforme os casos em que o acórdão recorrido, não sendo inteiramente coincidente com a decisão da 1.ª instância, divirja dela em sentido mais favorável ao recorrente. III - Não sendo admissível a revista, não haverá lugar à apreciação da eventual existência de erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais, nos termos do art. 674.º, n.º 3, do CPC, por este não constituir um fundamento autónomo de admissibilidade da revista. IV - Não é inconstitucional o art. 671.º, n.º 3, do CPC na interpretação segundo a qual a verificação da dupla conforme impede a revista normal»10.


Também assim a doutrina, podendo ver-se, por todos, António Santos Abrantes Geraldes, na esteira de Teixeira de Sousa, em Recursos em Processo Civil, ponto 13 da secção correspondente, pp. 434 e ss, 7ª Edição Atualizada, Almedina, 2022, com vasta resenha jurisprudencial e doutrinal no mesmo sentido11.


Orientação a que, por isso, se adere e se tem por aplicável no caso em apreço, e em consequência conduz, também e inevitavelmente, à rejeição do recurso nesta parte (conclusões XLVI a LII), por inadmissibilidade legal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 671º, n.º 3, do CPC e 400º, n.ºs 2 e 3, 414º, n.º 3, e 420º, n.º 1, al. b), e 432º, n.º 1, al. b), do CPP, quedando-se, por conseguinte, a apreciação do recurso sub judice à questão da espécie e da medida da pena única de 11 (onze) anos e 8 (oito) meses de prisão em que o recorrente foi condenado e outras por ele convocadas que com ela diretamente possam contender.


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2.2. Medida e espécie da pena única de prisão aplicada [conclusões XLII a XLV].


Como resulta das transcritas conclusões, o recorrente discorda da medida e da espécie da pena única que lhe foi aplicada, considerando-a excessiva e inadequada, pugnando pela sua redução para o mínimo legal “(em face da necessária atenuação especial)” e pela suspensão da respetiva execução, sujeita a condições, designadamente “(…) uma avaliação especializada e eventual intervenção estruturada no âmbito dos comportamentos sexuais abusivos, visando a interiorização do desvalor da sua conduta e a prevenção da reincidência”, à luz dos artigos 40º, 50º e ss., 70º e 71º do CP,


Para sustentar tal entendimento e pretensão, convoca as circunstâncias que entende serem-lhe favoráveis e não suficientemente consideradas no acórdão recorrido, como não ter antecedentes por crimes da mesma natureza, estar social e laboralmente inserido e de já não viver com as menores, nem terem qualquer convivência.


Delas, no pressuposto de constituírem circunstâncias suficientes para “atenuar especialmente” a sua culpa e as necessidades de prevenção geral e especial, conclui estarem preenchidas as condições para a pretendida e exposta redução da medida da pena única de prisão a aplicar-lhe e suspensão da respetiva execução.


2. 2. 1. Diga-se, antes de mais, que a sua pretensão fundada na invocada atenuação especial, que nem sequer justifica por referência a qualquer princípio ou norma jurídica, mas que, no caso, apenas poderia ser a do artigo 72º do CP, além de infundada, não tem cabimento legal.


Efetivamente, à não verificação de qualquer das circunstâncias ali previstas como suporte da atenuação especial, porque nenhuma das convocadas e outras não existem, se mostra apta a diminuir “(…) de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena”, acresce o entendimento pacífico e uniforme da jurisprudência e da doutrina no sentido de a atenuação especial operar apenas quanto às penas parcelares e não já no âmbito da pena única resultante de cúmulo jurídico das penas aplicadas aos crimes em concurso, aquela que aqui está em discussão, uma vez que as penas parcelares se mostram definitivamente fixadas com a prolação do acórdão recorrido e, como suprarreferido, extravasam os poderes de cognição deste STJ12, orientação a que se adere e aqui se acolhe, com a consequente improcedência daquela pretensão.


E, por outro lado, que também não merece acolhimento nesta sede a questão das inconstitucionalidades que o recorrente insiste em alegar, apesar de o acórdão recorrido fundada e explicitamente as ter rejeitando quanto à decisão da 1ª instância.


Não obstante, nas conclusões XXII, XXVII, XXVIII, o recorrente, de modo impreciso e difuso, conclui que a decisão sob recurso e o procedimento que a ela conduziu ofendem algumas normas e princípios da CRP, nomeadamente o artigo 32º, por violação do princípio da culpa.


Ora, quanto à ofensa às normas e princípios constitucionais, importa, desde logo, salientar que a apreciação da conformidade ou desconformidade com a Constituição a efetuar pelos tribunais em geral (fiscalização concreta e desconcentrada), como é aqui o caso, ou pelo Tribunal Constitucional [fiscalização concentrada – abstrata (preventiva ou sucessiva) e concreta], é sempre normativa, ou seja, por referência a normas jurídicas e não a processos ou às decisões que neles sejam proferidas.


Efetivamente, como assinalam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira em anotação ao artigo 280º da CRP13, em conformidade, de resto, com a jurisprudência constante e uniforme do próprio Tribunal Constitucional, que aí também exemplificam, “O recurso de constitucionalidade não tem por objeto a decisão judicial em si mesma, nem o processo interpretativo da norma (a não ser no caso de «interpretação normativa» (…)), mas apenas na parte em que ela não aplicou uma norma por motivo de inconstitucionalidade ou aplicou uma norma alegadamente inconstitucional (…). O objeto do recurso não é a própria decisão judicial, por ela supostamente ser ou não ser inconstitucional, mas apenas a parte dela em que considerou inconstitucional (ou não) uma determinada norma aplicável à causa”.


Como se vê das assinaladas conclusões, o recorrente não indica o sentido em que as normas, seus segmentos ou interpretações normativas concretamente (des)aplicadas pelo tribunal recorrido violaram os parâmetros ou princípios constitucionais que convoca, pelo que se torna inviável apreciar as alegadas inconstitucionalidades.


Ainda assim, diga-se, como já antes se sublinhou, sem necessidade de renovação das correspondentes considerações, que nenhuma das normas convocadas como fundamento da decisão recorrida ofende qualquer norma ou princípio constitucional, designadamente os da presunção da inocência e da culpa, da dignidade da pessoa humana, do Estado de Direito, do processo penal justo e equitativo, de estrutura acusatória e orientado no sentido de assegurar a plenitude das garantias de defesa dos arguidos.


Donde, também esta questão terá de improceder.


2. 2. 2. Vejamos se, no mais, lhe assiste razão.


Antes de prosseguir, importa relembrar que, face à rejeição parcial do recurso relativamente às penas parcelares aplicadas pela prática dos 22 crimes de abuso sexual de crianças e de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável14 e à inaplicabilidade da atenuação especial nesta sede, além da limitação deste segmento do recurso à pena única, fixada no acórdão recorrido em 11 (onze) anos e 8 (oito) meses de prisão, a moldura abstrata a considerar, nos termos dos artigos 171º, 172º e 77º, n.º 2, do CP, é a considerada no acórdão recorrido, ou seja, a pena de 5 (cinco) a 25 (vinte e cinco) anos de prisão.


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Na esteira de Figueiredo Dias15, escreveu Adelino Robalo Cordeiro, in “A Determinação da Pena”, Jornadas de Direito Criminal – Revisão do Código Penal – Alterações ao Sistema Sancionatório e Parte Especial, Volume II, Centro de Estudos Judiciários , Lisboa 1998, a pp. 30 a 54:


«a determinação da pena é susceptível de ser analisada em três perspectivas, correspondentes a outras tantas fases ou operações em que se desdobra a aplicação judicial de uma pena: a determinação da respetiva medida ou moldura legal (também chamada pena abstracta), da sua medida judicial ou individualizada (pena concreta) e da espécie de pena a aplicar (escolha da pena)


Acrescentando relativamente à determinação da pena concreta, que, como dito, é o que aqui está em causa e limitado à pena conjunta.


«Em síntese e à guisa de conclusão:


A culpa posiciona-se como pressuposto e limite (não fim) da pena, cuja medida (e forma de execução ou cumprimento) há-de ser fixada em função das exigências de prevenção, concebidas como finalidades da punição, e a necessidade da pena (para realizar o fim que visa) assume-se como fundamento da sua legitimidade, a sobrepor-se à concepção retributiva da pena (arts. 40º, n.ºs 1 e 2 e 71º, n.º 1; v., ainda, embora diretamente relativos à aplicação das penas de substituição e, portanto, à escolha da pena, arts. 45º, n.º 1, 48º, n.º 1, 50º, n.º 1, 58º, n.º 1, 59º, n.º 6, 60º, n.º 2, e 70º).


A quantificação da culpa e bem assim da intensidade ou grau de exigência das razões de prevenção, em função das quais se vão dimensionar as correspondentes molduras, faz-se através da ponderação das circunstâncias gerais presentes no caso concreto (…. circunstâncias que … depuserem a favor do agente ou contra ele … - art.71º, n.º 2).


Estas circunstâncias – sob pena de sair maltratada a proibição da dupla valoração, também aqui relevante (… circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime … -art. 71º, n.º 2) – não hão-de ter sido já levadas em conta na determinação da medida abstrata da pena, seja através da sua contribuição para a formação do tipo de crime, de que seriam então elementos típicos (….), seja porque já antes funcionaram como circunstâncias modificativas estranhas ao tipo (…), e até na medida em que já utilizadas para a escolha da pena. O que não significa que algumas delas não possam ser reavaliadas, embora numa perspectiva diferente, sem ofensa do ne bis in idem (p. ex., numa visão global ou conjunta, para efeito de aplicação da pena relativamente indeterminada ou da pena única no concurso – arts. 77º, n.º 1, e 83º, n.º 1; (…).


Uma vez identificadas, com recurso aos exemplos padrão do art. 71º, n.º 2 (e até do art. 72º, n.º 2, desde que fora da previsão do seu n.º 1), as circunstâncias que relevam para a pena concreta, impõe-se classificá-las enquanto se repercutem nesta através da culpa ou da prevenção – ou mesmo por ambas as vias, já que podem ser ambivalentes (p. ex., a utilização de um instrumento de trabalho – digamos, uma foice – como arma do homicídio, se agrava a ilicitude do facto, é igualmente susceptível de suscitar, nomeadamente se tal uso se mostra frequente, uma determinada postura ou expectativa da comunidade quanto aos termos da reação penal, e ainda de traduzir uma certa atitude ou modo de ser desajustados do agente, havendo então de refletir-se na pena concreta respetivamente através da culpa e da prevenção, geral e especial».


Em suma, a determinação concreta da pena não está dependente de qualquer exercício discricionário ou “arte de julgar” do juiz, não se compadece com o recurso a critérios de índole aritmética, nem almeja uma “precisão matemática”, antes reclama a ponderação e valoração das finalidades das penas e dos critérios da sua escolha e dosimetria, sempre por referência à culpa do agente, como seu necessário pressuposto e limite inultrapassável, em conformidade com o disposto nos artigos 40º, 70º e 71º do CP, no que às penas singulares concerne, ao que acresce, quanto à pena única, conjunta, resultante do cúmulo jurídico das penas fixadas para os crimes em concurso, um critério peculiar estabelecido no seu artigo 77º, n.º 1, in fine, qual seja, o da consideração, “em conjunto, (d)os factos e (d)a personalidade do agente”.


Conforme, aliás, constitui jurisprudência constante do STJ e pode ver-se do seguinte trecho extraído do acórdão de 14.12.2023, proferido no processo n.º 130/18.2JAPTM.2.S1, relatado pelo Conselheiro Jorge Gonçalves, disponível no sítio https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, que aqui se segue de perto, «A determinação da pena envolve diversos tipos de operações, resultando do preceituado no artigo 40.º do Código Penal que as finalidades das penas se reconduzem à proteção de bens jurídicos (prevenção geral) e à reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).


Hoje não se aceita que o procedimento de determinação da pena seja atribuído à discricionariedade não vinculada do juiz ou à sua “arte de julgar”. No âmbito das molduras legais predeterminadas pelo legislador, cabe ao juiz encontrar a medida da pena de acordo com critérios legais, ou seja, de forma juridicamente vinculada, o que se traduz numa autêntica aplicação do direito (cf., com interesse, Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, 1993, pp. 194 e seguintes).


Tal não significa que, dentro dos parâmetros definidos pela culpa e pela forma de atuação dos fins das penas no quadro da prevenção, se chegue com precisão matemática à determinação de um quantum exato de pena.


Estabelece o artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal, que a determinação da medida da pena, dentro da moldura legal, é feita «em função da culpa do agente e das exigências de prevenção». O n.º 2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, relevantes para a medida concreta da pena, pela via da culpa e/ou pela da prevenção, dispondo o n.º 3 que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, o que encontra concretização adjetiva no artigo 375.º, n.º 1, do C.P.P., ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.


Estando em causa a determinação da medida concreta da pena conjunta do concurso, aos critérios gerais contidos no artigo 71.º, n.º 1, acresce um critério especial fixado no artigo 77.º, n.º 1, 2.ª parte, do Código Penal: “serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.


Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, como se o conjunto de crimes em concurso se ficcionasse como um todo único, globalizado, que deve ter em conta a existência ou não de ligações ou conexões e o tipo de ligação ou conexão que se verifique entre os factos em concurso.


Refere Cristina Líbano Monteiro (A Pena «Unitária» do Concurso de Crimes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 16, n.º 1, págs. 151 a 166) que o Código rejeita uma visão atomística da pluralidade de crimes e obriga a olhar para o conjunto – para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente, estando em causa a avaliação de uma «unidade relacional de ilícito», portadora de um significado global próprio, a censurar de uma vez só a um mesmo agente.


Como se diz no acórdão do STJ, de 31.03.2011, proferido no Processo 169/09.9SYLSB.S1, a pena conjunta tenderá a ser uma pena voltada para ajustar a sanção - dentro da moldura formada a partir de concretas penas singulares – à unidade relacional de ilícito e de culpa, fundada na conexão auctoris causa própria do concurso de crimes.».


À luz de tais considerações, importa verificar a fundamentação do acórdão recorrido a este propósito e se dela emerge ou não alguma dúvida sobre a sua observância, devendo, em caso negativo e em princípio, o tribunal de recurso abster-se de qualquer modificação, pois como tem sido jurisprudência constante do STJ “Sendo os recursos remédios jurídicos, mantendo o arquétipo de recurso-remédio também em matéria de pena, a sindicabilidade da medida da pena abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respectivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada16.


No que aqui releva, essa fundamentação foi do seguinte teor:


«Medida da Pena


O recurso interposto pelo recorrente, para além de ter visado a decisão sobre o enquadramento jurídico dos factos, tem ainda como escopo no reexame da matéria de direito a medida da pena aplicada.


Alegou o seguinte:


“(…)


XXXIX- Atendendo a todos os pressupostos elencados do artigo 50.º do Código Penal, deverá o Tribunal ad quem alterar a pena de prisão aplicada, reduzindo-a para o limite mínimo (em face da necessária atenuação especial) e, também, suspendendo-a em qualquer caso na sua execução.


XL- O Arguido não tem antecedentes criminais por crimes da mesma natureza.


XLI- O próprio relatório social do Arguido, conclui que na eventualidade do arguido ser condenado, e se a pena concretamente aplicada o permitir, afigura-se-nos existirem condições para a execução de medida na comunidade que contemple uma avaliação especializada e eventual intervenção estruturada no âmbito dos comportamentos sexuais abusivos, visando a interiorização do desvalor da sua conduta e a prevenção da reincidência.


XLII- Acresce o facto do Arguido já não viver com as menores, nem terem qualquer convivência.


Como se extrai do excerto das conclusões transcritas, o recorrente limita essa parte do seu recurso à impugnação da pena única que lhe foi aplicada em resultado da operação de cúmulo jurídico das penas parcelares fixadas para cada um dos ilícitos penais perpetrados, entendendo que a mesma se mostra desproporcionada, excessiva, por ultrapassar a medida da culpa que se extrai da sua conduta.


Em causa está a prática de crimes de abuso sexual de criança, alguns agravados, e de abuso sexual de menores dependentes, p. e p. pelos artigos 171.º, n.º 1 al. a), nº 2 e nº 3, 172.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. b), todos do Código Penal.


Na 1ª instância foi decidido, condenar o arguido:


“(…)


1 (um) crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 1 do C.P. e 177.º, n.º 1, al. b) [na pessoa da menor BB - factos sob o ponto 12], ambos do C.P., a pena de 3 (três) anos de prisão;


2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 3 als. a) e c) e 177.º, n.º 1, al. b) [na pessoa da menor BB - factos sob os pontos 11 e 13], ambos do C.P., na pena parcelar de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, para cada um deles; e,


6 (seis) crimes de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, al. b), ambos do C.P. [na pessoa da menor BB - factos sob os pontos 7, 8, 9, 10 e 14], na pena parcelar de 5 (cinco) anos de prisão, para cada um deles;


2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 1 do C.P. e 177.º, n.º 1, al b) [na pessoa da menor CC factos sob os pontos 21, 22 e 26], ambos do C.P., na pena parcelar de 3 (três) anos de prisão, para cada um deles;


1 (um) crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 3, al. c) e 177.º, n.º 1, al. b), ambos do C.P. [na pessoa da menor CC factos sob o ponto 28], na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;


9 (nove) crimes de abuso sexual de crianças agravados, p. e p. pelos arts. 171º, n.º 2 e 177º, n.º 1, al. b), ambos do C.P., na pena parcelar de 5 (cinco) anos de prisão, para cada um deles; e,


1 (um) crime de abuso sexual de menor dependente, p. e p. pelos arts. 172.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. b), ambos do C.P., na pena de 4 (quatro) anos de prisão.


Em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 11 (onze) anos e 8 (oito) meses de prisão.


(…)”


Abordemos então o direito aplicável nesta fase processual respeitante à determinação da medida concreta da pena única.


O crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelo art. 171º, n.º 1 e 177º, n.º 1, al. b) do C.P., é punido com pena de prisão de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses a 10 (dez) anos e 8 (oito) meses de prisão;


O crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos art. 171º, n.ºs 1 e 2 e 177º, n.º 1, al. b) do C.P., é punido com pena de prisão de 4 (quatro) a 13 (treze) anos e 4 (quatro) meses;


O crime de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelo art. 171º, n.º 3, als. a) e c) e 177º, n.º 1, al. b) do C.P., é punido com pena de prisão de 40 (quarenta) dias a 4 (quatro) anos de prisão;


- o crime de abuso sexual de menor dependente, p. e p. pelo art. 171º, n.º 1 e 177º, n.º 1, al. b) do C.P., é punido com pena de prisão de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses a 10 (dez) anos e 8 (oito) meses de prisão.


Em sede de determinação da pena concreta importa ter presente o disposto nos artigos:


- 40.º do CP, Com a epígrafe de "finalidades das penas (...)", aquele preceito legal dispõe que:


"1. A aplicação de penas (...) visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.


2. Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa".


- 71.º do CP, O qual preceitua que:


“1. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.


2. Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:


a) o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;


b) a intensidade do dolo ou da negligência;


c) os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;


d) as condições pessoais do agente e a sua situação económica;


e) a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;


f) a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta de ser censurada através da aplicação da pena”.


Tais disposições legais conferem ao intérprete e ao aplicador do direito critérios gerais, mais ou menos seguros e normativamente estabilizados, para efeito de medida da reação criminal, sendo que o preceituado sob o número 2 do indicado artigo 40.º constitui inegavelmente um afloramento do princípio geral e fundamental de que o direito penal é estruturado com base na culpa do agente, constituindo a medida da culpa uma condicionante da medida da pena de forma a que esta não deve ultrapassar aquela.


A pena serve finalidades de prevenção geral e especial, sendo delimitada no seu máximo inultrapassável pela medida em que se dimensione a culpa.


(…)»


Prosseguindo, após pertinentes e desenvolvidas referências doutrinais e jurisprudenciais.


«(…)


Vejamos agora as regras de punição do concurso de crimes


Estabelece, quanto a regras de punição do concurso de crimes, o artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal:


“Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.


E nos termos do n.º 2, a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão e 900 dias, tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo, a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.


Segundo o n.º 3 “Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores”.


Estabelece o n.º 4: As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis.


Naquele normativo consagra-se o chamado sistema da pena conjunta, obtido através de cúmulo jurídico inspirado essencialmente no princípio da cumulação.


Esse sistema radica num triplo procedimento.


Em primeiro lugar, deve determinar-se a pena concreta de cada um dos crimes em concurso.


Depois, estabelece-se a moldura penal do concurso, constituindo o respetivo limite inferior a mais elevada das penas concretas integrantes do mesmo concurso e o seu limite superior a soma de todas as penas concretamente aplicadas, não podendo exceder 25 (vinte e cinco) anos de prisão.


Finalmente, determina-se a pena conjunta do concurso, em função das exigências gerais de prevenção e da culpa, sempre considerando os factos e a personalidade do agente.


Como escreve Figueiredo Dias, “tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifica”.


“Na avaliação da personalidade - unitária - do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou, tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)” Cf. Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, edição Notícias Editorial, 1993, páginas 291 e 292.


Conforme refere José de Faria Costa, in Revista de Legislação e Jurisprudência, n.º 3945, a págs. 326/327: “Seria redundante dizer-se que se prefere o sistema do cúmulo jurídico ao do material porque este último se revela de difícil exequibilidade, pois obrigaria o condenado ao cumprimento sucessivo das diferentes penas a que se chegou em cada uma das condenações. No entanto, embora esta razão seja inteiramente válida, aqueloutra pela qual o sistema do cúmulo jurídico se apresenta de maior justeza reside no facto de, com ele, se evitar que os factos penais ilícitos, após a aplicação das respetivas penas, ganhem uma gravidade exponencial porque vistos isoladamente ou compartimentados uns dos outros. Gravidade essa que, obviamente, se refletirá, em um primeiro momento, em uma culpa igual ou proporcionalmente grave e, em momento posterior, em pena de igual dosimetria à culpa. Isto é, a culpa reportada a cada facto ganha (...) um efeito multiplicador. Como consequência do que se acabou de dizer, sendo a culpa relativa a cada facto ilícito-típico, tal redundará na ultrapassagem do limite da culpa (...) podemos concluir que só o sistema do cúmulo jurídico é suscetível de ser dogmaticamente justificável porque é através dele que obtemos a imagem global dos factos praticados e, bem assim, do seu igual desvalor global. Apenas efetuando (...) um exame dos factos em conjunto podemos perscrutar a ligação que os factos ilícitos isolados mantêm uns com os outros. Só através do cúmulo jurídico é possível, enfim, proceder à avaliação da personalidade do agente e, dessa maneira, perceber se se trata de alguém com tendências criminosas, ou se, ao invés, o agente está a viver uma conjuntura criminosa cuja razão de ser não radica na sua personalidade, mas antes em fatores exógenos. (...) através do sistema do cúmulo jurídico a culpa é adequadamente valorada e, em consequência, a pena encontrada é, inquestionavelmente, mais justa”.


A medida da pena unitária a atribuir em sede de cúmulo jurídico reveste-se de uma especificidade própria.


Por um lado, está-se perante uma nova moldura penal, mais ampla, abrangente, com maior latitude da atribuída a cada um dos crimes.


Por outro, tem lugar, porque se trata de uma nova pena, final, de síntese, correspondente a um novo ilícito e a uma nova culpa (agora culpa pelos factos em relação), uma específica fundamentação, que acresce à decorrente do artigo 71.º do Código Penal.


Constitui posição sedimentada e segura no Supremo Tribunal de Justiça a de nestes casos estarmos perante uma especial necessidade de fundamentação, na decorrência do que dispõem o artigo 71.º, n.º 3, do Código Penal, e os artigos 97.º, n.º 5 e 375.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, em aplicação do comando constitucional ínsito no artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, onde se proclama que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.


Como estabelece o artigo 71.º, n.º 3, do Código Penal “Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena”, decorrendo, por seu turno, do artigo 97.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, que os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão, e do disposto no artigo 375.º, n.º 1, do mesmo Código, que a sentença condenatória deve especificar os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.


Maia Gonçalves, in Código Penal Português Anotado e Comentado, 15.ª edição, pág. 277 (e a págs. 275 da 16.ª edição, de 2004, e pág. 295 da 18.ª edição, de 2007), a propósito do artigo 77.º, salientava que “na fixação da pena correspondente ao concurso entra como fator a personalidade do agente, a qual deve ser objeto de especial fundamentação na sentença. Ela é mesmo o aglutinador da pena aplicável aos vários crimes e tem, por força das coisas, carácter unitário”.


A punição do concurso efetivo de crimes funda as suas raízes na conceção da culpa como pressuposto da punição – não como reflexo do livre arbítrio ou decisão consciente da vontade pelo ilícito. Mas antes como censura ao agente pela não adequação da sua personalidade ao dever-ser jurídico penal.


Como acentua Figueiredo Dias em Liberdade, Culpa e Direito Penal, Coimbra Editora, 2.ª edição, 1983, págs. 183 a 185, “ (…) o substracto da culpa (…) não reside apenas nas qualidades do carácter do agente, ético-juridicamente relevantes, que se exprimem no facto, na sua totalidade todavia cindível (…). Reside sim na totalidade da personalidade do agente, ético-juridicamente relevante, que fundamenta o facto, e portanto também na liberdade pessoal e no uso que dela se fez, exteriorizadas naquilo a que chamamos a “atitude” da pessoa perante as exigências do dever ser. Daí que o juiz, ao emitir o juízo de culpa ou ao medir a pena, não possa furtar-se a uma compreensão da personalidade do delinquente, a fim de determinar o seu desvalor ético-jurídico e a sua desconformação em face da personalidade suposta pela ordem jurídico-penal. A medida desta desconformação constituirá a medida da censura pessoal que ao delinquente deve ser feita, e, assim, o critério essencial da medida da pena”. (Ibidem Ac. do STJ de 03/06/2020)


Regressando ao caso vertente


Tal como foi vertido no acórdão recorrido, na efetivação do cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas, de acordo com os critérios enunciados no n.°2 do citado artigo 77.°, do CP, a pena a aplicar terá como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas.


Foram aplicadas ao arguido as penas parcelares acima apontadas, e que aqui damos por reproduzidas.


Essas penas variam entre a mais grave, que é de 5 (cinco) anos de prisão, a mais elevada das penas parcelares aplicadas, e a soma de todas as penas parcelares aplicadas, que atingiria em cúmulo material um total de 87 (oitenta e sete) anos e 6 (seis) meses, mas que não poderá ultrapassar os 25 (vinte e cinco) anos de prisão


Em cúmulo jurídico destas penas parcelares veio a ser aplicada ao arguido a pena única de 11 (onze) anos e 8 (oito) meses de prisão.


O recorrente não reporta as razões concretas do seu inconformismo com esta pena única, alegando apenas que é exagerada, desequilibrada e desajustada, face aos critérios legais e aos princípios da necessidade, adequação proporcionalidade e humanidade das penas.


Na ponderação da fixação da pena única na decisão proferida fez-se constar:


“Tendo por base esta moldura urge determinar a pena concreta a aplicar aos arguidos, fazendo apelo em conjunto ao binómio constituído pelos factos e pela personalidade do agente (cfr. art. 77.º, n.º 1, in fine).


Tais crimes apresentam um grau elevado de ilicitude, o que se mostra reflectido nas respectivas penas parcelares.


Fazendo, agora, apelo à personalidade do arguido, cabe ter presente, para além de tudo quanto expusemos supra, que:


- o arguido manteve a prática criminosa, com grande e crescente intensidade, que só interrompeu quando foi preso e não por uma decisão voluntária da sua parte;


- resulta igualmente dos factos provados que revela inconsistente consciência crítica relativamente aos seus comportamentos criminais;


- não denota qualquer arrependimento, mantendo um distanciamento relativamente às suas condutas.


Ora, se as necessidades de prevenção geral são elevadas, as necessidades de prevenção especial revelam-se vivamente prementes, como referido supra.


Factos e crimes “em série” que, em si mesmos e na intensidade, na persistência da actividade delituosa, mas também encadeados com a personalidade do arguido, demonstram que revela forte e entranhada tendência para cometer crimes de violência sexual e desrespeito profundo da dignidade da pessoa humana, como insofismavelmente certifica a facticidade assente.


Aliás, não tivesse sido, entretanto, preso e é praticamente certo - extrai-se da ponderação dos factos provados à luz das regras da experiência e da racionalidade lógica -, que prosseguiria, imparavelmente, com a mesma ou idêntica actividade criminosa.


Conclui-se, assim, que o comportamento global evidencia forte pulsão do arguido para a prática de crimes de violência sexual com menores.


Tudo ponderado, sublinhando-se que o S.T.J. tem adoptado a jurisprudência, na formação da pena única, de fazer acrescer à pena mais grave o produto de uma operação que consiste em comprimir a soma das restantes penas com factores variáveis, mas que se situam, normalmente, entre um terço e um sexto.


E como se lê nos Acórdãos do S.T.J. de 29.04.2010 e 01.07.2012 (referentes aos processos n.ºs 9/07.3GAPTM.S1 e 831/09.6PBGMR.S1, respectivamente, acessíveis na internet em www.dgsi.pt/jstj) que “só em casos verdadeiramente excepcionais se deve ultrapassar um terço da soma das restantes penas”, considerando a conduta desviante que manteve, afigura-se-nos adequada a pena única de 11 anos e 8 meses de prisão”


Vejamos.


No que respeita ao quantum da pena única de prisão em apreço aplicada ao arguido/recorrente, teremos de reponderar a factualidade apurada, nomeadamente os factos relativos aos ilícitos criminais perpetrados, as condições pessoais do arguido e a sua personalidade, a gravidade do ilícito global perpetrado e a conexão entre os factos concorrentes.


Nessa avaliação da personalidade - unitária - do arguido não poderemos deixar de ponderar o conjunto dos factos, o ambiente em que decorreram (na residência conjunta, no interior da viatura e em lugares ermos), a sua conexão intrínseca, sendo todos cariz eminentemente sexual, o período de tempo durante o qual se verificaram, a condição de menor de cada uma das vítimas, o aproveitamento de uma situação de dependência emocional destas relativamente à figura paterna que o arguido representava, a coação que exercia sobre as ofendidas, todo um conjunto de circunstâncias que nos conduzem a concluir estarmos perante uma tendência para a prática deste tipo de ilícitos penais, uma verdadeira tara ou tendência criminosa, uma personalidade perversa, a que não poderá deixar de se atribuir, designadamente à pluralidade de crimes, um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta.


Também será de ponderar o efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do arguido, como exigência de prevenção especial de socialização.


O elevado grau de culpa com que o arguido atuou. Sem procurar modificar o seu comportamento durante todos estes anos.


Sendo também muito elevado, diria de proporções monstruosas, o grau de ilicitude dos factos, e o impacto causado na personalidade, privacidade e determinação sexual das vítimas, como resulta dos exames psicológicos a que foram sujeitas.


As razões e necessidades de prevenção geral positiva ou de integração - que satisfaz a necessidade comunitária de afirmação ou mesmo reforço da norma jurídica violada, dando corpo à vertente da proteção de bens jurídicos, finalidade primeira da punição – são muito elevadas, designadamente face ao tipo de crimes em questão e ao decurso do tempo decorrido desde o início da prática do factos, que perduraram cerca de dois anos, e ainda ao facto de estarmos perante duas vítimas menores.


As necessidades de prevenção especial avaliam-se em função da necessidade de prevenção de reincidência, de dissuadir o delinquente da prática de outros ilícitos e da necessidade de se auto ressocializar.


Ora no presente caso, verificamos que o arguido praticou os crimes num período de cerca de dois anos, que, tudo indica, só terá terminado porque as ofendidas acabaram por ter de divulgar a situação, por forma temerária, abusiva, valendo-se da superioridade física e emocional que tinha sobre as vítimas, sem o mínimo respeito pela sua saúde, liberdade, privacidade e autodeterminação sexual, que de modo indelével condicionou, afetando as suas personalidades e auto estima, pelo que tal quadro de atuação se nos afigura não poder dever-se a uma mera ocasionalidade, mas, antes, a uma expressiva tendência criminosa da sua personalidade para a prática deste tipo de ilícitos – exigindo-se, pois, que se afaste a possibilidade de a pena única sofrer alguma moderação. Sendo manifesto que estamos perante um caso de tendência criminosa, não obstante não ter registados quaisquer confrontos com o sistema penal de justiça pela prática de crimes da mesma natureza,


Apresentando no período da prática dos factos uma desconformidade com os valores que subjazem e enformam a nossa sociedade, um desvalor, um grau de culpa, que não poder ser menosprezado, antes pelo contrário, em termos de valoração, que terá de se repercutir na medida da censura pessoal que lhe tem de ser feita, com reflexos na medida da pena.


Tendo em conta a imagem global do conjunto factual em apreciação, entende-se que a pena única aplicada, de 11 (onze) anos e 8 (oito) meses de prisão, dentro da moldura legal aplicável supra referida, que a pecar só se for por modesta, realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Mostrando-se, contrariamente ao afirmado pelo recorrente criteriosamente aplicada, proporcionada e equilibrada, tendo em conta a culpa do agente e todas as circunstâncias do caso.


Atenuação especial da pena.


Refira-se, por fim, e como se retira de tudo o acabado de expor, que a situação concreta não contempla, contrariamente ao propugnado pelo recorrente, a possibilidade de fazer funcionar o instituto da atenuação espacial da pena, tal como previsto no art. 72º, do CP, não se verificando, antes pelo contrário, quaisquer circunstâncias, anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena, designadamente as previstas nas alíneas a) a d) do nº 2 do mesmo preceito legal.


Da suspensão da pena.


Também aqui não tem aplicação a solicitada suspensão da pena, uma vez que desde logo não se verifica o requisito de ordem formal previsto no art. 50º, do CP, ou seja, que a pena aplicada seja igual ou inferior a cinco anos de prisão, mas, também a demostrada personalidade do arguido, que revela uma personalidade mal formada, firmemente avessa ao direito, completamente indiferente aos valores tutelados pelas normas penais violadas e à ameaça das respetivas sanções, de resto, evidenciada pela ausência de qualquer conduta demonstrativa de ter interiorizado a sua culpa e necessidade de censura penal, obstaria a que essa solicitada suspensão alguma vez se justificasse no caso concreto.


Mostrando-se, pois, prejudicada a apreciação desta questão.


Pelo que, também nesta parte, improcede o recurso interposto pelo arguido.».


*


Do excerto transcrito vê-se que no acórdão recorrido se consignou que o cúmulo material das penas parcelares aplicadas ao arguido atingiria os 87 (oitenta e sete) anos e 6 (seis) meses.


Porém, a soma material das penas parcelares aplicadas atinge os 92 (noventa e dois) anos e 6 (seis) meses - 36 (trinta e seis) anos pelos crimes de que foi vítima a ofendida BB e 56 (cinquenta e seis) anos e 6 (seis) meses relativamente aos praticados contra a ofendida CC -, o que, sendo aparentemente inócuo sob o prisma estritamente jurídico, em face do limite máximo inultrapassável dos 25 anos de prisão legalmente fixado para a moldura abstrata da pena conjunta resultante do cúmulo jurídico a efetuar, importa assinalar, corrigindo, porque mais expressivo da gravidade da conduta do recorrente.


Assim, porque se trata de um manifesto erro de cálculo, cuja correção não implica modificação essencial e pode ter lugar a todo o tempo, oficiosamente ou a requerimento, corrige-se aquela soma/resultado afirmada no texto do acórdão recorrido em conformidade com o valor antes referido, nos termos do artigo 380º, n.ºs 1, al. b), e 2, do CPP.


No mais, mostra-se inquestionavelmente bem fundado quanto à medida da pena única fixada e aqui em apreço17, mantendo-a nos 11 (onze) anos e 8 (oito) meses de prisão, talqualmente decretada na 1ª instância, 6 (seis) anos e 8 (oito) meses acima do limite mínimo da sua moldura abstrata ou legal, fundamentação e conclusão que a argumentação do recorrente não consegue contrariar, pois a simples ausência de antecedentes por crimes da mesma natureza, de já não viver com as menores ofendidas nem com elas conviver e de se encontrar social e laboralmente inserido, embora em condições reveladoras de alguma precariedade, não diminui as elevadas necessidades de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir, em razão da ilicitude global dos factos e da sua personalidade.


Com efeito, considerando a identidade factual e jurídica deste caso com o que foi objeto de apreciação no processo n.º 424/21.0PLSNT.S1.L1.S1, no qual foi, em 21.02.2024, proferido acórdão relatado pelo Conselheiro Lopes da Mota, justifica-se transcrever aqui a seguinte parte do respetivo sumário publicado em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/.


VI. Os factos, que agora preenchem o ilícito global, com repetida ofensa do mesmo bem jurídico, por diversas formas, foram praticados, todos eles, em 2017 e 2018, num período de cerca de 2 anos, tendo a criança ofendida entre 13 e 15 anos de idade, sempre no espaço de habitação comum em que o arguido e a mãe da vítima viviam em condições análogas às dos cônjuges, aproveitando-se o arguido da circunstância de viverem na mesma casa, de ter acesso ao quarto de dormir da criança, da privacidade e ocultação que estas circunstâncias proporcionavam e da ascendência que mantinha relativamente à criança, filha da sua companheira, também ao seu cuidado, como se sua filha fosse.


VII. Embora não se devam levar em conta na determinação da medida da pena (artigo 71.º do CP) as circunstâncias típicas de qualificação dos crimes decorrentes da gravidade do ato praticado e das relações de coabitação e dependência (artigos 171.º, n.º 2, 172.º e 177.º do CP), por a isso se opor a proibição da dupla valoração, evidencia-se uma atividade criminosa de ilicitude muito elevada revelada pela intensidade, frequência, variedade e repetição dos atos, pela determinação e persistência do dolo, pelas circunstâncias concretas de tempo, lugar e modo por que os atos foram praticados e pela forma reiterada e intensa de violação dos deveres de proteção da criança e da relação de confiança familiar em que esta se movia.


VIII. Não obstante não ter sofrido condenações anteriores, a forma e demais circunstâncias repetidas da prática dos crimes, relativamente aos quais são intensas as exigências de prevenção geral evidenciadas pela sua frequência, revelam uma personalidade com manifesta falta de preparação para manter uma conduta lícita, mostrando-se muito elevadas as exigências de prevenção especial, em função das necessidades individuais e concretas de socialização, a satisfazer mediante a aplicação da pena.


IX. Nesta conformidade, tendo em conta a moldura da pena aplicável aos crimes em concurso (5 a 25 anos de prisão), na ponderação, em conjunto, dos factos e da personalidade do arguido revelada na sua prática (artigo 77.º, n.º 1, do CP), não se encontra fundamento suscetível de pôr em crise a aplicação da pena única de 9 anos de prisão, por violação dos critérios, que se mostram respeitados, de adequação e proporcionalidade que devem presidir à determinação das penas, em vista da realização das finalidades de proteção dos bens jurídicos ofendidos com a prática dos crimes e de integração do agente na sociedade”.


Como se vê, ressalvada a diferença de aqui terem sido vítimas da atuação criminosa do arguido duas menores e não apenas uma, o que, naturalmente, justifica o agravamento da pena única aplicada, ao invés da sua pretendida redução, a identidade factual é evidente.


Na verdade, também neste caso os atentados contra a liberdade e autodeterminação das duas vítimas, menores gémeas, com idade entre os 12 e os 13 anos, sendo uma delas ainda abusada já com 14 anos. filhas da companheira do arguido, com quem viviam em regime de coabitação. Perante elas e por elas o arguido apresentava-se e era querido e aceite como pai, razão porque, na ausência de convívio regular com o pai biológico, acatavam e acreditavam nas suas orientações e determinações, nele confiando e por ele sendo condicionadas e sugestionadas, com recomendações enganosas e por vezes premiadas monetariamente, acerca do valor e desvalor das condutas e como sua contrapartida. Condutas que, aproveitando-se desse contexto, lhes ia impondo, à vez e em diferentes lugares - em casa, no carro e em sítios ermos ou recatados, para onde as transportava a pretexto de passear o cão – desse modo as constrangendo repetida e alternadamente, durante cerca de 1 ano e 6 meses – entre o Verão de 2017 e fevereiro de 2019 – a atos sexuais de relevo, muitas vezes com penetração vaginal com o pénis, dedos e objetos tipo vibrador, num total de 22 crimes apurados. Práticas que só foram interrompidas com a descoberta acidental desse seu comportamento e o consequente afastamento das menores do seu campo de influência e ação, agindo sempre e apenas motivado pela satisfação dos seus desejos libidinosos, sem evidenciar, até hoje, qualquer sinal de arrependimento ou sequer de efetiva compreensão e interiorização dos enormes prejuízos, físicos e psíquicos, necessariamente causados às ofendidas, ainda em idade imatura e de acrescido risco para a respetiva formação e são crescimento físico e psicológico, segundo os normais padrões da infância e juventude, que analisa e classifica como meros transtornos ou incómodos, assim se lhes referindo no texto do recurso.


Tudo, por conseguinte, revelador de uma personalidade centrada em si mesma e indiferente à dignidade do outro, no caso das duas crianças que nele confiaram e a ele se entregaram como se do pai se tratasse, enganando-as e usando-as como objeto de realização da sua pulsão sexual, indiferente ao seu manifesto desvalor.


A esse referencial jurisprudencial não foi também o acórdão recorrido indiferente, antes podendo dizer-se que, além da consideração daquelas poucas circunstâncias favoráveis ao recorrente, mas de valor atenuativo diminuto, não descurou os princípios da proporcionalidade e da necessidade da pena fixada, fazendo a avaliação conjunta, global, dos factos e da personalidade do arguido neles refletida ou por eles evidenciada, concluindo, em termos objetivos e sob o prisma estritamente jurídico-penal, pela verificação no caso de uma “certa tendência criminosa”, afastando a ideia de “pluriocasionalidade”, que não permitiu sequer um vislumbre de possível regeneração futura em liberdade, por isso se impondo o cumprimento de uma pena de prisão como condição necessária à sua ressocialização e interiorização do desvalor das suas condutas, no pressuposto, claro está, de a reclusão ser executada em conformidade com essa finalidade legal, a par das prementes exigências de prevenção geral presentes no caso.


A proporcionalidade da pena única fixada evidencia-se também, em termos absolutos e relativos, na comparação com a jurisprudência produzida em casos similares pelo STJ18.


Tudo, por conseguinte, no sentido de se poder afirmar que o acórdão recorrido se mostra bem fundado e que, em face das finalidades das penas, em particular das elevadas exigências de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir, sob pena de postergação da proteção dos bens jurídicos que com as incriminações se pretendem acautelar, o da liberdade e autodeterminação sexual, valor supremo de um Estado de direito, fundado na dignidade e na inviolabilidade da pessoa humana, constitucional e legalmente consagrado, que aqui foi alvo de duplo e plúrimo atentado19, a pena conjunta de 11 (onze) anos e 8 (oito) meses de prisão, resultante do cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas aos 22 crimes de abuso sexual de crianças e de menores dependentes, é justa, adequada e fixada de harmonia com os princípios da necessidade e da proporcionalidade das penas, sem ultrapassar a medida da culpa do arguido.


*


Mantendo-se inalterada a pena única de 11 (onze) anos e 8 (oito) meses de prisão, fica irremediavelmente prejudicada a possibilidade de suspender a respetiva execução, por não verificação do pressuposto formal a tanto necessário estabelecido no artigo 50º, n.º 1, 1ª parte, do CP, qual seja o de a pena de prisão aplicada não ser superior a 5 (cinco) anos.


Termos em que, sem necessidade de quaisquer outras considerações, improcede também esta pretensão recursiva.


IV. Decisão


Em face do exposto, acorda-se em:


a) Rejeitar parcialmente o recurso interposto pelo arguido AA, quanto às penas parcelares sofridas pela prática dos 21 crimes de abuso sexual de crianças e 1 de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável, e demais questões suscitadas no recurso a elas direta e exclusivamente respeitantes, outrossim quanto às indemnizações oficiosamente arbitradas às ofendidas, por inadmissibilidade legal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 400º, n.ºs 1, als. e) e f), 2 e 3, 414º, n.º 3, 420º, n.º 1, al. b), e 432º, n.º 1, al. b), todos do CPP e 629º, n.ºs 1 e 2, a contrario, e 671º, n.º 3, do CPC.


b) Negar provimento ao recurso quanto às demais questões suscitadas pelo arguido e manter o acórdão recorrido.


c) Condenar o recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 7 (sete) UC (cfr. artigos 513º do CPP e 8º, n.º 9, do RCP, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26.02 e Tabela III anexa), ressalvado eventual benefício de apoio judiciário.


Lisboa, d. s. c.


(Processado pelo relator e integralmente revisto e assinado digitalmente pelos subscritores)


João Rato (Relator)


Leonor Furtado (1º adjunto)


Jorge Bravo (2º adjunto)


_____________________________________________

1. Cfr. artigo 412º do Código de Processo Penal (CPP) e, na doutrina e jurisprudência, as correspondentes anotações de Pereira Madeira, in Código de Processo Penal Comentado, de António Henriques Gaspar et al., 2021 - 3ª Edição Revista, Almedina.

Tudo sem prejuízo, naturalmente, da necessária correlação e interdependência entre o corpo da motivação e as respetivas conclusões, não podendo nestas acrescentar-se o que não encontre arrimo naquele e sendo irrelevante e insuscetível de apreciação e decisão pelo tribunal de recurso qualquer questão aflorada no primeiro sem manifestação nas segundas, não podendo igualmente, salvo as de conhecimento oficioso, conhecer-se de questões novas não colocadas nem consideradas na decisão recorrida, como se afirmou no acórdão deste STJ, de 23.11.2023, proferido no processo n.º 687/23.6YRLSB.S1, relatado pelo Conselheiro Jorge Gonçalves, ainda inédito.↩︎

2. Considerando a regra da precedência lógica decorrente da aplicação conjugada dos artigos 368º e 369º do CPP, aqui aplicáveis por remissão do seu artigo 424º, nº 2, a qual, de resto, poderá justificar também a reordenação das questões a) e b) suscitadas pelo recorrente, se delas for possível conhecer.↩︎

3. Sobre o assunto e em sentido concordante com a posição sustentada no parecer do Ministério Público em sede penal e cível, embora crítico quanto à consagração legal do critério da pena concreta (aplicada) em detrimento da pena abstrata (aplicável), pode ver-se a anotação de Pereira Madeira ao artigo 400º do CPP, in ob. e loc. cit., assim como a resenha jurisprudencial, do Tribunal Constitucional (TC) e do STJ, nela incluída, de que ali também se dá conta.

E, ainda, para além dos muitos indicados na resposta e no parecer do Ministério Público, os acórdãos do STJ, de 14.10.2021, proferido no processo n.º 255/19.7GAVFX.L1.S1, relatado pelo Conselheiro António Gama, de 17.05.2023, proferido no processo n.º 333/14.9TELSB.L1.S1, relatado pelo Conselheiro Pedro Branquinho Dias, e de 29.02.2024, proferido no processo n.º 864/20.1JABRG.G1.S1, relatado pelo Conselheiro Agostinho Torres, todos disponíveis no sítio https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/.↩︎

4. Ainda que, como se afirmou no acórdão do STJ, de 31.01.2024, proferido no processo n.º 2540/22.1JAPRT.P1.S1, disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, de que foi relator o do presente, com referências doutrinárias e jurisprudenciais no mesmo sentido, essa conclusão não prejudique o dever de retirar da eventual procedência de idênticas questões relativas à pena única recorrível as consequências legalmente impostas quanto às restantes penas aplicadas, numa interpretação aplicativa extensiva, que se tem por necessária, adequada e sem oposição da orientação afirmada no corpo texto, do disposto no artigo 403º, n.º 3, conjugado com o disposto no artigo 402º, do CPP.↩︎

5. A propósito do conhecimento oficioso destes vícios e nulidades e em sintonia com o afirmado no texto, vejam-se Pereira Madeira e Oliveira Mendes em anotação aos artigos 432º e ss. e 410º e 379º do CPP, respetivamente, no Código de Processo Penal Comentado, de Henriques Gaspar [et al.], 3ª Edição Revista, Almedina 2021.↩︎

6. Cfr, entre outros, os acórdãos, de 1.03.2023, 9.03.2023, 11.08.2023 e 15.02.2024, que referencia os três anteriores, cujos relatores são, respetivamente, os Conselheiros Ernesto Vaz Pereira, Helena Moniz, Pedro Branquinho Dias e o do presente, proferidos nos processos n.ºs 589/15.0JABRG.G2.S1, 1368/20.8JABRG.G1.S1, 31/21.7JGLSB.L1.S1 e 135/22.9JAFUN.L1.S1, assim como o antes referenciado, de 29.02.2024, relatado pelo Conselheiro Agostinho Torres, todos disponíveis em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/.

No mesmo sentido e em geral sobre as implicações, em matéria de recursos, decorrentes da Lei n.º 94/2021, de 21.12, veja-se Nuno A. Gonçalves, Juiz Conselheiro Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, in Alterações ao regime do recurso ordinário, no n.º 1 de “A Revista do Supremo Tribunal de Justiça, acessível em https://arevista.stj.pt/?page_id=624.↩︎

7. Cuja alegação se poderia vislumbrar nas conclusões XIX a XXI e XXXIV, em que se alude a “erro crasso na apreciação da prova” e “errada qualificação jurídica dos factos”, embora sem indicar os concretos factos erradamente julgados ou qualificados, sendo que, quanto a estes, na motivação, se refere aos dos pontos 22 e 28, o primeiro sem qualquer razão pois ele foi enquadrado juridicamente em norma distinta da indicada pelo recorrente, e o segundo também numa leitura desconforme do conteúdo factual e do respetivo significado.↩︎

8. Conforme se afirma no citado acórdão do STJ, de 11.08.2023, proferido no processo n.º 31/21.7JGLSB.L1.S1, relatado pelo Conselheiro. Pedro Branquinho Dias, aderindo e citando o acórdão referenciado no texto.↩︎

9. V.g., acórdãos de 30.10.2001 e 2.05.202, proferidos nos processos n.ºs P2630 e 611/02, respetivamente, relatados pelo Conselheiro Armando Leandro, disponíveis em Sumários dos ACSTJ, no sítio https://www.juris.stj.pt, e de 16.03.2022, proferido no processo n.º 150/11.8JAAVR.P2.S1, relatado pela Conselheira Conceição Gomes, disponível no mesmo sítio e também no https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/,↩︎

10. Entendimento também acolhido nas secções criminais, como pode ver-se, por todos, no acórdão de 27.01.2022, proferido no processo n.º 1167/15.9T9GRD.C1.S1, relatado pela Conselheira Adelaide Sequeira, disponível no mesmo sítio.↩︎

11. No mesmo sentido, pode ainda ver-se a Conselheira Helena Moniz, em A autonomia dos recursos em processo penal (a revista excecional e outros institutos do processo civil), no ponto 4 intitulado A aplicação das regras processuais civis ao processo penal aquando do recurso do pedido de indemnização civil enxertado no processo penal, no n.º 1 de “A Revista” do Supremo Tribunal de Justiça acima referenciado.↩︎

12. Neste sentido, pode ver-se o acórdão do STJ, de 29.02.2024, proferido no processo n.º 1048/22.0PCBRG.S1, relatado pelo Conselheiro Jorge Gonçalves, disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, de que se transcreve o seguinte trecho «O que se extrai com clareza dos artigos 72.º e 73.º do Código Penal é que a possibilidade de atenuação especial da pena só se coloca em relação às penas parcelares e não relativamente à determinação da pena única conjunta resultante de cúmulo jurídico (cf. os acórdãos do STJ; de 21.09.2007, processo 07P2820, de 11.12.2008, processo 08P3632; de 9.06.2010, processo 29/05.2GGVFX.L1.S1; de 5.12.2012, processo 1213/09.SPBOER.S1; de 10.12.2015, processo 282/05.1PAVNF.S1; de 11.10.2017, processo 2678/16.4T8CSC.L1.S1; de 25.10.2023, processo 1495/22.7PBPDL.S1)», sintetizado no ponto II do sumário publicado naquele sítio.

No mesmo sentido e acessível no mesmo sítio, veja-se o acórdão de 11.08.2023, proferido no processo n.º 813/18.7JABRG.G1.S1, relatado pelo Conselheiro Orlando Gonçalves, cujo sumário publicado se transcreve “A atenuação especial da pena, a que alude o art.4.º do DL n.º 401/82 de 23 de setembro, remetendo para os artigos 72.º e 73.º do Código Penal, reporta-se apenas à determinação das penas parcelares. O Supremo Tribunal de Justiça tem-se pronunciado uniformemente no sentido de que no caso de concurso de crimes só as penas parcelares, e não a pena única, podem ser atenuadas especialmente”.↩︎

13. Cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª edição revista, Coimbra Editora, 2007.↩︎

14. O que prejudicará também a apreciação das questões suscitadas pelo recorrente acerca da unidade, continuação ou pluralidade criminosa, sobre a qual, no entanto, importa deixar claro que, como evidencia o trecho do acórdão recorrido infra transcrito, ela se resolveu corretamente e de harmonia com a melhor doutrina e jurisprudência no sentido da pluralidade criminosa, ou seja, tantos crimes quantas as vezes apuradas em que o bem jurídico eminentemente pessoal neles supostos e protegidos foi violado, com renovação da correspondente resolução criminosa, por referência a cada uma das menores ofendidas.↩︎

15. Direito Penal 2, Parte Geral – As consequências Jurídicas do Crime.↩︎

16. Conforme ponto IV do sumário publicado do acórdão de 8.11.2023, proferido no processo n.º 808/21.3PCOER.L1.S1, relatado Pela Conselheira Ana Barata Brito, sem prejuízo, naturalmente, da amplitude sindicante dos tribunais de recurso, quando, ainda assim, concluam pela injustiça da pena, por desproporcional ou desnecessidade, como se afirmou, v. g., no acórdão do STJ, de 14.06.2007, proferido no processo n.º 07P1895, relatado pelo Conselheiro Simas Santos, ambos disponíveis no sítio https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/.↩︎

17. Mesmo considerando a indevida apreciação e afastamento da atenuação especial nele efetuada por referência à pena única em apreço, pois, como se referiu no corpo do texto, ela não tem aplicação neste âmbito.↩︎

18. Como será o caso decidido nos antes referenciados acórdãos relatados pelos Conselheiros Agostinho Torres e Lopes da Mota – processos n.ºs 864/20.1JABRG.G1:S1 e 424/21.0PLSNT.S1.L1:S1, com penas de 8 anos e 6 meses e de 9 anos, mas em que a vítima era apenas uma e não duas, como aqui ocorreu, ao que acresceu, em relação ao primeiro, a consideração atenuativa dos 77 anos de idade do condenado.↩︎

19. Vale a pena lembrar, reproduzindo, o que a propósito dos efeitos desta tipologia criminal se escreveu no acórdão do STJ, de 11.01.2024, proferido no processo n.º 14/22.0JDLSB.L1.S1, relatado pelo Conselheiro Jorge dos Reis Bravo, ainda inédito, “importa atentar nas graves implicações das suas condutas criminosas para a vítima, para quem todo o período de infância e adolescência ficou indelevelmente marcado por comportamentos que violaram não só a sua liberdade de autodeterminação sexual, mas também o livre e equilibrado desenvolvimento da sua personalidade, a sua autoimagem e autoestima e o seu direito a não ser violentada na sua intimidade e no seu pudor, a sua dignidade; enfim, os seus direitos humanos mais essenciais. Todos estes funestos e lamentáveis eventos não deixarão de ter significativo impacto no seu futuro enquanto mulher e como pessoa, a quem a cidadania plena foi violentada desde a sua mais tenra idade. Tais resultados apenas remotamente poderão ser mitigados pela decisão condenatória do arguido, a que o Estado se encontra obrigado, desde logo pela Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e as Raparigas e a Violência Doméstica (Convenção de Istambul, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 4/2013, de 21-01 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 13/2013, de 21-01, tendo entrado em vigor em 01-08-2014), aplicável diretamente e indiretamente, através da adesão à mesma pela União Europeia, a partir de 01-10-2023 – artigos 1.º, n.º 1, al. a), 3.º, alíneas a), e) e f) e 36.º (Violência sexual, incluindo violação).

Estes comandos impõem-se de forma imperativa ao Estado português, logo aos seus tribunais, organizando-se o nosso sistema sancionatório penal de acordo com os mesmos”.↩︎