RECURSO
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO INDISPONÍVEL
Sumário


I - Da articulação dos arts. 425º e 651º/1 do C.P.Civil de 2013 resulta que a junção de documentos, em sede de recurso, só pode ocorrer, a título excepcional, e numa de duas situações: a superveniência do documento (impossibilidade da sua apresentação anteriormente ao recurso) ou a necessidade do documento em resultado do julgamento proferido no Tribunal da 1ªInstância (está relacionada a novidade ou imprevisibilidade da decisão).
II - A apreciação pelo Tribunal da Relação da decisão de facto impugnada não visa um novo julgamento da causa, mas sim uma reapreciação do julgamento proferido pelo Tribunal de 1ª Instância com vista a corrigir eventuais erros de julgamento.
III - No âmbito dessa apreciação, ao Tribunal da Relação incumbe formar a seu próprio juízo probatório sobre cada um dos factos julgados em primeira instância e que são objeto de impugnação, tendo para o efeito amplo poder inquisitório sobre a prova produzida que imponha decisão diversa, podendo socorrer-se, mesmo oficiosamente, de todos os meios de prova constantes do processo, não estando adstrito quer aos meios de prova que foram indicados pelas partes quer aos indicados pelo Tribunal de 1ª Instância.
IV - Atenta a letra do ponto i) do art. 239º/3b) do C.I.R.E, o legislador estabeleceu um limite máximo e um limite mínimo para fixar o montante do rendimento que será isento da cessão (rendimento indisponível). O limite máximo decorre diretamente da parte final daquele artigo e é constituído por 3 (três) vezes o salário mínimo nacional. O limite mínimo é o valor que for considerado «razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar».
V - Quanto ao limite mínimo, o Legislador optou por remeter para um conceito indeterminado ou aberto - «necessário ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar» -, não indexando tal conceito a um valor pecuniário fixo, pelo que esse conceito tem que ser densificado e aplicado casuisticamente em função do caso concreto e das circunstâncias do próprio insolvente, e do respetivo agregado familiar, estando sempre inerente e associado o “princípio da dignidade humana”.
VI - Uma vez que, ao fixar o regime do salário mínimo nacional, o legislador teve presente a intenção de garantir a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador, não existe qualquer razão válida para que não se considere que, em regra, o salário mínimo nacional é o limite mínimo de exclusão dos rendimentos, no contexto da cessão de rendimentos pelo insolvente.
VII - No caso em apreço, estando provado que, em virtude da sua atual situação e da morte da sua esposa, o Insolvente reside agora em casa da sua filha, à qual paga o valor mensal fixo de € 650,00, em contrapartida de alojamento e alimentação, e que o mesmo suporta ainda as despesas pessoais, entre as quais com vestuário, transportes, consultas e exames médicos e de natureza lúdica, cujo montante mensal não se apurou, e mensalmente o pagamento de medicamentos, cujo valor médio mensal é de € 64,06, mostra-se adequado e razoável, para prover o seu «sustento minimamente digno», a fixação de um rendimento indisponível correspondente a «um salário mínimo nacional, acrescido de 1/5».

Texto Integral


Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

1. RELATÓRIO

1.1. Da Decisão Impugnada

Em 19/10/2022, o Requerente AA instaurou acção especial de insolvência, nos termos dos arts. 18º e 19º do C.I.R.E., pedindo que (na parte que aqui releva) «seja declarada a insolvência do Requerente e deferido o pedido de exoneração do passivo restante nos termos propostos» e requerendo «que, pelos fundamentos expostos, seja concedido o benefício do apoio judiciário na modalidade de isenção de taxa de justiça e demais encargos com o processo».
Fundamentou o pedido de exoneração do passivo restante, essencialmente, no seguinte: «declara, para os efeitos do art. 236º, n.º 3, do CIRE, preencher todos os requisitos legais; declara que se compromete a observar todas as condições legais que lhe venham a ser impostas, e que cumprirá pontualmente os deveres de informação e colaboração que lhe sejam solicitados por via do presente processo, dispondo o seu rendimento disponível, de acordo com os termos que venham a ser definidos por este Tribunal; requer que, atento exposto, lhe seja fixado o valor de € 1100,00 (valor indisponível), para efeitos de determinação do montante relativo às exclusões previstas na alínea b) do n.º 3 do art.º 239º do CIRE, por se mostrar no caso como mais razoável por ser o estritamente necessário ao sustento mínimo condigno do devedor».
Por sentença proferida em 26/10/2022, o Requerente foi declarado insolvente.
O Administrador da Insolvência elaborou o relatório previsto no art. 155º do C.I.R.E., no qual, para além do mais, deu parecer favorável à exoneração do passivo, tendo consignado o seguinte (na parte que aqui releva):
“O Insolvente pretende também beneficiar do instituto da exoneração do passivo restante. Nesta conformidade, importa verificar que, da apresentação à insolvência não advieram prejuízos para os credores. Não foi trazido aos autos qualquer elemento que aponte no sentido de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência. Atendendo aos requisitos elencados no art. 238.º do CIRE e aos elementos constantes da P.I., a A.I. considera não haver motivo para indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante (…)”.
Na data de 13/01/2023, foi proferido despacho no qual, para além do mais, se determinou a notificação do insolvente para vir aos autos no prazo de 10 dias “pronunciar-se sobre o montante que entende dever ser fixado em termos de rendimento indisponível, justificando com as suas receitas e despesas o montante que indicar”.

Em 18/01/2023, através de requerimento (referência citius «13040162»), o Insolvente veio dizer:
“1º
Conforme decorre do requerimento inicial e do Relatório apresentado pela Senhora Administradora Judicial, o requerente aufere, a título de pensão de reforma, a quantia líquida de € 774,80 (valor bruto € 1090,13) – cfr. doc n.º 2 junto ao r.i..

O requerente não possui quaisquer bens móveis ou imóveis, nem tem rendimentos prediais, de capitais, ou quaisquer outros para além do referido supra.

Em virtude da sua atual situação e da morte da sua esposa, o Requerente reside agora em casa da sua filha, à qual paga o valor mensal fixo de € 650,00, em contrapartida de alojamento e alimentação.

O Requerente suporta ainda todas as despesas pessoais, entre as quais com vestuário, transportes, consultas e exames médicos e as poucas de natureza lúdica, em montante próximo dos € 200,00 mensais.

O Requerente suporta ainda, mensalmente, o pagamento de medicamentos no valor de € 64,06 - cfr doc. n.º ... junto ao r.i.

Pelo que, no nosso humilde entendimento, justifica-se a fixação em termos de valor indisponível o montante de € 1100,00 (…)”.
Na data de 18/02/2023, foi proferido o seguinte despacho.
“Veio o insolvente declarar que: Em virtude da sua atual situação e da morte da sua esposa, o Requerente reside agora em casa da sua filha, à qual paga o valor mensal fixo de € 650,00, em contrapartida de alojamento e alimentação.
Tal declaração não faz prova do alegado. Assim convida-se o insolvente a querendo, apresentar declaração da filha a comprovar tal facto, na qual deverá constar o seu NIF. Adverte-se do facto de, sendo apresentada tal declaração, terá de ser comunicado à Autoridade Tributária tal acrescento de rendimentos ao agregado familiar da sua filha.
Relembra-se o insolvente igualmente que veio declarar gastar mais do que recebe de ordenado, pelo que estando em situação de insolvência, tal não se poderá manter (se pretender beneficiar do instituto da exoneração do passivo restante).
Prazo: 8 dias”.
Em 22/02/2023, o Insolvente apresentou requerimento (referência citius«14201475»), no qual consignou:
“1º
O Requerente mantem o teor do art.º 3º do requerimento apresentado no passado dia 18-01-2023, para demonstração do qual, em cumprimento do ordenado, junta em anexo declaração da sua filha – cfr ....

O valor de despesa a que se faz referência no art.º 4º do mesmo, é ali liquidado por aproximação desde logo porque não é fixo e depende sempre da disponibilidade financeira limitada pelo seu rendimento e as demais despesas fixas descritas no requerimento.

Sendo certo que, o Requerente não gasta nem pretende gastar mais do que aquilo que ganha.

Por ultimo, apenas referir que ao valor da pensão de reforma deve ser agora acrescentado o montante que lhe era subtraído mensalmente na sequência de penhora referida nestes autos, da EMP01..., Lda., no valor de € 387,39, pelo que, deverá ser considerado para o efeito o valor de € 1162,19 (€ 774,80 + € 387,39).
Termos em que se requer, respeitosamente, de Vª. Excª., se digne admitir a junção da declaração da filha do Requerente”.
Na data 28/02/2023, foi proferido despacho liminar sobre o incidente de exoneração do passivo restante formulado pelo Insolvente, o qual se transcreve na parte que aqui releva:
«(…) Compulsados os autos resulta provado dos elementos juntos que:
• O requerente aufere, a título de pensão de reforma, a quantia líquida de € 1162,19;
• Em virtude da sua atual situação e da morte da sua esposa, o Requerente reside agora em casa da sua filha, à qual paga o valor mensal fixo de € 650,00, em contrapartida de alojamento e alimentação.
• O Requerente suporta ainda as despesas pessoais, entre as quais com vestuário, transportes, consultas e exames médicos e de natureza lúdica.
• O Requerente suporta ainda, mensalmente, o pagamento de medicamentos;
• O requerente apresentou-se à insolvência;
• Ao requerente não lhe são conhecidos antecedentes criminais; (…)
Para a fixação do montante disponível, atendendo às atuais condições económicas do insolvente, o qual aufere em termos líquidos cerca de €1100 e declara entregar à filha, com quem reside a quantia de €650, para alojamento e alimentação, este Tribunal entende como adequado fixar em um salário mínimo nacional, acrescido de 1/5, o montante que o insolvente poderá dispor. Efectivamente se entrega tal quantia, ficando desprovido da mesma, fá-lo por sua vontade, uma vez que a obrigação de alimentação e cuidados, não existe apenas de pais para filhos, mas igualmente de filhos para pais.
Nos termos do artigo 2009.º, n.º 1, alínea b) do Código Civil, os filhos estão obrigados a prestar alimentos aos pais, quando estes deles careçam.
Assim, não podem os credores ficar desapossados de todo e qualquer montante, como no pedido de fixação do rendimento indisponível formulado pelo insolvente ficariam, para que este entregue mais de metade da sua pensão a uma filha, para que esta o sustente, quando tem obrigação de tal.
O maior rigor na execução do seu orçamento familiar, sem quebra do que se considera o sustento minimamente digno do seu agregado, e a afetação do rendimento disponível resultante dessa melhor execução, por muito pouco que seja, para a satisfação as obrigações para com os credores, constituem as condições para que, no termo desse período de três anos, o insolvente se veja completamente liberto das dívidas ainda pendentes de pagamento conforme consta no Acórdão da Relação do Porto de 10/05/2011, em www.dgsi.pt. E não só ficará liberto o insolvente, mas também os seus descendentes, que de outro modo poderiam ver a sua herança afectada pelas dívidas ainda existentes.
Todo o rendimento excedente, que lhe advenha por qualquer forma e no qual obviamente se incluem os subsídios de natal e férias, se excederem o cômputo de 12 x 1 SMN+ 1/5) deverão ser cedidos, a fim de se evitar a inutilidade superveniente deste incidente, que pressupõe a boa vontade do insolvente em contribuir voluntariamente para o abatimento da dívida, ainda que numa parcela diminuta (…)
Obviamente, se existirem despesas médicas, comprovadas ou necessidades que alterem a sua disponibilidade financeira, deverão ser trazidas ao Tribunal, para que se possa, nesse período alterar o montante do rendimento indisponível fixado ou libertar determinadas verbas (…)».

*
1.2. Do Recurso do Insolvente

Inconformado com o despacho antecedente, o Insolvente interpôs recurso de apelação, pedindo que seja «dado provimento ao presente recurso de Apelação e, em consequência, fixar como rendimento indisponível, nos termos e para os efeitos da alínea b) do n.º3 do art.º 239º do CIRE, o valor de € 1100,00», e formulando as seguintes conclusões no final das respectivas alegações:
“1) Conforme se expôs, sobre a matéria pertinente para o presente efeito, ficou provado que:
“- O requerente aufere, a título de pensão de reforma, a quantia líquida de € 1162,19;
- Em virtude da sua actual situação e da morte da sua esposa, o Requerente reside agora em casa da sua filha, à qual paga o valor mensal fixo de € 650,00, em contrapartida de alojamento e alimentação;
- O Requerente suporta ainda as despesas pessoais, entre as quais com vestuário, transportes, consultas e exames médicos e de natureza lúdica.
- O Requerente suporta ainda, mensalmente, o pagamento de medicamentos;”
2) Em cumprimento do despacho de fls…, o ora Apelante juntou declaração subscrita pela sua filha por via da qual comprovou que paga mensalmente o valor de € 650,00, em contrapartida de alojamento e alimentação, tendo o Tribunal “a quo” considerado tal facto como provado.
3) Contudo, no que diz respeito as restantes despesas o Tribunal ignorou quer a prova documental relativamente a despesas médicas regulares/mensais, no valor de € 64,06, conforme decorre de declaração da Farmácia ..., em ..., e que constitui o doc n.º ... junto a petição inicial,
4) Quer o alegado quanto às demais despesas pessoais que, embora reais e regulares, não conseguiu documentar para os presentes autos, mas decorre daquilo que são as necessidades básicas de qualquer pessoa com a idade de 88 anos (cfr. doc n.º 4 junto à inicial), e que se quantificaram na módica quantia de € 200,00 mensais.
5) Não foi apresentada qualquer impugnação/reclamação por parte dos credores aos indicados valores, sendo certo que do relatório da Administradora da Insolvência decorre nada ter a opor à consideração dos mesmos como despesas reais e aceitáveis para efeitos de rendimento indisponível (cfr art.º 239º CIRE) na perspectiva da concessão da exoneração do passivo restante.
6) Salvo melhor entendimento, afigura-se imprescindível que se quantifiquem os valores relativamente às provadas despesas elencadas no despacho inicial recorrido e assim se considere como provados os valores referidos alterando o teor do texto daquele para o seguinte:
- O Requerente suporta ainda as despesas pessoais, entre as quais com vestuário, transportes, consultas e exames médicos e de natureza lúdica, no montante de € 200,00.
- O Requerente suporta ainda, mensalmente, o pagamento de medicamentos, no valor de € 64,04;”
7) Embora o Tribunal “a quo” dê como provada a despesa mensal do Insolvente na quantia de € 650,00 entregues a título de alojamento e alimentação, o certo é que no despacho em crise, a fls… dos autos, afirma-se o seguinte:
“…este Tribunal entende como adequado fixar em um salário mínimo nacional, acrescido de 1/5, o montante que o insolvente poderá dispor. Efectivamente se entrega tal quantia (€650,00), ficando desprovido da mesma, fá-lo por sua vontade, uma vez que a obrigação de alimentos e cuidados, não existe apenas de pais para a filhos, mas igualmente de filhos para pais. Nos termos do art.º 2009º, n.º 1 alínea b) do Código Civil, os filhos estão obrigados a prestar alimentos aos pais, quando estes deles careçam. Assim, não podem os credores ficar desapossados de todo e qualquer montante, como no pedido de fixação do rendimento indisponível formulado pelo insolvente ficariam, para que este entregue mais de metade da sua pensão a uma filha, para que este o sustente, quando tem obrigação de tal”
8) Com o devido respeito, a decisão do Tribunal “a quo” não é sensível à ponderação dos interesses em conflito, assumindo claro desinteresse pelas circunstâncias específicas e conjunturais do insolvente.
9) Como se expõe na inicial, a dívida, aliás única, do insolvente que condicionou o presente processo baseia-se na subscrição de uma livrança a favor de uma sociedade, devedora principal, encerrada em 2009, em virtude de ter sido sócio da mesma.
10) Acresce que, a única credora e beneficiária do rendimento disponível do insolvente é/será a EMP01..., recente detentora do crédito por via de operações financeiras de cessão de créditos, cujos contornos são aqui irrelevantes, mas que permitem concluir que, dadas as regras da experiência comum, como instituição financeira, a cessão de rendimento que possa ser-lhe transferida na sequência do presente não terá para ela qualquer impacto financeiro ao contrário do que sucederá com o Insolvente.
11) Por outro lado, o Tribunal “a quo” embora tenha credibilizado a declaração apresentada pelo insolvente que demonstra a despesa de € 650,00 com alojamento e alimentação, aceitando-a como provada, acaba por querer impor ao Insolvente que tal despesa não terá justificação ética e/ou jurídica, porque, como defende, a sua filha tem obrigação de o sustentar.
12) Para o efeito, Tribunal “a quo” aplica nos presentes autos de insolvência, para conveniência da sua tese, o regime jurídico dos “Alimentos” previsto nos art.ºs 2003º e ss do Código Civil, em tudo incompatível com os termos e objectivos do presente processo.
13) Desconhece o Tribunal, porque não quis conhecer, todas as circunstâncias de vida da filha do insolvente, BB, e do respectivo agregado familiar, imprescindíveis ao aferimento das capacidades ou incapacidades de acolhimento, financeiras e económicas do seu agregado que justifiquem as exigências e obrigações que o Tribunal lhe pretende impor, com total ausência de discussão e/ou prova sobre a matéria.
14) O despacho recorrido, sem qualquer justificação de facto ou de direito, coloca o Insolvente numa situação extremamente difícil, dependente de uma circunstância que não controla, com a agravante de não ter qualquer alternativa de alojamento se, por razões económicas ou financeiras, a sua filha não puder sustentá-lo e, por essa razão, provocar a saída daquele da sua casa.
15) Na sequência da referida decisão o aqui Recorrente solicitou junto de uma instituição que explora um lar de idosos na cidade ..., sendo informado dos preços mínimos praticados bem com da indisponibilidade do mesmo para aceitar novos Clientes.
16) Decorre da declaração emitida pela Ordem ..., em ..., que aqui se junta, datada de 10-03-2023, que o valor mínimo da prestação mensal são € 1200,00, pelo alojamento permanente e alimentação, sendo certo que atenta a lista de espera não existem garantias de disponibilidade de quartos para os próximos meses – cfr. doc n.º ....
17) Atenta a realidade descrita, por via do despacho recorrido fica o Recorrente numa situação de total dependência da boa vontade da sua filha, arriscando-se a perder a possibilidade de ali se manter a residir, não sendo sequer remediável por alteração posterior do despacho no que se refere ao rendimento indisponível uma vez que mesmo a totalidade da sua pensão mensal não é suficiente para o pagamento de despesas fixas de alojamento e alimentação no Lar para Idosos.
18) Por último, apenas uma referência para as remissões jurisprudenciais do despacho recorrido, da leitura das quais parece não querer o Tribunal “a quo” dar cobertura a uma eventual “fraude” ou atribuição de “prémio” ao aqui Recorrente por via da exoneração do passivo restante, o qual, aos 88 anos, pretenderá manter um excepcional e indigno “nível de vida”.
19) Com o devido respeito, parece-nos, mais uma vez, estar o Tribunal “a quo” desfasado da realidade fáctica em discussão nos autos, não aceitando que, na verdade, o Recorrente não pretende mais do que o mínimo para o pagamento das suas reais e mais primárias despesas, absolutamente necessárias e que lhe permitam utilizar os seus últimos anos de vida com alguma dignidade em ambiente familiar”.
No final das alegações, o Insolvente formulou o seguinte pedido: “Ao abrigo do disposto no art.º 651º n.º 1 do Código de Processo Civil, requer-se a admissão do documento junto sob doc. n.º ..., constituído por declaração emitida pela Venerável Ordem Terceira de ..., em 10-03-2023, uma vez que o mesmo só foi obtido após a prolação do despacho recorrido, é pertinente e mostra-se necessário em virtude dos fundamentos do despacho recorrido”.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
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2. OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR

Por força do disposto nos arts. 635º/2 e 4 e 639º/1 e 2 do C.P.Civil de 2013, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas (as conclusões limitam a esfera de actuação do Tribunal), a não ser que se tratem de matérias que sejam conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, ou que sejam relativas à qualificação jurídica dos factos (cfr. art. 608º/2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, nº2, in fine, e 5º/3, todos do C.P.Civil de 2013).
Mas o objecto de recurso é também delimitado pela circunstância do Tribunal ad quem não poder conhecer de questões novas (isto é, questão que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismo destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis”[1] (pela sua própria natureza, os recursos destinam-se à reapreciação de decisões judiciais prévias e à consequente alteração e/ou revogação, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida[2]).

Neste “quadro legal” e atentas as conclusões do recurso de apelação interposto pelo Insolvente, são três as questões a apreciar por este Tribunal ad quem:

1) Se é admissível a junção do documento apresentado pelo Insolvente com as suas alegações;
2) Se a decisão recorrida deve ser alterada quanto à matéria de facto (provada) nos termos indicados pelo Insolvente;
3) E se o rendimento indisponível equivalente um salário mínimo nacional acrescido de 1/5, fixado na decisão recorrida constitui o valor necessário ao sustento minimamente digno daquele, ou se tal valor deve ser fixado em € 1.100,00.
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3. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos que revelam para a presente decisão são os que se encontram descritos no relatório que antecede, e aqueles que foram considerados provados na decisão recorrida, os quais em seguida se reproduzem (atribuindo-se-lhe numeração para facilitar a referência da cada um deles):
1) O Insolvente aufere, a título de pensão de reforma, a quantia líquida de € 1.162,19.
2) Em virtude da sua atual situação e da morte da sua esposa, o Insolvente reside agora em casa da sua filha, à qual paga o valor mensal fixo de € 650,00, em contrapartida de alojamento e alimentação.
3) O Insolvente suporta ainda as despesas pessoais, entre as quais com vestuário, transportes, consultas e exames médicos e de natureza lúdica.
4) O Insolvente suporta ainda, mensalmente, o pagamento de medicamentos.
5) O Insolvente apresentou-se à insolvência.
6) Ao Insolvente não são conhecidos antecedentes criminais.
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4. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Da Admissibilidade da Junção de Documento
Com as suas alegações, o Insolvente, ora Recorrente, juntou 1 (um) documento que consiste numa declaração emitida pela Venerável Ordem Terceira de ..., em 10/03/2023, na qual está consignado:
“ASSUNTO: Pedido de informações para admissão como Utente
Exmo. Senhor:
Na sequência do pedido de informação formulado a Venerável Ordem Terceira de ..., vimos, por este meio, informar que o valor mínimo da prestação mensal são € 1200,00, pelo alojamento sénior permanente e alimentação, não abrangendo qualquer despesa médica ou medicamentosa, fraldas (quando necessário), deslocações ou quaisquer outras de qualquer natureza que venha a necessitar.
Esclarecemos, contudo, que à presente data a ocupação do estabelecimento e a lista de espera não permitem garantir a disponibilidade de quartos para os próximos meses.
Gratos pela preferência, subscrevemo-nos com cumprimentos”.
Prescreve o art. 651º/1 do C.P.Civil de 2013: “As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância”.
E estatui o art. 425º do mesmo C.P.Civil de 2013: “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”.
Interpretando tais preceitos legais e fazendo a respectiva articulação, decidiu-se no Ac. do STJ de 30/04/2019[3]: “I. Da leitura articulada dos artigos 651.º, n.º 1, 425.º do CPC decorre que as partes apenas podem juntar documentos em sede de recurso de apelação, a título excepcional, numa de duas hipóteses: superveniência do documento ou necessidade do documento revelada em resultado do julgamento proferido na 1.ª instância. II. No que toca à superveniência, há que distinguir entre os casos de superveniência objectiva e de superveniência subjectiva: aqueles devem-se à produção posterior do documento; estes ao conhecimento posterior do documento ou ao seu acesso posterior pelo sujeito. III. Quando o acesso ao documento está ao alcance da parte, a instrução do processo com a sua apresentação é um ónus, devendo desconsiderar-se a inacessibilidade que seja imputável à falta de diligência da parte, sob pena de se desvirtuar a relação entre a regra e a excepção ditada, nesta matéria, pelo legislador. IV. No que toca à necessidade do documento, os casos admissíveis estão relacionados com a novidade ou imprevisibilidade da decisão, não podendo aceitar-se a junção de documentos quando ela se revele pertinente ab initio, por tais documentos se relacionarem de forma directa e ostensiva com a questão ou as questões suscitadas nos autos desde o primeiro momento” (os sublinhados são nossos).
Nesta linha de entendimento, explica-se no Ac. da RC de 18/11/2014[4], “I - Da articulação lógica entre o artigo 651º, nº 1 do CPC e os artigos 425º e 423º do mesmo Código resulta que a junção de documentos na fase de recurso, sendo admitida a título excepcional, depende da alegação e da prova pelo interessado nessa junção de uma de duas situações: (1) a impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso; (2) ter o julgamento de primeira instância introduzido na acção um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional. II – Quanto ao primeiro elemento, a impossibilidade refere-se à superveniência do documento, referida ao momento do julgamento em primeira instância, e pode ser caracterizada como superveniência objectiva ou superveniência subjectiva. III - Objectivamente, só é superveniente o que historicamente ocorreu depois do momento considerado, não abrangendo incidências situadas, relativamente a esse momento, no passado. Subjectivamente, é superveniente o que só foi conhecido posteriormente ao mesmo momento considerado. IV - Neste caso (superveniência subjectiva) é necessário, como requisito de admissão do documento, a justificação de que o conhecimento da situação documentada, ou do documento em si, não obstante o carácter pretérito da situação quanto ao momento considerado, só ocorreu posteriormente a este e por razões que se prefigurem como atendíveis. V – Só são atendíveis razões das quais resulte a impossibilidade daquela pessoa, num quadro de normal diligência referida aos seus interesses, ter tido conhecimento anterior da situação ou ter tido anteriormente conhecimento da existência do documento. VI – Quanto ao segundo elemento referido em I deste sumário, o caso indicado no trecho final do artigo 651º, nº 1 do CPC (a junção do documento ter-se tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância), pressupõe a novidade da questão decisória justificativa da junção do documento com o recurso, como questão operante (apta a modificar o julgamento) só revelada pela decisão recorrida, o que exclui que essa decisão se tenha limitado a considerar o que o processo já desde o início revelava ser o thema decidendum (os sublinhados são nossos).
E, quanto a este último aspecto, conforme referem Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora[5], “a lei não abrange a hipótese de a parte se afirmar surpreendida com o desfecho da ação (ter perdido, quando esperava obter ganho de causa) e pretender, com tal fundamento, juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em 1ª instância. O legislador quis manifestamente cingir-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objeto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida”. Logo, deve entender-se que o documento torna-se necessário só por virtude desse julgamento (e não desde a formulação do pedido ou da dedução da defesa) quando a decisão se tenha baseado em meio probatório inesperado junto por iniciativa do tribunal ou em preceito jurídico com cuja aplicação as partes justificadamente não tivessem contado[6].
Revertendo ao caso em apreço, verifica-se que, para justificar a junção dos documentos na presente fase processual, o Insolvente/Recorrente alega que «o mesmo só foi obtido após a prolação do despacho recorrido» e que «é pertinente e mostra-se necessário em virtude dos fundamentos do despacho recorrido».
Tendo em consideração a data de emissão que consta do documento (10/03/2023), estamos perante uma situação de superveniência objectiva relativamente ao momento do encerramento do julgamento em 1ªinstância. No caso do presente incidente de exoneração do passivo restante, entendemos que esse momento ocorreu aquando da apresentação do requerimento datado de 22/02/202, referência citius «14201475», no qual o Insolvente veio juntar prova documental relativa ao incidente, em cumprimento do ordenado pelo Tribunal a quo no despacho de 13/01/2023. Mostra-se, portanto, preenchido o requisito da superveniência.
Porém, este Tribunal ad quem não vislumbra que a sua junção se mostre efectiva e concretamente necessária em função de qualquer novidade ou imprevisibilidade da decisão recorrida, salientando-se que o Insolvente/Recorrente não concretizou nem explicou quer a «pertinência» quer a «necessidade», que foram invocadas de forma totalmente genérica e vaga.
No recurso, o Insolvente/Recorrente vem invocar que, na sequência da referida decisão,  solicitou informação junto de uma instituição que explora um lar de idosos na cidade ..., sendo informado dos preços mínimos praticados bem com da indisponibilidade do mesmo para aceitar novos Clientes», que «decorre da declaração emitida que o valor mínimo da prestação mensal são € 1200,00, pelo alojamento permanente e alimentação, sendo certo que atenta a lista de espera não existem garantias de disponibilidade de quartos para os próximos meses» e que «mesmo a totalidade da sua pensão mensal não é suficiente para o pagamento de despesas fixas de alojamento e alimentação no Lar para Idosos» (cfr. conclusões 15ª a 17ª).
Sucede que estas alegações não têm qualquer correspondência com os fundamentos invocados na decisão recorrida. Com efeito, embora tenha considerado provado que «o Insolvente reside agora em casa da sua filha, à qual paga o valor mensal fixo de € 650,00, em contrapartida de alojamento e alimentação», ao proceder ao apuramento do quantum do sustento minimamente digno do Insolvente, o Tribunal a quo considerou que tal pagamento se «deve à sua vontade, uma vez que a obrigação de alimentos e cuidados existe igualmente de filhos para pais». Ou seja, para efeitos de fixação do montante do rendimento indisponível, o Tribunal a quo entendeu (de forma correcta ou de forma incorrecta, mas que não é relevante para a questão agora em análise) que se trata de uma despesa facultativa e não obrigatória/necessária.
Porém, ao explanar este fundamento, o Tribunal a quo não se fez qualquer referência mínima à não permanência do Insolvente/Recorrente em casa da filha, e muito menos teceu qualquer consideração sobre a necessidade (ou eventualidade) do mesmo passar a residir num lar.
Neste “quadro”, ao pretender apresentar, com as alegações de recurso, um documento para comprovar que a «sua pensão mensal não é suficiente para o pagamento de despesas fixas de alojamento e alimentação num lar» e que «não há disponibilidade para o receber no lar», o Insolvente/Recorrente está a introduzir, no âmbito do recurso, uma questão que não constitui fundamento da decisão recorrida e que não necessita de qualquer demonstração probatória fáctica. Frise-se, aliás, que a matéria contida nas referidas conclusões é até ininteligível porque «o pagamento do lar» não é uma despesa que exista e que tenha que ser considerada para a apreciação e fixação do quantum do rendimento indisponível. 
Nestas circunstâncias, não está preenchido o requisito da necessidade de junção do documento em razão de novidade ou imprevisibilidade da decisão e, por via disso, não pode o documento em causa ser apresentado nem admitido em sede de recurso.
E ainda acresce outra razão para a sua não admissão.
Com efeito, as normas constantes dos arts. 425º e 651º do C.P.Civil de 2013, são normas especiais relativas à fase de recurso, mas não afastam e não dispensam a verificação das regras gerais sobre a admissibilidade dos meios de prova, nomeadamente que os meios de prova apresentados/requeridos têm que assumir relevância (pertinência), ou potencial relevância, para a prova (ou contraprova) dos «factos necessitados de prova» (cfr. parte final do art. 410º do C.P.Civil) e só podem e devem ser admitidos os meios de prova que se apresentem como podendo ter relevância/pertinência para o apuramento da verdade material e justa composição do litígio (cfr. art. 411º do C.P.Civil de 2013), sendo que a relevância jurídica dos meios de prova constitui uma condição da sua própria pertinência e deve ser verificada em função dos «interesses concretos» em causa na respectiva acção. Logo, não serão admissíveis todos os meios de prova que se apresentem como irrelevantes (impertinentes) para a concreta causa a decidir, ou seja, todos aqueles que, atento o objecto do litígio em causa, se assumem como desnecessários ao apuramento da verdade material porque são insusceptíveis de acrescentar qualquer elemento probatório que se repercuta no desfecho da lide (não tem um mínimo de influência na decisão)[7].
Seguir outra linha de entendimento, significaria a admissão automática, em qualquer recurso, de todos os documentos que as partes quisessem apresentar com as alegações e/ou contra-alegações de recurso desde que fossem objectivamente supervenientes e independentemente de terem ou não a relevância jurídica.
No caso do documento em análise, como já se referiu, configura uma declaração emitida por um lar no sentido de que «o valor mínimo da prestação mensal são € 1200,00, pelo alojamento permanente e alimentação» e de que «atenta a lista de espera não existem garantias de disponibilidade de quartos para os próximos meses».
Como resulta do teor do alegado na petição inicial e do teor dos requerimentos apresentados em 18/01/2023 (referência citius «13040162») e em 22/02/2023 (referência citius «14201475»), o Insolvente/Recorrente nunca alegou, como despesa fixa para ser considerada na fixação do rendimento disponível, o pagamento do alojamento e da alimentação um lar, sendo que nem sequer o alegou como hipótese futura.
Assim sendo, o documento em causa é completamente estranho aos factos a apurar no âmbito do presente incidente de exoneração do passivo restante (não se reporta às despesas fixas que o Insolvente/Recorrente alegou ter de suportar), pelo que não tem qualquer relevância ou pertinência para a solução jurídica do incidente, sendo que, admiti-lo, representaria permitir a prática de um acto absolutamente inútil à apreciação da causa (mesmo em sede de recurso).
Portanto, porque o documento em apreço não apresenta qualquer utilidade (nem em termos potenciais) para a decisão dos factos necessitados de prova e que constituem ao objecto do incidente, o mesmo assume-se como irrelevante e impertinente e, por via disso, também por esta razão não pode ser apresentado nem ser admitido em sede de recurso.
Por conseguinte e sem necessidade de outras considerações, deverá decidir-se pela inadmissibilidade da junção aos autos, na presente fase de recurso, do documento apresentado pelo Insolvente/Recorrente com as suas alegações.
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4.2. Da Alteração da Matéria de Facto

Sobre o recurso de impugnação na matéria de facto, prescreve o art. 640º/1 do C.P.Civil de 2013: “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
No que respeita à especificação dos meios probatórios, a alínea a) do nº2 do referido art. 640º, estatui que “Quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Têm sido suscitadas dúvidas sobre se sobre se os requisitos do ónus impugnatório previsto neste art. 640º/1 devem figurar apenas no corpo das alegações ou se também têm que integrar as próprias conclusões, sob pena do recurso ser rejeitado (cfr. art. 635º/2 e 639º/1 do C.P.Civil de 2013).
Tem vindo a constituir entendimento pacífico do Supremo Tribunal de Justiça que:
1) o Recorrente tem sempre que indicar os «concretos prontos de facto» que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;
2) o Recorrente deve especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos, mas não sendo necessário que tal especificação também conste das conclusões;
3) relativamente aos «pontos de facto» cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em «prova gravada», para além da supra referida especificação dos meios de prova, o Recorrente está obrigado a indicar, com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos, mas não sendo necessário que tal indicação conste das conclusões;
4) e, na motivação, o Recorrente tem expressar a decisão, no seu entendimento, que deve ser proferida sobre os «concretos prontos de facto» que impugnou, tendo em atenção a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, o que se compreende em razão do reforço do ónus de alegação, com vista a evitar a interposição de recursos com conteúdo genérico ou inconsequente[8].
Neste sentido, entre outros, decidiu-se no Ac. do STJ de 29/10/2015[9]: “1. Face aos regimes processuais que têm vigorado quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação - que tem subsistido sem alterações relevantes e consta actualmente do nº1 do art. 640º do CPC; e um ónus secundário - tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas - indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes (e que consta actualmente do art. 640º, nº2, al. a) do CPC). 2. Este ónus de indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, não sendo justificada a imediata e liminar rejeição do recurso quando - apesar de a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exacta e precisa, não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento - como ocorre nos casos em que, para além de o apelante referenciar, em função do conteúdo da acta, os momentos temporais em que foi prestado o depoimento complemente tal indicação com uma extensa transcrição, em escrito dactilografado, dos depoimentos relevantes para o julgamento do objecto do recurso”.
E entendeu-se no Ac. do STJ de 01/10/2015[10] que “I - No recurso de apelação em que seja impugnada a decisão da matéria de facto é exigido ao recorrente que concretize os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, especifique os concretos meios probatórios que imponham uma decisão diversa, relativamente a esses factos, e enuncie a decisão alternativa que propõe. II - Servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação; quanto aos demais requisitos, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso. III - Não existe fundamento legal para rejeitar o recurso de apelação, na parte da impugnação da decisão da matéria de facto, numa situação em que, tendo sido identificados nas conclusões os pontos de facto impugnados, assim como as respostas alternativas propostas pelo recorrente, não foram, contudo, enunciados os fundamentos da impugnação nem indicados os meios probatórios que sustentam uma decisão diferente da que foi proferida pela 1.ª instância, requisitos estes que foram devidamente expostos na motivação. IV - Com efeito, o ónus a cargo do recorrente consagrado no art. 640º, do Novo CPC, não exige que as especificações referidas no seu nº1, constem todas das conclusões do recurso, mostrando-se cumprido desde que nas conclusões sejam identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação”[11]. Explica-se neste aresto que «as exigências que o legislador entendeu consagrar nesta matéria e que impõem ao Tribunal o dever de fundamentação e de motivação crítica da prova, no actual art. 607º, nº 4, do CPC, encontra o seu contraponto na igual exigência imposta à parte Recorrente, que pretenda impugnar a decisão de facto, do respectivo ónus de impugnação, devendo o Recorrente expor os argumentos que, extraídos de uma apreciação crítica dos meios de prova, determinem, em seu entender, um resultado diverso do decidido pelo Tribunal “a quo” (…) recai sobre a parte Recorrente um triplo ónus: Primo: circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento; Secundo: fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa; Tertio: enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas. Ónus tripartido que encontra nos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e boa fé processuais a sua ratio e que visa garantir, em última análise, a seriedade do próprio recurso instaurado, arredando eventuais manobras dilatórias de protelamento do trânsito em julgado da decisão (…)» (os sublinhados são nossos).
Neste âmbito mostra-se relevante o Ac. do STJ de 22/09/2015[12] que clarifica: “II – Na impugnação da decisão de facto, recai sobre o Recorrente “um especial ónus de alegação”, quer quanto à delimitação do objecto do recurso, quer no que respeita à respectiva fundamentação. III – Na delimitação do objecto do recurso, deve especificar os pontos de facto impugnados; na fundamentação, deve especificar os concretos meios probatórios que, na sua perspectiva, impunham decisão diversa da recorrida (art. 640.º, n.º 1, do NCPC) e, sendo caso disso (prova gravada), indicando com exactidão as passagens da gravação em que se funda (art. 640.º, n.º 2, al. a), do NCPC). IV – A inobservância do referido em III é sancionada com a rejeição imediata do recurso na parte afectada. V - Se essa cominação se afigura indiscutível relativamente aos requisitos previstos no n.º1, dada a sua indispensabilidade, já quanto ao requisito previsto no n.º2, al. a), justifica-se alguma maleabilidade, em função das especificidades do caso, da maior ou menor dificuldade que ofereça, com relevo, designadamente, para a extensão dos depoimentos e das matérias em discussão. VI - Se a falta de indicação exacta das passagens da gravação não dificulta, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, nem o exame pelo tribunal, a rejeição do recurso, com este fundamento, afigura-se uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável”.
A análise do cumprimento destes ónus (exigências legais) deve ser realizada, como explica Abrantes Geraldes[13], “à luz de um critério de rigor. Trata-se afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo. Exigências que, afinal, devem ser o contraponto dos esforços que todos quantos, durante décadas, reclamaram a atenuação do princípio da oralidade pura e a atribuição à Relação de efetivos poderes de sindicância da decisão da matéria de facto como instrumento da realização da justiça”.
É um dado objectivo que, nas alegações de recurso, existe uma forte tendência para “combinar” e “misturar” a impugnação de facto com a impugnação de direito, sendo que muitas vezes são invocadas meras “opiniões” sobre o que foi dado como provado e/ou não provado, afirmando-se um entendimento distinto mas, mesmo assim, há conformação com uma parte da decisão que foi tomada, havendo efectiva impugnação relativamente a outra parte. Logo, e como resulta da alínea a) do nº1 do referido art. 640º, impõe-se que o recorrente, nas respetivas conclusões, indique concretamente quais são os pontos da matéria de facto que impugna e o que entende que deve ser dado como «assente» e/ou como «não assente», relevando e apresentando a sua pretensão de uma forma inequívoca e que permita separar a mera exposição da sua apreciação sobre a prova da pretensão fundamentada quanto à alteração da matéria de facto.
 O incumprimento de qualquer dos ónus supra indicados conduz à imediata rejeição da impugnação da decisão da matéria de facto (rejeição que será total ou parcial, consoante o incumprimento seja relativo a todo o âmbito da impugnação ou seja relativo apenas a uma parte da impugnação), não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões. Como resulta do disposto na alínea a) do nº1 do art. 652º do C.P.Civil de 2013, os poderes do relator, em matéria de convite ao aperfeiçoamento, estão inequivocamente limitados às situações previstas no nº3 do art. 639º do mesmo diploma legal, que não incluem incumprimento dos referidos ónus. Entre outros, refere-se aqui o Ac. do STJ de 25/03/2021[14], no qual se decidiu que “III - Omitindo o recorrente o cumprimento do ónus processual fixado na alínea a) e c) do nº 1 do art. 640º do CPCivil, impõe-se a imediata rejeição da impugnação da matéria de facto, não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões”[15].
Relativamente a tais ónus de impugnação, importa ter presente o recente Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, proferido pelo STJ em 17/10/2023[16]: “Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações”.
Tendo em consideração todo o entendimento supra exposto, procedendo à análise das conclusões formuladas e da motivação deduzida pelo Insolvente/Recorrente, temos que concluir que as alegações de recurso cumprem minimamente os respectivos requisitos formais, sendo que o âmbito da impugnação de facto deduzida corresponde aos seguintes pontos de facto:
1) quantificação das despesas mensais a que se reporta o facto provado nº3 (vestuário, transportes, consultas e exames médicos e de natureza lúdica) no montante de € 200,00;
2) e quantificação das despesas mensais a que se reporta o facto provado nº4 (medicamentos), no valor de € 64,04.
Sobre os termos em que a reapreciação da matéria de facto deve ser realizada, estatui o nº1 do art. 662º) do C.P.Civil de 2013, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se, quanto aos factos tidos como assentes (ou quanto aos os factos tidos como não provados, acrescentamos nós), a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Como refere Abrantes Geraldes[17], “Com a redacção do art. 662º pretendeu-se que ficasse claro que, sem embargo de correcção, mesmo a título oficioso, de determinadas patologias que afectam a decisão da matéria de facto (v.g. contradição) e também sem prejuízo do ónus de impugnação que recai sobre o recorrente e que está concretizado nos termos previstos no art. 640º, quando esteja em causa a impugnação de determinados factos cuja prova tenha sido sustentada em meios de prova submetidos a livre apreciação, a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos, e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras da experiência… fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia… sem embargo, das modificações que podem ser oficiosamente operadas relativamente a determinados factos cuja decisão esteja eivada de erro de direito, por violação de regras imperativas, à Relação não é exigido, nem lhe é permitido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos a livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio foram valorados pelo Tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como se se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão da matéria de facto, indicou nas respectivas alegações que circunscrevem o objecto de recurso(os sublinhados são nossos).
A decisão de facto consiste na apreciação que o Tribunal faz, em função da prova produzida, sobre os factos alegados pelas partes (ou oportuna e licitamente adquiridos no decurso da instrução) e que se mostrem relevantes para a resolução do litígio, pelo que tal decisão tem por objeto os juízos probatórios parcelares, positivos ou negativos, sobre cada um desses factos relevantes, embora com o alcance da respetiva fundamentação ou motivação. Neste quadro, no âmbito do recurso, a apreciação do erro de julgamento da decisão de facto está circunscrita aos pontos impugnados, mas em termos de latitude da investigação probatória, o Tribunal da Relação tem um amplo poder inquisitório sobre a prova produzida que imponha decisão diversa, como decorre do estatuído no referido art. 662º/1 do C.P.Civil de 2013, incluindo os mecanismos de renovação ou de produção dos novos meios de prova, nos exatos termos das alíneas a) e b) do nº2 do mesmo preceito, sem estar adstrito aos meios de prova que tiverem sido convocados pelas partes e nem sequer aos indicados pelo tribunal recorrido: “… como é hoje jurisprudência seguida por este Supremo Tribunal, a reapreciação da decisão de facto impugnada pelo tribunal de 2.ª instância não se limita à verificação da existência de erro notório por parte do tribunal a quo, mas implica uma reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de formação, por parte do tribunal de recurso, da sua própria convicção, em resultado do exame das provas produzidas e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir, para só, em face dessa convicção, decidir sobre a verificação ou não do erro invocado, mantendo ou alterando os juízos probatórios em causa”[18].
Em jeito de resumo e conclusão, traz-se aqui à colação o Ac. do STJ de 04/10/2018[19], que define bem o “quadro” em que funciona a reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação: “I. A apreciação da decisão de facto impugnada pelo Tribunal da Relação não visa um novo julgamento da causa, mas, antes, uma reapreciação do julgamento proferido pelo Tribunal de 1ª Instância com vista a corrigir eventuais erros da decisão. II. No âmbito dessa apreciação, incumbe ao Tribunal da Relação formar a seu próprio juízo probatório sobre cada um dos factos julgados em primeira instância e objeto de impugnação, de acordo com as provas produzidas constantes dos autos e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir [cfr. nº 2, als. a) e b) do artigo 662º do CPC], à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil. III. O Tribunal da Relação, tal como decorre do preceituado nos artigos 5º, nº2, alínea a), 640º, nº 2, alínea b) e 662º, nº1, todos do Código de Processo Civil, tem um amplo poder inquisitório sobre a prova produzida que imponha decisão diversa e não está adstrito aos meios de prova que tiverem sido convocados pelas partes nem aos indicados pelo Tribunal de 1ª Instância, apenas relevando o fator da imediação prevalecente em 1ª Instância quando o mesmo se traduza em razões objetivas. IV. Em sede de reapreciação da decisão de facto é conferido ao Tribunal da Relação o poder de se socorrer, mesmo oficiosamente, de todos os meios de prova constantes do processo bem como do uso a presunções judiciais, nos termos permitidos pelos artigos 349º e 351º, ambos do Código Civil” (os sublinhados são nossos).
Estatui o art. 607º/5 do C.P.Civil de 2013, que o “juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, sendo que esta previsão resulta do disposto nos arts. 389º, 391º e 396º do C.Civil, respectivamente para a prova pericial, para a prova por inspecção e para a prova testemunhal. Porém, desta livre apreciação pelo juiz estão legalmente excluídos os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, aqueles que só possam ser provados por documentos ou aqueles que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes - cfr. 2ªparte do nº5 do referido art. 607º.
Toda a prova tem que ser apreciada segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, com recurso às regras da experiência e critérios de lógica: “(…) segundo o princípio da livre apreciação da prova o que torna provado um facto é a íntima convicção do juiz, gerada em face do material probatório trazido ao processo (bem como da conduta processual das partes) e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens; não a pura e simples observância de certas formas legalmente prescritas[20].
A prova idónea (suficiente) alicerça-se num juízo de certeza (jurídica) e não um juízo de certeza material (absoluto): a prova “não é uma operação lógica visando a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente) (…) a demonstração da realidade de factos desta natureza, com a finalidade do seu tratamento jurídico, não pode visar um estado de certeza lógica, absoluta,… A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto[21].
O juiz está vinculado a identificar quais os concretos meios probatórios que serviram para formar a sua convicção e a indicar as razões pelas quais, relativamente ao mesmo facto, concede maior credibilidade a um meio probatório em detrimento de outro de sinal oposto, sendo que este o “caminho” que evita que a «livre apreciação da prova» se transforme numa «arbitrária apreciação da prova»: o “juiz [de 1ª Instância] explicará por que motivo deu mais crédito a uma testemunha do que a outra, por que motivo deu prevalência a um laudo pericial em detrimento de outro, por que motivo o depoimento de certa testemunha tecnicamente qualificada levou à desconsideração de um relatório pericial ou por que motivo não deu como provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos. E é ainda assim por referência a certo depoimento e a propósito do crédito que merece (ou não), o juiz aludirá ao modo como o depoente se comportou em audiência, como reagiu às questões colocadas, às hesitações que não teve (teve), a naturalidade e tranquilidade que teve (ou não)”[22].
É inquestionável que, uma vez que é perante si que toda a prova é produzida, é o juiz da 1ªinstância quem se encontra na posição mais favorável e privilegiada para proceder à sua valoração, nomeadamente no que concerne especificamente à prova testemunhal: atenta a respectiva imediação, o juiz da 1ªinstância está totalmente habilitado a detectar no comportamento das testemunhas todos os elementos relevantes para aferir da espontaneidade e credibilidade dos seus depoimentos, incluindo aqueles elementos que frequentemente não transparecem da gravação (esta constitui apenas um registo «áudio», e não um registo «vídeo», pelo que não pode transmitir todos os comportamentos da testemunha que respeitam directamente às suas reacções só observáveis através de imagem). Por conseguinte, a modificabilidade da matéria de facto só deverá ordenada quando, ao cumprir a supra referida incumbência de formar o seu próprio juízo probatório, o Tribunal da Relação conclua no sentido de que a prova produzida tem um sentido diverso e impõe uma decisão diferente da que foi proferida pelo Tribunal da 1ªInstância, ou seja, quando consiga alcançar um juízo certo e seguro de que existe erro de julgamento na matéria de facto[23].
Como explica Ana Luísa Geraldes[24], “Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte”.
Relativamente à interpretação do princípio da imediação, mostra-se relevante o entendimento explanado no Ac. do STJ (de fixação de jurisprudência) de 29/10/2008[25]: “Sem dúvida que a imediação torna possível, na apreciação das provas, a formação de um juízo insubstituível sobre a credibilidade da prova; das razões que se podem observar, no exame directo da prova, para acreditar, ou não acreditar, na mesma. Significa o exposto que a imediação é o meio pelo qual o tribunal realiza um acto de credibilização sustentada sobre determinados meios de prova em relação a outros. Exemplifica-se o exposto recorrendo ao caso do testemunho que parece mais digno de crédito do que um outro pela percepção directa imediata do seu relato e das circunstâncias em que o mesmo se desenrolou: - terá sido mais categórico, eventualmente mais seguro; terá recorrido menos vezes à aquiescência tácita de terceiro; ter-se-á expressado em termos mais correntes e mais próprios da sua condição social o que induziu o tribunal a pensar que o seu testemunho era mais fidedigno e menos passível de preparação prévia; suportou com maior à vontade o exercício do contraditório. Todas estas, que são razões que servem para acreditar em determinadas provas, e não acreditar noutras, sem dúvida que só são susceptíveis de ser apreciadas directamente pela pessoa que as avalia - o juiz de julgamento em primeira instância - e a possibilidade de admitir que tais circunstancias possam ser aferidas somente com recurso a um escrito - a denominada transcrição - produz uma evidente dificuldade pela ausência, ou diminuta qualidade de informação carreada para o tribunal, susceptível de o informar sobre as razões da atribuição de credibilidade” (os sublinhados são nossos).
Tecidas estas considerações jurídicas, cumpre proceder à reapreciação dos pontos de facto que foram impugnados pelo Insolvente/Recorrente.
Como ponto prévio, deixa-se aqui expressamente consignado que foi analisada toda a prova documental apresentada nestes autos (sendo que inexistiu qualquer outra prova produzida).

Quanto à alteração do facto provado nº3.
Não assiste qualquer razão à Insolvente/Recorrente uma vez que, como o próprio reconhece na motivação do recurso, “o alegado quanto às demais despesas pessoais que, embora reais e regulares, não conseguiu documentar para os presentes autos”.
Efectivamente, quer no requerimento inicial (petição), quer nos requerimentos datados de 18/01/2023 (referência citius «13040162») e 22/02/2023 (referência citius «14201475»), não foi apresentada qualquer prova documental (ou outra) que pudesse atestar o valor da cada uma das despesas relativas a «vestuário, transportes, consultas e exames médicos e de natureza lúdica» e que permitisse determinar o montante de cada uma delas em cada mês.
Embora esteja assente que o Insolvente/Recorrente tem as aludidas despesas, perante a total omissão probatória, não pode o Tribunal apurar e determinar o valor de cada uma delas, nem mesmo com recurso às regras da experiência comum. Para além de não existir um único elemento probatório que possa ser conjugado com tais regras, importa ter presente que, embora algumas delas constituam necessidades básicas (não será o caso das despesas lúdicas), atenta a sua própria natureza, estamos perante despesas cujo montante é muito variável de pessoa para pessoa e até de mês para mês, acrescendo que nem sequer foram alegados factos instrumentais (por exemplo, que deslocações necessita de fazer e com periocidade, e que tipo de assistência médica necessita e qual a regularidade) que permitissem calcular, com um mínimo de razoabilidade, os valores de tais despesas em termos mensais. 
E saliente-se que se mostra totalmente incorrecta a alegação (roçando até uma situação de má fé), inserta quer na motivação quer nas conclusões, no sentido de que “não foi apresentada qualquer impugnação/reclamação por parte dos credores aos indicados valores, sendo certo que do relatório da Administradora da Insolvência decorre nada ter a opor à consideração dos mesmos como despesas reais e aceitáveis para efeitos de rendimento indisponível”. Como resulta do teor do requerimento inicial (petição), o Insolvente/Recorrente nada alegou sobre estas despesas e muito menos sobre o seu valor. Logo, obviamente que, citados da sentença e para os termos do processo, os credores jamais podiam ter impugnado um facto não alegado. Acresce que o relatório apresentado pelo Administrador de Insolvência também não se pronuncia sobre quaisquer despesas que sejam suportadas pelo Insolvente/Recorrente (aliás, não alegadas até ao momento em que foi apresentado o relatório). Só no requerimento datado de 18/01/2023 (referência citius «13040162»), e na sequência do despacho de 13/01/2023, o Insolvente/Recorrente alegou suportar estas despesas e alegou o respectivo valor (cfr. art. 4º do requerimento), sendo que tal requerimento não foi sequer notificado aos credores e/ou ao Administrador de Insolvência. Por conseguinte, ao contrário do que se pretendeu dar a entender, não existe aqui qualquer prova por acordo em resultado de falta de impugnação.
Nestas circunstâncias, inexistem quaisquer elementos probatórios que imponham um juízo probatório distinto do formado pelo Tribunal a quo, pelo que este Tribunal ad quem gera uma convicção, segura e objectiva, no sentido de que não está probatoriamente demonstrado o quantum (valor) mensal das despesas elencadas neste ponto de facto (nem o valor global de € 200,00 alegado pelo Insolvente/Recorrente nem qualquer outro).
Porém, uma vez que a não demonstração probatória emerge da impossibilidade de apuramento dos valores concretos das despesas, por uma questão de correcção e conformidade quer com o teor do facto alegado, quer com o resultado da sua avaliação probatória, sendo que o Tribunal a quo nada consignou na matéria de facto (provada ou não provada) quanto ao valor das despesas, ao abrigo dos poderes previstos na alínea d) do art. 662º/2 do C.P.Civil de 2013, deve determinar-se o aditamento a este ponto de facto do segmento factual «cujo respectivo valor não se apurou».

Quanto à alteração do facto provado nº4.
Assiste razão à Insolvente/Recorrente.
Embora só no requerimento datado de 18/01/2023 (referência citius «13040162»), e na sequência do despacho de 13/01/2023, o Insolvente/Recorrente tenha alegado suportar as despesas com medicamentos e no valor mensal de e 64,06 (cfr. art. 3º do requerimento), certo é que, logo com o requerimento inicial (petição), juntou o documento nº... que corresponde a uma declaração, emitida pela Farmácia ... em 03/08/2022, no sentido de que o insolvente adquire medicamentos numa média mensal de € 64,06.
Este documento mostra-se credível e, por si só, assume relevância probatória suficiente para, além de atestar a realização desta despesa, comprovar o seu valor mensal, inexistindo nos autos qualquer elemento probatório que contrarie o seu sentido e/ou a sua credibilidade.
Assinale-se que não se vislumbra, na decisão recorrida, qualquer fundamentação que explique a razão em que o Tribunal a quo, tendo considerada provada esta despesa, fundou a sua convicção para entender como não provado o montante da despesa.
Nestas circunstâncias, impõe-se manifesta e necessariamente um juízo probatório distinto do formado pelo Tribunal a quo, pelo que este Tribunal ad quem gera uma convicção, segura e objectiva, no sentido probatório de que ficou provado que a despesa de medicamentos tem o valor mensal médio de € 64,06.
Consequentemente, atentas as respostas supra alcançadas, conclui-se que procede de forma parcial a pretensão recursória do Insolvente/Recorrente relativa à impugnação da matéria de facto.
Por força da procedência parcial da impugnação de facto e da alteração determinada oficiosamente pelo Tribunal na apreciação de tal impugnação, determina-se que:
- o facto provado nº3 passa a ter a seguinte redacção - «O Insolvente suporta ainda as despesas pessoais, entre as quais com vestuário, transportes, consultas e exames médicos e de natureza lúdica, cujo montante mensal não se apurou»;
- e o facto provado nº4 passa a ter a seguinte redacção - «O Insolvente suporta ainda, mensalmente, o pagamento de medicamentos, cujo valor médio mensal é de € 64,06».
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4.3. Da Fixação do Montante do Rendimento Indisponível
O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores ou pela forma prevista num plano de insolvência, ou, quando este se não se mostre possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, como decorre do preceituado no art. 1º do C.I.R.E.
Entre outras medidas excepcionais de protecção do devedor singular, o C.I.R.E., aprovado pelo Dec.-Lei nº53/04, de 18/03, introduziu na nossa legislação o instituto da exoneração do passivo restante: como se refere no respectivo preâmbulo, “No tratamento dispensado às pessoas singulares, destacam-se os regimes da exoneração do passivo restante… O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da «exoneração do passivo restante»”.
Como é consabido, mesmo quando o produto da liquidação do património (garantia geral dos credores - cfr. art. 601º do C.Civil) não se mostra suficiente para o cumprimento integral das obrigações do devedor, os credores não ficam definitivamente impedidos de exercer o seu direito: em caso de obtenção de novo património, poderão sempre voltar a accionar o devedor (mesmo que tenha sido declarado insolvente), porque este continua vinculado até ao limite do prazo ordinário de prescrição de 20 anos (cfr. art. 309º do C.Civil).
A introdução no nosso ordenamento jurídico deste instituto visou precisamente evitar que a pessoa singular declarada insolvente fique vinculada ao pagamento de tais obrigações até ao limite daquele prazo de prescrição de 20 anos, procurando evitar-se uma situação de inviabilidade da sua recuperação económica, assumindo efectiva relevância razões relacionadas com a dignidade da pessoa humana e com o interesse no desenvolvimento da economia (desenvolvimento que será «melhor» quanto maior número for o número de elementos financeiramente saudáveis a contribuir), explicando Maria Manuel Leitão Marques e Catarina Frade[26] que “o sobreendividamento é um risco natural da economia de mercado, particularmente associada à expansão do mercado de crédito - o crédito é uma actividade que se faz com risco e, por isso, o sobreendividamento é um risco antecipado e calculado pelos credores: o consumidor que ousa recorrer ao crédito e é mal sucedido não deve ser, por isso, excessivamente penalizado e, sobretudo, não deve ser excluído do mercado por um tempo demasiado longo”.
A tramitação/regulamentação deste incidente mostra-se contemplada no capítulo I, do Título XII (Disposições específicas da insolvência de pessoas singulares) nos arts. 235º a 248º do C.I.R.E.
Prescrevia o art. 235º na sua versão inicial: “Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo”.
Por força da Lei nº9/2022, de 11/01, e que entrou em vigor a 1/04/2022 (cfr. art. 12º da referida Lei), e é aplicável aos presentes autos, foi alterada a redacção deste art. 235º, na parte relativa ao prazo do período de cessão que passou a ser de «três anos» (“… ou nos três anos posteriores ao encerramento deste…”), embora possa ser prorrogado por um período máximo de três anos, conforme decorre do novo art. 242ºA, aditado pela referida Lei.
Consagra-se, neste preceito, o princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou (agora) nos três anos posteriores ao encerramento deste (cfr. preâmbulo do Dec.-Lei nº53/04, de 18/03).
Daqui decorre que após a liquidação do seu património no processo de insolvência ou após o decurso do prazo de três anos posteriores ao encerramento do processo, o devedor singular tem a possibilidade de um “fresh start”, podendo recomeçar uma nova vida e/ou uma nova atividade económica, sem estar sujeito ao peso das obrigações que permaneceram por solver no processo de insolvência, pelo que o objectivo é liberar definitivamente o devedor singular do passivo que não seja pago integralmente por forma a permitir a sua reabilitação económica. Como explica Assunção Cristas[27], “apurados os créditos da insolvência e uma vez esgotada a massa insolvente sem que tenha conseguido satisfazer totalmente ou a totalidade dos credores, o devedor pessoa singular fica vinculado ao pagamento aos credores durante cinco anos, findos os quais, cumpridos certos requisitos, pode ser exonerado pelo juiz do cumprimento do remanescente. O objetivo é que o devedor pessoa singular não fique amarrado a essas obrigações”. E nas palavras de Menezes Leitão[28], “Efectivamente, a concessão de uma nova oportunidade às pessoas singulares justifica-se, até porque a insolvência pode ter causas que escapam ao seu controlo, como as perdas de rendimento resultantes de desemprego, doença, ou divórcio, nos trabalhadores subordinados, ou o lançamento de um novo negócio, que se revelou não rentável, nos trabalhadores independentes, desempenhando muitas vezes os hábitos de consumo desenfreados também um papel, podendo o devedor muitas vezes recompor a sua situação económica se lhe derem a oportunidade de começar de novo”.
Mas, como se explica no respectivo preâmbulo, a efectiva obtenção de tal benefício pressupõe que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor singular permaneça por um período de três anos (período da cessão) ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos, sendo que, durante esse período, o devedor assume, entre outras, a obrigação de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores: “No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento. A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica”.
Este instituto impõe, portanto, uma conciliação dos interesses em confronto: o do prejuízo que a lei impõe aos credores, com a extinção dos seus créditos no final do período da cessão, apesar de tais créditos não terem sido satisfeitos; e o do sacrifício do insolvente/devedor singular, por forma a que no período de cessão contribua com parte do seu rendimento (que não seja indispensável à sua subsistência condigna) na satisfação das dívidas.
E esta “segunda oportunidade”, concedida pela exoneração do passivo restante, só pode ser reconhecida ao devedor que efectivamente a merecer, como se explica no Ac. do STJ de 21/01/2012[29], “A lei exige uma atuação anterior pautada por boa conduta do insolvente, visando evitar que o prejuízo, que já resulta da insolvência, não seja incrementado por atuação culposa do devedor que, sabendo-se insolvente, permanece impassível, avolumando as suas dívidas em prejuízo dos seus credores e, não obstante, pretende exonerar-se do passivo residual querendo a exoneração”.
Neste mesmo sentido, concretiza-se, de forma pormenorizada e com a invocação de diversa doutrina, no Ac. da RG de 07/10/2021[30]: “Compreende-se, por isso, que se afirme que não «se pense (…) que o CIRE contém um regime que é um brinde ao incumpridor» (Alexandre de Soveral Martins…), já que se está perante um instituto que, simultaneamente, tem subjacente quer o interesse do devedor (que poderá ficar, definitivamente, exonerado do seu passivo restante - face ao termo do processo de insolvência), quer os interesses dos seus credores (que aqui encontram uma «dupla oportunidade» de satisfação dos seus créditos). Por outras palavras, «após o encerramento do processo de insolvência, e portanto esgotada a função do administrador de insolvência com a repartição do saldo do património actual (I. V.) pelos devedores, ainda se efectua a cessão do rendimento disponível do devedor a um fiduciário durante cinco anos,” [agora três anos] “com a função de o repartir pelos credores (art. 239º), colocando-se assim também o património a adquirir futuramente pelo devedor (S. V.) durante um longo período igualmente afecto à satisfação dos seus credores» (Luís Manuel Teles de Menezes Leitão…). O benefício final pretendido pelo insolvente (isto é, a concessão efectiva da exoneração do seu passivo restante) depende ainda do preenchimento inicial de determinados requisitos, e fica subordinado ao cumprimento de determinadas obrigações, pelo que o despacho inicial «só promete conceder a exoneração efectiva», e não a garante (Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda…). Por fim, do prazo fixo de cinco anos” [agora três anos] “do período de cessão, se retira igualmente o ser «manifestamente estabelecido em benefício dos credores», constituindo «o período que o legislador entendeu adequado para lhes assegurar uma razoável satisfação dos seus créditos. Em favor deste entendimento militam o nº 2 do art. 243º e o nº 1 do artº 244º dos quais decorre que a cessação antecipada do procedimento de exoneração, quando não fundada em situações relativas ao devedor, só se verifica se se mostrarem totalmente satisfeitos os créditos sobre a insolvência», «satisfazendo-se, assim, o fim que preside ao instituto», ocorrendo então «uma situação equivalente à inutilidade superveniente da lide» (Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda…). Dir-se-á, deste modo, que no instituto da exoneração do passivo restante, o legislador procurou conciliar os incontornáveis direitos dos credores a verem satisfeitos os seus créditos, com direitos de personalidade do devedor (recuperação da sua liberdade económica, produtividade, bem-estar), desde que não haja dolo ou culpa grave da sua parte na situação em que se encontra e desde que não seja reincidente. No regime instituído foram nitidamente ponderadas, ainda, questões de política social geral. Estão presentes as ideias de socialização do risco do mercado de crédito, repartindo-o entre credores e devedores, e de prevenção da exclusão social do devedor (CC…). O interesse dos credores é ainda atendido pelo facto do insolvente, enquanto devedor não exonerado, ter o seu acesso ao crédito limitado, o que deixará de suceder após alcançar aquele benefício. Deste modo, incentiva-se a inclusão socioeconómica do devedor e propicia-se a sua contribuição futura no desenvolvimento da economia (DD…)”.
De acordo com o disposto nos arts. 237º, 238º, 239º, 244º e 245º do C.I.R.E., a efectiva concessão da exoneração do passivo restante resulta de dois despachos: inexistindo fundamento legal para o respectivo indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, é proferido (primeiro) o despacho inicial que determina a obrigação de cessão do rendimento disponível pelo período de três anos após o encerramento do processo de insolvência (o rendimento disponível  devedor singular venha a auferir considera-se cedido ao fiduciário e destina-se ao pagamento das custas do processo ainda em dívida, ao reembolso ao Cofre Geral dos Tribunais das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas, ao pagamento da remuneração vencida do fiduciário e despesas efetuadas e, por último, à distribuição do remanescente pelos credores da insolvência); e no final do período da cessão será proferido (segundo) despacho que decide sobre se é ou não efectivamente concedida a exoneração do passivo restante, sendo que, em caso de ser concedida, tal decisão determinará a extinção de todos os créditos que ainda subsistam à data em que for concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados.
Para o caso em apreço revela precisamente a questão da cessão do rendimento disponível e da sua quantificação, matéria que é regulada no art. 239º do C.I.R.E. que estatui (na parte que interessa para os autos e na redacção que lhe foi dada pela Lei nº9/2022): “2 - O despacho inicial determina que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte. 3 - Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão: a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz; b) Do que seja razoavelmente necessário para: i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional; ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional; iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor…”.
Conforme decorre do disposto no nº3 deste preceito, não obstante o lapso em que frequentemente se incorre, o rendimento disponível é o montante a ceder ao fiduciário e não o montante que deve ser reservado para o insolvente/devedor, e seu agregado familiar, poderem ter uma vida condigna. Logo, neste despacho inicial, o que deve ser fixado é o montante indisponível, ou seja, aquele montante que «é razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar», montante esse que é excluído do rendimento disponível (que será composto de todos os demais rendimentos sobrantes, independentemente do seu valor)[31].
Atenta a letra do ponto i) do art. 239º/3b), verifica-se que o legislador estabeleceu um limite máximo e um limite mínimo para fixar o montante do rendimento que será isento da cessão (rendimento indisponível).
O limite máximo decorre diretamente da parte final daquele artigo: 3 (três) vezes o salário mínimo nacional. Como se dá nota no Ac. da RG de 17/05/2018[32], “não obstante alguma divergência inicial, constitui hoje jurisprudência pacífica que o previsto valor de (3) três salários mínimos nacionais corresponde ao limite máximo a fixar pelo juiz, limite que só pode ser ultrapassado em casos excepcionais que o justifiquem, o que exige, naturalmente, uma mais exigente e aprofundada fundamentação do juiz quando ultrapasse o dito valor máximo”.
O limite mínimo é o valor que for considerado «razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar».
Segundo o Ac. do STJ de 02/02/2016[33], “O legislador pretendeu estabelecer critérios minimamente objectivos quanto ao montante de rendimento dos insolventes que fica isento de cessão ao fiduciário, fixando um patamar tendencialmente máximo correspondente a «três vezes o salário mínimo nacional», valor que pode ser até ser excedido, desde que “em decisão fundamentada”, e decidiu-se que: “I - Jogam-se no art. 239º, nº3, b)-i), do CIRE - cessão do rendimento disponível - dois interesses conflituantes: um, aponta no sentido da protecção dos credores dos requerentes da exoneração; outro, na lógica da “segunda oportunidade” concedida ao devedor, visa proporcionar-lhe condições para se reintegrar na vida económica quando emergir da insolvência, passado o período de cinco anos” [agora três anos] “a que fica sujeito com compressão da disponibilidade dos seus rendimentos”.
Certo é que o legislador, quanto ao limite mínimo, optou por remeter para um conceito indeterminado ou aberto - «necessário ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar» -, não indexando tal conceito a um valor pecuniário fixo, pelo que se impõe saber qual é o critério que permite determinar esse valor mínimo, isto é, preencher aquele conceito indeterminado.
 Recorrendo, de novo, ao supra citado Ac. do STJ de 02/02/2016[34], aqui se sustenta que “O montante não abrangido pela cessão do rendimento disponível deve ser fixado casuisticamente, tendo em conta «o que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar” e que “A norma remete para o conceito de “dignidade” que indissocia da exigência do sustento do devedor e do seu agregado familiar” (os sublinhados são nossos, sendo que neste aresto se analisada profundamente o conceito de «dignidade» da pessoa humana e os termos em que o mesmo deve ser interpretado, ensinamentos para os quais se remete).
Este entendimento tem sido sufragado pela restante jurisprudência, nomeadamente, do STJ e desta Relação de Guimarães, referindo-se a título meramente exemplificativo:
- o Ac. do STJ de 09/02/2021[35] - “III. O montante do rendimento não abrangido pela cessão ao fiduciário há-de ser fixado casuisticamente, tendo em conta o que seja necessário para o «sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar» (art. 239.º, n.º 3, al. b), subal. i) do CIRE). O legislador usou um conceito indeterminado, que permite atender às particularidades das situações da vida e alcançar uma “individualização” da solução”;
- o citado Ac. da RG de 17/05/2018[36] - “I - O critério geral e abstrato de «sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar», previsto no art. 239º, n.º 3, al. b), i., do CIRE, terá que ser densificado e aplicado casuisticamente em função do caso concreto e das circunstâncias do insolvente e do respetivo agregado familiar, tendo como subjacente o reconhecimento do «princípio da dignidade humana»”;
- o Ac. da RG de 17/12/2020[37] - “IV - A determinação desse valor indisponível tem de ser efetuada pelo juiz mediante ponderação casuística das circunstâncias particulares do devedor, tendo em conta o princípio da dignidade humana e os princípios constitucionais de proibição do excesso e da adequação, necessidade e proporcionalidade, sopesando sempre os interesses antagónicos em confronto do insolvente e dos credores. V – Por isso, o interesse dos credores na satisfação dos seus créditos tem que ser comprimido na medida do que seja necessário, adequado e proporcional à salvaguardada do sustento minimamente digno do insolvente e respetivo agregado familiar visto que assim o impõe o respeito pela dignidade da pessoa humana”;
- e o Ac. da RG de 02/03/2023[38] - “I - O ponto i) da alínea b) do n.º 3 do art.º 239º do CIRE, ao excluir do rendimento disponível que o insolvente deve entregar ao fiduciário, o valor que for considerado «razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar», tem subjacente o principio constitucional da dignidade da pessoa humana. II - Nessa medida, tal valor deve ter como referencial mínimo o valor da Remuneração Mensal Mínima Garantida, que contêm em si a ideia de que é o mínimo considerado necessário para uma sobrevivência digna. III - A partir daí, aquele princípio manda que o valor que for considerado «razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar» seja encontrado casuisticamente, tendo em consideração a singularidade de cada devedor e do seu agregado familiar (não obstante as dificuldades de tal tarefa), não olvidando, que, como manda o n.º3 do art.º 8º do CC, deverão ter-se em consideração os critérios jurisprudenciais vigentes e aplicáveis a situações semelhantes, por forma a dar cumprimento ao principio da igualdade plasmado no art.º 13º n.º 1 da CRP”.
Na densificação casuística do critério do «sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar» importa ter presente a Jurisprudência Constitucional, que através do seu Ac. nº177/2002 de 23/04/2002[39], declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma então vigente que permitia a penhora até um terço das prestações periódicas pagas ao executado para aquém do salário mínimo nacional, mencionando como fundamento que ao fixar o regime do salário mínimo nacional o legislador teve presente a intenção de garantir a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador: “… Assim como o salário mínimo nacional contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador e que por ter sido concebido como o «mínimo dos mínimos» não pode ser, de todo em todo, reduzido, qualquer que seja o motivo, assim, também uma pensão por invalidez, doença, velhice ou viuvez cujo montante não seja superior ao salário mínimo nacional não pode deixar de conter em si a ideia de que a sua atribuição corresponde ao montante mínimo considerado necessário para uma subsistência digna do respectivo beneficiário…” (o sublinhado é nosso).
Deste modo, e porque não vislumbramos qualquer razão válida ou relevante em sentido contrário, entendemos que o limite mínimo, pelo menos, como referência e regra, que assegura o «sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar» corresponde ao valor de 1 (um) salário mínimo nacional, sendo a partir deste valor, que é o «mínimo dos mínimos», que em cada caso concreto se fixará o rendimento indisponível, acompanhando-se, deste modo e mais uma vez, o decidido no supra referido Ac. do STJ de 02/02/2016[40]: “IV - Se a lei alude ao salário mínimo nacional para definir o limite máximo isento da cessão do rendimento disponível, também se deve atender a esse salário mínimo nacional, para no caso concreto, saber a partir dele, o quantum que se deve considerar compatível o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar. V - Em regra, o salário mínimo nacional é o limite mínimo de exclusão dos rendimentos, no contexto da cessão de rendimentos pelo insolvente a quem foi concedida a exoneração do passivo restante, ou seja, nenhum devedor pode ser privado de valor igual ao salário mínimo nacional, sob pena de não dispor de condições mínimas para desfrutar uma vida digna” (os sublinhados são nossos). E mais se explica neste aresto que: “O montante excluído da cessão de rendimentos do insolvente ao fiduciário «deve assegurar um sustento minimamente digno». Haverá a tendência de considerar que o requerente beneficiário da exoneração não pode pretender manter o trem de vida económico prévio à sua agora débil situação económica, pelo que lhe deve ser reservado como disponível um montante que assegure apenas e tão só um mínimo de sobrevivência, sob pena de não sentir os efeitos da sua quiçá imprudente administração. Salvo o devido respeito, não entendemos que o «sustento minimamente digno» equivalha à atribuição de um mínimo pecuniário de estrita sobrevivência; de outro modo negar-se-ia ao instituto da exoneração a sua finalidade precípua de regeneração do insolvente para voltar à inclusão económica e social, expurgado de um passivo que não consegue solver. As interpretações punitivas da lei correspondem, quantas vezes, a preconceitos e, num domínio em que o conceito de dignidade e a ideia de subsistência são primordiais, o padrão a adoptar deve ser aquele que, sem descurar os direitos dos credores, não afecte o devedor, remetendo-o aos limites de uma sobrevivência penosa, socialmente indigna, sob pena de a proclamada intenção de o recuperar economicamente constituir uma miragem. O salário mínimo nacional (…) deveria ser considerado o montante mínimo para acudir às despesas inerentes a uma vida que se pretende que seja vivida com dignidade, tendo em contas despesas, essas sim de sobrevivência, como são as relacionadas com a habitação, alimentação, vestuário, consumos de bens essenciais (água, luz, transportes) e assistência médica… Da conjugação dos nºs 1 e 3 do art. 738º do Código de Processo Civil, decorre que são impenhoráveis dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários e prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer regalia social, «ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado». A impenhorabilidade desses rendimentos «tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento, o montante equivalente a um salário mínimo nacional». Não se vislumbra critério equitativo que afaste a ponderação da aplicação da norma processual civil, respeitante à impenhorabilidade ao rendimento disponível, que deve ser deixado ao insolvente requerente da exoneração, para lhe assegurar uma vivência com um mínimo de dignidade…”.
Também este entendimento tem sido prosseguido nesta Relação de Guimarães, referindo-se a título meramente exemplificativo, o já citado Ac. da RG de 04/04/2019[41] (“2 - Há que ter em conta que o salário mínimo nacional tem em vista salvaguardar, por definição, as despesas mínimas inerentes à dignidade de pessoa comum em Portugal, falecendo, face à omissão de circunstâncias que definam especiais necessidades do insolvente ou do seu agregado familiar e de despesas que extravasem as inerentes a qualquer pessoa, qualquer fundamento para limitar a restrição do interesse dos credores que se traduz na previsão da cessão ao fiduciária na cessão de todo o restante rendimento”) e o também já citado Ac. da RG de 17/09/2020[42] (“III- A análise do regime legal aplicável à delimitação dos rendimentos que integram o rendimento disponível do devedor e respetivas exclusões no âmbito do direito da insolvência implicam que se deva atender ao salário mínimo nacional, correspondente ao valor da retribuição mínima mensal garantida, tal como introduzida pelo Decreto-Lei n.º 217/74, de 27-05, sucessivamente atualizada (a que se refere o n.º 1 do artigo 273.º do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12-02) enquanto referência razoável e adequada à definição do mínimo necessário a assegurar o sustento condigno dos devedores nos 12 meses do ano”).
Concluindo, e como se explica no Ac. da RG de 17/05/2018[43], “dentro do intervalo entre este valor mínimo (equivalente a um salário mínimo nacional) e o citado valor máximo (equivalente a três salários mínimos), a fixação concreta do que constitua o mínimo para o sustento minimamente condigno do devedor e respetivo agregado familiar, não obstante as dificuldades que encerra a prudente consideração de cada caso, «deverá obedecer aos critérios interpretativos e ao princípio constitucional da «proibição do excesso» (art.º 18º n.º 2 CRP), traduzindo-se, tanto quanto possível em adequação (isto é, apropriação ao caso concreto), necessidade e proporcionalidade (justa medida)»… No caso, a “proibição do excesso” não deixará de considerar, por um lado, as necessidades fundamentais para um sustento minimamente do devedor e do seu agregado familiar, mas do outro terá em mente a necessária, tanto quanto possível, satisfação dos direitos dos credores, pois que olvidado este escopo do processo falimentar, facilmente a exoneração do passivo restante se transformaria num simples perdão de dívidas, num prémio ou na cobertura a uma fraude (…)  De facto, e como tem sido salientado, «ao sacrifício financeiro dos credores terá de corresponder o sacrifício do insolvente através da compressão das suas despesas.» (…) Ou, ainda, que «constitui dever do insolvente adaptar o seu estilo e nível de vida ao padrão social condizente com a situação em que, imprevidentemente, se colocou, tratando-se, no fundo, da contrapartida decorrente da concessão do benefício da exoneração do passivo restante.» (…) E também que «o montante mensal que há-de ser dispensado ao insolvente no período da cessão não visa assegurar o padrão de vida que porventura teria antes da situação de insolvência mas apenas uma vivência minimamente condigna, cabendo ao visado adequar-se à especial condição em que se encontra, ajustando as despesas ou encargos ao nível de vida, em geral e na medida do possível, à nova realidade que enfrenta. Deste modo, não serão simplesmente as despesas enunciadas ou comprovadas que devem justificar o montante do rendimento indisponível, mas apenas aquelas que razoavelmente se justifiquem, traduzindo uma efectiva adaptação do padrão de vida do insolvente ao estatuto que lhe foi conferido» (…) O que significa que a fixação do montante a excluir da cessão deve também ditar uma alteração do padrão de vida do devedor, obrigando-o a restringir os seus gastos numa lógica de contenção (…)” (os sublinhados são nossos).
Importa referir que o entendimento e a fundamentação supra explanados foram já prosseguidos por este mesmo Relator nos Acórdãos proferido em 20/01/2022, no proc. nº1338/21.9T8VNF-B.G1, e em  02/06/2022, no proc. nº112/21.7T8VNF-D.G1.
Revertendo ao caso em apreço, verifica-se que a decisão recorrida fixou «em um salário mínimo nacional, acrescido de 1/5, o montante que o insolvente poderá dispor» [como supra já se referiu, mas reforça-se novamente, neste despacho inicial, deve ser fixado o montante/rendimento indisponível (isento de cessão), pelo que aquele valor fixado pelo Tribunal a quo constitui o rendimento indisponível e não o rendimento que deve ser cedido (disponível)].
Em sede de recurso, o Insolvente/Recorrente vem defender que «o rendimento indisponível deve ser fixado no valor de € 1100,00».
Ora, embora não se subscreva parte da fundamentação aduzida na decisão recorrida, certo é que toda a argumentação invocada pelo Insolvente/Recorrente no recurso, mostra-se absolutamente insusceptível de justificar a alteração do quantum fixado como rendimento indisponível. Concretizando.
O Insolvente/Recorrente começa por invocar que «a decisão do Tribunal “a quo” não é sensível à ponderação dos interesses em conflito, assumindo claro desinteresse pelas circunstâncias específicas e conjunturais do insolvente; a dívida do insolvente que condicionou o presente processo baseia-se na subscrição de uma livrança a favor de uma sociedade, devedora principal, encerrada em 2009, em virtude de ter sido sócio da mesma; a única credora e beneficiária do rendimento disponível do insolvente é/será a EMP01... que, dadas as regras da experiência comum, como instituição financeira, a cessão de rendimento que possa ser-lhe transferida na sequência do presente não terá para ela qualquer impacto financeiro ao contrário do que sucederá com o Insolvente» (cfr. conclusões 8ª a 10ª).
Esta matéria é completamente irrelevante para a questão aqui em causa, uma vez que a natureza dívida que determinou a insolvência e o impacto que o valor a ceder terá (ou não) na situação financeira do credor são elementos que não integram nem têm acolhimento no critério legalmente determinado para se fixar o valor do rendimento indisponível [«o que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar» - cfr. art. 239º/3b) do C.I.R.E.]. Deste modo, estas alegações não constituem fundamento válido para fixar (e alterar) o montante do rendimento indisponível.
Em seguida, o Insolvente/Recorrente invoca que «em segundo lugar, que «o Tribunal “a quo” embora tenha credibilizado a declaração apresentada pelo insolvente que demonstra a despesa de € 650,00 com alojamento e alimentação, aceitando-a como provada, acaba por querer impor ao Insolvente que tal despesa não terá justificação ética e/ou jurídica, porque, como defende, a sua filha tem obrigação de o sustentar; para o efeito, Tribunal “a quo” aplica nos presentes autos de insolvência, para conveniência da sua tese, o regime jurídico dos “Alimentos” previsto nos art.ºs 2003º e ss do Código Civil, em tudo incompatível com os termos e objectivos do presente processo; desconhece o Tribunal, porque não quis conhecer, todas as circunstâncias de vida da filha do insolvente, BB, e do respectivo agregado familiar, imprescindíveis ao aferimento das capacidades ou incapacidades de acolhimento, financeiras e económicas do seu agregado que justifiquem as exigências e obrigações que o Tribunal lhe pretende impor, com total ausência de discussão e/ou prova sobre a matéria; o despacho recorrido, sem qualquer justificação de facto ou de direito, coloca o Insolvente numa situação extremamente difícil, dependente de uma circunstância que não controla, com a agravante de não ter qualquer alternativa de alojamento se, por razões económicas ou financeiras, a sua filha não puder sustentá-lo e, por essa razão, provocar a saída daquele da sua casa; e por via do despacho recorrido fica o Recorrente numa situação de total dependência da boa vontade da sua filha, arriscando-se a perder a possibilidade de ali se manter a residir» (cfr. conclusões 11ª a 14ª e 17ª).
Assiste-lhe razão numa parte desta argumentação. Com efeito, tendo considerado provado que o Insolvente/Recorrente paga mensalmente € 650,00 à filha, em casa de quem vive e como contrapartida de alojamento e alimentação (cfr. facto provado nº3), não se vislumbra uma razão juridicamente válida para o Tribunal a quo desconsidere tal despesa, entendendo-a como «uma despesa não necessária porque existe a obrigação de filha prestar alimentos ao Insolvente, seu pai» [“ (…) fá-lo por sua vontade, uma vez que a obrigação de alimentação e cuidados, não existe apenas de pais para filhos, mas igualmente de filhos para pais (…) não podem os credores ficar desapossados de todo e qualquer montante, como no pedido de fixação do rendimento indisponível formulado pelo insolvente ficariam, para que este entregue mais de metade da sua pensão a uma filha, para que esta o sustente, quando tem obrigação de tal”].
Com efeito, não existe nos autos qualquer elemento fáctico que demonstre (ou que indicie) que foi judicialmente determinado que a filha está obrigada a prestar alimentos ao Insolvente/Recorrente ou que a mesma possui condições económicas para lhe pagar uma pensão a título de alimentos (o Insolvente/Recorrente nada alegou sobre tal matéria, e o Tribunal a quo, apesar dos despachos que proferiu em 13/01/2023 e em 18/02/2023, não lhe determinou que prestasse alguma informação e prova sobre esta matéria). Acresce que, atento o valor da pensão mensal auferida pelo Insolvente/Recorrente (quantia líquida de € 1.162,19 - cfr. facto provado nº1) e o valor das despesas alegadas (independentemente da sua demonstração probatória), não se verifica (pelo menos, neste momento) qualquer necessidade de o mesmo receber uma pensão de alimentos da sua filha.
Assim sendo, afigura-se-nos que este entendimento do Tribunal a quo não tem sustentação fáctica e não está em conformidade com o critério legal.
Na verdade, e como supra se explicou, o rendimento indisponível deve ser fixado atendendo àquilo que, em concreto, for considerado como o valor indispensável para o sustento minimamente digno do devedor (e respetivo agregado familiar), entre os valores definidos pela lei como sendo o mínimo (equivalente a um salário mínimo nacional) e o máximo (equivalente a três salários mínimos), mas só serão consideradas as despesas que razoavelmente se justifiquem (fundamentais e necessárias para aquele sustento digno), e não todas e quaisquer despesas invocadas e ainda que comprovadas. Ora, a despesa em causa com a habitação (alojamento, que necessariamente também inclui os bens essenciais como água, electricidade e gás) e com a alimentação corresponde a uma despesa essencial e fundamental ao sustento digno, pelo que não pode ser pura e simplesmente desconsiderada aquando do juízo valorativo com vista a fixar o dito rendimento disponível, com base na pressuposta existência (mas não demonstrada) obrigação e capacidade de prestação de alimentos da filha para com o Insolvente/Recorrente (outra coisa é saber se tal valor de € 650,00 é, em si mesmo, exagerado, mas não foi este o «caminho» prosseguido na decisão recorrida).
Porém, apesar de não se subscrever nem se acompanhar, ao contrário do que pretende fazer crer no recurso, jamais tal entendimento implica que tenha que deixar de residir na residência da filha: com efeito, por um lado, mesmo que a despesa com o pagamento à filha do valor € 650,00 (como contrapartida do alojamento e alimentação) não fosse considerada como indispensável, tal não implicaria que o Insolvente/Recorrente não a pudesse continuar a realizar (relembre-se que o rendimento indisponível nunca poderá ser estabelecido num valor inferior ao salário mínimo nacional - à data da decisão, ano de 2023, fixado em € 760,00 -, o que sempre se mostraria suficiente para realizar tal pagamento); e, por outro lado, embora não esteja demonstrado que a filha tenha capacidade económica para sustentar o Insolvente/Recorrente, também não está demonstrado o seu contrário (aliás, este também nada alegou nesse sentido), pelo que não se pode concluir, sem mais, que no caso de não receber tal valor mensal de € 650,00, a sua filha não tem condições económicas para o continuar a ter a residir consigo. Frise-se que as alegações produzidas neste âmbito pelo Insolvente/Recorrente até se revelam ininteligíveis.
Portanto, neste “quadro”, embora se discorde de parte da fundamentação que integra a decisão recorrida, certo é que desta «argumentação» do Insolvente/Recorrente não decorre qualquer fundamento válido para demonstrar que o valor fixado como rendimento indisponível Insolvente/Recorrente pelo Tribunal a quo não permite o seu sustento minimamente digno.
Como já se disse, o rendimento indisponível foi fixado pelo Tribunal a quo «em um salário mínimo nacional, acrescido de 1/5», o que equivale, atento o valor do SMN à data da decisão recorrida (ano de 2023, € 760,00 - Dec.-Lei nº85-A/2022, de 22/12), ao montante total de € 912,00 (já no corrente ano de 2024, atento o actual valor do SMN, € 820,00 - Dec.-Lei nº107/2023, de 17/11 -, equivale ao montante de € 984,00).
Ora, basta atentar na factualidade provada nos autos relativamente às despesas mensais do Insolvente/Recorrente (e considerando já a alteração da matéria de facto supra determinada), para se concluir, sem margem para quaisquer dúvidas, que um salário mínimo nacional, acrescido de 1/5, assegura o seu «sustento minimamente digno».
No que concerne à composição do agregado familiar e às despesas necessárias ao sustento minimamente digno, o ónus de alegação incumbe exclusivamente ao requerente/insolvente e tem que ser cumprido no momento processual em que é deduzido o incidente de exoneração do passivo restante: como se decidiu no Ac. da RL de 12/12/2013[44], “A alegação das necessidades do devedor e seu agregado familiar - em termos de composição da despesa e respectivos montantes, que suporta - e o oferecimento da respetiva prova, em ordem a obter a fixação do montante a excluir do rendimento disponível a ceder ao fiduciário, devem ter lugar aquando da formulação do pedido de exoneração do passivo restante a que alude o art.º 236.º, n.º 1, do CIRE”[45].
No caso concreto, embora na petição/requerimento inicial, o Insolvente/Recorrente nada tenha alegado e apenas tenha junto o já supra aludido documento relativo às despesas mensais com medicamentos (cfr. doc. nº... do requerimento inicial), o Tribunal a quo, através dos despachos proferidos em 13/01/2023 e em 18/02/2023, determinou-lhe que alegasse e comprovasse as suas despesas mensais. Foi apenas nesta sequência, que o Insolvente/Recorrente veio alegar as despesas que suporta mensalmente.
Atenta a factualidade provada, verifica-se que: em virtude da sua atual situação e da morte da sua esposa, o Insolvente reside agora em casa da sua filha, à qual paga o valor mensal fixo de € 650,00, em contrapartida de alojamento e alimentação; o Insolvente suporta ainda as despesas pessoais, entre as quais com vestuário, transportes, consultas e exames médicos e de natureza lúdica, cujo montante mensal não se apurou; e o Insolvente suporta ainda, mensalmente, o pagamento de medicamentos, cujo valor médio mensal é de € 64,06 (cfr. factos provados nºs. 2 a 4).
Daqui decorre que, apenas estão demonstradas despesas mensais essenciais (inerentes às necessidades primárias/básicas de subsistência de qualquer ser humano e, como tal, mostram-se essenciais ao seu «sustento minimamente digno»), no montante total de € 714,06, relativas a alojamento/habitação (que inclui água, electricidade e gás), alimentação, e medicamentos.
Embora também sejam de considerar como essenciais (inerentes às necessidades primárias/básicas de subsistência) as comprovadas despesas com vestuário, transportes e consultas/exames, certo é que não está demonstrado o valor mensalmente suportado com cada uma delas. Não tendo o Insolvente/Recorrente logrado demonstrar que os valores mensais de tais despesas, jamais se pode considerar que as mesmas assumem um valor muito relevante e elevado.
E relembre-se que, mesmo a comprovarem-se tais despesas, como se refere no já citado Ac. da RG de 17/05/2018[46], não são simplesmente as despesas comprovadas (ou enunciadas) que devem justificar o montante do rendimento indisponível, mas sim apenas aquelas que razoavelmente se justifiquem, traduzindo uma efectiva adaptação do padrão de vida do insolvente ao estatuto que lhe foi conferido. No sentido se pronunciou, o também já citado Ac. da RG de 02/03/2023[47]: “a fixação o valor razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar não obriga a que sejam atendidas todas as despesas comprovadas pelo insolvente (o sublinhado é nosso), sendo que neste aresto se remete para o decidido no Ac. da RC de 31/01/2012[48]: “II - O critério para determinar a quantia necessária para sustento minimamente digno não reside no que o devedor/insolvente diz que precisa para o seu sustento mas antes no que é necessário, num plano de normalidade e razoabilidade, para o sustento mínimo, independentemente do trem de vida que se teve - e que porventura até gerou a situação de insolvência - ou se pretende manter” (o sublinhado é nosso).
Considerando que, como o próprio afirma nos autos, o Insolvente/Recorrente tem 88 anos de idade, em termos de normalidade e de razoabilidade, não se vislumbra uma necessidade de despender valores significativos com vestuário e/ou valores com várias deslocações (assinala-se aquele nada se alegou neste sentido), sendo certo que sempre será de exigir aquele ajuste estas despesas à especial situação em que agora se encontra, reduzindo-as ao mínimo indispensável.
 Quanto às despesas com consultas e exames médicos, também aqui nada se alegou no sentido de uma necessidade de várias consultas e/ou de vários exames por mês, ou no sentido do mesmo não utilizam o serviço nacional de saúde para o efeito. 
Já quanto às despesas de natureza lúdica, independentemente do valor que possam atingir, não podem ser consideradas como inerentes às necessidades primárias/básicas de subsistência de qualquer ser humano (e, como tal, mostram-se essenciais ao seu «sustento minimamente digno») e, por isso, não podem relevar para a fixação do rendimento indisponível (mas ainda que o pudessem ser, sempre seria de exigir fossem ajustadas um mínimo indispensável e, por isso, teriam um valor quase diminuto).
Nestas circunstâncias, considerando que o rendimento indisponível fixado tem um valor mensal global de € 912,00 e que as despesas essenciais comprovadas têm o valor mensal de € 714,06, verifica-se que remanesce o valor de € 197,94, o qual se mostra absolutamente adequado e razoável para o Insolvente/Recorrente fazer face àquelas despesas mensais essenciais de vestuário, de transporte e de consultas/exames médicos (aliás, tal valor é quase idêntico ao valor de € 200,00, alegado mas não comprovado, e saliente-se que nem se colocou aqui em causa o valor mensal de € 650,00 despendido com alojamento e alimentação).   
Refira-se que o critério utilizado na fixação do rendimento disponível - «um salário mínimo nacional, acrescido de 1/5» -, está totalmente enquadrado no padrão que têm sido considerado nas decisões tomadas nesta Relação de Guimarães em situações semelhantes,
-  no já citado Ac. da RG de 02/03/2023[49], fixou-se o rendimento indisponível em «1,25 salário mínimo nacional vezes doze meses» também num caso em que o «agregado familiar» era constituído apenas pelo insolvente, mas este tinha despesas no valor mensal de € 450,00 com a renda de casa e tinha que pagar uma pensão de alimentos ao filho no valor mensal de € 200,00;
- no já referido Acórdão proferido por este mesmo Relator, em 20/01/2022, no proc. nº1338/21.9T8VNF-B.G1, confirmou-se a decisão do Tribunal da 1ªinstância que fixou o rendimento indisponível «num salário mínimo nacional, vezes 12 meses» igualmente num caso em que só a insolvente integrava o seu «agregado familiar» e suportava uma renda de casa no valor mensal de € 400,00;
- e no Ac. desta RG de 16/12/2021, proferido no proc nº2300/21.7T8GMR.G1[50], fixou o rendimento indisponível em «1,2 salário mínimo nacional, vezes 12 meses», sendo que o agregado familiar era composto por 2 pessoas (a insolvente e um filho) e a insolvente suportava uma despesa mensal de € 450,00 com a renda de casa.
Reforça-se: constitui uma obrigação do devedor (no caso o Insolvente) adaptar o seu nível de vida ao padrão social condizente com a situação em que se colocou, e ajustar as despesas ao nível de vida, em geral e na medida do possível, à nova realidade que enfrentam, pelo que fixar o valor do rendimento indisponível em € 1.100,00 (equivalente a 1,44 do salário mínimo nacional) tal como reclamado no presente recurso, para além de não se mostrar concretamente necessário ao «sustento minimamente digno», também constituiria um prejuízo não legalmente justificado para os credores. Como se explica, de forma muito assertiva, no já citado Ac. da RG de 04/04/2019[51], “É evidente que é difícil viver com dignidade com este salário, mas o princípio da igualdade, face aos trabalhadores que o recebem, porquanto o mesmo é considerado o mínimo necessário para a defesa da dignidade humana, levam-nos a aceitar este critério-base, tendo em conta que nos encontramos no âmbito de um instituto que tem também em vista a salvaguarda dos direitos dos credores que a limitação ao rendimento disponível comprime e, por fim, que a situação, observadas que sejam as competentes obrigações pelo devedor, termina com a sua libertação de todas as dívidas que assumira, recaindo sobre os credores o inerente custo”.
Por conseguinte, verificando-se que o Insolvente/Requerente não tem despesas especiais e relevantes que extravasem as despesas inerentes à subsistência de qualquer pessoa e uma vez que o montante que o salário mínimo nacional tem em vista salvaguardar, por definição, as despesas mínimas inerentes à dignidade de pessoa comum em Portugal, o que no caso concreto se mostra assegurado, impõe concluir-se que não existe fundamento legal para se considerar que «o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar» implica a fixação de valor superior ao de um salário mínimo nacional, acrescido de 1/5. Logo, para este efeito, são improcedentes as conclusões 11ª a 14ª e 17ª.
Por último, o Insolvente/Recorrente invocou que «da sequência da referida decisão o aqui Recorrente solicitou junto de uma instituição que explora um lar de idosos na cidade ..., sendo informado o valor mínimo da prestação mensal são € 1200,00, pelo alojamento permanente e alimentação, e que atenta a lista de espera não existem garantias de disponibilidade de quartos para os próximos meses; e a totalidade da sua pensão mensal não é suficiente para o pagamento de despesas fixas de alojamento e alimentação no Lar para Idosos» (cfr. conclusões 15ª a 17ª).
Como já se explicou aquando da apreciação da questão sobre a admissibilidade da junção de documento com as alegações de recurso, com este conjunto de alegações o Insolvente/Recorrente está a introduzir, no âmbito do recurso, uma questão que não constitui fundamento da decisão recorrida: na realidade, «o valor que teria que despender no pagamento de um lar de idosos» e/ou «a disponibilidade do mesmo para o receber» não foi matéria alegada para efeitos  apreciação e fixação do quantum do rendimento indisponível, mais se frisando que nem sequer se trata de uma despesa que existe. Portanto, esta «argumentação» carece inteiramente de relevância para a apreciação da presente questão.  
Consequentemente e sem necessidade de outras considerações, perante tudo o que ficou exposto, a resposta à presente questão, que no âmbito do recurso incumbe a este Tribunal ad quem apreciar, é necessariamente no sentido de que o rendimento indisponível equivalente a «um salário mínimo nacional, acrescido de 1/5», constitui o valor necessário ao sustento minimamente digno do Insolvente/Recorrente (embora com base numa fundamentação diversa da que integra a decisão recorrida) e, por via disso, deverá julgar-se totalmente improcedente este fundamento do recurso.

4.4. Do Mérito do Recurso

Perante as respostas alcançadas quanto às questões que se impunham decidir, deverá julgar-se totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pela Ré/Recorrente, devendo ser mantida a decisão recorrida quanto à decisão de direito (embora passe a integrar as alterações da matéria de facto supra determinada).
*
4.5. Da Responsabilidade quanto a Custas

Improcedendo o recurso, porque ficou vencida, deverá o Insolvente/Recorrente suportar as respectivas custas - art. 527º/1 e 2 do C.P.Civil de 2013.
* *
5. DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação:
a) Em deliberar pela inadmissibilidade da junção aos autos, na presente fase de recurso, do documento apresentados pelo Insolvente/Recorrente com as suas alegações;
b) E em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pelo Insolvente/Recorrente e, em consequência, confirmar e manter a sentença recorrida quanto à decisão de direito (sem prejuízo de passar a integrar as alterações determinadas quanto à matéria de facto).
Custas do recurso de apelação pelo Insolvente/Recorrente.
* * *
Guimarães, 04 de Abril de 2024.
(O presente acórdão é assinado electronicamente)
 
Relator - Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício;
1ªAdjunta - Maria João Marques Pinto de Matos.
2ª Adjunta - Maria Gorete Roxo Pinto Baldaia de Morais.


[1]António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 6ªedição actualizada, Almedina, p. 139.
[2]Ac. STJ de 07/07/2016, Juiz Conselheiro Gonçalves da Rocha, proc. nº156/12.0TTCSC.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[3]Juíza Conselheira Catarina Serra, proc. nº22946/11.0T2SNT-A.L1.S2, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj
[4]Juiz Desembargador Teles Pereira, proc. nº 628/13.9TBGRD.C1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrc.
[5]In Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª edição, p. 533 e 534.
[6]Cfr. Antunes Varela, em anotação ao Ac. STJ de 09.12.1980, RLJ, Ano 115º, pág. 89.
[7]Para mais desenvolvimentos remete-se para o Ac. desta RG 05/05/2022, por nós relatado, proc. nº37/11.4TBBGC-J.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrc.
[8]Cfr. Abrantes Geraldes, in obra referida, p. 196 e 197.
[9]Juiz Conselheiro Lopes do Rego, proc. nº233/09.4TBVNC.G1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[10]Juíza Conselheira Ana Luísa Geraldes, proc. nº824/11.3TTLRS.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[11]No mesmo sentido, entre outros, Acs. STJ de 31/05/2016, Juiz Conselheiro Garcia Calejo, proc. nº1572/12.2TBABT.E1.S1, de 19/02/2015, Juiz Conselheiro Tomé Gomes, proc. nº299/05.6TBMGD.P2.S1, e de 28/04/2016, Juiz Conselheiro Abrantes Geraldes, proc. nº1006/12.2TBPRD.P1.S1, disponíveis em http://www.dgsi.pt/jstj.
[12]Juiz Conselheiro Pinto de Almeida, proc. nº29/12.6TBFAF.G1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[13]In obra referida, p. 200.
[14]Juiz Conselheiro Bernardo Domingos, proc. nº756/14.3TBPTM.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[15]Ver também o mais recente Ac. STJ 02/02/2022, Juiz Conselheiro Fernando Augusto Samões, proc. nº1786/17.9T8PVZ.P1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[16]Juíza Conselheira Ana Resende, proc. nº8344/17.6T8STB.E1-A.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[17]In obra citada, p. 331, 332 e 338.
[18]Ac. STJ de 22/10/2015, Juiz Conselheiro Tomé Gomes, proc. nº212/06.3TBSBG.C2.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[19]Juíza Conselheira Rosa Tching, proc. nº588/12.3TBPVL.G2.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[20]Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, 1993, p. 384.
[21]Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ªEdição, Revista e Actualizada, p. 435 a 436.
[22]P.J.Pimenta, in Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, p. 325.
[23]Neste sentido, o Ac. RG de 13/07/2021, Juíza Desembargadora Raquel Baptista Tavares, proc. nº3625/20.4T8VCT.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
[24]In Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Volume I, p. 609.
[25]Juiz Conselheiro Santos Cabral, proc. nº07P4822, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.   
[26]In Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Comunicações sobre o anteprojecto de código, Ministério da Justiça, Gabinete de Justiça e Planeamento, Coimbra Editora, p. 89.
[27]Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante, in Revista “Themis ”, Edição Especial, Novo Direito da Insolvência, 2005, p. 167.
[28]In Direito da Insolvência, 3ªedição, Almedina, 2011, p. 322.
[29]Juiz Conselheiro Fonseca Ramos, proc. nº152/10.1TBBRG-E.G1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[30]Juíza Desembargadora Maria João Matos (aqui 1ªadjunta), proc. nº4576/20.8T8GME.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp.
[31]Cfr. Ac. da RG de 04/04/2019, Juíza Desembargadora Sandra Melo, proc. nº3074/13.0TJVNF-G.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
[32]Juiz Desembargador António Barroca Penha, proc. nº4074/17.7T8GMR.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
[33]Juiz Conselheiro Fonseca Ramos, proc. nº3562/14.1T8GMR.G1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[34]Juiz Conselheiro Fonseca Ramos, proc. nº3562/14.1T8GMR.G1.S1.
[35]Juíza Conselheira Maria João Vaz Tomé, proc. nº2194/19.2T8ACB-B.C1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[36]Juiz Desembargador António Barroca Penha, proc. nº4074/17.7T8GMR.G1.
[37]Juíza Desembargadora Rosália Cunha, proc. nº2142/12.0TBBGR.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
[38]Juiz Desembargador José Carlos Pereira Duarte, proc. nº2148/22.1T8GMR.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
[39]In DR, série I-A, de 02/07/2002.
[40]Juiz Conselheiro Fonseca Ramos, proc. nº3562/14.1T8GMR.G1.S1.
[41]Juíza Desembargadora Sandra Melo, proc. nº3074/13.0TJVNF-G.G1.
[42]Juiz Desembargador Paulo Reis, proc. nº1167/20.7T8VNF-C.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
[43]Juiz Desembargador António Barroca Penha, proc. nº4074/17.7T8GMR.G1.
[44]Juiz Desembargador Vítor Amaral, proc. nº3339/12.9TJLSB-D.L1-6, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl.
[45]No mesmo sentido, o citado Ac. da RG de 04/04/2019, Juíza Desembargadora Sandra Melo, proc. nº3074/13.0TJVNF-G.G1.
[46]Juiz Desembargador António Barroca Penha, proc. nº4074/17.7T8GMR.G1.
[47]Juiz Desembargador José Carlos Pereira Duarte, proc. nº2148/22.1T8GMR.G1.
[48]Juiz Desembargador Barateiro Martins, proc. nº131/11.1T2AVR-D.C1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrc.
[49]Juiz Desembargador José Carlos Pereira Duarte (1ºjuiz adjunto na presente decisão), proc. nº2148/22.1T8GMR.G1.
[50]Não publicado mas no qual o 1ºJuiz Adjunto foi o agora Juiz Relator da presente decisão.
[51]Juíza Desembargadora Sandra Melo, proc. nº3074/13.0TJVNF-G.G1.