CRIME DE FURTO
AUSÊNCIA DO DIREITO DE QUEIXA
PROSSEGUIMENTO DO PROCESSO
NULIDADE INSANÁVEL
Sumário

I - A omissão do exercício do direito de queixa previsto no art. 113 do CP representa a falta de um pressuposto processual que impede a prolação de decisão sobre o mérito da causa, impondo-se o arquivamento.
II - O prosseguimento dos autos sem que o direito de queixa tivesse sido eficazmente exercido nos autos, pelo respetivo titular, constitui nulidade insanável nos termos do disposto no art. 119 al b) do CPP, por violação do disposto no art. 48 do CPP, que impõe como restrições entre outras a do art. 49 do mesmo diploma.
III - A declaração desta nulidade implica a invalidade de todo o processado, incluindo da acusação e da sentença condenatória.

(Sumário da responsabilidade da Relatora)

Texto Integral

Processo n.º 1079/20.4PBAVR.P1

1. Relatório
No processo comum com julgamento perante Tribunal singular com o nº 1079/20.4PBAVR do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo Local Criminal de Aveiro - Juiz 2, foi depositada em 03/07/2023, sentença com o seguinte dispositivo:
«A) Quanto à responsabilidade criminal:
a) absolvo as arguidas AA, BB e CC do crime de furto simples de que foram acusadas (ocorrido na “loja A...”), previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal;
b) julgo as arguidas AA, BB e CC coautoras materiais, na forma consumada, de um crime de furto simples (ocorrido na “loja B...”), previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal;
c) condeno a arguida AA na pena de 110 (cento e dez) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros);
d) condeno a arguida BB na pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão e suspendo a execução dessa pena por igual período, acompanhada de regime de prova, a definir em plano de reinserção social a elaborar pela DGRSP, que conterá os objetivos de ressocialização a atingir pela arguida, as atividades que este deve desenvolver, o respetivo faseamento e as medidas de apoio e vigilância (cf. o n.º 2 do artigo 50.º, os n.ºs 1 e 2 do artigo 53.º e o n.º 1 do artigo 54.º do Código Penal);
e) condeno a arguida CC na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão e suspendo a execução dessa pena por igual período, acompanhada de regime de prova, a definir em plano de reinserção social a elaborar pela DGRSP, que conterá os objetivos de ressocialização a atingir pela arguida, as atividades que este deve desenvolver, o respetivo faseamento e as medidas de apoio e vigilância (cf. o n.º 2 do artigo 50.º, os n.ºs 1 e 2 do artigo 53.º e o n.º 1 do artigo 54.º do Código Penal);
f) condeno as arguidas no pagamento das custas criminais, fixando a taxa de justiça devida por cada uma delas em 2 UC (cf. os n.ºs 1 e 3 do artigo 513.º do Código de Processo Penal e o n.º 9 do artigo 8.º do Regulamento das Custas Processuais).
B) Quanto à responsabilidade civil:
a) absolvo as demandadas AA, BB e CC do pedido de indemnização deduzido pela demandante A... S.A.;
b) sem custas, atento o valor do pedido de indemnização civil e a isenção prevista na alínea n) do n.º 1 do artigo 4.º do Regulamento das Custas Processuais.»
Inconformada com a decisão condenatória veio a arguida AA interpor o presente recurso.
As conclusões do recurso têm o seguinte teor:
«1. Tratando-se de crime semipúblico, é condição do procedimento criminal a tempestiva manifestação de vontade de instauração do procedimento criminal, por parte do ofendido, definindo-se este como o “titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminaçaÞo” – artigo 113.º, n.º 1 do CP.
2. Uma lojista (funcionária da sociedade comercial “C..., S.A.”, empresa proprietária dos bens subtraídos) não pode ser considerada ofendida para efeitos do crime de furto previsto e punido no artigo 203.º, n.º 1 do CP.
3. Mesmo que, aquando da apresentação da queixa, tal funcionária se identifique perante os OPC enquanto representante legal e gerente da sociedade comercial “C..., S.A.”, teria sempre de juntar aos autos a prova documental de tal representação.
4. Em fase de inquérito, a sociedade comercial “C..., S.A.”, não exerceu o direito de queixa quanto ao crime em questão, nem está em tempo de o fazer.
5. Não é todo e qualquer interesse sobre a coisa, objeto de direito, que legitimará processualmente a manifestação de vontade de prossecução do procedimento penal, mas apenas e só quando exista um interesse específico, que a lei define como interesse “especialmente” protegido com a incriminação.
6. Ofendido não é o titular de um qualquer interesse; apenas o será o titular de interesses especialmente protegidos pela norma incriminadora, numa perspetiva teleológica.
7. Não se inclui, nem pode incluir, nesta última categoria o caso da funcionária que não é proprietária ou possuidora do património da sua entidade patronal, a sociedade comercial “C..., S.A.”.
8. Na relação jurídica que mantém com o empregador, a funcionária atua como mera detentora, não lhe sendo atribuído qualquer direito de uso ou de fruição da coisa em razão das funções que exerce ao abrigo de um contrato de trabalho, nem a lei lhe confere quaisquer meios de defesa da posse, ao contrário do que acontece com outros direitos de cariz obrigacional, como a locação, o comodato ou o depositário.
9. A atribuição, in casu, de legitimidade a uma funcionária para considerar-se titular de um direito de queixa, traduz uma ostensiva e incompreensível desconsideração pela falta de manifestação de vontade em ver instaurado procedimento criminal, por parte da sociedade comercial proprietária dos bens subtraídos, a “C..., S.A.”, enquanto verdadeira ofendida e titular do interesse protegido pela norma incriminadora do artigo 203.º, n.º 1, do CP.
10. Com efeito, desconhece-se o teor do instrumento jurídico que, a existir, em concreto, confira a titularidade da gerência a DD, ou a representação legal da sociedade “C..., S.A. para, em representação da sociedade “C..., S.A., prestar declarações por factos relacionados com a apropriação de bens que pertencem a esta última e apresentar queixa do alegado furto ocorrido.
11. Não tendo sido apresentada queixa pelo crime de furto pelo legítimo titular, não podia o MP, como fez, deduzir acusação pública, como não podia o Tribunal receber tal acusação, tampouco conhecer da sua existência, devendo ter procedido à sua rejeição.
12. Não existe, sequer, junta aos autos, a ratificação da queixa apresentada.
13. A declaração, junta aos autos, a fls. 15 e 57 do Volume I, não tem e não podia ter tido, a virtualidade de sanar a falta de um pressuposto processual que teria de estar verificado quando o MP deduziu a acusação pública, pois que, não se encontra sequer assinada por vivalma.
14. O que equivale à falta de queixa e implica a nulidade do processo (cfr. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal. III. 2ª ed, pág.34), nulidade, esta, insanável e, consequentemente, invocável por qualquer interessado e do conhecimento oficioso até ao trânsito da decisão final - art. 119º alínea b) do Código de Processo Penal.
15. A decisão recorrida violou, nesta parte, o disposto no art.º 113.º, n.º 1, do CP, pelo que, o Ministério Público não tinha legitimidade para, sem queixa apresentada pelo ofendido, deduzir acusação.
16. Tal situação traduz a nulidade insanável prevista na alínea b) do art.119.º do CPP, pois ocorre a “falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48.º (...)” do CPP, que inclui os casos de (i)legitimidade do MP.
17. Não havendo queixa por parte do ofendido, falece um pressuposto insuprível do procedimento, pelo que, deve ser declarada a nulidade do procedimento criminal, ou simplesmente a absolvição da instância, com as legais consequências.
18. Sem prescindir, a Arguida considera que foram incorretamente julgados os seguintes factos, que a douta sentença recorrida julgou provados e que, ao invés, deveriam ter sido e devem ser declarados como não provados: “1. No dia 23.10.2020, pelas 18h47m, as arguidas AA, BB e CC, seguindo um plano previamente delineado entre todas, deslocaram-se ao estabelecimento comercial denominado “Loja B...”, propriedade da firma “C..., Lda.”, sita na Rua ..., ..., em Aveiro. 2. De seguida, as arguidas dirigiram-se aos expositores de carteiras, de onde retiraram: 2.1 3 (três) carteiras de homem no valor unitário de €49,90 (quarenta e nove euros e noventa cêntimos);2.2 2 (duas) carteiras de homem no valor unitário de €44,90 (quarenta e quatro euros e noventa cêntimos); 4 (quatro) carteiras de mulher no valor unitário de €94,90 (noventa e quatro euros e noventa cêntimos); 1 (uma) carteira de mulher no valor unitário de €89,90 (oitenta e nove euros e noventa cêntimos); 2.5. 1 (uma) carteira de mulher no valor de €39,90 (trinta e nove euros e noventa cêntimos); 2.6 1 (uma) carteira de mulher no valor de €74,90 (setenta e quatro euros e noventa cêntimos); 2.7 1 (uma) carteira de mulher no valor de €79,90 (setenta e nove euros e noventa cêntimos); 2.8 1 (uma) carteira de mulher no valor de €29,90 (vinte e nove euros e noventa cêntimos); 2.9 1 (uma) carteira de mulher no valor de €32,90 (trinta e dois euros e noventa cêntimos); 2.10 1 (uma) carteira de mulher no valor de €36,90 (trinta em seis euros e noventa cêntimos); 2.11 1 (uma) carteira de mulher no valor de €39,90 (trinta e nove euros e noventa cêntimos); 2.12 1 (uma) carteira de mulher no valor de €95,90 (noventa e cinco euros e noventa cêntimos); 2.13 2 (dois) cintos de homem no valor unitário de €44,90 (quarenta e quatro euros e noventa cêntimos). 3. Após, as arguidas esconderam esses bens no interior das bolsas que traziam consigo e debaixo da roupa que traziam vestida. 4. Seguidamente, na posse dos referidos bens, as arguidas abandonaram aquele estabelecimento comercial, sem procederem ao pagamento do respetivo preço, fazendo seus aqueles bens. 5. Ao agirem da forma descrita em 1. A 4., as arguidas fizeram-no deliberada, livre, conscientemente e em comunhão de esforços e intentos, por forma a fazerem seus os referidos bens, bem sabendo que os mesmos não lhes pertenciam e que atuavam contra a vontade da proprietária, e bem sabendo ser tal conduta proibida e punida por lei.”
19. Por outro lado, do auto de reconhecimento pessoal, consta que das três pessoas no alinhamento, DD reconheceu a Arguida AA, cfr. fls. 295.
20. Contudo, em sede de audiência de discussão e julgamento, quando a testemunha DD foi confrontada com a identificação das Arguidas, não conseguiu, esclarecer se a pessoa que, à data da prática dos factos se encontrava na Loja B... era a Arguida AA que estava presente em audiência de discussão e julgamento, através de videoconferência, conforme resulta da análise das transcrições para as quais se remete muito respeitosamente (Ficheiro Áudio n.º 20230627100403_4216784_2870475, do CD do qual consta a gravação da audiência de julgamento, com início às 00:00:49 e seu termo aos 00:01:51).
21. Acontece que, “havendo divergências entre o que consta do auto de reconhecimento e aquilo que por acaso possa vir a ser dito em audiência sobre a identificaçaÞo dos arguidos, terá que ser valorado pelo tribunal em conjugaçaÞo com a demais prova produzida e no uso do preceituado no art.º 127 do CPP – a livre apreciaçaÞo da prova”, neste sentido Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 07-12-2004, processo 25/03-1, disponível em www.dgsi.pt.
22. Pelo que, o Tribunal a quo não apreciou devidamente todas as provas carreadas para os autos e errou na apreciação que fez das mesmas, por violação das regras da experiência comum, já que deveria ter valorado o facto de a Arguida não ter sido reconhecida em audiência de discussão e julgamento.
23. Daí resulta o vício de erro de julgamento de facto, constante do nº 2 do artigo 410º do CPP, conforme foi decidido pelo Acórdão do STJ de 97-09-18, Proc. nº 48230-A.
24. A prova produzida nos presentes autos impunha ao tribunal a quo uma decisão oposta à que resulta da sentença recorrida, considerando a Arguida absolvida do crime de que vem acusada.
25. Nos termos do disposto na al. a) do artigo 431.º do CPP, pode e deve a Relação modificar a decisão recorrida e julgar não provados os factos referenciados na antecedente conclusão nº 18.
26. Sendo essa, como se espera, a decisão desta Relação, resulta claríssimo que a Arguida AA tem de ser absolvida, por não se verificar nenhum dos elementos constitutivos do crime previsto e punido pelo artigo 203º, n.º 1 do CP que lhe foi imputado e, pelo qual, veio a ser condenada.
27. Acresce ainda que, nos termos do n.º 2 do artigo 1.º do Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de setembro, deveria ter sido aplicado à Arguida AA o Regime Penal Aplicável a Jovens Delinquentes, pois que a Recorrente tinha 19 anos à data da prática dos factos.
28. Pelo que, no âmbito da al. a) do n.º 2 do artigo 6.º do Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de setembro deveria ter sido aplicada, enquanto medida de correção, a admoestação, independentemente da verificação dos requisitos da lei geral (artigo 2.º do Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de setembro), observando-se, antes, os requisitos constantes do Decreto- Lei nº 401/82, de 23 de setembro.»
Conclui pedindo que na procedência do presente recurso seja revogada a sentença recorrida e a recorrente absolvida, por falta de queixa por parte do ofendido, um pressuposto insuprível do procedimento criminal.
Se assim não se entender deverá ser alterada a matéria de facto e considerar-se que não ficaram provados os factos referentes à subtração e subsequente apropriação dos bens subtraídos constantes da acusação.
E se ainda assim não se entender deverá ser aplicada a medida de admoestação prevista na al. b) do n.º 2 do artigo 6.º do Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de setembro.
O recurso foi admitido por despacho proferido nos autos em 13/11/2023.
Em primeira instância o MP apresentou resposta ao recurso alegando que:
«… os presentes autos tiveram origem no auto de denúncia de fls. 4, no qual DD, a qual, assumindo-se como gerente e representante legal da empresa lesada “C..., Lda.”, para a qual apresentou, segundo aquele auto, procuração, apresentou denúncia, por no dia 23-10-2020, cerca das 18h47, na “Loja B...”, sita em Aveiro, “três senhoras de etnia cigana entraram naquele estabelecimento, dirigindo-se aos expositores, remexendo em várias carteiras de senhora /homem, que ali se encontravam expostas para venda, acabando por furtar vários artigos, no valor de 1256.90 euros.”.
Ora, estando em causa a prática de um crime de furto, e como já acima referido, o titular do bem jurídico protegido pela incriminação é a sociedade comercial “C..., S.A.”, sociedade comercial com o NUIPC ..., com sede na Rua ..., ... ..., Vila Nova de Gaia.
Não obstante a funcionária DD do estabelecimento comercial “Loja B...” tenha apresentado denúncia pela prática do crime de furto (auto de denúncia de fls. 4), e ter sido junta aos autos uma “Declaração” emitida pela sociedade “C..., Lda.” a conceder poderes para aquela apresentar “participação do roubo ocorrido no dia 23/10/2020 na LOJA B..., sita na Rua ..., ..., ... Aveiro, e solicitar o respetivo Auto da ocorrência” (cfr. fls. 15 e 57), certo é que a referida declaração não se encontra assinada, nem foi alvo de ratificação posterior.
Pelo que se conclui que apenas ao representante legal da sociedade “C..., Lda.”, que não era a denunciante DD, caberia a legitimidade para apresentar queixa pelos factos em apreço, nos termos do n.º 3 do referido artigo 49.º do C.P.P.
E assim, o Ministério Público carecia de legitimidade para desencadear o respetivo procedimento criminal, não podendo a acusação ter sido recebida pelo Tribunal a quo, o que constitui uma nulidade insanável, por força da alínea b) do artigo 119.º do C.P.P.»
Conclui que deve ser julgada procedente a invocada nulidade insanável decorrente da falta de legitimidade do Ministério Público para promover o processo penal, nos termos do artigo 49 do CPP.
Mais considera o MP na sua resposta que:
«Ainda que se concluísse pela não aplicação à Recorrente do Regime Penal Aplicável a Jovens Delinquentes, pelo menos a ponderação, ou seja, a averiguação se estavam ou não preenchidos os requisitos materiais para aplicação da atenuação especial decorrente daquele Regime, deveria ter sido feito na sentença recorrida, o que não se verificou, sendo, assim, a mesma nula nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º do C.P.P.»
Quanto ao erro de julgamento o MP entende que o mesmo não ocorreu não merecendo a sentença recorrida qualquer reparo ou censura, nesta parte.
Nesta Relação o Sr. Procurador-geral-adjunto concorda com a argumentação da resposta do MP em primeira instância que considera sustentada legal e jurisprudencialmente.
Emite parecer no sentido do provimento do presente recurso.
Cumprido o disposto no art. 417 nº2 do CPP não foi apresentada resposta ao recurso.
2. Fundamentação
A- Circunstâncias com interesse para a decisão
Pelo seu inegável interesse para a decisão a proferir passamos de seguida a transcrever a sentença recorrida no que respeita à decisão sobre a matéria de facto e respetiva motivação da convicção do Tribunal:
« A) Factos provados
Com interesse para a decisão da causa, provaram-se os seguintes factos constantes da acusação:
1. No dia 23.10.2020, pelas 18h47m, as arguidas AA, BB e CC, seguindo um plano previamente delineado entre todas, deslocaram-se ao estabelecimento comercial denominado “Loja B...”, propriedade da firma “C..., Lda.”, sita na Rua ..., ..., em Aveiro.
2. De seguida, as arguidas dirigiram-se aos expositores de carteiras, de onde retiraram:
2.1 3 (três) carteiras de homem no valor unitário de €49,90 (quarenta e nove euros e noventa cêntimos);
2.2 2 (duas) carteiras de homem no valor unitário de €44,90 (quarenta e quatro euros e noventa cêntimos);
2.3 4 (quatro) carteiras de mulher no valor unitário de €94,90 (noventa e quatro euros e noventa cêntimos);
2.4 1 (uma) carteira de mulher no valor unitário de €89,90 (oitenta e nove euros e noventa cêntimos);
2.5 1 (uma) carteira de mulher no valor de €39,90 (trinta e nove euros e noventa cêntimos);
2.6 1 (uma) carteira de mulher no valor de €74,90 (setenta e quatro euros e noventa cêntimos);
2.7 1 (uma) carteira de mulher no valor de €79,90 (setenta e nove euros e noventa cêntimos);
2.8 1 (uma) carteira de mulher no valor de €29,90 (vinte e nove euros e noventa cêntimos);
2.9 1 (uma) carteira de mulher no valor de €32,90 (trinta e dois euros e noventa cêntimos);
2.10 1 (uma) carteira de mulher no valor de €36,90 (trinta e seis euros e noventa cêntimos);
2.11 1 (uma) carteira de mulher no valor de €39,90 (trinta e nove euros e noventa cêntimos);
2.12 1 (uma) carteira de mulher no valor de €95,90 (noventa e cinco euros e noventa cêntimos);
2.13 2 (dois) cintos de homem no valor unitário de €44,90 (quarenta e quatro euros e noventa cêntimos).
3. Após, as arguidas esconderam esses bens no interior das bolsas que traziam consigo e debaixo da roupa que traziam vestida.
4. Seguidamente, na posse dos referidos bens, as arguidas abandonaram aquele estabelecimento comercial, sem procederem ao pagamento do respetivo preço, fazendo seus aqueles bens.
5. Ao agirem da forma descrita em 1. a 4., as arguidas fizeram-no deliberada, livre, conscientemente e em comunhão de esforços e intentos, por forma a fazerem seus os referidos bens, bem sabendo que os mesmos não lhes pertenciam e que atuavam contra a vontade da proprietária, e bem sabendo ser tal conduta proibida e punida por lei.
Mais se provou que:
6. A arguida AA tem 22 anos de idade; é solteira; tem o 2.º ano de escolaridade; é doméstica, não tem quaisquer fontes de rendimento; está recluída 28.01.2023, em prisão preventiva, no âmbito do processo n.º 2/23.9GCPSR, do Juízo de Competência Genérica de Ponte de Sor; não tem imóveis nem veículos registados em seu nome; tem 1 filho (de 5 anos de idade); antes de estar recluída residia com a irmã (doméstica) e o seu filho numa casa camarária.
7. A arguida BB é solteira; tem 33 anos de idade; tem o 4.º ano de escolaridade; é doméstica, recebe o RSI, no valor de €418,00 por mês; tem 4 filhos (de 17, 14, 6 e 2 anos de idade); não tem imóveis nem veículos próprios; reside em casa arrendada; mora com a mãe (doméstica, recebe RSI, no montante mensal de € 180,00) e os quatro filhos; gasta todos os seus rendimentos no sustento do agregado familiar, que inclui renda de €300,00, e as despesas de água, luz, gás e alimentação.
8. A arguida CC tem 26 anos de idade; é solteira; não tem imóveis registados em seu nome; tem registados em seu nome os veículos de matrícula ..-..-RG (ligeiro de mercadorias de marca Mercedes, modelo ...), ..-GT-.. (ligeiro de passageiros de marca Opel, modelo ..., penhorado) e ..-..-QD (ligeiro de passageiros de marca Mercedes, modelo ...; não tem rendimentos do trabalho conhecidos nem aufere prestações sociais.
9. Nada consta do certificado do registo criminal da arguida AA.
10. A arguida BB já foi condenada:
10.1 por sentença proferida em 31.03.2017 e transitada em julgado em 02.05.2017, no processo n.º 1061/14.0PCMTS, pela prática em 05.10.2014 de um crime de furto simples, na pena de 70 dias de multa à taxa diária de €5,00 (pena extinta em 26.04.2018);
10.2 por sentença proferida em 19.06.2017 e transitada em julgado em 04.09.2017, no processo n.º 60/16.2PAGDM, pela prática em 11.02.2016 de um crime de violência depois da subtração, na pena de 1 ano e 4 meses de prisão suspensa com deveres (pena extinta em 04.01.2019);
10.3 por sentença proferida em 12.01.2021 e transitada em julgado em 26.04.2021, no processo n.º 1016/20.6PEGDM, pela prática em 23.12.2020 de um crime de furto simples, na pena de 3 meses de prisão suspensa com regime de prova (pena extinta em 26.04.2022);
10.4 por sentença proferida em 23.01.2023 e transitada em julgado em 10.02.2023, no processo n.º 486/20.7PAESP, pela prática em 01.07.2020 de um crime de furto simples, na pena de 300 dias de multa à taxa diária de €5,00;
10.5 por sentença proferida em 11.05.2021 e transitada em julgado em 11.06.2021, no processo n.º 96/19.1PBMAI, pela prática em 02.01.2019 de um crime de furto simples, na pena de 80 dias de multa à taxa diária de €6,00 (pena extinta em 25.02.2022);
10.6 por sentença proferida em 19.05.2022 e transitada em julgado em 20.06.2022, no processo n.º 569/20.3PWPRT, pela prática em 16.06.2020 de um crime de furto simples, na pena de 1 ano de prisão suspensa com regime de prova.
11. A arguida CC já foi condenada:
11.1 por sentença proferida em 31.01.2017 e transitada em julgado em 02.03.2017, no processo n.º 33/17.8PAVNF, pela prática em 15.01.2017 de um crime de furto simples, na pena de 80 dias de multa à taxa diária de €5,00 (pena extinta em 17.07.2018);
11.2 por sentença proferida em 23.10.2017 e transitada em julgado em 19.01.2018, no processo n.º 785/16.2GDGDM, pela prática em 05.12.2016 de um crime de furto simples, na pena de 80 dias de multa à taxa diária de €5,00 (pena extinta em 20.03.2018);
11.3 por sentença proferida em 02.02.2017 e transitada em julgado em 06.03.2017, no processo n.º 72/17.9GBVNG, pela prática em 17.01.2017 de um crime de furto simples, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de €5,00 (pena extinta em 09.01.2019);
11.4 por sentença proferida em 17.06.2019 e transitada em julgado em 08.01.2020, no processo n.º 119/18.1PIVNG, pela prática em 04.02.2018 de um crime de furto simples, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão suspensa;
11.5 por sentença proferida em 24.01.2020 e transitada em julgado em 24.02.2020, no processo n.º 24/20.1PAVFR, pela prática em 23.01.2020 de um crime de furto qualificado, na pena de 1 ano e 3 meses de prisão suspensa com deveres;
11.6 por sentença proferida em 20.09.2021 e transitada em julgado em 20.10.2021, no processo n.º 1105/21.0PAVNG, pela prática em 05.09.2021 de um crime de furto simples, na pena de 1 ano de prisão substituída por prestação de 365 horas de trabalho a favor da comunidade.
B) Factos não provados

Com interesse para a decisão da causa não se provaram quaisquer factos para além dos supra descritos, não resultando apurado que os factos que ocorreram tenham tido outras motivações, outro circunstancialismo ou outras consequências que não o que se deu como provado, designadamente não se tendo apurado que:
12. No dia 17.11.2020, pelas 16h25m, as arguidas AA, BB e CC, seguindo um plano previamente delineado entre todas, deslocaram-se ao estabelecimento comercial denominado “A...”, sito na Avenida ..., em Aveiro.
13. De seguida, as arguidas dirigiram-se aos diversos expositores daquele estabelecimento, de onde retiraram os produtos alimentares e não alimentares discriminados no talão junto a fls. 38 do processo n.º 1183/20.9PBAVR (incorporado nos autos), aqui dados por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais, no valor de €338,07 (trezentos e trinta e oito euros e sete cêntimos), que colocaram num carro de compras.
14. De seguida, na posse dos referidos produtos, as arguidas dirigiram-se à caixa n.º 16, onde passaram os referidos produtos, mas abandonaram aquele estabelecimento comercial, sem proceder ao pagamento do respetivo preço, fazendo-os seus.
15. Ao agirem da forma descrita em 12. a 14., as arguidas fizeram-no deliberada, livre, conscientemente e em comunhão de esforços e intentos, por forma a fazerem seus os referidos bens, bem sabendo que os mesmos não lhes pertenciam e que atuavam contra a vontade da sua proprietária, e bem sabendo ser tal conduta proibida e punida por lei.
16. Em consequência da conduta das arguidas, a demandante A... S.A. teve um prejuízo de €338,07.
C) Motivação da decisão sobre os factos
A arguida CC não compareceu à audiência de julgamento, tendo faltado injustificadamente, e as arguidas BB e AA exerceram o direito de não prestarem declarações sobre os factos que lhes são imputados na acusação, previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 61.º do Código de Processo Penal.
Assim sendo, o Tribunal formou a sua convicção sobre os factos recorrendo aos restantes meios de prova produzidos (documentos e depoimentos das testemunhas ouvidas na audiência de julgamento), nos termos que se passam a explicar.
Os factos n.ºs 1 a 4 resultaram provados da conjugação do auto de notícia de fls. 4 (na medida em que dá conta que, no dia 24.10.2020, a testemunha DD denunciou o furto de bens referido nesses factos, ocorrido no dia anterior), do depoimento da testemunha DD (que mostrou ter conhecimento dos factos por estar a exercer a função de empregada de loja no local onde ocorreu o furto, e reconheceu a arguida BB como sendo uma das autoras do furto), do inventário de bens furtados de fls. 14 (que a dita testemunha asseverou ter sido feito logo após o furto e, consequentemente, ser fiável), do DVD junto a fls. 59 (contendo a filmagem captada pelo sistema de videovigilância do estabelecimento aquando da prática do furto), do relatório de visionamento e tratamento de imagens de fls. 62 a 86 (contendo os fotogramas mais relevantes da dita filmagem, alguns deles aumentados, permitindo uma melhor visualização do sucedido), do auto de reconhecimento pessoal de fls. 292 e 293 (no qual a testemunha DD reconheceu a arguida CC como sendo uma das autoras do furto), do auto de reconhecimento pessoal de fls. 295 (no qual a testemunha DD reconheceu a arguida AA como sendo uma das autoras do furto) e da informação da PSP de fls. 99 a 101 (na qual, por comparação das imagens acima referidas com fotografias que essa autoridade policial tem em arquivo, foram identificadas positivamente as três arguidas).
Importa salientar que a testemunha DD (empregada da loja B... em Aveiro à data dos factos) depôs de forma espontânea, clara, lógica e coerente, e não tem qualquer interesse não desfecho da lide.
Apesar do tempo que já decorreu desde os factos (cerca de dois anos e oito meses), a testemunha DD foi confrontada com os fotogramas e o filme acima referidos e reconheceu a arguida BB na audiência de julgamento como sendo a mulher vestida de t-shirt azul e o logótipo “...” visível nos fotogramas de fls. 64 a 77, 82 e 83 e no correspondente filme. Acresce que a compleição física dessa mulher, visível nesses meios de prova documentais, é compatível com a compleição física atual da arguida BB (que o Tribunal observou na audiência de julgamento) e com as fotografias dessa arguida constantes da informação da PSP de fls. 99 a 101 (que também a identificou, através das fotografias que tinha em arquivo, como sendo a mulher vestida de t-shirt azul e o logótipo “...” visível nas ditas imagens recolhidas na loja B...).
A testemunha DD situou os factos no tempo e no espaço de forma coincidente com o que consta da acusação e justificando a memória que tem da hora a que aconteceram, por terem ocorrido no final do dia, perto do encerramento da loja (18.00 horas), tendo fechado a mesma logo de seguida.
Para além de a testemunha DD reconhecer na audiência de julgamento a arguida BB como uma das autoras do furto, confirmou que reconheceu presencialmente as outras duas arguidas na fase de inquérito (cf. os dois autos já acima referidos), conseguindo ainda agora caracterizá-las, no que respeita ao tom da pele, à idade aproximada e ao aspeto físico, e recordando-se da mulher que figura nos fotogramas de fls. 84, apesar de não saber do nome dela, e acrescentando que reconheceu no inquérito a “mulher de vestido preto” (trata-se da arguida CC – cf. os fotogramas de fls. 84, a informação da PSP de fls. 99 a 101 e o auto de reconhecimento de fls. 292 e 293).
A descrição que a testemunha DD fez dos acontecimentos é integralmente compatível com o que se observa no vídeo e nos fotogramas acima referidos, sendo por isso fiável.
Apesar de a testemunha DD não ter visto as arguidas esconderem artigos da loja, viu que pegaram em artigos – e a apropriação resulta provada do vídeo e dos fotogramas acima referidos, nos quais se vêm todas as arguidas a retirar artigos dos expositores, a coloca-los numa carteira (no caso da arguida BB) e a ocultá-los sob a roupa (no caso das outras duas arguidas). Acresce que a testemunha DD explicou: que se apercebeu de que faltavam artigos num móvel de exposição logo após as arguidas terem saído da loja, porque ficaram os “buracos” no local e no final do dia tinha que verificar os expositores e repor o que foi vendido; que os objetos não podiam ter sido furtados por outros clientes, porque se encontravam na loja quando estas aí entraram; que verificou os artigos que faltavam logo após a saída das arguidas; que eram carteiras de senhora e homem, e cintos, de valor total superior a €1.000,00; que fez o inventário dos artigos furtados logo após o fruto; que esse inventário corresponde à lista de fls. 14 (com a qual foi confrontada); que ligou para os seus superiores, tendo-lhe estes dito para fazer o inventário e apresentar queixa, o que fez no dia seguinte (sendo isso coincidente com o auto de denúncia de fls. 4); que a loja possui sistema de videovigilância; e que o filme e os fotogramas com os quais foi confrontada na audiência de julgamento são da loja e da data dos factos.
Quanto ao facto n.º 5, sendo o mesmo atinente ao processo psíquico, nas suas vertentes cognitiva e volitiva, que se insere no domínio da vida interior do indivíduo, não sendo admitido pelas arguidas dificilmente pode ser percecionado pelas testemunhas ou por outros elementos de prova, sendo, por isso, insuscetível de apreensão direta. Temos, por isso, de nos socorrer da análise dos factos materiais, designadamente dos comportamentos em apreciação e de outros factos indiciários para, em face dos padrões de normalidade dos seres humanos e das regras da experiência comum, abstraindo de qualquer patologia que possa afetar a forma de pensar, de sentir ou de querer, interpretá-los e extrair conclusões sobre esse processo interior, de cognição e volição.
No caso concreto, a prova desse facto extrai-se da conjugação da atuação objetiva das arguidas (cf. os factos n.ºs 1 a 4) com as regras da experiência comum sobre a ilicitude das suas condutas. Os comportamentos descritos nesses factos provados, e tratando-se as arguidas de pessoas adultas e sem afetação das respetivas capacidades intelectuais e emocionais, evidenciam que as mesmas agiram de forma livre, voluntária e consciente, e de modo concertado, querendo apropriar-se de bens que sabiam não lhes pertencer, e sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. Essa conclusão é reforçada pela circunstância de a arguida BB já ter sido condenada antes dos factos ora em julgamento (entre o mais) pela prática de um crime de furto, e pela circunstância de a arguida CC já ter sido condenada antes dos factos ora em julgamento pela prática de quatro crimes de furto simples e um crime de furto qualificado.
A situação socioeconómica das arguidas descrita nos factos n.ºs 6 a 8 resultou provada da conjugação das declarações que as mesmas prestaram na audiência de julgamento (que foram espontâneas e coerentes) com as informações do ISS de fls. 388, 389 e 402, e as informações do registo automóvel e do registo predial de fls. 429 a 438.
Os antecedentes criminais das arguidas descritos nos factos provados n.ºs 9 a 11 resultaram provados dos certificados do registo criminal de fls. 387 (AA), 391 a 400 (CC) e 404 a 414 (BB).
Relativamente aos factos não provados n.ºs 12 a 14, cumpre dizer, relativamente a todos eles, que resultam da circunstância de o Tribunal não ter ficado convencido com segurança da sua ocorrência, por não terem sido confessados pelas arguidas nem encontrarem suporte probatório suficiente no depoimento das testemunhas ouvidas ou nos documentos juntos aos autos.
Da conjugação do depoimento das testemunhas EE (diretor do hipermercado onde ocorreu o furto), FF (operadora de caixa desse hipermercado, à data dos factos) e GG (responsável desse hipermercado, à data dos factos), do aditamento n.º 6 de fls. 91, do auto de notícia de fls. 14 do processo n.º 1183/20.9PBAVR (incorporado nos autos), do talão das compras junto a fls. 38 do processo n.º 1183/20.9PBAVR (incorporado nos autos), do DVD junto a fls. 85 do processo n.º 1183/20.9PBAVR (incorporado nos autos) e do relatório de visionamento e tratamento de imagens de fls. 49 a 57 do processo n.º 1183/20.9PBAVR (incorporado nos autos) resulta apurado que ocorreu o furto descrito nos factos n.ºs 12 a 14 e que o mesmo foi perpetrado por três mulheres, apresentando as mesmas algumas semelhanças com as arguidas.
Porém, a única testemunha que contactou com as autoras desse furto foi FF e a mesma não identificou as arguidas nem no inquérito (cf. o aditamento n.º 7 de fls. 92, no qual houve um reconhecimento fotográfico, mas sem identificação da pessoa fotografada, e os autos de reconhecimento pessoal de fls. 294 e 296, nos quais não foram reconhecidas as arguidas AA e CC) nem na audiência de julgamento (a testemunha referiu parecer-lhe que a arguida BB é uma das mulheres intervenientes no furto, mas não tem a certeza disso).
Face ao exposto, não se produziu prova de terem sido as arguidas as autoras do furto em questão.
O facto n.º 15 não se provou porque pressupunha a prova dos factos n.ºs 12 a 14, que não se alcançou.
O facto n.º 16 não se provou porque resultou do depoimento unânime das testemunhas EE, FF e GG que a quantia de €338,07 foi integralmente paga à demandante pela testemunha FF, através do desconto da mesma no seu salário.»
Em 24/09/2022 o MP deduziu acusação com intervenção do Tribunal Singular, nos termos do disposto no art. 16 nº3 do CPP, pela prática em coautoria material, na forma consumada e, em concurso real de dois crimes de furto simples p.p. pelos artigos 26 e 203 nº1 do CP.
B – Fundamentação de direito
É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como são os vícios previstos no art. 410 nº2 do CPP.
No caso concreto a recorrente suscita a questão da nulidade insanável resultante da falta de legitimidade do MP para deduzir a ação penal, impugna a matéria de facto e suscita questões sobre a medida da pena pretendendo que lhe fosse aplicada a medida de admoestação ao abrigo do regime especial para jovens.
Cumpre apreciar!
1ª questão: da falta de legitimidade do MP para prosseguir o procedimento criminal.
Desde logo nos termos do disposto no art. 48 do CPP: «O Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos artigos 49.º a 52.º»
No âmbito dos presentes autos, foi imputada à recorrente a prática em coautoria de dois crimes de furto, p.p. pelo artigo 203 do C.P., cujo bem jurídico protegido é o património/propriedade, onde se inclui também a proteção da fruição das utilidades da coisa, ou seja, a mera posse desde que titulada.
Sobre este tema veja-se José de Faria Costa em Comentário Conimbricense do Código Penal a propósito do art. 203 do CP.
Ora, nos termos do disposto no art. 203 nº3 o procedimento criminal depende de queixa. Assim sendo entramos no âmbito de aplicação do art. 49 do CPP que estabelece:
«1 - Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo.
2 - Para o efeito do número anterior, considera-se feita ao Ministério Público a queixa dirigida a qualquer outra entidade que tenha a obrigação legal de a transmitir àquele.
3 - A queixa pode ser apresentada pelo titular do direito respectivo, por mandatário judicial ou por mandatário munido de poderes especiais.
4 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável aos casos em que o procedimento criminal depender da participação de qualquer autoridade.»
No caso em apreciação os objetos furtados, que conduziram à condenação da recorrente, eram propriedade da empresa “C..., Lda” que explorava a “Loja B...” sita em Aveiro.
Acontece que na participação inicial e na base de dados do Citius, a testemunha de acusação DD, aparece como sendo a legal representante da pessoa coletiva ofendida, tendo sido ela quem denunciou os factos e declarou desejar procedimento criminal.
Porém, sendo a titular do direito de propriedade sobre os bens subtraídos uma sociedade, cumpriria aos seus legais representantes indicados no pacto social, formular a queixa crime ou passar procuração para esse efeito.
No entanto, dos autos - (fls.57) - apenas consta uma intitulada declaração, com o seguinte teor:
«Para os devidos efeitos, a empresa C..., S.A., pessoa coletiva nº..., com sede na Rua ..., ..., ..., Vila Nova de Gaia, declara autorizar DD, portadora do contribuinte nº... a fazer participação do roubo ocorrido no dia 23/10/2020 na LOJA B... sita na Rua ..., ..., Aveiro e solicitar o respectivo Auto da ocorrência.
..., 23 de Outubro de 2020»
Tal declaração não revela a identidade de quem a emite, não se mostrando sequer assinada, e nos autos nunca foi indagado quem são os legais representantes da sociedade ofendida, nem estes ratificaram a queixa ou se constituíram assistentes.
Por sua vez, a referida testemunha de acusação DD em audiência de julgamento esclareceu ser funcionária da empresa C..., Lda, e que se encontrava sozinha na loja quando os factos ocorreram.
Afirmou que quando se apercebeu da falta dos objetos fechou a loja e ligou aos patrões a pedir indicações, os quais lhe disseram para fazer inventário e apresentar queixa. Mais esclareceu que nem sequer tinha acesso às imagens do sistema de videovigilância, as quais lhe foram remetidas pelos patrões.
Do exposto, evidencia-se no processo que o titular ou titulares do direito de queixa, não expressaram nos autos de forma válida a sua vontade de instaurar procedimento criminal e a queixa deduzida pela sua funcionária não tendo sido ratificada, é ineficaz e não confere ao MP legitimidade para promover a ação penal e deduzir acusação contra as arguidas.
Porém, o processo prosseguiu para a fase de julgamento no pressuposto errado de que a queixa havia sido apresentada pela legal representante da proprietária dos bens, não se tendo diligenciado pela respetiva ratificação.
No caso em análise, a omissão do exercício do direito de queixa previsto no art. 113 do CP representa a falta de um pressuposto processual que impede a prolação de decisão sobre o mérito da causa, impondo-se o arquivamento.
Neste sentido veja-se Comentário judiciário do Código de Processo Penal, Vol I, §18 das anotações ao art. 48.
O certo é que o prosseguimento dos autos no caso em apreço sem que o direito de queixa tivesse sido eficazmente exercido nos autos pelo respetivo titular, constitui nulidade insanável nos termos do disposto no art. 119 al b) do CPP, por violação do disposto no art. 48 também do CPP, que impõe como restrições entre outras a do art. 49 do mesmo diploma.
Em face do exposto, temos de concluir que carecendo o Ministério Público de legitimidade para perseguir criminalmente a recorrente quanto ao crime de furto simples dos objetos propriedade de C..., Lda , conclui-se que foi cometida nulidade insanável, que pode ser invocada e conhecida oficiosamente, a todo o tempo, até ao trânsito em julgado da decisão final, a qual importa declarar.
No sentido por nós defendido de que: «A atividade desenvolvida pelo Ministério Público quando não dispõe de legitimidade para o exercício da ação penal, nos termos do artigo 48.º do Código Penal, equivale à falta de promoção do processo quando lhe assiste a legitimidade.» veja-se o Ac. da Relação do Porto de 27/01/2016, relatado por HH e o Ac. da Relação de Coimbra, de 19/02/2014, relatado por II, onde se consignou na respetiva fundamentação que: «Numa primeira análise do preceito seríamos tentados a interpretá-lo no sentido de que apenas contempla situações omissivas do despacho acusatório por parte do Ministério Público quando é este que tem legitimidade para o efeito. Mas melhor analisado esse conteúdo normativo que se refere a falta de promoção nos termos do artigo 48º verificamos que igualmente cabe na letra do preceito a situação em que o Ministério Público acusa sem legitimidade, ou seja fora da previsão do artigo 48º que remete por sua vez para os artigos 49º a 52º, definindo o artigo 49º a legitimidade em crime dependente de queixa».
A declaração desta nulidade implica a invalidade de todo o processado, incluindo da acusação e da sentença condenatória respeitante ao furto dos objetos na Loja B..., com a consequente absolvição da arguida recorrente.
Embora o recurso tenha sido interposto apenas pela arguida AA, nos termos previstos no art. 402 nº2 al. a) do CPP, atenta a acusação em comparticipação, importa estender as consequências do recurso às restantes arguidas BB e CC.
Conclui-se de todo o exposto que assiste razão à recorrente e que importa declarar a nulidade de todo o processado e absolver as arguidas atenta a nulidade da acusação contra elas deduzida que não deveria ter conduzido ao conhecimento do mérito em julgamento.
Face à conclusão a que se chega quanto à primeira das questões suscitadas pela recorrente fica prejudicado o conhecimento das demais questões de que importaria conhecer.
3. Decisão:
Tudo visto e ponderado, com base nos argumentos de facto e de direito aduzidos, acordam os Juízes na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto, em julgar o recurso interposto pela arguida AA provido, e declaram a nulidade da acusação deduzida nos autos contra a recorrente e contra as demais arguidas, por falta de legitimidade do MP para o exercício da ação penal, e em consequência, revogam a sentença recorrida e absolvem as arguidas AA, BB e CC, da acusação de furto simples praticado em coautoria no dia 23.10.2020, pelas 18h47m, no estabelecimento comercial denominado “Loja B...”, propriedade da firma “C..., Lda.”, sita na Rua ..., ..., em Aveiro.
Sem tributação.

Porto, 6/3/2024
Paula Cristina Guerreiro
Lígia Figueiredo
José Quaresma