ASSISTENTE
OFENDIDO
MENOR
REPRESENTANTE LEGAL
PENAS ACESSÓRIAS
RECURSO
LEGITIMIDADE
Sumário

I – A circunstância de a ofendida ser representante legal da sua filha menor, igualmente ofendida, não determina que o reconhecimento de tal qualidade automaticamente lhe confira elasticidade ao estatuto de assistente que lhe foi atribuído, o que vale por dizer que a posição processual de assistente que aquela assume, por si e a título pessoal, não se estende à representação daquela.
II – Assim sendo, a referida assistente não dispõe de legitimidade e interesse em agir para recorrer, em representação de sua filha menor, do acórdão, na parte em que, sendo esta a ofendida, se absolve o arguido do imputado crime de violência doméstica.
III – A assistente tem legitimidade e interesse em pugnar pela modificação da decisão relativa às penas acessórias que são desfavoráveis às suas expectativas.

Texto Integral

Processo n.º 383/20.6GAVNG.P1

Relatora: Maria dos Prazeres Silva
1.º Adjunto: Jorge Langweg
2.ª Adjunta: Elsa Paixão

ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I. RELATÓRIO
1.
Nos presentes autos de processo comum, com intervenção do tribunal coletivo, em que é arguido AA, por Acórdão de 12-10-2023 (Referência: 452594143) foi decidido:
Absolver o arguido da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, d), e 2, al. a), do Código Penal (vítima BB);
Condenar o arguido, como autor material, de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, al. b), e 2, al. a), do Código Penal, na pena 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão (ofendida CC);
Condenar o arguido, como autor material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, d), e 2, al. a), do Código Penal, na pena 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão (ofendido DD);
● Em cúmulo jurídico das penas suprarreferidas,
Condenar o arguido na pena única de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa por igual período, sujeita a regime de prova, com acompanhamento clínico especializado na área da toxicodependência, nos termos dos artigos 50.º, n.º 1, 2 e 5 e 53.º, n.º 4, do Código Penal;
Aplicar ao arguido a pena acessória de proibição de contacto com os ofendidos CC e DD, nos termos do n.º 4, do artigo 152.º, do Código Penal.
● Condenar o arguido a pagar ao ofendido DD o valor de €800,00 (oitocentos euros), a título de danos não patrimoniais, nos termos do disposto no artigo 82.º-A do CPP e no artigo 16.º, n.º 2, da Lei n.º 130/2015, de 04-09.
● Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pela assistente CC e, em consequência, condenar o demandado AA no pagamento à demandante, a título de danos não patrimoniais, no montante global de 2.000,00€ (dois mil euros), acrescido de juros de mora, contados desde a data da decisão até efetivo pagamento.

*
2.
Inconformada com o acórdão, a assistente CC interpôs o presente recurso, que rematou com as seguintes

CONCLUSÕES:
1. Vem o presente recurso da circunstância da Assistente não se conformar com o douto acórdão proferido nos autos (ref.ª Citius 452594143) nos seguintes segmentos: a) quanto à omissão de pronúncia do Tribunal “a quo” no que respeita à condenação ou absolvição do arguido pela prática de 1 (um) crime de violência de doméstica perpetrado contra a vítima CC, conforme vinha pronunciado; b) quanto à absolvição do Arguido da prática de 1 (um) crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, al. d) agravada pelo n.º 2, al. a) do Código Penal perpetrado contra a vítima BB, pelo qual vinha pronunciado; c) Quanto à pena acessória aplicada e d) quanto ao regime coativo do arguido, na medida em que o Tribunal “a quo” descurou o direito das vítimas à sua segurança e proteção.
2. Assim, pretende a Recorrente a análise do douto acórdão quanto à matéria de facto e de direito à luz do disposto nos arts.º 67.º-A, 152.º, n.º 1, als. b) e c), n.º 2, al. a), ns.º 4 e 5 do C.Penal, dos artsº 127.º, 200.º, n.º 1, al. d), 204.º, n.º 1, al. c) do C.P.P., do artigo 15.º do Estatuto da Vítima, do artigo 31.º a 35.º da Lei n.º 112/2009 de 16.09.
3. A Recorrente apresenta como fundamentos do recurso: a) a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia (art.º 379.º, n.º 1, al. c) do C.P.Penal; b) vícios do texto da decisão recorrida, a que alude o artigo 410.º n.º 2, als. b) e c) do C.P.Penal; c) erro de julgamento; d) análise crítica da motivação e dos elementos probatórios e respetivo enquadramento jurídico-penal e) a insuficiência da pena acessória e do regime coativo do arguido até trânsito em julgado da decisão.
4. O douto acórdão recorrido está ferido de nulidade, nos termos previstos no art.º 379.º, n.º 1, al. c) do C.P.Penal, porquanto, o arguido foi pronunciado pela prática, como autor material e em concurso real, de 4 (quatro) crimes de violência doméstica, p.p. pelo art.º 152.º, n.º 1, als. b), c) e d) agravados pelo n.º 2, al. a) do C.Penal. Porém, o Tribunal “a quo” apenas proferiu decisão relativamente a três crimes.
5. Relativamente a 1 (um) crime de violência doméstica, p. p. pelo art.º 152.º, n.º 1, als. b) e c) agravado pelo n.º 2, al. a) do C.Penal, que era imputado ao Arguido contra a vítima CC (processo apenso), o douto acórdão é totalmente omisso, não tendo o Dign.º Tribunal, relativamente a tal crime proferido decisão de condenação ou de absolvição, pelo que, o douto acórdão está ferido de nulidade, por omissão de pronúncia, nos termos conjugados dos artigos 374.º, n.º 3, al. b) e 379.º, n.º 1, al. c) ambos do C.P.Penal.
6. Não obstante, entende a Assistente que o arguido deverá também ser condenado pela prática do aludido crime, estribando-se tal condenação na matéria de facto dada como provada nos pontos 16. a 46. do douto acórdão (cfr. acusação dos autos apensos), que se mostra suficiente e não merece qualquer reparo; porquanto, os comportamentos ali descritos, reiterados e graves, assumidos de forma livre, deliberada e consciente pelo arguido contra a Assistente, preenchem os elementos objetivos e subjetivos do crime de violência doméstica.
7. De salientar que o arguido praticou estes novos factos ilícitos, com dolo direto e sabendo que a sua conduta era punida e punível por lei, em momento posterior à apresentação da primeira queixa-crime por parte da Assistente, configurando uma renovação do seu desígnio de ofender a Assistente, com agressões verbais e físicas, provocando-lhe medo, humilhação e infligindo-lhe maus-tratos físicos e psíquicos, numa situação inconciliável com a dignidade pessoal e a liberdade que lhe são devidas.
8. Por mero dever de patrocínio, desde já se afasta a possibilidade do enquadramento jurídico-penal destes factos à luz de um crime continuado de violência doméstica para justificar uma hipotética atenuação especial da pena a aplicar, desde logo, porque nos termos do art.º 30.º, n.º 3 do C.Penal, o crime continuado não abrange os crimes praticados contra os bens eminentemente pessoais, como é o caso nos autos, tratando-se de crimes de violência doméstica, que se configuram como crimes contra as pessoas e em que o bem jurídico protegido é a saúde da pessoa, que pode ser afetada por toda uma multiplicidade de comportamentos que atinja a dignidade da pessoa visada.
9. Por outro lado, é indubitável que as condutas do arguido refletidas nos factos provados são demonstrativas de uma pluralidade de resoluções criminosas, sendo certo que, o arguido não agiu a coberto de uma única resolução criminosa, mas sim de duas ações distintas, pelo que a conduta do arguido integra a prática de dois crimes de violência doméstica contra a Assistente CC.
10. Em conclusão, face à prova produzida em audiência de julgamento que permitiu dar como assente a factualidade dada como provada, deve a pronúncia ser julgada provada e procedente e ser condenado o arguido pela prática, em autoria material e concurso real, de 2 (dois) crimes de violência doméstica, p.p. pelo art.º 152.º, n.º 1, als. b) e c) agravado pelo n.º 2, al. a) do C.Penal, perpetrados contra a Assistente CC, e na aplicação das penas acessórias previstas ns.º 4 e 5 do mesmo dispositivo legal.
11. E, para efeitos de aplicação da pena, deve ter-se em consideração o modo de execução dos factos que, “in casu”, o arguido levava a cabo na presença dos filhos da Assistente e, com maior gravidade, na presença da filha menor BB, a persistência revelada pelas condutas perpetradas pelo arguido, a gravidade das consequências sofridas pelos ofendidos e, ainda, a falta de consciencialização e de interiorização da gravidade de tais condutas por parte do arguido.
12. O douto acórdão padece ainda de nulidade por omissão de pronúncia (art.º 379.º, n.º 1, al. c) do C.P.Penal, ex vi art.º 374.º, n.º 2 e n.º 3, al. b) do C.P.Penal), porquanto, não se pronunciou quanto à condenação do arguido na pena acessória prevista no n.º 5 do art.º 152.º do C.Penal, conforme requerido na acusação (cfr. autos apensos).
13. O Tribunal “a quo” não decidiu quanto à fiscalização do cumprimento da pena acessória de proibição de contactos por parte do arguido com as vítimas por meios técnicos de controlo à distância (152.º, n.º 5 do C.Penal) e quanto à obrigação de frequência por parte do arguido de programas específicos de prevenção da violência doméstica (nem sequer apresentou qualquer fundamentação para afastar o decretamento de tais medidas), afigurando-se que deveria ter sido objeto de apreciação por parte do tribunal e, bem assim, que se decidisse conforme requerido, em ordem a assegurar com afinco os fins das penas (prevenção geral e especial).
14. Acresce que, o douto acórdão enferma do vício enunciado no art.º 410.º, n.º 2, al. b) e do C. P. Penal, na medida em que, o único facto julgado como não provado entra em manifesta contradição com a factualidade julgada como provada constante dos pontos 11., 24., 36., 37., 39., 40., 41., 43., 44. , 45. e 46.
15. Ficando provado que a menor BB, filha do arguido e da Assistente, presenciava muitos dos factos ilícitos praticados pelo arguido de forma livre e consciente, tais como: conflitos, discussões agressivas com recurso a vocábulos insultuosos, quebra de objetos em casa, batidas de portas com brutalidade, o que a deixava assustada e angustiada, causando-lhe medo e choro, bem como, a condução da menor e da Assistente a um bairro onde o arguido foi comprar produtos estupefacientes, a colocação da mesma em situações de perigo, a pressão exercida sobre a filha pelos inúmeros telefonemas que realizava para o telemóvel da mesma, para quem insistentemente ligava até conseguir ser atendido pela Assistente, a agressividade utilizada no diálogo que travava ao telefone com a menor BB, proferindo em tom sério, alterado e insultuoso e as ameaças de agressão contra a mesma, vivendo esta com receio que o arguido se desloque à sua residência e lhe bata, o que determinou que a menor ficasse intimidada e manifestasse vontade de não voltar a falar com o arguido, recusando contactos com o progenitor, tais factos provados, que traduzem comportamentos inequívocos do arguido tendentes a ofender psicologicamente a vítima BB, prejudicando o seu bem estar psíquico e a sua saúde mental, por estar exposta a uma vivência de medo constante, tristeza e instabilidade emocional, são intrinsecamente incompatíveis com o facto dado como não provado.
16. A factualidade provada, quando conjugada com as regras da experiência comum, permite admitir com certeza e razoabilidade, que tais comportamentos do arguido são consentâneos e adequados com a prática de maus-tratos psicológicos infligidos à vítima, pelo que, atingem objetivamente a sua dignidade pessoal, donde, entram em manifesta contradição com o facto dado como não provado.
17. Conexamente, a decisão de absolvição do arguido quanto à prática de um crime de violência doméstica (p.p. pelo art.º 152.º, n.º 1, al. d) agravada pelo n.º 2, al. a) do C. Penal), quanto à vítima BB, mostra-se, igualmente, contraditória com a fundamentação exarada pelo Tribunal “a quo” no douto acórdão.
18. Ressalta contradição insanável entre a decisão de absolvição e os fundamentos exarados no texto do douto acórdão, nos excertos que se transcrevem: «Resulta da factualidade dada como provada que, durante 13 anos de união de facto, o arguido insultava regularmente a sua companheira CC, na presença dos seus filhos menores (…) partia móveis e portas da habitação (…) ameaçava que a matava, no interior da habitação.»; «Resultou provado que o arguido agiu de forma acima descrita ciente de que as palavras que proferiu, as agressões físicas que infligiu às vítimas CC e DD, algumas das quais presenciadas pela vítima BB, e os comportamentos que adotava eram de molde a intimidar as vítimas fazendo-as temer pela sua integridade física, o que conseguiu, já que vivem com medo que o arguido se desloque à residência onde vivem e lhes bata ou até mesmo, (…), atente contra as suas vidas. O arguido agiu bem sabendo que atuava no interior da residência das vítimas e que com isso lhes coartava as possibilidades de defesa, o que lhe foi indiferente por querer maltratá-las física e psicologicamente»; «em seu desabono, a ausência de assunção da sua conduta delituosa, o que o permite concluir que o arguido não revelou indicadores de consciência da sua atitude nem de interiorização da gravidade das suas condutas».
19. Face a esta fundamentação, conjugada com as regras da experiência comum, donde se retira expressamente que o Tribunal acolheu a posição de vítima da menor BB, por presenciar as condutas ilícitas do arguido, admitindo que os comportamentos do arguido são adequados a impactar o medo de revitimização, seria lógico e apropriado que o Dign.º Tribunal proferisse uma decisão de condenação do arguido pela prática de um crime de violência quanto à vítima BB.
20. Resulta, ainda, do texto do douto acórdão manifesto erro notório na apreciação da prova quanto ao facto julgado como não provado (art.º 410.º, n.º 2, al. c) do C.P.P.), relativamente ao qual, resulta no douto acórdão: «as testemunhas não relataram factos praticados pelo arguido na pessoa da filha BB (nem se encontram alegados nas acusações), razão pela qual foi levado à factualidade não provada.»
21. Contudo, admitindo o Tribunal no douto acórdão que formou a sua convicção de acordo com a sua livre convicção e com as regras da experiência, tendo valorado os depoimentos dos ofendidos CC e DD, “os quais relataram os factos que vivenciaram de forma coerente e sincera e, por isso, convincente para o tribunal” no que concerne aos factos provados sob os números 11., 24., 36., 37., 39., 40., 41., 43., 44. e 46., os quais reproduzem os factos constantes das acusações, era expectável que o Tribunal, com base na apreciação crítica e correta de tais depoimentos, julgasse também como provado que o arguido quis e conseguiu maltratar psicologicamente a sua filha BB, atingindo com isso a sua dignidade pessoal, uma vez que, dos mesmos se retiram condutas ilícitas praticadas pelo arguido, cujos factos, pela sua gravidade e reiteração são apropriados a provocar maus-tratos psíquicos à vítima BB, na medida em que o arguido não se coibiu de a expor a uma vivência de agressividade, de angústia e de medo.
22. Considerando a prova produzida em audiência de julgamento, entende a Assistente que o Dign.º Tribunal “a quo” não fez uma correta apreciação dos elementos probatórios nem do enquadramento jurídico subsumível ao caso, no que respeita à sua decisão de desresponsabilização do arguido como autor dos factos que integram o ilícito criminal de violência doméstica, pelo qual vinha acusado/pronunciado quanto à vítima BB, incorrendo, por isso, no erro de julgamento da matéria de facto e de direito (art.º 412.º, n.ºs 3 e 4 do C. P. Penal).
23. Dando cumprimento ao disposto no art.º 412.º, n.º 3 e 4 do C.P. Penal:
● Concretos pontos de facto que a Recorrente considera incorretamente julgados: Considera a Recorrente que o facto elencado na factualidade dada como não provada sob o ponto 1. foi incorretamente valorado e julgado, na medida em que, o Tribunal “a quo” não extrapolou do mesmo o juízo de censura penal como se impunha.
Deverá, pois, ser alterada a decisão proferida, de modo que, passe a constar do elenco dos factos provados que: o arguido quis e conseguiu maltratar psicologicamente a sua filha BB, atingindo com isso a sua dignidade pessoal.
● Provas concretas que impõem decisão diversa da recorrida:
No entender da Recorrente, da análise cuidada e crítica da prova testemunhal (que se mostra transcrita em sede de motivação, cumprindo a exigência do 412.º, n.º 4 C.P.Penal) de: DD, EE FF GG HH II, quando conjugada com as declarações da Assistente CC e com as regras da experiência comum, resulta claro que o facto dado como não provado no douto acórdão foi, na realidade, praticado pelo Arguido do modo como vem descrito na acusação/pronúncia, autorizando estas provas que se conclua que o arguido quis e conseguiu maltratar psicologicamente a sua filha BB, atingindo, com isso, a sua dignidade pessoal e que, com isso praticou sobre a mesma um crime de violência doméstica, mostrando-se, assim, prejudicada a decisão de absolvição.
● Provas que devem ser renovadas:
Entende a Recorrente que devem ser reapreciadas as seguintes provas:
- Declarações da Assistente
- Prova testemunhal de: DD, EE, FF GG, HH e II.
A renovação destas prova, em ordem a uma correta valoração e tomada de decisão em conformidade, permitirá concluir que o arguido ignorava a presença e apreensão da filha menor BB nos conflitos que despoletava, dirigia-lhe linguagem hostil, insultuosa e ameaçadora, atormentava-a, humilhava-a, causava-lhe medo, pânico, choro, comportamentos reiterados e duradouros que condicionaram a sua liberdade pessoal, obrigando-a a procurar refúgio no quarto, junto do irmão ou da mãe e que afetaram a sua vivência diária, o seu bem estar psíquico e saúde mental, que se veio a traduzir em notória alteração comportamental da BB, tal como resulta dos depoimentos indicados, com conhecimento pessoal, que mereceram credibilidade.
- Análise crítica da motivação e dos elementos probatórios contante do douto acórdão e subsunção dos factos ao direito:
24. A motivação apresentada pelo Tribunal quanto ao facto único julgado como não provado carece de verdadeira fundamentação e colide frontalmente, quer com a prova direta produzida em audiência de julgamento (declarações da Assistente e das testemunhas), quer com a prova indireta que era possível extrair do caso quanto à prática dos factos e os efeitos provocados pelas condutas do arguido na vítima BB, por recurso às regras da experiência comum, de sentido de lógica e/ou por apelo a um raciocínio com base em presunções que permitem alcançar a veracidade dos factos, o modo como os mesmos ocorreram e os efeitos que produziram na esfera jurídica do titular dos interesses legalmente protegidos.
25. Importa referir que os factos julgados como provados sob os pontos 11., 24., 36., 37., 39., 40., 41., 43., 44., 45 e 46. reproduzem a factualidade que se encontrava alegada nas acusações/pronúncia, referindo-se expressamente a condutas praticadas pelo arguido que visaram direta ou indiretamente (pelos efeitos provocados) a menor BB; o que afasta o argumento apresentado pelo Tribunal de que as acusações não relatavam factos praticados pelo arguido na pessoa da filha BB.
Analisando a prova:
26. A narrativa da Assistente, no seu todo carregada de emoção e sofrimento da vivência conjugal por si vivida, marcada pela violência física e psicológica e pela agressividade que o arguido exerceu contra a sua pessoa e contra os filhos, uma vez que integravam o agregado familiar e presenciavam tais comportamentos, permitiu, com seriedade, conhecer também as condutas perpetradas pelo Arguido diretamente contra a filha.
27. Reportou a Assistente, que o arguido tratava mal a filha: conduziu-a no carro juntamente com a Assistente até um bairro onde foi comprar droga; chegou a provocar atos perigosos durante uma viagem de carro (puxou o travão de mão em movimento e deixou a menina assustada; insultava a menor, ameaçava-a com agressões físicas, pressionava-a e perturbava-a com obstinados telefonemas a qualquer hora do dia e da noite, humilhava-a, diminuía-a com expressões depreciativas: “tu não vales nada, gosto mais da minha cadela do que tu; a minha a cadela é mais importante que tu”.
28. O discurso da Assistente permitiu ainda avaliar o efeito nocivo que as condutas do Arguido tiveram na menor BB, as suas reações (choro, refugiava-se no quarto; procurava proteção junto do irmão e da mãe) e medos que a levaram a ter de ser seguida em psicologia, o que descreveu com um realismo e dinâmica que só quem vivencia e acompanha o seu desenvolvimento psíquico imprime ao relato que deles produz.
29. A Assistente e o filho DD indicaram que na sequência dos atos praticados pelo arguido a menor BB alterou completamente o seu comportamento, passando a mostrar tristeza, temor e pânico, isolando-se, recusando convívios, diálogos e contactos quer com o pai, quer com homens, e tais declarações revelaram-se totalmente coerentes e corroboradas pelas testemunhas EE, FF, GG, HH e II, que em audiência de julgamento, de forma séria, isenta e objetiva e com conhecimento pessoal, merecedoras de credibilidade, asseveraram as reações e as alterações comportamentais da BB.
30. O que resultou dos factos provados (alcançados com base na prova diretamente produzida e conciliada com um raciocínio lógico e com as regras da experiência do que, normalmente, se verifica em contextos de violência doméstica) é que, o clima de agressividade, de ameaças e de terror vivenciado pela pequena BB, constantemente confrontada com as atitudes violentas do pai, a partir objetos em casa, a dar murros nas portas, a provocar constantes discussões em tom sério e ameaçador, aos gritos, proferindo expressões injuriosas mesmo contra a menor, criando-lhe momentos de tensão e pavor, desconsiderando-a, amedrontando-a com ameaças corpóreas, causando-lhe angústia e perturbação e confrontando-a com situações perigosas, afetou profundamente o seu desenvolvimento psíquico, o seu bem-estar e prejudicou fortemente a sua estabilidade e a sua saúde mental, o que lhe provocou medos e notória alteração comportamental com particular incidência nas suas relações pessoais e afetivas.
31. Ora, o tipo legal de violência doméstica visa, também proteger a integridade psicológica, a saúde psíquica e mental da vítima, tomada no seu sentido mais amplo e ambiente propício a um salutar e digno modo de vida, o que, in casu, resultou prejudicado para a pequena BB, que se viu a viver no ambiente de medo, refugiando-se e procurando proteção, recusando contactos, proximidade ou diálogo, por toda a multiplicidade de atitudes agressivas praticadas pelo Arguido, presenciadas e/ou apreendidas pela sua filha menor, muitas das quais à mesma dirigidas.
32. Todo este contexto de violência vivido pela pequena BB, colocou-a numa situação de permanente sofrimento, essencialmente emocional e psicológico, incompatível com a sua dignidade, liberdade pessoal e bem-estar que deve imperar no seio familiar e parental e que não acontecia no caso dos autos.
33. Acresce que, a prova direta e indireta permite também afirmar que o Arguido maltratava psicologicamente a sua filha BB quando assumia uma posição dominante sobre a mesma, justificada sob a capa da “autoridade parental”, condicionando a sua personalidade, menosprezando-a e humilhando-a (p. ex. quando lhe dizia “eu sou teu pai, tem que ser como eu quero e não é como tu queres”; “não vales nada, és pior do que a minha cadela”), tornando-a ainda mais vulnerável, reconduzindo-a a uma vivência de medo, de pânico, de subjugação e de crueldade, com afetação da sua saúde mental e psíquica, refletida na sua alteração comportamental.
34. As condutas do arguido revelaram uma especial censurabilidade quando avaliada no contexto da relação de parentalidade e de subjugação da menor em relação ao progenitor, que conhecia perfeitamente a relação de proteção-subordinação entre os mesmos existente, pelo exercício do domínio emocional de facto deste sobre a sua filha, consubstanciando um consciente infligir de maus tratos psíquicos a esta, cujas condutas perniciosas e ilícitas foram praticadas com dolo direto, pois, não ignorava o Arguido que tais comportamentos, adotados de forma livre, voluntária, consciente e reiterada colocavam a sua filha/vítima em situação de permanente sofrimento.
35. Ao atuar do modo descrito, o arguido quis maltratar psiquicamente a sua filha BB, pessoa particularmente indefesa, desprezando a sua saúde e integridade psíquica e moral, provocando-lhe medo, perturbando-a, coartando a sua liberdade pessoal, ofendendo-a na sua dignidade pessoal, o que conseguiu, bem sabendo que tais comportamentos eram idóneos a provocar na mesma, como provocaram, marcas psicológicas que afetaram e comprometem o seu saudável desenvolvimento e equilíbrio emocional, a sua saúde psíquica e o seu bem estar físico e psicológico, não ignorando que sobre o mesmo impendia um dever especial de respeito, de cuidado, de proteção para com a mesma (por ser sua filha menor), e que as condutas praticadas no lar contra a progenitora e o irmão da BB ampliavam o receio desta, fazendo-a temer pela concretização das ameaças perpetradas pelo arguido.
36. Assim, uma vez que a atividade probatória levada a cabo em audiência de julgamento permite assegurar o preenchimento dos elementos objetivos e dos elementos subjetivos do tipo de crime de violência doméstica sobre a menor BB era forçoso ter-se decidido em favor da pronúncia, condenando o Arguido pela prática de um crime de violência doméstica na pessoa da sua filha menor BB.
37. Nesta conformidade, a falta de exame crítico das provas, imposto pelo art.º 374°, n.º 2, do C.P.Penal, e a consequente insuficiência da fundamentação determina, nos termos do art.º 379.°, nº 1, al. a) do mesmo código, a nulidade do douto acórdão.
38. Entende a Recorrente que ao abrigo do art.º 69.º, n.º 2, alínea c) do C.P.Penal lhe assiste também o direito de recorrer no que respeita à parte decisória que se debruçou sobre a aplicação da pena acessória e do regime coativo do arguido, na medida em que tais decisões têm repercussão na esfera jurídica da Assistente e afetam a mesma, pois, enquanto titular do “estatuto de vítima” e do bem jurídico afetado é manifesto o seu interesse em agir e a reclamar do processo penal o direito à sua proteção e segurança.
39. Porquanto, sendo-lhe vedado tal direito (por hipotética interpretação literal do art.º 219.º, n.º 1 do C.P.P.), tal decisão redundaria em prejuízo dos direitos da Assistente e consubstanciaria a violação do art.º 69.º, n.º 2, al. c) do C.P.Penal e estaria ferida pelo vício de inconstitucionalidade, por violação dos princípios consagrados nas disposições conjugadas dos artsº 13.º, 20.º, n.ºs 1 e 4 e 32.º, n.º 7 da C.R.P.
40. No entendimento da Assistente, a decisão referente à pena acessória enferma de nulidade (art.º 379.º, n.º 1, al. c) ex vi art.º 374.º, n.º 2 do C.P.Penal) porque carece de fundamentação, de facto e de direito, quanto ao invocado critério da “suficiência”.
41. O Dign.º Tribunal “a quo” violou o direito da Assistente de proteção e segurança na parte em que não determinou expressamente a aplicação do disposto no n.º 5 do art.º 152.º do C.P.Penal, dada a gravidade dos crimes de violência doméstica cometidos pelo arguido. A pena acessória revela-se insuficiente, considerando o comportamento obsessivo, agressivo, desestruturado e persecutório do arguido que, inclusive, dirigiu ameaças de morte à Assistente (com recurso à utilização de duas facas).
42. A pena acessória mostra-se exígua mesmo considerando que o arguido atualmente reside noutro local, já que, encontrando-se com pena suspensa e com total liberdade de movimentos, há real ameaça e possibilidade do mesmo continuar a perseguir a vítima, pois, a família do arguido vive em localidade muito próxima da Assistente.
43. A necessidade de aplicação de medidas mais abrangentes, como a obrigação de afastamento da Assistente, da sua residência e do seu local de trabalho e onde se encontrar, com monotorização por meios eletrónicos de vigilância, bem como, a obrigação de frequência de um programa específico de prevenção da violência doméstica, é crucial para a segurança da vítima e para prevenir uma revitimização.
44. A Assistente discorda do regime coativo do arguido (que não cumpriu o direito de audição da vítima -art.º 212.º, n.º 4 do C.P.P.) por entender que foram descuradas as necessidades cautelares do processo, pois, o termo de identidade e residência revela-se insuficiente para garantir a proteção às vítimas e não impede uma situação de continuidade delituosa, devendo atender-se que o arguido foi condenado a pena de prisão suspensa, que possui um caracter impulsivo e controlador, vincado por uma personalidade agressiva e intimidatória, que as vítimas continuam a ter receio do arguido e o facto do arguido já ter violado as medidas de coação que lhe tinham sido antes aplicadas.
45. Ponderada a matéria fáctica e as exigências de proteção da vítima face ao perfil do arguido e à suspensão da pena de prisão que lhe foi fixada, impõe-se e justifica-se, ao abrigo dos princípios da necessidade, adequação e da proporcionalidade (arts.º 193.º, 200.º, n.º 1, al. a) e d) e 204.º, n.º 1, al. c) todos do C.P.P.) a aplicação das medidas de coação de proibição de quaisquer contactos do arguido com as vítimas, cumulada com a proibição do arguido se aproximar da residência e do local de trabalho da Assistente e de quaisquer locais onde se encontre, monitorizadas à distância por meios de vigilância eletrónicos (art.º 31.º a 35.º da Lei n.º 112/2009, de 16.09);
46. O douto acórdão proferido encontra-se ferido de nulidade nos termos do disposto no art.º 379.º, n.º 1, al. c), por violação do preceituado no art.º 374.º, n.º 2 e n.º 3, al. b) e no art.º 212.º, ns.º 3 e 4 do C.P.P., incorreu nos vícios enunciados no art.º 410.º, n.º 2, als. b) e c) do C.P.P. e em erro de julgamento, violou, ainda, os arts.º 152.º, n.º 1, als. b) e d), n.º 2, al. a) e n.º 5 do C.Penal, os arts.º 193.º, 200.º, n.º 1, al. a) e d) e 204.º, n.º 1, al. c) do C.P.Penal e o art.º 27.º da Constituição da República Portuguesa.

Nestes termos, com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., Venerandos Senhores juízes Desembargadores, conclui-se com os fundamentos deduzidos no presente Recurso, devendo o mesmo ser julgado totalmente procedente e, em conformidade, ordenando-se a reformulação da douta decisão recorrida por outra que, mantendo as duas decisões de condenação já doutamente proferidas (que não merecem reparo), condene, ainda o arguido:
- pela prática, como autor material, de (mais) um (1) crime de violência doméstica (p. p. pelo art.º 152.º, n.º 1, als. b) e c) agravada pelo n.º 2, al. a) do C. Penal) perpetrado contra a Assistente CC e, ainda, nas penas acessórias previstas nos arts.º 4 e 5 do art.º 152.º do C.Penal, de proibição de contacto e afastamento da vítima da sua residência, local de trabalho e de quaisquer locais onde se encontre; fiscalizando-se o seu cumprimento por meios de vigilância eletrónicos, nos termos do art.º 31.º a 35.º da Lei n.º 112/2009, de 16.09.
- pela prática, como autor material, de um (1) crime de violência doméstica (p. p. pelo art.º 152.º, n.º 1, al. d) agravada pelo n.º 2, al. a) do C. Penal) perpetrado contra a vítima BB; e, nessa sequência,
- Decida pela condenação do Arguido numa pena única justa e adequada à gravidade das suas condutas pela prática dos quatro crimes de violência doméstica pelos quais vinha pronunciado.
Mais se requer, ao abrigo do disposto nos arts.º 193.º, 200.º, n.º 1, al. a) e d) e 204.º, n.º 1, al. c) todos do C.P.Penal, seja doutamente determinada a aplicação ao arguido, até trânsito em julgado, das medidas de coação de proibição de quaisquer contactos do arguido com as vítimas, cumulada com a proibição do arguido se aproximar da residência e do local de trabalho da Assistente e de quaisquer locais onde se encontre, fiscalizando-se o cumprimento de tais medidas por meios de vigilância eletrónicos, nos termos do art.º 31.º a 35.º da Lei n.º 112/2009, de 16.09.

Assim se fazendo, como sempre, inteira e sã JUSTIÇA.
*
3.
O Ministério Público apresentou resposta ao recurso em que pugnou pela sua rejeição parcial e improcedência, tendo formulado as seguintes

CONCLUSÕES:
1- A decisão absolutória proferida relativamente ao crime de violência doméstica cometido sobre a menor BB constitui decisão proferida contra esta.
2- Em consequência, tal decisão deveria ser impugnada através da interposição de recurso autónomo por parte de BB, ainda que, obviamente, representada pela sua legal representante.
3- Acresce que BB não se constituiu assistente, nem é demandante civil, carecendo assim de legitimidade para interpor recurso.
4- Donde carece de legitimidade a recorrente CC para recorrer deste segmento decisório que afeta a sua filha menor.
5- Deve, assim, nesta parte, manter-se inalterada a douta decisão recorrida.
6- Alega a recorrente que a decisão padece do vício de omissão de pronúncia, vício previsto no art.º 379.º, n.º 1, al. c) do C.P.Penal, pois não se pronunciou sobre um dos crimes de violência doméstica em que era ofendida a aqui recorrente
7- Sucede que resulta dos factos dados como provados que o tribunal conheceu de todos os factos submetidos a julgamento,
8- E resulta da decisão sobre a questão de direito que o tribunal entendeu que as condutas atribuídas ao arguido consubstanciavam a prática, não de dois, mas de apenas um crime de violência doméstica perpetrado sobre a recorrente.
9- Inexiste uma absoluta omissão de decisão, o tribunal recorrido conheceu da questão, só não o fez de forma clara, direta.
10- Não se materializa, em consequência, o referido vício decisório de omissão de pronúncia.
11- Mais defende a recorrente que o acórdão padece do vício enunciado no art.º 410.º, n.º 2, al. b) e do C. P. Penal, na medida em que o único facto julgado como não provado entra em manifesta contradição com a factualidade julgada como provada constante dos pontos 11., 24., 36., 37., 39., 40., 41., 43., 44., 45. e 46.
12- Para chegar a tal afirmação a recorrente não parte do confronto entre os referidos factos, demonstrando a sua incompatibilidade, parte sim das conclusões que alcançou após análise dos mesmos.
13- Não há qualquer incompatibilidade entre os factos provados e os não provados, logo não se verifica o invocado vício decisório.
14- Pugna a recorrente pela verificação de um outro vício decisório: erro notório na apreciação da prova.
15- O que na realidade ocorreu foi que o tribunal recorrido se limitou a não transferir para a matéria de facto provada ou não provada extratos da acusação que não continham a descrição/imputação de factos objetivos, motivo pelo qual não se verifica o referido vício decisório previsto no art. 410º nº 2 al. c) do CPP.
16- No douto recurso pretende-se também impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto nos termos previstos no art. 412º, nº 3 e 4 do CPP.
17– Contudo o recurso: não observa o ónus da impugnação especificada; não indica elementos de prova que imponham uma decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido; cinge-se a uma critica genérica dirigida à decisão que tem como único alvo a convicção alcançada pelo julgador, contrapondo a esta a sua própria convicção.
18- Considerando o exposto, inexistindo qualquer erro de julgamento, deve manter-se inalterado o quadro factual fixado na decisão revidenda.
19- Impugna, ademais, a pena acessória imposta, que reputa de insuficiente.
20- Não possui, no entanto, legitimidade para interpor recurso quanto a este concreto segmento decisório.
21- Mais recorre sobre a decisão de revogação da medida de coação imposta ao arguido.
22- Fá-lo, contudo, também aqui, sem que possua legitimidade ou interesse para tanto, já que a aplicação de uma concreta medida de coação, manutenção ou revogação, fogem ao controlo dos assistentes, incumbindo-lhes, apenas, nos termos do art. 268º, nº 2, do CPP, o direito a, querendo, requerer ao Juiz de Instrução Criminal a imposição de uma medida de coação ou de garantia patrimonial.

Nestes termos e nos demais de direito que V.ª Ex.ª Venerandos Desembargadores suprirão, deve ser:
- Rejeitado parcialmente o recurso interposto, nos termos do art. 420º nº 1 al. b) do CPP, no que concerne aos segmentos decisórios relativamente aos quais inexiste legitimidade para recorrer;
- Rejeitado parcialmente o recurso, nos termos do art. 420º nº 1 al. a) do CPP, no que concerne à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de factos, efetuada nos termos do art. 412º, nºs 3 e 4 do CPP, porquanto o mesmo, salvo superior e diversa opinião, se apresenta como manifestamente improcedente;
- Considerar, no mais, o douto recurso improcedente, confirmando, em consequência, a decisão recorrida.
*
4.
Nesta Relação o Ministério Público emitiu parecer no qual aderiu à resposta, declarando: Concordamos com os argumentos e propostas do Ministério Público.
*
5.
Na resposta ao parecer a recorrente manifestou a sua discordância alegando:
A)
Quanto à alegada falta de legitimidade da Recorrente:
1.
Invoca o Ministério Público a falta de legitimidade da Recorrente para recorrer da decisão absolutória proferida relativamente ao crime de violência doméstica cometido pelo Arguido contra a filha menor BB, por entender que tal decisão apenas poderia ser impugnada por meio de recurso autónomo interposto pela menor, ainda que representada pela sua legal representante e que, para isso, deveria a menor BB ter requerido a sua constituição como Assistente
Ora, com o devido respeito, entende a Recorrente que carece de razão tal argumento.
Com efeito, nos termos do disposto no art.º 68.º, n.º 1 do C.P.Penal: «Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito: - al. al. d) «No caso do ofendido ser menor de 16 anos ou por outro motivo incapaz, o representante legal (…)».
Esta questão da legitimidade para a constituição de Assistente está, de algum modo, conexa com a da legitimidade para o exercício de queixa, regulado no artigo 113º, do Código Penal (o qual dispõe: n.º 1 - Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação. (…); n.º 4 - Se o ofendido for menor de 16 anos ou não possuir discernimento para entender o alcance e o significado do exercício do direito de queixa, este pertence ao representante legal), sendo que, foi também ao abrigo deste preceito legal que a Recorrente apresentou queixa dos factos referentes à filha menor.
Face ao consignado no art.º 68.º, n.º 1, al. d) do C.P.Penal, tendo em conta a idade da menor, nascida a ../../2012, portanto, menor de 16 anos quer à data dos factos, quer à data da interposição de recurso, entende-se que a legitimidade processual da menor está plenamente assegurada pelo facto da sua representante legal já assumir nos autos a qualidade de Assistente.
Na verdade, a Recorrente é a representante legal da menor BB, e à mesma está confiada quer a guarda, quer o exercício das responsabilidades parentais, conforme melhor resulta da ata de conferência de progenitores de 06.02.2023, proferida pelo Juízo de Família e Menores de Vila Nova de Gaia – Juiz 4 (Proc.º n.º 950/23.6T8VNG, junta aos autos a fls...
Por outro lado, é inequívoco que a Recorrente já se encontra constituída como assistente nos autos e, por isso, tem legitimidade para interpor recurso da decisão absolutória em nome da sua filha menor, integrando-se este ato nos seus direitos e deveres de representação da menor.
Assim, a legitimidade da Recorrente afere-se pela sua qualidade já admitida nos autos de Assistente.
Donde, requerer essa constituição de Assistente em nome e na qualidade de representante legal da menor seria não lhe reconhecer o direito inalienável de exercício das responsabilidades parentais.
Ou, por outro lado, exigir-se-lhe uma segunda constituição de Assistente seria entender existirem duas pessoas com direitos e deveres distintos, o que não acontece “in casu”, porquanto, eles fundem-se numa pessoa só e são exercidos por uma só pessoa.
A Recorrente age em representação da menor e com o objectivo de acautelar os seus interesses, o que faz, ao abrigo do exercício do poder paternal. Poder paternal este que não se distingue da sua pessoa e que com ela se confunde.
Pelo que, forçoso é concluir pela legitimidade da Recorrente para interpor recurso em representação da sua filha menor.
Ademais, não podendo a menor, por si própria, requerer a sua constituição de Assistente, uma vez que tal legitimidade processual apenas poderá ser requerida pelo seu representante legal, neste caso, a progenitora, a qual já assume a qualidade de assistente nos autos, parece-nos que requerer nova constituição de assistente da mesma redundaria na prática de um ato processual inútil, violador do princípio da economia processual, entendido na dimensão de proibição da prática de atos inúteis, tal como se encontra estabelecido no art. 130.º, do C.P.Civ.
Embora o Código de Processo Penal não contenha norma equivalente, aquele preceito do processo civil pode ser aplicado no processo penal, conforme o art. 4.º, do C.P.Penal, na medida em que se harmoniza em absoluto com o processo penal, uma vez que é a proibição da prática de atos inúteis que subjaz à norma do art.º 420.º, n.º 1, al. a), do C.P.Penal, onde se prevê a rejeição do recurso quando for manifesta a sua improcedência.
Aliás, recorrendo à interpretação do preceituado no art.º 68.º, n.º 1, al. d) do C.P.P., já este Venerando Tribunal da Relação do Porto concluiu precisamente neste sentido que se vem a defender: «A requerente, já constituída assistente, não carece de nova constituição de assistente, agora na veste de representante da menor. (…) Resulta da norma que caso o ofendido seja menor de 16 anos quem intervém no processo é o seu representante legal, e não o menor ofendido em si mesmo, daí que seja o seu representante a constituir-se como assistente no processo. No caso, quando a representante da menor requereu a abertura de instrução em nome desta, já estava constituída como assistente no processo. Portanto, o requisito da legitimidade estava assegurado.» (sublinhado nosso) – Vide, Ac. RP - Processo n.º 54/09.4GBPRD-B.P1, 03 Novembro 2010, in www.dgsi.pt
Nesta esteira epilogou este Venerando Tribunal: «A queixosa já constituída assistente no processo, não tem que se constituir outra vez, como assistente, para poder requerer a abertura de instrução relativamente a alegado crime cometido sobre a sua filha menor.» - Processo n.º 54/09.4GBPRD-B.P1, 03 Novembro 2010, do Tribunal da Relação do Porto, in www.dgsi.pt (sublinhado nosso).
Conclui-se, assim, que se mostra assegurada a legitimidade da Recorrente para reagir, por via da interposição de recurso, contra a decisão absolutória proferida relativamente ao crime de violência doméstica cometido pelo Arguido/Recorrido sobre a menor BB, pelo que, deve o mesmo ser admitido, conhecido e julgado procedente com base nos fundamentos constantes da motivação de recurso.
2. Alega ainda o Dign.º Ministério Público a falta de legitimidade da Recorrente para interpor recurso da decisão no que respeita à pena acessória aplicada ao arguido e ao estatuto coativo do Arguido.
A este propósito importa referir que a Recorrente já se pronunciou, em sede de motivação quanto a esta questão, entendimento que deixou expresso sob o título “Questão prévia” – Da legitimidade da Recorrente/Assistente quanto à pena acessória aplicada ao arguido e ao estatuto coativo do Arguido”.
Por razões de economia processual a Recorrente reitera aqui todos os seus argumentos amplamente aduzidos na sua motivação referentes à questão da sua legitimidade, entendendo que, também no que respeita à parte decisória que se debruçou sobre a aplicação da pena acessória e do regime coativo do arguido, a sua legitimidade se mostra plenamente conferida para reagir contra tais decisões, ao abrigo do disposto no art.º 69.º, n.º 2, alínea c) do C.P.Penal, porquanto, é manifesto o seu interesse em agir (art.º 401.º, n.º 2 do C.P.Penal), na medida em que, tais decisões, também têm repercussão na esfera jurídica da Assistente/Recorrente e afetam a mesma.
Ademais, o interesse em agir da Recorrente quanto à pena acessória e à medida de coação assume particular importância e preocupação se tivermos em atenção a violação por parte do arguido das medidas de coação que lhe tinham sido impostas em sede de inquérito, o que determinou uma alteração e agravamento das mesmas, as quais vieram a ser confirmadas por douta decisão proferida por este Venerando Tribunal da Relação (Proc.º n.º 383/20.6GAVNG-B.P1).
Com efeito, é entendimento da Recorrente que, enquanto titular do “estatuto de vítima” e do bem jurídico afetado, tem interesse em agir e a reclamar do processo penal o direito à sua proteção e segurança, o que a legitima a recorrer da parte decisória relativa à pena acessória decretada e ao estatuto coativo do Arguido até trânsito em julgado, porquanto, tais decisões mostram-se insuficientes e infundadas para alcançar tal desígnio, afetando, por isso tal direito/interesse legalmente protegido da Assistente carente de tutela judicial.
Ademais, pelas razões enunciadas em sede de motivação, considera-se que, a não ser admitido o recurso quanto a estes segmentos, mormente, por interpretação literal do disposto nos artigos 69.º, n.º 1, al. c) e 219.º, n.º 1 do C.P.Penal, tal decisão estaria ferida pelo vício de inconstitucionalidade, por violação dos princípios consagrados nas disposições conjugadas dos artigos 13.º, 20.º, n.ºs 1 e 4 e 32.º, n.º 7 da C.R.P.
B)
Quanto à alegada improcedência dos fundamentos do recurso:
Com todo o devido respeito por opinião diversa, entende a Recorrente que também não assiste razão ao Dign.º Ministério Público nas conclusões que apresenta quanto ao mérito do recurso, pois, analisada devida e criticamente o douto acórdão recorrido, resulta que o mesmo enferma das nulidades invocadas e padece dos vícios apontados em sede de motivação, para onde nos remetemos por razões de economia processual.
Em conclusão, deve ser admitido o recurso interposto e julgado o mesmo totalmente procedente com base nas razões de facto e de direito enunciadas em sede de motivação.
****
II. FUNDAMENTAÇÃO:
1.
Acórdão recorrido Procede-se à transcrição da factualidade fixada, bem assim dos segmentos do acórdão relevantes para a apreciação do recurso.
Factos Provados
Na audiência de julgamento resultou provado a seguinte matéria de facto:
1. O arguido e a ofendida CC viveram juntos, como marido e mulher, durante cerca de 13 anos, na residência sita na Rua ..., 2º dtº frente, em ..., Vila Nova de Gaia.
2. Têm uma filha em comum, BB, nascida a ../../2012.
3. Com o casal também vivia DD, nascido a ../../2004, filho da ofendida.
4. No ano de 2019, o arguido foi trabalhar para Gibraltar, onde iniciou o consumo de cocaína.
5. A partir desse momento, o arguido passou a maltratar a ofendida dizendo-lhe “és uma vaca, uma puta, é impossível não teres um amante, és gorda, passas o dia sem fazer nada, se me deixares mato-te e mato-me a seguir”.
6. Passou também a controlar as redes sociais da ofendida, a ligar-lhe durante o dia para saber onde estava e com quem;
7. Durante a noite, o arguido impedia a ofendida de descansar no quarto, ligava a luz e iniciava discussões com a mesma.
8. Quando a companheira se deitava no sofá da sala para dormir, o arguido destapava-a e dizia-lhe “não vais dormir”.
9. Sempre que discutiam o arguido dizia “a culpa é tua”; para a humilhar também lhe dizia “és uma florzinha de estufa”.
10. Em acessos de fúria, em data não apurada mas situada no ano de 2019 e/ou primeiro semestre de 2020, o arguido partiu portas da casa, do frigorifico da residência do casal e partiu também um telemóvel da ofendida.
11. Muitos dos conflitos foram presenciados pelos menores, que ficavam assustados e angustiados.
12. No dia 12.07.2020, cerca da 01h30, o arguido, por não ter acesso a droga, deslocou-se para o quarto de casal, num acesso de fúria, levantou o estrado e o colchão da cama, fazendo com que a ofendida tivesse caído ao chão, tendo ficado com o braço preso entre o estrado e a tábua da cama.
13. Nesse mesmo dia, pela hora do almoço, iniciou-se nova discussão; o arguido estava enfurecido pois os seus contactos para comprar produto estupefaciente não estavam a surtir efeito, confrontado com tal, o arguido arremessou o telemóvel da ofendida ao chão, sendo que o visor se partiu e, de seguida, desferiu-lhe empurrões e pancadas no braço esquerdo. Mais apelidava a assistente de “puta” e “vaca”.
14. Em tal ocasião a relação entre o casal cessou em agosto de 2020, com a apresentação de queixa pela assistente.
15. Na sequência da conduta do arguido sofreu a ofendida dores e mau estar e equimose no membro superior esquerdo, que foram causa directa e necessária de 8 dias de doença, 5 dos quais com incapacidade para o trabalho.
16. Depois de uma separação temporária do casal, mediante a promessa do arguido de que se submeteria a um tratamento de desintoxicação numa clínica.
17. O arguido regressou então à residência do casal em janeiro de 2021, quando retomou a sua atividade profissional e passou a ter dinheiro ao seu dispor que lhe permitiam consumir produtos estupefacientes voltou a intensificar os consumos.
18. Apercebendo-se disso, a vítima mostrava-lhe o seu desagrado com o facto de consumir produtos estupefacientes, o que levava o arguido a iniciar discussões, no decurso das quais a insultava dizendo-lhe “és uma puta; és uma vaca; és uma vaca gorda”, além de lhe apertar os braços, de a empurrar e de partir vários objetos que constituíam o recheio da residência comum.
19. Em janeiro de 2022, ao encontrar um cachimbo que o arguido utilizava para consumir produtos estupefacientes na sua mochila, a vítima manifestou-lhe a sua intenção de terminar com o relacionamento de ambos e ordenou-lhe que saísse de casa.
20. Revoltado, a partir de então, sempre que entrava na residência comum, o arguido batia as portas com força e dizia à sua companheira “puta, queres que vá embora para meteres o outro cá dentro”.
21. Neste período (janeiro de 2022 a maio de 2022, o arguido começou a implicar diariamente com o filho da sua companheira DD, apelidava-o de “malandro”, “paneleiro”, “cão”, “inútil”, “morcão”, e acusou-o de ser ele quem tirava dinheiro a CC, quando ela se apercebia que lhe faltava alguma quantia monetária.
22. Em data não concretamente apurada o arguido desligou a eletricidade da habitação, entrou no quarto de DD aos berros e, quando este lhe pediu para falar mais baixo senão chamava a polícia, desferiu-lhe um estalo na face, que lhe provocou dores e uma marca avermelhada.
23. Em dia não concretamente apurado do final do mês de maio de 2022, o arguido regressou à residência comum manifestando um comportamento descompensado, e enquanto apelidava a vítima de “sua puta”, desferiu vários socos na chaminé, junto do local onde a vítima estava a cozinhar.
24. Alarmados pelo desacato travado na cozinha daquela habitação os filhos da vítima, DD e BB, deslocaram-se até essa divisão, onde observaram o comportamento do arguido, que lhes causou medo e deixou a filha BB a chorar.
25. Saturada dos comportamentos violentos adotados pelo arguido e receosa das consequências nefastas que pudesse ter sobre os seus filhos, CC colocou os pertences do arguido num saco e expulsou-o daquela habitação em maio de 2022.
26. O arguido manteve-se a viver na carrinha à porta da residência durante dois dias.
27. Apesar das tentativas do arguido em voltar àquela residência, a vítima CC manteve-se irredutível e não mais o deixou voltar a viver naquela casa, nem reatou o relacionamento com ele.
28. Assim que separaram não regularam as responsabilidades parentais da filha de ambos, pelo que a vítima CC permitia ao arguido visitar a filha sempre que quisesse, desde que o fizesse de forma calma e sem que estivesse sob o consumo de produtos estupefacientes.
29. Contudo o arguido começou a aproveitar-se das visitas à filha para exigir comida ou dinheiro para comprar produtos estupefacientes à sua ex-companheira e quando esta não acedida às suas exigências, mostrando-se agressivo, batia as portas daquela casa com força e dirigia-se-lhe dizendo “sua vaca gorda”.
30. Em dia não concretamente apurado do mês de agosto de 2022, aproveitando-se do facto do portão da casa onde vive a vítima, sita na Rua ..., em ..., Vila Nova de Gaia, sem o conhecimento nem autorização desta, acedeu ao seu interior, e quando a encontrou disse-lhe, num tom autoritário “preciso do teu carro para ir ao Porto comprar a droga”.
31. Perante a recusa da vítima, que lhe disse para “ele se ir embora senão chamava a GNR”, o arguido pegou em duas facas de cozinha que ali se encontravam, encostou-as ao pescoço da vítima e perguntou-lhe “vais-me emprestar o carro ou não?”.
32. Intransigente, a vítima continuou a negar-se a emprestar-lhe o veículo e a anunciar que iria chamar a GNR, apesar do que, o arguido, sem denotar qualquer receio ou intimidação, anunciou-lhe “venha quem vier eu vou esventrar todos como uns porcos, eu espeto-lhes a faca até sair da cabeça”.
33. O arguido apenas cessou com o seu comportamento e abandonou aquele local quando os vizinhos da vítima, apercebendo-se do sucedido, num tom de voz alto, disseram que “iam chamar a GNR”.
34. Cerca de um mês depois, em meados de setembro de 2022, o arguido deslocou-se à residência da vítima, sob o pretexto de visitar a filha de ambos.
35. Nessa altura, sem que nada o justificasse ou o fizesse prever, começou a apelidar a vítima de “puta, vaca, filha da puta e vaca gorda” e a socar os móveis daquela habitação, partindo as portas dos móveis da cozinha, só cessando com o seu comportamento quando a sua mãe e a sua irmã o vieram buscar, a pedido da vítima que lhes telefonou a pedir auxílio.
36. Em novembro de 2022, o arguido convenceu a sua ex-companheira a acompanhá-lo quando fosse fazer umas compras com a filha de ambos.
37. Dizendo-lhe que não conhecia o trajeto conduziu o veículo de CC, mas ao invés de se dirigir para o local onde supostamente iriam fazer tais compras, deslocou-se até um bairro onde foi comprar produtos estupefacientes, o que gerou a indignação da sua ex-companheira e uma discussão entre ambos.
38. Depois de um curto período em que o arguido deixou de contactar a vítima, na época natalícia de 2022, o arguido voltou a manifestar a sua pretensão de reatar o relacionamento com CC, mas como a vítima não acedeu às suas investidas, o arguido insultou-a de “puta e vaca”.
39. Por forma a evitar os contactos do arguido, a vítima bloqueou os seus telefonemas para o seu telemóvel, mas porque a partir de então o arguido passou a telefonar-lhe para o telemóvel da filha de ambos, por forma a evitar que a menor estivesse exposta a estes contactos, voltou a desbloquear os seus telefonemas no seu telemóvel.
40. Durante a primeira quinzena de janeiro de 2023, o arguido telefonou várias vezes à sua filha menor mostrando-se agressivo para com ela, pelo que a menor foi manifestando vontade de não falar com isso.
41. No dia 15 de janeiro de 2023, pelas 22h00, quando o arguido telefonou à filha BB ela recusou-se a falar com ele, ao que o arguido disse, num tom de voz alterado, “ela é minha filha e tem de fazer o que eu quero. Ela tem de estar comigo, é como eu quero e não como ela quer. Ela tem de falar comigo senão eu vou aí e dou-lhe dois estalos. Ela tem que me respeitar, acima de tudo tem que me respeitar, eu vou aí, dá-me cinco minutos que já vou aí e vais ver se fala ou não fala comigo”.
42. Com a sua conduta, o arguido quis e conseguiu maltratar a sua ex-companheira e o filho desta, criando-lhes medo, tristeza, humilhação e vergonha, atingindo com isso a sua dignidade pessoal.
43. O arguido agiu da forma acima descrita ciente de que as palavras que proferiu, as agressões físicas que infligiu às vítimas CC e DD, algumas das quais presenciadas pela vítima BB, e o comportamento que adotava eram de molde a intimidar as vítimas, fazendo-as temer pela sua integridade física, o que quis e conseguiu, já que vivem com medo que o arguido se desloque à residência onde vivem e lhes bata ou até mesmo, num momento de maior descontrole mercê dos seus consumos estupefacientes, atente contra as suas vidas.
44. O arguido agiu na privacidade da residência e não se inibiu nem mesmo na presença dos menores.
45. O arguido agiu bem sabendo que atuava no interior da residência das vítimas e que com isso lhes coartava as possibilidades de defesa, o que lhe foi indiferente por querer maltratá-las física e psicologicamente, o que sabia que com facilidade conseguiria sobretudo sobre DD, em virtude da sua juventude e dependência.
46. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei penal.
47. Do pedido civil:
48. A demandante é pessoa pacata, humilde, considerada e respeitada no seu meio familiar, profissional e social.
49. A assistente sentiu-se profundamente inquieta e humilhada com os comportamentos agressivos do arguido.
50. E teve receio que o arguido atentasse contra a sua integridade física e até contra a sua vida, devido à instabilidade emocional e o caráter controlador manifestado pelo mesmo.
51. Provocando-lhe fragilidade emocional e angústia, e que a levou a procurar ajuda médica para si para os seus filhos.
52. Do relatório social:
53. Durante o hiato temporal abarcado pelos factos mencionados na presente acusação, AA integrava o agregado familiar constituído pela ofendida, a filha de ambos e o filho da ofendida, fruto de um anterior relacionamento, cujas idades atuais perfazem respetivamente 11 e 18 anos, habitando estes elementos numa residência situada em ... - Vila Nova de Gaia.
54. AA encontrava-se laboralmente ativo e a subsistência do núcleo familiar advinha dos rendimentos auferidos por ambos os cônjuges.
55. O rendimento mensal do agregado era, em média, de 1200,00€/mês, sendo referidas despesas fixas mensais em torno dos 600,00€/mês, a mais significativa das quais relativa à renda de casa, no valor de 450,00€/mês.
56. O arguido apresenta estreita familiaridade com a ofendida desde a infância, dado que o irmão desta se constitui como um dos seus melhores amigos, iniciando relação afetiva com a mesma em 2007, com vivencia em conjunto pouco tempo depois.
57. O processo de desenvolvimento de AA ocorreu essencialmente no contexto do seu núcleo familiar de origem, composto pela mãe e pela irmã, uma vez que o pai faleceu quando este tinha apenas 8 anos de idade.
58. De acordo com a mãe do arguido, esse foi um período de grande dificuldade, porquanto esta trabalhava como agente imobiliária e não contava com a ajuda de terceiros e os rendimentos auferidos eram considerados apenas suficientes para suprir às necessidades de todos os membros do agregado.
59. Adicionalmente, a dinâmica familiar era considerada como positiva, gratificante e solidária entre os membros.
60. AA, frequentou o sistema de ensino de forma convencional, completando o 9º ano de escolaridade, mas optou por interromper o ciclo de estudos aos 16 anos de idade para ingressar no mercado de trabalho, visando alcançar independência financeira.
61. AA mudou a sua trajetória de vida, quando a mãe encetou uma relação de vários anos com um companheiro que exibiu atitudes e comportamentos violentos em relação a ela e os seus filhos, o que gerou uma revolta interna por parte do arguido.
62. O arguido iniciou os consumos de substância psicoativas aos 16 anos, fazendo-o em conjunto com o seu melhor amigo, irmão da ofendida, como já mencionado anteriormente. Já na idade adulta, passou a consumir drogas pesadas, designadamente cocaína.
63. No âmbito profissional, iniciou a atividade laboral aos 16 anos, na área da carpintaria. Registou um período de emigração em França, na área da construção civil, por aproximadamente sete anos e em 2018, regressou a Portugal e retomou a sua atividade profissional na área da carpintaria.
64. No entanto, desde o início do ano 2021, encontra-se desempregado.
65. Em 24Jun2023, foi sujeito à medida coação de obrigação de permanência na habitação fiscalizada por meios de vigilância eletrónica, que tem vindo a cumprir sem registo de incidentes.
66. AA encontra-se laboralmente inativo, reside com a progenitora, o companheiro dela e o irmão adotivo, com 16 anos de idade.
67. A subsistência do agregado familiar depende do apoio económico do companheiro da mãe, que, como motorista de pesados de longo curso, aufere um rendimento mensal de cerca de 3,000,00€.
68. Relativamente às despesas fixas mensais fixas, totalizam na ordem dos 600,00 €/mês, incluindo a renda da habitação e os consumos de água e energia elétrica.
69. Atualmente, o arguido invoca estar abstinente relativamente ao consumo de substâncias psicoativas.
70. Nunca aderiu a acompanhamento especializado, alegando que conseguiu desvincular-se autonomamente.
71. O arguido expressa o desejo de exercer retomar a atividade profissional, de modo que lhe permita autonomizar-se em termos económicos.
72. O arguido nasceu em ../../1988.
73. E é primário.
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Factos Não Provados
Com relevância para a decisão da causa, não se apuraram os seguintes factos não provados:
1. Que o arguido quis e conseguiu maltratar física e psicologicamente a sua filha BB, atingindo com isso a sua dignidade pessoal.
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ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL
Sendo esta a matéria de facto provada, façamos o seu enquadramento jurídico-penal.
O arguido vem acusado pela prática de quatro crimes de violência doméstica p. p. pelo artigo 152º, do Código Penal.
(…)
Resulta da factualidade dada como provada que, durante 13 anos de união de facto, o arguido insultava regularmente a sua companheira CC, na presença dos seus filhos menores, com os seguintes epítetos “puta”, “vaca”, “filha da puta”, “vaca gorda”, agredia fisicamente, partia moveis e portas da habitação e o telemóvel da vítima, no decurso de uma discussão apontou duas facas ao pescoço da assistente, ameaçava que a matava, no interior da habitação. Mais resultou provado que o arguido, entre Janeiro de 2022 e Maio de 2022, começou a implicar diariamente com o filho da sua companheira DD, apelidava-o de “malandro”, “paneleiro”, “cão”, “inútil”, “morcão”, e acusou-o de ser ele quem tirava dinheiro a CC, quando ela se apercebia que lhe faltava alguma quantia monetária. E que, o arguido desligou a eletricidade da habitação, entrou no quarto de DD aos berros e, quando este lhe pediu para falar mais baixo senão chamava a polícia, desferiu-lhe um estalo na face, que lhe provocou dores e uma marca avermelhada.
Por fim, resultou provado que o arguido agiu da forma acima descrita ciente de que as palavras que proferiu, as agressões físicas que infligiu às vítimas CC e DD, algumas das quais presenciadas pela vítima BB, e o comportamento que adotava eram de molde a intimidar as vítimas, fazendo-as temer pela sua integridade física, o que quis e conseguiu, já que vivem com medo que o arguido se desloque à residência onde vivem e lhes bata ou até mesmo, num momento de maior descontrole mercê dos seus consumos estupefacientes, atente contra as suas vidas. O arguido agiu bem sabendo que atuava no interior da residência das vítimas e que com isso lhes coartava as possibilidades de defesa, o que lhe foi indiferente por querer maltratá-las física e psicologicamente, o que sabia que com facilidade conseguiria sobretudo sobre DD, em virtude da sua juventude e dependência. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei penal.
Assim, tal comportamento, porque reiterado e gravoso, preenche os elementos objectivos e subjetivo do crime de violência doméstica, previsto no artº 152º, nº 1, al. b) e nº 2 al. a), do Código Penal, quanto à assistente e o crime de violência doméstica, previsto no artº 152º, nº 1, al. d) e nº 2 al. a), do Código Penal, relativamente ao ofendido DD.
Relativamente ao crime de violência doméstica imputado na acusação ao arguido, de que seria vítima a filha menor, face à factualidade apurada não se encontram preenchidos os tipos legais.
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Das penas acessórias
As penas acessórias previstas nos nº 4, 5 e 6, do artº 152º, do Código Penal, são as seguintes (…)
No caso concreto, entendemos adequada e suficiente a pena acessória de proibição de contato com os ofendidos CC e DD, pelo que não se justifica a aplicação das restantes penas acessórias requeridas pelo Ministério Público.
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Regime coativo
O arguido vai condenado neste acórdão, pela prática de dois crimes de violência doméstica, na pena de única de três anos de prisão suspensa na sua execução por igual período de tempo.
Tendo em conta o juízo de prognose favorável inserto neste acórdão de que o arguido, em liberdade, com a ameaça da execução da pena de prisão será suficiente para o afastar da criminalidade, concluímos que deixaram de subsistir as circunstâncias que justificaram a aplicação da medida de coação de prisão preventiva (artº 212º, nº 1, al. b), do CPP).
Assim, revoga-se a medida de coação de obrigação de permanência na habitação, com pulseira eletrónica, aplicada ao arguido, nos termos do artº 212º, nº 1, al. b), do Código de Processo Penal.
Comunique, de imediato, à Equipa de Vigilância Eletrónica.
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2.
APRECIAÇÃO DO RECURSO
Conforme jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pela recorrente, a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da apreciação de todas as matérias que sejam de conhecimento oficioso.

No caso concreto, o recurso incide sobre o segmento do acórdão que absolve o arguido da prática de um crime de violência doméstica em que é vítima BB e nessa parte suscita a impugnação da matéria de facto, visando a subsequente revogação do decidido e a condenação do arguido pelo mesmo crime.
Além disso, o recurso recai sobre o segmento condenatório do acórdão e nesse âmbito coloca as questões de: nulidade da sentença, por omissão de pronúncia quanto a um crime de violência doméstica em que é vítima CC; nulidade por omissão de pronúncia e falta de fundamentação quanto às penas acessórias; suficiência/alcance da pena acessória imposta; suficiência do regime coativo imposto ao arguido.

Na resposta ao recurso o Ministério Público suscita a questão prévia da legitimidade da assistente CC para interpor recurso na qualidade de legal representante da sua filha menor BB, quanto à decisão absolutória. Mais questiona a legitimidade e interesse em agir da recorrente CC para impugnar a decisão tomada no acórdão quanto à pena acessória e regime coativo fixado ao arguido. Neste Tribunal da Relação do Porto o Ministério Público secundou o mesmo entendimento.

Importa começar por conhecer das questões suscitadas pelo Ministério Público de legitimidade e interesse em agir da recorrente, atenta a influência que a decisão sobre as mesmas produzirá no prosseguimento da apreciação do recurso.

2.1-
Invoca o Ministério Público que a recorrente CC, embora seja representante legal de BB, não tem legitimidade para, em nome dela, interpor recurso, à face das normas dos artigos 69.º, n.º 1, alínea c), e 401.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Processo Penal, só o podendo fazer a própria BB, caso se tivesse constituído assistente, o que não ocorreu, pelo que, possuindo ela apenas a qualidade de ofendida, também carecia, nos termos do artigo 401.º, n.º 1, do Código Processo Penal, de legitimidade para o efeito.
Contrapõe a recorrente que, atento o preceituado no artigo 68.º, n.º 1, alínea d), do Código Processo Penal, tendo em conta a idade da menor, inferior a 16 anos, quer à data dos factos, quer à data da interposição de recurso, a legitimidade processual da menor está plenamente assegurada pelo facto da sua representante legal já assumir nos autos a qualidade de Assistente, por isso, tem legitimidade para interpor recurso da decisão absolutória em nome da sua filha menor, integrando-se este ato nos seus direitos e deveres de representação da menor. Além disso, exigir-se-lhe uma segunda constituição de Assistente seria entender existirem duas pessoas com direitos e deveres distintos, o que não acontece “in casu”, porquanto, eles fundem-se numa pessoa só e são exercidos por uma só pessoa. A Recorrente age em representação da menor e com o objectivo de acautelar os seus interesses, o que faz, ao abrigo do exercício do poder paternal. Poder paternal este que não se distingue da sua pessoa e que com ela se confunde.
Vejamos.
A assistente CC interpôs recurso da aludida decisão absolutória invocando a qualidade de representante legal da sua filha de menor idade.
Decorre dos factos apurados nos autos que BB é filha do arguido e de CC, e nasceu em ../../2012.
CC foi admitida a intervir nestes autos de processo n.º 383/20.6GAVNG na qualidade de assistente por despacho de 12-04-2023 (Referência: 447286231) do teor seguinte: Por ter legitimidade para se constituir assistente, na medida em que se apresenta como ofendida – artigo 68.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal; está representada por advogado – artigo 70.º, n.º 1, do Código de Processo Penal; beneficia de apoio judiciário, formulou tal pedido tempestivamente – artigo 68.º, n.º 2 do Código de Processo Penal admito a requerente como assistente nos presentes autos.
Como se extrai da consulta do processo e do acórdão recorrido, aos presentes autos, com o n.º 383/20.6GAVNG e em que é única ofendida CC, foi apensado o processo com o n.º 40/23.1GAVNG em que são ofendidos, além de CC, os seus filhos BB (nascida a ../../2012) e DD (nascido a ../../2004). A apensação foi determinada por despacho de 13-04-2023, proferido em AUTO DE INQUIRIÇÃO (Referência: 447406616) no processo n.º 383/20.6GAVNG.
No âmbito deste processo n.º 383/20.6GAVNG CC apresentou requerimento em 15-03-2023 (Referência: 35062376) do teor seguinte: Ofendida nos autos à margem referenciados, vem, ao abrigo do disposto no art.º 68.º, n.º 1, als. a) e n.º 3, al. a) do C.P.Penal, requerer a sua Constituição como parte Assistente, para o que tem legitimidade, está em prazo, encontra-se devidamente representada por Advogada/Patrona oficiosa e foi-lhe concedido o benefício do apoio judiciário, com dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e de nomeação e pagamento da compensação de patrono, conforme resulta do teor dos documentos juntos aos autos a fls. 201, a 203 dos autos.
Mais declara que aceita o processo no estado em que o mesmo se encontra.
No âmbito do processo com o n.º 40/23.1GAVNG CC formulou requerimento em 20-03-2023 (Referência: 25330512) do teor seguinte: Ofendida nos autos à margem epigrafados, tendo sido notificada da douta Acusação Pública deduzida pela Dign.ª Magistrada do Ministério Público vem, ao abrigo do disposto no artigo 68.º, n.º 3, al. b) do C.P.Penal, requerer a V. Exa. se digne admitir a sua
CONSTITUIÇÃO COMO PARTE ASSISTENTE
nos presentes autos, por estar em tempo e se encontrar devidamente representada por patrona oficiosa e beneficiar de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, conforme documentos comprovativos ao diante juntos - Cfr. docs. 1 e 2.
No mesmo requerimento declarou que adere expressamente à douta Acusação do Dign.º Ministério Público, nos termos do disposto no artigo 284.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Penal.
Face ao teor dos requerimentos por ela apresentados é incontroverso que CC solicitou a sua intervenção como assistente na qualidade pessoal de ofendida, ou seja, enquanto titular dos interesses que a lei quis proteger com a incriminação, ao abrigo da previsão do artigo 68.º, n.º 1, alínea a), do Código Processo Penal. Em momento algum a requerente invocou a qualidade de representante legal de sua filha menor BB, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 68.º, n.º 1, alínea d), do Código Processo Penal, designadamente no processo n.º 40/23.1GAVNG, em que formulou o pedido de intervenção na qualidade de assistente já depois de deduzida acusação pública, à qual expressamente aderiu, isto é, jamais manifestou o desígnio de atuar na veste de representante da ofendida BB, por ser sua mãe e na sua representação, dada a menoridade dela.
Nesse processo n.º 40/23.1GAVNG não veio a ser proferida decisão sobre a requerida admissão da assistente, porém, operada a apensação de processos, o despacho prolatado no processo n.º 383/20.6GAVNG, que admitiu a intervenção processual de CC como assistente, tem eficácia e alcance quanto à matéria abrangida no processo apensado em que a mesma é ofendida, sendo a partir de então desnecessário proferir nova decisão do mesmo teor.
Posteriormente, consumada a apensação de processos e dentro dos prazos previstos no artigo 68.º, n.º 3, do Código Processo Penal, não foi formulado qualquer outro pedido de constituição de assistente.
Por conseguinte, a intervenção de CC como assistente no processo foi judicialmente admitida, no processo n.º 383/20.6GAVNG e com efeitos no processo apensado n.º 40/23.1GAVNG, a título pessoal e não como representante da menor BB.
A circunstância de CC ser representante legal da menor BB não determina que o reconhecimento de tal qualidade automaticamente confira elasticidade ao estatuto de assistente que lhe foi atribuído, isto é, a posição processual de assistente que aquela assume, por si e a título pessoal, não se estende à representação da sua filha menor, também ofendida no mesmo processo.
Aliás, é importante assinalar que, por não ter manifestado a intenção de se constituir assistente como representante legal da filha menor, jamais foi dada oportunidade aos sujeitos processuais para se pronunciarem sobre tal pretensão e o tribunal não aferiu da existência dos pressupostos legais para o efeito, condicionalismo que era indispensável e não foi observado, por isso, não se trata de exigir uma duplicação de procedimentos, como parece apontar a recorrente.
Assim sendo, não se acompanha a jurisprudência convocada no recurso Vd. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 03-11-2010, proc. 54/09.4GBPRD-B.P1, disponível em www.dgsi.pt..
Na decorrência do exposto, conclui-se que a recorrente CC não dispõe de legitimidade e interesse em agir para recorrer, em representação de sua filha menor, do acórdão na parte em que absolve o arguido do imputado crime de violência doméstica em que é ofendida BB, nos termos previstos no artigo 401.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, do Código Processo Penal, donde decorre que, nesta parte, o recurso deve ser rejeitado [cf. artigo 420.º, n.º 1, alínea b), do Código Processo Penal].
*
Sustenta ainda o Ministério Público que a assistente carece de legitimidade para recorrer relativamente ao segmento decisório do acórdão referente à pena acessória e à decisão tomada quanto ao regime coativo do arguido.
Quanto ao primeiro aspeto invoca: a condenação numa pena acessória incide sobre o arguido, não sobre a aqui assistente. A imposição ao arguido de pena acessória, para além da já fixada no acórdão, não representa um qualquer direito do assistente, ao invés, constitui um dever/obrigação imposto ao arguido, uma contração da sua liberdade. Assim, não se pode considerar que o sentido da decisão em análise configura a prolação de decisão contra a assistente CC embora, concede-se, tenha implicações e a afete de forma reflexa, indireta. Contudo a condenação numa pena acessória não constitui um direito da assistente.
No que se refere ao segundo aspeto alega: ao assistente compete, nos termos do 268º, nº 2, do CPP, o direito a, querendo, requerer ao Juiz de Instrução Criminal a imposição de uma medida de coação ou de garantia patrimonial, não lhe compete condicionar ou determinar a escolha ou manutenção de uma qualquer medida de coação, decisões desta natureza estão subtraídas ao seu controlo. Carece, pois, o assistente, de legitimidade e interesse em agir para recorrer das decisões sobre as medidas de coação, não é o titular da ação penal e a defesa dos seus interesses não implica a pronúncia sobre as medidas de coação imposta ao arguido.
Precavendo-se contra entendimento adverso, a recorrente manifestara-se logo na motivação do recurso invocando que lhe assiste também o direito de recorrer no que respeita à parte decisória que se debruçou sobre a aplicação da pena acessória e do regime coativo do arguido, porquanto, é manifesto o seu interesse em agir (art.º 401.º, n.º 2 do C.P.Penal), na medida em que, tais decisões, também têm repercussão na esfera jurídica da Assistente e afetam a mesma. Com efeito, tais decisões contendem com a garantia da tutela judicial dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, designadamente, no que respeita, ao seu direito constitucionalmente reconhecido à segurança e proteção (art.º 27.º da C.R.P.), particularmente enaltecido, “in casu”, quando conexo com o dever de observância do princípio da proteção da vítima no processo penal. A este propósito, cumpre destacar que o nosso ordenamento jurídico nacional, através da Lei n.º 130/2015 de 4 de Setembro, transpôs a Diretiva n.º 2012/29/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Outubro de 2012, que estabelece normas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade, introduzindo o conceito legal de “vítima” e publicou, em paralelo, o Estatuto da Vítima (e de vítima especialmente vulnerável) e o Regime Jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à proteção e assistência das suas vítimas (Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro e respetivas atualizações, permitindo-se, através de tal mecanismo, que as vítimas possam intervir e manifestar no processo as suas pretensões, enquanto titulares dos bens jurídicos lesados.
Concretizando esta asserção, entende-se que a vigência deste imperativo de proteção da vítima constitui um elemento interpretativo que fundamenta uma visão ampla dos poderes da Assistente. Desse modo, uma adequada abordagem do disposto nos artigos 69.º, n.º 2, alínea c) e 219.º, n.º 1 do C.P.Penal impõe a devida articulação com esta função assumida pelo processo penal, enquanto mecanismo de tutela da posição das vítimas.
Vejamos.
Em matéria de legitimidade para a interposição de recurso rege a norma do artigo 401.º do Código Processo Penal, que relativamente ao assistente faz depender a legitimidade de a decisão impugnada constituir uma decisão contra ele proferida [n.º 1, alínea b)], acrescentando o n.º 2 do preceito a exigência de o recorrente ter interesse em agir.
Em geral a legitimidade decorre da posição processual do sujeito relativamente ao objeto do litígio, a quem a lei confere o direito de acionar os meios necessários à defesa dos seus interesses legalmente atendíveis Vd. Pereira Madeira, Código Processo Penal Comentado, 4.ª edição Revista, pág. 1281.. No âmbito do processo penal a legitimidade para recorrer, não se tratando do Ministério Público, é conferida aquele que é “afetado” pela decisão, isto é, aquele cujos direitos foram prejudicados ou poderão vir a ser prejudicados pela mesma. Tem interesse em agir aquele que tem carência do processo (rectius, do recurso) para fazer valer o seu direito Vd. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, II Volume, 5.ª edição atualizada, pág. 580..
No campo da definição do estatuto e atribuições conferidas ao assistente regula a norma prevista no artigo 69.º do Código Processo Penal, que prevê o direito dele interpor recurso quanto a decisões que o afetem, mesmo autonomamente, isto é, sem dependência da atitude sobre a matéria por parte do Ministério Público [n.º 2, alínea c)], relativamente ao qual ocupa a posição de colaborador e a cuja atividade subordina a sua intervenção [n.º 1].
Como se sabe, a interpretação das normas legais indicadas tem suscitado controvérsia jurisprudencial, em vista da delimitação das situações em que ao assistente é conferida legitimidade para interpor recurso, quando desacompanhado do Ministério Público, mormente na definição dos casos em que as decisões o afetem e são contra ele proferidas, bem assim na concretização de situações em que seja efetivo o seu interesse em agir Vd., entre os mais recentes, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 31-01-2024, proc. 809/22.4PHAMD.L1.S1; de 14-07-2022, proc. 811/21.3PAPTM.S1; de 06-05-2021, proc. 214/19.0JDLSB.L1.S1; de 03-02-2021, proc. 4038/18.3JAPRT.P1.S1; de 11-09-2019, proc. 75/17.3GCPTM.E1.S1 ( e jurisprudência aí elencada), todos disponíveis em www.dgsi.pt..
A propósito da intervenção recursória do assistente em matéria de determinação da pena, o Acórdão para Fixação de Jurisprudência n.º 8/99 estabeleceu: «O assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena aplicada salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir».
A admissibilidade de recurso por parte do assistente reporta-se àquelas situações processuais em que o assistente é diretamente afetado pela decisão, ou em que a decisão diretamente o desfavorece, enfim atinge um concreto próprio interesse seu, digno de proteção e é, nessa medida, contra si proferida Vd. Pereira Madeira, Código Processo Penal Comentado, 4.ª edição Revista, pág. 1284..
Baseia-se a orientação jurisprudencial plasmada no citado Acórdão n.º 8/99 na regra de que as questões relativas à medida da pena fazem parte do ius puniendi do Estado e, nessa perspetiva, só quando o assistente seja afetado por essa decisão e mostre um concreto e próprio interesse em agir é que tem legitimidade para recorrer em qualquer circunstância, portanto, mesmo desacompanhado do Ministério Público Vd. Citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31-01-2024, proc. 809/22.4PHAMD.L1.S1..
Ainda relativamente ao tema, o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 205/2001, concluiu que a interpretação constante do aludido acórdão de fixação de jurisprudência, “ao condicionar o recurso do assistente à demonstração de um concreto e próprio interesse em agir, quando, desacompanhado do Ministério Público, pretenda impugnar a espécie e medida da pena aplicada, não afecta o núcleo essencial da intervenção do ofendido no processo penal nem coloca em crise o direito ao recurso por parte do assistente, pois não é absoluta, apenas incidindo sobre os pressupostos do recurso e. além disso, respeita a matéria que tem fundamentalmente a ver com o exercício pelos órgãos do Estado do "ius puniendi" relativamente ao arguido e com a realização dos fins constitucionais e legais das penas. (…) Não se surpreende, assim, que a aludida interpretação das normas dos arts. 69º, nº 1 e 2, alínea c), e 401º, nº 1, alínea b), e nº 2, do Código de Processo Penal, seja inadequada e afecte de forma irrazoável e desproporcionada o direito do ofendido intervir no processo penal, consagrado nos artigos 20º, nº 1 e 32º, nº 7 da Lei Fundamental.” Também reproduzido no referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31-01-2024, proc. 809/22.4PHAMD.L1.S1..
No que se reporta à impugnação da decisão sobre medidas de coação estabelece o artigo 219.º, n.º 1, do Código Processo Penal, que cabe recurso da decisão que aplicar, substituir ou mantiver essas medidas a interpor pelo arguido ou Ministério Público.
A respeito desta norma também se gerou controvérsia, sendo as dúvidas de interpretação, decorrentes das sucessivas alterações ao texto legislativo, relacionadas com a admissibilidade de recurso quanto a decisões que não aplicassem, revogassem ou declarassem extinta uma medida de coação, dando motivo para a prolação de Acórdão para Fixação de Jurisprudência n.º 16/2014, no sentido de que: «É admissível recurso do Ministério Público de decisão que indefere, revoga ou declara extinta medida de coação por ele requerida ou proposta.».
Perante a fundamentação vertida em tal Acórdão n.º 16/2014, conjugada a redação atual do preceito com a norma geral do artigo 399.º do Código Processo Penal, resultou esclarecido e consolidado o entendimento de que também as decisões que indefiram, revoguem ou declarem extintas medidas de coação são suscetíveis de recurso Vd. Maia Costa, Código Processo Penal Comentado, 4.ª edição Revista, págs. 849-850..
Relativamente à legitimidade para interpor recurso das decisões que incidem sobre medidas de coação, face ao texto legislativo em referência, que estabelece regime especial em matéria de impugnação de medidas de coação, considera-se, no seguimento do entendimento maioritário, que somente ao arguido e ao Ministério Público é reconhecida a possibilidade de recorrer Vd. Maia Costa, ob. citada, pág. 850; Pedro Soares de Albergaria, Comentário Judiciário do Código Processo Penal, tomo I, pág. 821; Acórdão da Relação de Coimbra de 03-04-2019, proc. 1654/17.4JAPRT.C1, disponível em www.dgsi.pt. Vd., em sentido contrário, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, I Volume, 5.ª edição atualizada, pág. 294, (…) o assistente tem o direito constitucional de interpor recurso da decisão que aplique, modifique, substitua ou revogue medida coativa de maneira que o assistente considere insuficientemente tutelados os perigos de fuga ou de continuação da atividade criminosa, independentemente de o Ministério Público recorrer ou não, independentemente de o assistente ter sido o requerente da aplicação da medida de coação ou de ela ter sido requerida pelo Ministério Público. Também, Paulo Pinto de Albuquerque, ob. citada, pág. 585, (…) [o assistente] tem legitimidade para recorrer de “decisões sobre medidas de coação quando esteja em causa um perigo de continuação da atividade criminosa contra si” (…); e ainda do mesmo autor, ob. citada, pág. 956, Além do MP, também o assistente tem direitos constitucionais que não foram devidamente tidos em conta pela disposição do artigo 219.º, nº 1.,399.º, e 401º, nº 1, alínea b), do CPP de acordo com a qual não se admite o direito n.º 1,399.º, e 401º, n.º 1, alínea b), do CPP de acordo com a qual não se admite o direito do assistente de interpor autonomamente recurso da decisão que aplique, modifique, substitua ou revogue medida de coação.. Assim, o assistente não tem essa legitimidade, nem sequer pode intervir no processamento do recurso, não dispondo de interesse próprio e autónomo a defender Vd. Maia Costa, Código Processo Penal Comentado, 4.ª edição Revista, pág. 850..
Apesar da consideração que lhe é dedicada pelo legislador no âmbito da execução de medidas de coação, mesmo ainda ao ofendido ou vítima não constituído na qualidade de assistente, como decorre das normas dos artigos 212.º, n.º 4; 217.º, n.º 3; 218.º, n.º 3; 268.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, todos do Código Processo Penal, não lhe é conferida legitimidade para impugnar, por via de recurso, a decisão tomada sobre essas medidas.
Também se não ignora todo o quadro legislativo vigente no âmbito do apoio e proteção das vítimas, nomeadamente de criminalidade violenta e de prevenção da violência doméstica, proteção e assistência das respetivas vítimas, a que faz apelo a recorrente [cf. Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro, e Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro], porém, não se encontra, nesse específico domínio, norma que derrogue a regra estabelecida na norma do citado artigo 219.º do Código Processo Penal.
Volvendo ao caso concreto, importa, desde já, definir que a decisão que modificou o estatuto coativo do arguido, inserta no acórdão recorrido, não é suscetível de recurso por iniciativa exclusiva do assistente, por lhe faltar legitimidade para o efeito, nos termos explanados [cf. artigo 219.º, n.º 1, do Código Processo Penal].
Por conseguinte, o recurso nesta parte deve ser rejeitado [cf. artigo 420.º, nº 1 alínea b), do Código Processo Penal].
Relativamente à impugnação da pena acessória cumpre indagar sobre a existência de um concreto e próprio interesse em agir da assistente, que possa fundamentar a interposição autónoma, por si, de recurso do acórdão quanto a essa matéria.
Ora, a irresignação da recorrente incide sobre dois aspetos da decisão relativa à aplicação de penas acessórias, por um lado, a não imposição da obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica e, por outro, no que se refere à proibição de contacto com a vítima CC, a sua específica regulação de modo a incluir o afastamento da residência e do local de trabalho dela e a fiscalização do seu cumprimento por meios técnicos de controlo à distância (cf. artigo 152.º, n.º 4 e 5, do Código Penal), nos termos propostos pelo Ministério Público. Invoca a recorrente que, em ambas as situações, em causa está o direito à proteção e segurança da vítima, as exigências de prevenção, de proteção/segurança da vítima, e a necessidade de acautelar um processo de revitimização contra a vítima ou outras vítimas.
Considerando as concretas circunstâncias do caso que resultam da matéria provada e tendo presente as finalidades preventivas das aludidas penas acessórias, atendendo ainda à intervenção ativa da assistente no decurso do processo, em que acompanhou a acusação pública, considera-se que existe um efetivo interesse direto da recorrente na impugnação da decisão sobre as penas acessórias, posto que é visada diretamente a sua segurança Vd. Helena Morão, CORRUPÇÃO EM PORTUGAL AVALIAÇÃO LEGISLATIVA, UNIVERSIDADE CATÓLICA EDITORA, Lisboa 2021, pág. 657, Tendo em conta que, à luz do artigo 40.º do Código Penal, a aplicação de penas promove a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo a pena aplicada ultrapassar a medida da culpa, e não a tutela directa de um interesse do ofendido, e, não cabendo no âmbito do direito ao recurso do assistente a mera fiscalização da legalidade do exercício do poder punitivo do Estado, não se pode afirmar que uma decisão condenatória lhe seja, em regra, desfavorável. Porém, deve admitir-se o recurso do assistente quando este entenda que a pena aplicada não é suficiente para garantir a sua própria segurança”, na medida em que a finalidade de prevenção especial positiva também se destina a evitar a reincidência, ou quando se suscite um problema de reparação ou quando se suscite um problema de reparação material ou moral do mal do crime no domínio da aplicação da pena.. Na realidade, a proibição de contacto, no que à sua pessoa diz respeito, visa precisamente garantir a sua segurança e proteção relativamente a eventuais recidivas de violência perpetradas pelo arguido, também a imposição de frequência de programas de prevenção da violência doméstica atua no mesmo sentido, pois, embora se projete no comportamento futuro do arguido em geral, importa atender ao facto de o arguido e a assistente terem uma filha menor em comum, o que propicia a manutenção de contactos com a assistente no futuro, existindo nessa medida também um concreto interesse da recorrente nessa vertente da pena acessória.
Face ao exposto, conclui-se que a assistente tem legitimidade e interesse em pugnar pela modificação da decisão relativa às penas acessórias que são desfavoráveis às suas expectativas.
Por conseguinte, inexiste obstáculo à apreciação do recurso, sob este aspeto, salientando-se que, embora por vezes a recorrente se refira às vítimas, ou à proibição de contacto com as vítimas, somente se aprecia a pretensão recursiva em que é visada exclusivamente CC, posto que o ofendido DD, sendo maior, não é assistente e não recorreu, e quanto à ofendida menor BB, como já referido, não está representada pela assistente.
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Decididas, pelo modo explanado, as questões prévias, resta conhecer do recurso interposto por CC, quanto às questões sintetizadas supra e que ora se relembram: nulidade do acórdão por omissão de pronúncia quanto à imputação de um crime de violência doméstica; nulidade do acórdão por omissão de pronúncia e falta de fundamentação quanto à decisão relativa às penas acessórias; suficiência e alcance da pena acessória imposta.
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2.2- A recorrente invoca que o acórdão recorrido está ferido de nulidade, nos termos previstos nos artigos 379.º, n.º 1, alínea c), e 374.º, n.º 3, alínea b), ambos do Código Processo Penal, por omissão de pronúncia quanto a um dos imputados crimes de violência doméstica.
Alega para tanto que, por força da apensação de processos, o arguido foi acusado e, posteriormente, pronunciado por decisão instrutória proferida a 19-05-2023 (ref.ª 448602605), pela prática em concurso real: de 1 (um) crime de violência doméstica, p. p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a), do Código Penal, praticado contra a vítima CC, no âmbito do processo n.º 383/20.6GAVNG (autos principais); de 1 (um) crime de violência doméstica, p. p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e c), agravado pelo n.º 2, alínea a), do Código Penal, praticado contra a mesma vítima, no âmbito do Proc.º 40/23.1GAVNG (processo apenso); para além de dois crimes de violência doméstica, um contra BB e o outro contra DD, no âmbito do Proc.º 40/23.1GAVNG (processo apenso).
Em suma, o arguido foi pronunciado pela prática, como autor material e em concurso real, de 4 (quatro) crimes de violência doméstica, conforme aliás se reconhece no acórdão (segundo parágrafo do ponto 2.4; 2.4.1), porém, em sede de dispositivo, o tribunal a quo apenas proferiu decisão relativamente a três crimes, sendo notório que ocorre omissão de pronúncia quanto a um dos crimes pelo qual o arguido estava pronunciado, isto é, relativamente a 1 (um) crime de violência doméstica, p. p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas b) e c) agravado pelo n.º 2, al. a) do Código Penal, que era imputado ao arguido, praticado contra a vítima CC (processo apenso).
O acórdão é totalmente omisso, não tendo sido proferida decisão de condenação ou de absolvição quanto ao indicado crime, conforme imposto pelo artigo 374.º, n.º 3, alínea b), do Código Processo Penal.
Vejamos.
As causas de nulidade da sentença encontram-se tipificadas no artigo 379.º, n.º 1, do Código Processo Penal, onde se enquadra, sob a alínea c), a omissão de pronúncia sobre questões que o tribunal devesse apreciar ou conhecimento de questões de que não podia conhecer.
Conforme é entendimento uniforme da jurisprudência, a omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os problemas concretos a decidir e não os simples argumentos ou doutrinas expendidos pelas partes na defesa das teses em presença Cfr., entre outros, Acórdãos do Supremo Tribunal Justiça de 25-05-2006, proc. 06P1389 ; de 23-10-2008, proc. 08P2869, disponíveis em www.dgsi.pt..
Em sede de sentença incumbe ao tribunal pronunciar-se sobre todas as matérias abrangidas na norma do artigo 368.º do Código Processo Penal e, em caso de positivamente decidida a questão da culpabilidade do arguido, sobre os temas relativos à determinação da sanção, incluídos na norma subsequente, isto é, no artigo 369.º do Código Processo Penal.
O dever de fundamentação das decisões judiciais decorre, em primeiro lugar, da Constituição da República e das garantias de defesa do arguido, também constitucionalmente consagradas [cf. artigo 32.º, n.º 1, da CRP], sendo ainda exigência expressamente plasmada na lei processual penal [cf. artigo 97.º n.º 1, alínea b), e n.º 5, quanto aos despachos judiciais, e no que respeita à sentença no artigo 374.º, n.º 2, ambos do Código Processo Penal].
A sentença contém os motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, nos termos exigidos no artigo 374.º, n.º 2, do Código Processo Penal, sob pena de nulidade cominada no artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do Código Processo Penal. Também é sancionada com nulidade prevista na indicada norma [artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do Código Processo Penal] a falta no dispositivo da sentença de decisão condenatória ou absolutória [cf. artigo 374.º, n.º 3, alínea b), do Código Processo Penal].
No caso concreto, a análise do acórdão recorrido em conjugação com o exame do processo permite confirmar, de modo linear, a total omissão de pronúncia pelo tribunal a quo sobre a existência de concurso real dos imputados dois crimes de violência doméstica praticados contra a vítima CC ou de unidade criminosa dos comportamentos dirigidos contra a mesma, bem assim a absoluta falta de fundamentação jurídica quanto ao entendimento adotado pelo tribunal, sendo a final proferida decisão condenatória quanto a um crime de violência doméstica perpetrado contra a mencionada vítima, sem menção alguma condenatória ou absolutória quanto ao outro imputado crime.
Como se referiu supra, por despacho de 13-04-2023, proferido em AUTO DE INQUIRIÇÃO (Referência: 447406616) foi determinada a apensação aos presentes autos, com o n.º 383/20.6GAVNG e em que é única ofendida CC, do processo com o n.º 40/23.1GAVNG, em que são ofendidos CC, BB e DD.
Por despacho de 19-05-2023 (Referência: 448602605) foi decidido pronunciar o arguido AA pelos factos e incriminações constantes das acusações proferidas nos indicados processos.
No acórdão recorrido o tribunal a quo assinala, no relatório, a totalidade dos crimes imputados ao arguido nas acusações do processo principal e do processo apenso, na fundamentação inclui, na fixação da matéria de facto, os factos abrangidos em ambos os processos, e no enquadramento jurídico dos factos refere expressamente que ao arguido são imputados quatro crimes de violência doméstica.
A matéria de facto provada fixada no acórdão contém os factos correspondentes à descrição dos acontecimentos narrados na acusação do processo n.º 383/20.6GAVNG, nos pontos 1 a 22, mas não inclui a vertente subjetiva das condutas, descrita nos últimos cinco parágrafos da acusação; nos pontos 17 a 46 inclui os acontecimentos narrados na acusação do processo n.º 40/23.1GAVNG.
Contudo, em sede de subsunção jurídica dos factos provados, o acórdão não dedica menção alguma sobre o entendimento do tribunal coletivo relativamente à unidade ou pluralidade de infrações cometidas pelo arguido contra CC.
A exposição dos motivos de direito que fundamentam a decisão, excluída a explanação teórico/abstrata sobre o tipo de crime e seus elementos constitutivos, encontra-se reproduzida supra e na mesma o tribunal, além de indicar resumidamente as apuradas condutas do arguido, limita-se a concluir que o comportamento do arguido (a totalidade das apuradas condutas) preenche os elementos típicos do crime de violência doméstica quanto à assistente CC, relativamente ao ofendido DD, mas já não quanto à filha menor da assistente.
No âmbito da determinação da sanção o tribunal a quo, tendo por adquirido que o comportamento do arguido integra dois crimes de violência doméstica, fixa as penas parcelares correspondentes a um crime em que é vítima CC e a um outro crime perpetrado contra o ofendido DD, e seguidamente determina a pena do concurso de crimes.
Em sede de dispositivo o tribunal a quo omite qualquer indicação sobre a decisão tomada quanto a um dos imputados crimes de violência doméstica em que é vítima CC.
Perante o exposto, mostra-se notório e inequívoco que o acórdão recorrido padece de nulidade por omissão de pronúncia e falta de fundamentação quanto a um dos crimes de violência doméstica de que o arguido se encontra pronunciado, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea a), por referência ao artigo 374.º, n.ºs 2 e 3, alínea b), do Código Processo Penal. Tal vício não é suscetível de ser sanado por este tribunal de recurso, competindo ao tribunal da primeira instância que proferiu a decisão a respetiva sanação.

2.3- A recorrente invoca também a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia e falta de fundamentação quanto às penas acessórias que integravam as incriminações constantes das peças acusatórias, para as quais a decisão instrutória remeteu.
Nesse sentido, alega que o acórdão não se pronunciou quanto à imposição do afastamento da residência ou do local de trabalho da vítima e a fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, nos termos previstos no n.º 5 do artigo 152.º do Código Penal, tal como é omisso sobre a imposição da obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica, como preceituado no n.º 4 do mesmo artigo. Além disso, a decisão carece de fundamentação, de facto e de direito, quanto ao invocado critério da “suficiência” da pena acessória determinada.
Vejamos.
Quanto à matéria em análise o tribunal a quo, após a menção sobre as penas previstas no artigo 152.º, n.ºs 4, 5 e 6, do Código Penal, limitou-se a afirmar, de modo conclusivo, que considera adequada e suficiente a pena acessória de proibição de contato com os ofendidos CC e DD e que não se justifica a aplicação das restantes penas acessórias requeridas pelo Ministério Público.
O dispositivo do acórdão recorrido contém a menção de: aplicação da pena acessória de proibição de contacto com os ofendidos CC e DD, nos termos do n.º 4, do artigo 152.º, do Código Penal.
Ora, atento o teor da norma legal convocada, resulta notória a imprecisão e indefinição da pena acessória imposta.
Apesar da forma vaga e conclusiva usada pelo tribunal a quo, não pode afirmar-se a total omissão de pronúncia quanto às demais penas acessórias requeridas pelo Ministério Público, sucede antes que todas foram consideradas desnecessárias.
No entanto, mostra-se notória a falta de fundamentação da invocada desnecessidade assim como da afirmada suficiência da pena imposta, pois, não indica o tribunal a factualidade em que se apoia e a apreciação jurídica que lhe merece, em ordem a concluir nos termos indicados.
Ou seja, de novo, o tribunal a quo omitiu ostensivamente o dever de fundamentação a que estava vinculado, enfermando o acórdão recorrido da nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea a), por referência ao artigo 374.º, n.º 2, ambos do Código Processo Penal, não sendo tal vício suscetível de sanação por este tribunal de recurso.
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Assim sendo, impõe-se declarar a nulidade do acórdão recorrido e determinar a devolução dos autos à primeira instância, para aí ser reformulada a decisão e expurgada dos apontados vícios, resultando prejudicado o conhecimento da outra questão colocada no recurso.
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III. DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em:
- rejeitar o recurso interposto pela assistente da decisão que alterou o estatuto coativo do arguido;
- rejeitar o recurso interposto pela assistente do segmento decisório do acórdão que absolve o arguido da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, d), e 2, alínea a), do Código Penal, em que é vítima BB;
- conceder parcial provimento ao recurso, e, em consequência, declaram a nulidade do acórdão recorrido e determinam a devolução dos autos à 1.ª instância, onde pelo mesmo tribunal coletivo deverá ser proferido novo acórdão, no qual se mostrem sanados os vícios enunciados supra.
Sem custas.
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Comunique de imediato o presente acórdão ao tribunal da 1.ª instância.
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Porto, 06 de março de 2024
Maria dos Prazeres Silva
Jorge Langweg
Elsa Paixão
__________________
[1] Procede-se à transcrição da factualidade fixada, bem assim dos segmentos do acórdão relevantes para a apreciação do recurso.
[2] Vd. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 03-11-2010, proc. 54/09.4GBPRD-B.P1, disponível em www.dgsi.pt.
[3] Vd. Pereira Madeira, Código Processo Penal Comentado, 4.ª edição Revista, pág. 1281.
[4] Vd. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, II Volume, 5.ª edição atualizada, pág. 580.
[5] Vd., entre os mais recentes, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 31-01-2024, proc. 809/22.4PHAMD.L1.S1; de 14-07-2022, proc. 811/21.3PAPTM.S1; de 06-05-2021, proc. 214/19.0JDLSB.L1.S1; de 03-02-2021, proc. 4038/18.3JAPRT.P1.S1; de 11-09-2019, proc. 75/17.3GCPTM.E1.S1 ( e jurisprudência aí elencada), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[6] Vd. Pereira Madeira, Código Processo Penal Comentado, 4.ª edição Revista, pág. 1284.
[7] Vd. Citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31-01-2024, proc. 809/22.4PHAMD.L1.S1.
[8] Também reproduzido no referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31-01-2024, proc. 809/22.4PHAMD.L1.S1.
[9] Vd. Maia Costa, Código Processo Penal Comentado, 4.ª edição Revista, págs. 849-850.
[10] Vd. Maia Costa, ob. citada, pág. 850; Pedro Soares de Albergaria, Comentário Judiciário do Código Processo Penal, tomo I, pág. 821; Acórdão da Relação de Coimbra de 03-04-2019, proc. 1654/17.4JAPRT.C1, disponível em www.dgsi.pt. Vd., em sentido contrário, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, I Volume, 5.ª edição atualizada, pág. 294, (…) o assistente tem o direito constitucional de interpor recurso da decisão que aplique, modifique, substitua ou revogue medida coativa de maneira que o assistente considere insuficientemente tutelados os perigos de fuga ou de continuação da atividade criminosa, independentemente de o Ministério Público recorrer ou não, independentemente de o assistente ter sido o requerente da aplicação da medida de coação ou de ela ter sido requerida pelo Ministério Público. Também, Paulo Pinto de Albuquerque, ob. citada, pág. 585, (…) [o assistente] tem legitimidade para recorrer de “decisões sobre medidas de coação quando esteja em causa um perigo de continuação da atividade criminosa contra si” (…); e ainda do mesmo autor, ob. citada, pág. 956, Além do MP, também o assistente tem direitos constitucionais que não foram devidamente tidos em conta pela disposição do artigo 219.º, nº 1.,399.º, e 401º, nº 1, alínea b), do CPP de acordo com a qual não se admite o direito n.º 1,399.º, e 401º, n.º 1, alínea b), do CPP de acordo com a qual não se admite o direito do assistente de interpor autonomamente recurso da decisão que aplique, modifique, substitua ou revogue medida de coação.
[11] Vd. Maia Costa, Código Processo Penal Comentado, 4.ª edição Revista, pág. 850.
[12] Vd. Helena Morão, CORRUPÇÃO EM PORTUGAL AVALIAÇÃO LEGISLATIVA, UNIVERSIDADE CATÓLICA EDITORA, Lisboa 2021, pág. 657, Tendo em conta que, à luz do artigo 40.º do Código Penal, a aplicação de penas promove a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo a pena aplicada ultrapassar a medida da culpa, e não a tutela directa de um interesse do ofendido, e, não cabendo no âmbito do direito ao recurso do assistente a mera fiscalização da legalidade do exercício do poder punitivo do Estado, não se pode afirmar que uma decisão condenatória lhe seja, em regra, desfavorável. Porém, deve admitir-se o recurso do assistente quando este entenda que a pena aplicada não é suficiente para garantir a sua própria segurança”, na medida em que a finalidade de prevenção especial positiva também se destina a evitar a reincidência, ou quando se suscite um problema de reparação ou quando se suscite um problema de reparação material ou moral do mal do crime no domínio da aplicação da pena.
[13] Cfr., entre outros, Acórdãos do Supremo Tribunal Justiça de 25-05-2006, proc. 06P1389 ; de 23-10-2008, proc. 08P2869, disponíveis em www.dgsi.pt.