PRINCÍPIO DA VERDADE MATERIAL
CONDENAÇÃO EXTRA VEL ULTRA PETITUM
Sumário


I- Para o apuramento da verdade material, o artigo 72.º do Código Processo do Trabalho impõe ao Juiz considerar na decisão da causa factos essenciais que, embora não articulados pelas partes, tenham surgido no decurso da produção da prova em audiência de julgamento.

II- A aplicação do artigo 74.º do Código Processo do Trabalho é oficiosa e justifica-se quando estão em causa direitos indisponíveis do trabalhador, como a retribuição, na vigência do contrato de trabalho.

Texto Integral



Processo n.º 13358/20.6T8LSB.L1.S1


Recurso revista


Relator: Conselheiro Domingos Morais


Adjuntos: Conselheiro Mário Belo Morgado


Conselheiro Júlio Manuel Vieira Gomes


Acordam os Juízes na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça


I.Relatório


1. - AA intentou acção com processo declarativo comum, contra


RTP, Rádio e Televisão de Portugal, S.A., pedindo:


1. Reconhecer a integração do A., na categoria profissional de Especialista, no escalão remuneratório 2A, atentas as progressões normais da carreira do A. se o mesmo fosse corretamente integrado em cumprimento com o douto acórdão que a condenou; E bem assim,


2. Ser condenada a pagar ao A. as diferenças salariais decorrentes dessa não integração, no montante de € 242.887,85 (Duzentos e Quarenta e Dois Mil Oitocentos e Oitenta e Sete Euros e Oitenta e Cinco Cêntimos), até 31 de dezembro de 2019, bem como nas que se vencerem de 01 de janeiro de 2020 e na pendência da presente ação, até à data do seu trânsito em julgado e cumprimento integral pela R.;


3. Ser condenada a complementar os valores entregues a título de comparticipação do Plano Complementar de Reforma, desde 2006, data em que o mesmo passou a existir, a fim de cumprir com o estabelecido no AE de 2006, com as atualizações futuras de remuneração conforme as alterações remuneratórias que venham a ser reconhecidas ao A.


4. E ainda, deve ser condenada a suportar os danos patrimoniais tidos pelo A., por responsabilidade sua no cumprimento das suas obrigações declarativas, no montante de € 7.428,92;


5. Ser a R. condenada a indemnizar o A. pelos danos morais causados com a sua atuação, grave e repetida, suscetível de integrar a prática de mobbing, na medida em que viola sistematicamente os direitos e garantias do trabalhador, no montante de € 15.000,00 (Quinze Mil Euros).


À totalidade do montante do pedido deverão acrescer juros à taxa legal, desde a data da citação até efetivo e integralmente pagamento, e que até 31 de dezembro de 2019 somavam € 89.418,96.”.


2. - A Ré contestou, por excepção e por impugnação, concluindo:


a) Deve a invocada exceção de prescrição de créditos salariais e juros relativos ao período compreendido entre 1998 e 06.04.2015 ser julgada procedente e a Ré absolvida parcialmente dos pedidos formulados pelo A.;


b) Deve, em qualquer caso, a invocada exceção de remissão abdicativa de alguns créditos peticionados pelo A. ser julgada procedente e, em consequência, a Ré parcialmente absolvida dos pedidos formulados pelo A.;


c) Deve, em qualquer caso, a presente ação ser julgada totalmente improcedente, por não provada, e a Ré absolvida integralmente dos pedidos formulados pelo A.;


d) Caso assim não se entenda, o que por mero dever de patrocínio se equaciona, sem conceder, devem as eventuais diferenças salariais que venham a ser consideradas devidas tomar em consideração as regras que vigoraram, entre 2011 e 2016, em matéria de reduções remuneratórias e de suspensão da contagem da antiguidade para efeitos remuneratórios.”.


3. - Na 1.ª Instância foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:


Por tudo o exposto, julgo a presente ação totalmente improcedente e em consequência absolvo a R. do pedido.”.


4. - O Autor apelou e o Tribunal da Relação acordou:


“- Julgar parcialmente procedente a impugnação da matéria de facto nos termos supra mencionados;


- Julgar a acção e o recurso parcialmente procedentes e, em consequência, alterar a sentença recorrida e condenar a Ré a reconhecer ao Autor, a partir de Janeiro de 2006 e até Dezembro de 2017, o nível de desenvolvimento 2B da categoria profissional de Assistente de Programas/Informação e a pagar-lhe as respectivas diferenças salariais, acrescidas de juros de mora devidos desde a data do respectivo vencimento e até integral pagamento, montantes a apurar em incidente de liquidação caso se revele necessário, tudo sem prejuízo das restrições orçamentais ditadas pelas Leis do Orçamento do Estado que vigoraram entre 2011 e 2018.


- Manter, no mais, a sentença recorrida.”.


5. - O Autor interpôs recurso de revista, concluindo, em síntese:


16. Entende o Autor que, deve a Ré também ser condenada, no âmbito da categoria profissional de assistente de programas/informação, a reconhecer ao Autor o direito às atualizações salariais na proporcionalidade direta das revisões da AE/Matérias salariais desde abril de 1998 até á entrada em vigor do novo ACT em Janeiro de 2006, publicado BTE n.º 16 de 29 de Abril de 2006, e que corresponde à seguinte:


a) Em 1998, a partir do mês de abril, é aplicável a decisão do TRL e STJ sobre a média da remuneração mensal ser de 1.215,04€.


b) Em 1998, no mês de setembro, surge uma progressão escalonar com uma variação padrão entre escalões do Nível 7 de 6,0%. Se o Autor beneficiasse dessa progressão que lhe foi feita, passaria a auferir uma remuneração de 1 287,94€.


c) Em 1999, com efeitos a de 1 de janeiro, ocorre a publicação da Ordem de Serviço n.º 11 de 28 de abril de 1999 sob o título Revisão do AE/Matéria salarial, que estipula um aumento da Tabela Salarial de 2,8% relativa à Tabela Salarial em vigor no ano anterior, passando a remuneração a ser de 1 324,00€.


d) Em 2000, com efeitos a de 1 de janeiro, dá-se a publicação da Ordem de Serviço n.º 12 de 2 de junho de 2000, sob o título Revisão do AE/Matéria salarial, estipula um aumento da Tabela Salarial de 2,48% relativa à Tabela Salarial em vigor no ano anterior, sendo que passaria a remuneração a ser de 1 356,84€.


e) Em 2001, com efeitos a de 1 de janeiro, ocorre a publicação da Ordem de Serviço n.º 07 de 17 de abril de 2001, sob o título Revisão do AE/Matéria salarial, estipula um aumento da Tabela Salarial de 3,50% relativa à Tabela Salarial em vigor no ano anterior, transversal a toda a empresa, sendo que a remuneração do Autor passaria a ser de 1404,33€.


f) Em 2001, no mês de setembro, o Autor teve mais uma progressão escalonar como uma variação padrão entre escalões do Nível 7 de 6,0%, sendo que por força dela a Remuneração de Categoria passaria a ser de 1 488,59€.


g) Em 2004, no mês de março, com efeitos a 1 de janeiro, é publicada a Ordem de Serviço n.º 10, de 10 de março, sob o título Política Salarial – Adiantamento, estipula que a cada trabalhador com uma renumeração igual ou inferior a 2875,00€ é atribuição do Adiantamento mensal ilíquido de 40,00€, pelo que a remuneração mensal passaria a ser de 1.528,59 (1488,59€ + 40,00€).


h) Em 2004, no mês de setembro, surge mais uma progressão escalonar como uma variação padrão entre escalões do Nível 7 de 6,0%, sendo que a Remuneração de Categoria passaria a ser de 1 577,90€.


i) Em 2004, no mês de dezembro, para efeitos de cálculo da Remuneração Base Futura prevista número 1 do Artigo 3.º, do PA, do ACT publicado no BTE n.º 16, de 29 de abril de 2006, a remuneração de categoria seria de 1 577,90€, ao qual acrescem os € 40,00 correspondentes ao adiantamento criado pela Ordem de Serviço n.º 10 de 10.03.2004.


(…).


22. Ora, a alínea 1 do Artigo 3.º do PA do ACT, publicado no BTE n.º 16 de 29 de abril de 2006, define que a integração processar-se-á no nível salarial que apresente menor desvio, por excesso ou por defeito. Assim, as posições remuneratórias da Tabela Salarial presente no Anexo III-A (pág. 1478) do ACT, mais próximas do valor 1 617.90€, são as posições remuneratórias n.º 31 e n.º 32, com um uma remuneração de categoria de 1 600,00€ e 1.647,00€ respetivamente. Aplicando a disposição da alínea 1 do Artigo 3.º da PA do ACT, publicado no BTE n.º 16 de 29 de abril de 2006, que define a integração ser processada no nível salarial que apresente menor desvio, por excesso ou por defeito, a posição remuneratória que apresenta menor desvio em relação ao valor de 1 617,90€ é a posição n.º 31 com um valor de remuneração de categoria de 1 600,00€. A posição n.º 31 com um valor de remuneração de categoria de 1.600,00€ corresponde ao nível de desenvolvimento 3B da função tipo/categoria de Assistente de Programas/Informação da área de conhecimento de produção de programas conforme o III do Anexo II-A do ACT publicado no BTE n.º 16 de 29 de abril de 2006 (pág. 1446 e 1447). Como a remuneração de categoria apurada foi de 1.617,90€ e posição remuneratória que apresenta menor desvio é a posição n.º 31 com um valor de remuneração de categoria de 1 600,00€, o Subsídio de Integração para a Remuneração de Base Futura será de 17,90€.


(…).


Termos em que se requer que seja proferido ACÓRDÃO condenando a Ré a integrar efetivamente o Autor, no Acordo de Empresa vigente à data da sentença, reconhecendo ao Autor todas as suas progressões escalonares, e revisões em matéria salarial aplicáveis, bem como delas extraindo todas as consequências remuneratórias, desde 1998 e até ao presente momento, nomeadamente em termos de integração no CCT de 2006, e demais direitos decorrentes desse reconhecimento remuneratório, em todas as matérias salariais abordadas no presente recurso, sendo estas mera decorrência da aplicação da Lei!”.


6. - A Ré interpôs recurso de revista, concluindo, em síntese:


c) O Acórdão violou, designadamente, o disposto no artigo 615.º, número 1, alínea e), conjugado com o artigo 674.º, número 1, alínea c), ambos do CPC, pelo facto de ter excedido claramente o objeto do recurso (pois trata-se de questão que não foi sequer suscitada pelo A., ora Recorrido), como o próprio Tribunal a quo, no seu Acórdão, reconhece expressamente “… a Ré não integrou devidamente o Recorrente no nível de desenvolvimento que lhe correspondia, conclusão que não foi posta em causa pelas partes.” (sublinhado nosso);


d) Em qualquer caso, o Acórdão Recorrido sempre seria ilegal. Em primeiro lugar, porque a integração do Recorrido no ACT foi feita corretamente, com total respeito pelas regras (fórmulas) constantes, nomeadamente, do artigo 3.º do Protocolo de Acordo que antecede o texto do ACT, segundo o qual a integração seria feita com o menor desvio possível entre a soma da remuneração base anterior, acrescida de eventuais adiantamentos (nos termos do AE) e a soma do valor da remuneração de categoria, acrescida da remuneração de antiguidade (de acordo com o novo ACT). Ora, o Recorrido auferia, antes da integração no ACT, um total de € 1.255,04 (base + adiantamento), tendo passado a auferir € 1.278,00 (soma da remuneração de categoria com a remuneração de antiguidade). Ou seja, passou até a beneficiar de um desvio (positivo) de € 22,96.


Note-se que, caso o Recorrido tivesse sido integrado nos termos da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, o mesmo teria passado a auferir, a título de remuneração de categoria e de antiguidade, o montante global de € 1.352,55 (€ 1.270,00 de remuneração de categoria + € 82,55 de remuneração de antiguidade), o que implicaria que o desvio (positivo) passasse a ser de € 97, 51, ou seja, bastante superior (mais de quatro vezes superior), em claro desrespeito pelas referidas regras de integração, que impunham que o desvio fosse o menor possível.


e) Por conseguinte, tendo decidido nos termos descritos, o Acórdão Recorrido violou também, nomeadamente, o disposto no artigo 3.º do Protocolo de Acordo do ACT onde o Recorrido foi integrado em 2006;


f) Depois porque, no caso concreto, verificam-se duas circunstâncias que sempre tornariam desnecessário o uso de tal mecanismo para tutela dos direitos do Recorrido (a existirem, naturalmente, o que não é o caso). Por um lado, porque trata-se de um pedido que não foi formulado pelo Recorrido, o que significa que o mesmo não fica inibido de fazer tal exigência, no futuro, numa nova ação, beneficiando, aliás, do regime de prescrição dos créditos emergentes de contrato de trabalho, constante do artigo 337.º do CT. Por outro, porquanto as diferenças salariais são contabilizadas apenas até 2018, altura que se verificou uma alteração do escalão do Recorrido. O que significa que, tratando-se de créditos respeitantes a um período anterior à propositura da presente ação e tendo em conta que, a partir de 2018, tais créditos sempre deixariam de ser contabilizados, em face do aumento da remuneração do Recorrido, não se verificam, no caso concreto, as exigências normalmente associadas à especial tutela de que beneficiam os créditos salariais, ligados à subsistência do trabalhador;


g) Tendo decidido de outra forma, o Tribunal a quo violou, manifestamente, o disposto no artigo 74.º do CPT;


h) A ilegalidade do Acórdão Recorrido, resultante da violação do disposto no referido artigo 74.º do CPT, deriva também da ausência de pressupostos para aplicação de tal preceito legal: as disposições consideradas inderrogáveis são apenas aquelas que consagrem direitos irrenunciáveis do trabalhador, aplicando-se e regulando situações jurídicas indisponíveis e, por isso, subtraídas à vontade das partes (cfr., a este propósito, o disposto no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de dezembro de 2010, bem como a análise de PAULO SOUSA PINHEIRO in A condenação Extra vel Ultra Petitum no Código de Processo do Trabalho, pp. 230); tem de existir um respeito mínimo pelo pedido formulado, não sendo possível extravasar, de forma excessiva, o âmbito do mesmo, o que sucedeu, justamente, no Acórdão Recorrido;


i) Caso fosse admissível a condenação extra vel ultra petitum quanto a esta matéria, esta sempre teria de ser feita pelo Tribunal de 1.ª Instância, por ser esta a instância adequada à apreciação dos factos, mesmo que não alegados pelas partes, tal como prevê o artigo 72.º do CPT, pelo que o Tribunal a quo violou também, na sua decisão, o disposto neste preceito legal;


j) Por fim, o Acórdão Recorrido é, em qualquer caso, pelo menos parcialmente ilegal, no segmento em que condenou a Recorrente a liquidar diferenças salariais relativamente ao período da requisição na Câmara Municipal ..., porquanto: i) quem tinha a obrigação de pagar a retribuição ao Recorrido era a Câmara Municipal ... e não a Recorrente; ii) a obrigação da Recorrente era apenas e só, no limite, de comunicar o valor da remuneração que seria devida ao Recorrido, caso tivesse permanecido ao seu serviço; iii) assim, no máximo e sem conceder, o Recorrido poderia reclamar da Recorrente uma indemnização por eventuais prejuízos sofridos, resultantes de, eventualmente por culpa da Recorrente, não ter recebido, durante a requisição, a totalidade da remuneração a que teria direito por aplicação do regime retributivo que existia na Recorrente; iv) porém, o Recorrido não peticionou, na sua p.i., qualquer quantia a este título, isto é, de indemnização por supostos prejuízos sofridos pelo facto de, alegadamente, a Recorrente ter comunicado à Câmara Municipal ... valores inferiores aos que lhe seriam devidos (prejuízos esses que, aliás, também não foram dados a conhecer nos presentes autos); v) é inequívoco que, relativamente ao período da requisição, o Recorrido não tem qualquer crédito salarial sobre a Recorrente, pelo que a condenação aqui em causa não poderia nunca ter ocorrido, em qualquer circunstância, a título de diferenças salariais (ou seja, jamais seria sequer equacionável a aplicação do disposto no artigo 74.º do CPT, pelo facto de, inequivocamente, não estarmos perante a necessidade de aplicação de qualquer preceito inderrogável de leis ou instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho);


k) Por conseguinte, ter-se-á de considerar que, neste ponto, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa violou, novamente, o disposto no artigo 74.º do CPT, pelo que deverá, em qualquer caso, ser pelo menos parcialmente revogado.”.


7. - Por despacho do Relator, de 06 de outubro de 2023, foram admitidos ambos os recursos de revista, “excepto quanto ao segmento decisório referente às diferenças salariais relativas ao período entre 1998 e 2005, por dupla conforme”, no que reporta à revista do Autor.


8. - O Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência de ambos os recursos de revista, mantendo-se o douto acórdão recorrido.


9. - Cumprido o disposto no artigo 657.º, n.º 2, ex vi do artigo 679.º, ambos do CPC, cumpre apreciar e decidir.


II.Fundamentação de facto


1. - As Instâncias consideraram provados os seguintes factos:


“1. O A. foi admitido pela R., em 01/08/1992 por meio da celebração de diversos contratos de prestação de serviços, tendo intentado, em 2002, uma ação judicial contra a R., em que reclamou o reconhecimento do seu vínculo como laboral, desde o início da sua prestação;


2. Foi proferida decisão transitada em julgado na qual foi decidido, entre o pagamento de valores pecuniários, que o reconhecimento da categoria de arquivista de nível 4, até 31 de julho de 1993; técnico administrativo de nível 6, a partir de 1 de agosto de 1993 e até 31 de julho de 1995; assistente de programação/realização, nível 7, escalão base, a partir de 1 de agosto de 1995, em termos e condições que constam de fls. 41 a 48 dos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido;


3. De acordo com a dita decisão a remuneração mensal do A. deveria ser de €1.215,04 desde abril de 1998;


4. O A. foi integrado na categoria de Assistente de Programas/Informação ND2C, e a sua progressão foi feita pela R. de acordo com a sua ficha curricular em 23/08/2018 em termos que constam de fls. 81 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido; alterado pela Relação para:


4. O Autor foi integrado na Ré na categoria profissional de Assistente de Programas/Realização com efeitos a 1 de Agosto de 1995 e, com a entrada em vigor do ACT de 2006, publicado no BTE n.º 16 de 19.04.2006 e consequente extinção dessa categoria profissional, o Autor foi integrado na categoria de Assistente de Programas/Informação ND2A entre Abril de 2006 a Dezembro de 2017 e no ND2C em Janeiro de 2018 e a sua progressão foi feita pela Ré de acordo com a sua ficha curricular em 23/08/2018 em termos que constam de fls. 81 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.


5. O A. tem uma licenciatura em Urbanismo e Planeamento Urbano;


6. O A. participou na produção de programas, a nível nacional e internacional/exteriores, nomeadamente, no âmbito do programa C..., em que era locutora BB, em ..., na produção de espetáculos de música e de entretenimento para transmissões em direto e em diferido, na RTP África pelo período de um ano, no ano de 1997/1998;


7. Nos anos de 1998 a 2001/2002 o A. trabalhou na área da informação; alterado pela Relação para:


7. Nos anos de 1998 a 2001/2002 o Autor, a par de outras funções, também fazia produção de informação.


8. Quando a Direção de Emissões Internacionais (DEI) acabou, em 2001/2002, o A. foi integrado numa área que era a Supervisão de Emissão da Direção de Programas;


9. O A. esteve a trabalhar, por conta da R. mas ao serviço da Câmara Municipal ... de 1/1/2010 até 31 de dezembro de 2013 com manutenção das condições vigentes mas pagas por aquela autarquia;


10. No ano de 1998, a R. remunerou o A., no valor total de € 18.349,19;


11. No ano de 1999, a R. remunerou o A., num total de € 23.763,55.


12. No ano de 2000, a R. remunerou o A., num total de € 24.115,41;


13. No ano de 2001, a R. remunerou o A., num total de € 24.037,74.


14. No ano de 2002, a R. remunerou o A., num total de € 24.954,71.


15. No ano de 2003, a R. remunerou o A., num total de € 24.278,46.


16. No ano de 2004, a R. remunerou o A., num total de € 27.182,32.


17. No ano de 2005, a R. remunerou o A., num total de € 22.338,71


18. No ano de 2006, a R. remunerou o A., num total de € 24.423,22.


19. No ano de 2007, a R. remunerou o A., num total de € 26.179,78.


20. No ano de 2008, a R. remunerou o A., num total de € 25.385,98.


21. No ano de 2009, a R. remunerou o A., num total de € 25.534,32.


22. No ano de 2014, tendo regressado à R., logo a 01 de janeiro, a R. remunerou o A., num total de € 25.940,68.


23. No ano de 2015, a R. remunerou o A., num total de € 24.042,67.


24. No ano de 2016, a R. remunerou o A., num total de € 23.476,10.


25. No ano de 2017, a R. remunerou o A., num total de € 23.751,67.


26. No ano de 2018, a R. remunerou o A., num total de € 27.736,71.


27. No ano de 2019, a R. remunerou o A., num total de € 27.989,25;


28. A R. negou inicialmente o estatuto de trabalhador-estudante ao A. para obtenção do mestrado;


29. O modelo 10 de IRS apresentava incorreções de preenchimento por parte da R., cuja explicação a mesma conferiu ao A., em termos que constam de fls. 177 dos autos e cujo teor se dá por integralmente reproduzido;


30. O A. foi alvo de um processo de execução fiscal cujo valor ascendeu a €6.509,35, em 20/1/2009, com base na falta de pagamento dentro de prazo de IRS do ano de 2006, em termos que constam de fls. 144 a 147 dos autos e cujo teor se dá por integralmente reproduzido;


31. A R. pagava ao A. em 2006 a quantia mensal de €1.200 de remuneração categoria, €78 de remuneração antiguidade e €11,15 de subsídio de integração;


32. Antes auferia mensalmente o vencimento base de €1.215,04, acrescidos de €40 de adiantamento.


*


A 1ª instância considerou que os demais factos ficaram por provar e ainda que, com relevo para a decisão da causa, ficou por provar que:


1. O A. não realiza funções relacionadas com a área da informação;


2. Na DEI todos os colaboradores tinham a categoria profissional de assistente às operações;


3. Em reunião de conselho de administração foi aprovada a passagem do A. para a nova direção, com a categoria profissional de especialista, tendo dois ou três dias depois o presidente CC negado esse direito ao A.;


4. O Presidente telefonou para o Diretor do A. a exigir que fizessem tudo o que podiam para que o A. se despedisse, ou fosse despedido, ou na falta de fundamento, este fosse colocado no arquivo a arrumar cassetes.


5. Sendo que, na A., a função de “arrumar cassetes no arquivo” era entendida como castigo, e pressão para que os trabalhadores cedessem e se despedissem;


6. No ano de 2010, o A. foi cedido, em janeiro, à Câmara Municipal ..., ao abrigo de um contrato de cedência de interesse público, e auferiu desta entidade a remuneração de total de € 30.406,70.


7. No ano de 2011, ainda ao abrigo desse contrato de cedência de interesse público, o A. auferiu remunerações, no total de € 28.354,90.


8. No ano de 2012, ainda ao abrigo desse contrato de cedência de interesse público, o A. auferiu remunerações, no total de € 24.304,20.


9. No ano de 2013, e até ao mês de dezembro, e ainda ao abrigo desse contrato de cedência de interesse público, o A. auferiu remunerações, no total de € 26.329,56;


10. A R. comprometeu-se a contribuir para um plano complementar de reforma dos seus trabalhadores, com um montante correspondente a 6% da remuneração fixa dos trabalhadores, que engloba a soma da remuneração de categoria, remuneração de antiguidade e subsídio de integração;


11. Em 2002, com a reestruturação da R., a Direção de Emissões Internacionais, onde o A. trabalhava, foi dissolvida o A. foi integrado numa área que não correspondia à da sua categoria profissional, na área da supervisão de emissões, onde só trabalhavam pessoas com a categoria profissional de assistente às operações;


12. Em sede de reunião do Conselho de Administração, foi aprovada a transferência do A. para a área do Arq.º DD;


13. As deliberações tomadas no Conselho de Administração eram revistas e ratificadas pelo Presidente do Conselho de Administração, Dr. CC;


14. Pelo que, algum tempo depois, chegou ao conhecimento do A. que o Presidente da R., CC, rejeitou a colocação do A. nessa posição, dizendo que o A. “constava da lista negra”.;


15. O A. chegou a ser avisado de que seria alvo de perseguição dentro da empresa por ter reclamado judicialmente a sua situação de trabalhador dentro da R;


16. O A. passou a ser tratado com desrespeito absoluto, e como “alvo a abater”;


17. Por temer que o A. conseguisse melhorar as suas competências académicas, nomeadamente através do mestrado que o A. se propôs fazer, para ter a progressão na carreira que lhe deveria ter sido concedida, e não foi, a R. recusou conceder ao A. o estatuto de trabalhador estudante;


18. Os factos supra referidos, e a não atribuição da categoria adequada por parte da R. colocaram o A. numa situação de depressão, e destruiu a sua auto-estima;


19. O facto referido em 29 originou um processo executivo de natureza fiscal no qual o A. foi executado.”.


III - Fundamentação de direito.


1. - Do objeto dos recursos de revista:


1.1. - Do Autor:


- Aplicando o CCT de 2006, publicado no BTE n.º 16, de 29 de Abril de 2006, e ao abrigo da al. 1) do artigo 3.º do PA de ACT, o Autor dever ser integrado no Nível de Desenvolvimento 3B, da função tipo/categoria de Assistente de Programas/Informação da área de conhecimento de produção de programas, com a remuneração global de € 1.721,90.


- E com a seguinte progressão retributiva: (i) entre 2006 e 2012 no Nível de desenvolvimento 3B; (ii) entre 2012 e 2018 no Nível de desenvolvimento 3C; (iii) a partir de 2018 no nível de desenvolvimento 3C com coeficiente de 0,75% de Senioridade/Antiguidade.


- A remuneração do Autor, enquanto esteve cedido à Câmara Municipal ..., deveria corresponder ao nível remuneratório n.º 42 a que equivale o montante pecuniário mensal de 2.591,75€;


- Sendo atribuído ao Autor o nível de desenvolvimento 3B da Tabela Salarial para a função tipo/categoria de Assistente de Programas/Informação, os valores de Seguro de Reforma pagos entre 2006 e 2022 terão de ser atualizados pela Ré.


1.2. - Da Ré:


- A nulidade do acórdão recorrido por ter excedido o objeto do recurso - artigo 615.º, n.º 1, al. e), do CPC;


- A violação pelo acórdão recorrido do disposto no artigo 3.º do Protocolo de Acordo do ACT onde o Recorrido foi integrado em 2006;


- A violação do disposto no artigo 74.º do CPT, por desnecessário o uso desse mecanismo;


- A violação do disposto no artigo 74.º do CPT por não estarem verificados os respetivos pressupostos;


- A violação do disposto no artigo 72.º do CPT;


- O acórdão recorrido é parcialmente ilegal por a Recorrente não ser responsável pelo pagamento da remuneração no período em que o Autor esteve requisitado na Câmara Municipal ....


3. - Do recurso de revista do Autor.


3.1. - No despacho do Relator, de 06 de outubro de 2023, foi consignado:


No que reporta ao período entre 1998 e 2005, ambas as instâncias consideraram que a Ré, em cumprimento de sentença judicial anterior, colocou o Autor na categoria certa (Assistente de programas/realização nível 7 base), tendo observado a progressão prevista no AE, não havendo, por isso, lugar ao pagamento de quaisquer diferenças salariais.


(…).


Deste modo, quanto a este segmento decisório verifica-se uma situação de dupla conforme.”.


Daqui resulta definitivamente assente que, até final de 2005, o Autor se encontrava corretamente integrado e auferindo as devidas retribuições.


3.2. - Decorre do teor dos pontos 31. e 32. dos factos dados como provados que, em 2005, a retribuição mensal do Autor era composta pelo “vencimento base de € 1.215,04, acrescidos de € 40,00 de adiantamento”.


O Protocolo de Acordo do ACT de 2006, publicado no BTE n.º 16, de 29 de Abril de 2006, prescreve no artigo 2.º, n.º 3:


A aplicação da tabela salarial constante do ACT anexo pressupõe o prévio enquadramento de acordo com o anexo a este protocolo e a integração na tabela salarial constante da Ordem de Serviço, n.º 4, de 17 de Fevereiro de 2005, nos termos previstos no artigo 3.º e sujeito aos limites previstos no artigo 4.º, ambos deste protocolo.”.


E no artigo 3.º, n.º 1:


Considerando que a remuneração base futura passa a integrar a soma da remuneração da categoria com o que resultar da respectiva antiguidade, a integração processar-se-á no nível salarial que apresente menor desvio (por excesso ou por defeito), conforme a fórmula a seguir indicada:


AE = valor da tabela salarial auferido a 31de Dezembro de 2004 + adiantamento (*)


Valor da tabela salarial auferido a 31 de Dezembro de 2004 + diuturnidades + adiantamento) × 1,0286 (**)


(*) RTP SGPS, RTP-SPT, RTP-MP.


(**) RDP.


ACT = remuneração da categoria + (RC×0,005×N) (*)


[remuneração da categoria + (RC×0,005×N)] × 0,925 (**)


Em que:


RC = remuneração da categoria;


N = número de anos de antiguidade completos.


(*) Horário de trabalho semanal de trinta e seis horas.


(**) Categorias da RDP com horário de trabalho semanal de quarenta horas na RTP.”.


3.3. - No acórdão recorrido pode ler-se:


Ora, não obstante a Ré ter diminuído o valor da remuneração de categoria de €1.215,04 para €1.200,00, a verdade é que o valor da retribuição base de acordo com a nova fórmula não diminuiu, resultando, ao invés, em valor superior ao que o Autor auferia. Por isso, não se nota que tenha sido violado o disposto no artigo 122.º al. d) do CT de 2003, actual artigo 129.º n.º 1 al. d) do CT de 2009.


Por outro lado, como refere o Tribunal a quo, a fórmula prevista pelo ACT coincide com o valor retributivo que a Ré paga.


Sucede, porém, que a Ré atribuiu ao Autor o nível de desenvolvimento 2A conforme decorre do facto provado sob 4.


Contudo, como refere o Tribunal a quo, da tabela salarial Anexo III-A decorre que o valor retributivo encontra-se próximo do valor de referência 23, €1270,00 e que a esse valor corresponde o nível de desenvolvimento 2B, donde, a Ré não integrou devidamente o Recorrente no nível de desenvolvimento que lhe correspondia, conclusão que não foi posta em causa pelas partes.


(…).


Como já vimos, a integração do Autor foi correctamente efectuada pela Ré na categoria profissional de Assistente de Programas/Informação. Mas errou a Ré quanto ao enquadramento no Nível de Desenvolvimento, pois devia ter atribuído ao Autor o ND 2B em vez do ND 2A.”.


O Ex.mo Sr. Procurador Geral Adjunto escreveu no seu Parecer:


“(C)onsiderando que o recorrente autor auferia antes da integração o vencimento base de €1.215,04, acrescidos de €40,00 de adiantamento, num valor total de €1.255,04, é de concluir que, de acordo com o anexo III-A (Tabela salarial) do ACT, publicado no BTE n.º 16, de 29.04.2006, o nível salarial mais próximo é o de referência 23, no valor de €1.270,00, a que corresponde o grau de desenvolvimento 2B - veja-se que o nível de desenvolvimento 2A tem por valor de referência €1.200,00 e o nível 2C o de €1.385,00.


Pelo que, conforme o decidido pelo acórdão recorrido, o recorrente autor deve ser integrado no nível de desenvolvimento 2B da tabela salarial constante do anexo III-A do ACT, publicado no BTE n.º 16, de 29.04.2006 - de resto, também a sentença de 1.ª instância tinha chegado a essa conclusão, tendo só afastado a situação por considerar que a mesma não se encontrava abrangida pelo pedido do autor.


Afigura-se, assim, e salvo melhor opinião, que não assiste razão ao recorrente autor sobre esta matéria.


3.4. - Na verdade, atenta a matéria de facto dada como provada e o teor da Tabela salarial constante do Anexo III-A, do ACT, publicado no BTE n.º 16, de 29.04.2006, pág. 1478, outra não pode ser a solução do que concordar com o decidido no acórdão recorrido e, nesta parte, julgar improcedente a pretensão do Autor.


Consequentemente, verifica-se o decaimento das restantes questões alegadas pelo Autor no seu recurso de revista, por dependentes da primeira questão julgada improcedente.


4. - Do recurso de revista da Ré:


4.1. - Da nulidade do acórdão recorrido por ter excedido o objeto do recurso – artigo 615.º, n.º 1, alínea e), do CPC.


Na alínea c) das conclusões do recurso de revista, a Ré invocou a nulidade do acórdão recorrido por ter excedido o objeto do recurso de apelação intentado pelo Autor.


O Tribunal da Relação, por acórdão conferência de 31.05.2023, referiu:


Sucede, porém, que no Acórdão entendeu-se que, no presente caso, estavam reunidos os pressupostos de aplicação do disposto no artigo 74.° do CPT, norma que, contrariamente ao que estatui o artigo 609.° n.° 1 do CPC, permite a condenação em quantidade superior ao pedido ou em objecto diverso dele.


(…).


Por conseguinte, uma vez que o enquadramento do Autor no Nível de Desenvolvimento 2B da categoria que lhe foi atribuída pela ocorreu por força da aplicação do disposto no artigo 74.° do CPT, entendemos, salvo o devido respeito, não se verificar a arguida nulidade do Acórdão, o que se indefere.”.


O artigo 615.º, n.º 1, alínea e), do CPC, dispõe: “É nula a sentença quando: O juiz condene (…) em objeto diverso do pedido.”.


A nulidade prevista na 2.ª parte da alínea e) do n.º 1 do artigo 615.º está directamente relacionada com o estabelecido no artigo 609.º, n.º 1.º, do CPC (anterior 661.º, n.º 1), segundo o qual “A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir.”


A regra da proibição da condenação ultra/extra petitum, consagrada no n.º 1 do artigo 609.º do CPC, tem a excepção prevista no artigo 74.º - Condenação extra vel ultra petitum - do Código Processo de Trabalho, precisamente, o normativo que o acórdão recorrido aplicou, após audição dos interessados sobre a matéria em causa.


Se bem, se mal consagrado, é questão diversa que não cabe no âmbito das nulidades previstas no artigo 615.º do CPC.


Improcede, pois, a invocada nulidade do acórdão recorrido.


4.2. - Da violação do disposto no artigo 3.º do Protocolo de Acordo do ACT onde o Recorrido foi integrado em 2006.


Nas alíneas d) e e) das conclusões do recurso de revista, a Ré alegou a ilegalidade do acórdão recorrido, por violação do disposto no artigo 3.º do Protocolo de Acordo do ACT onde o Recorrido foi integrado em 2006.


Esta mesma questão já foi apreciada, supra, no âmbito do recurso de revista do Autor, para cuja fundamentação remetemos e aqui reproduzimos.


Acrescente-se apenas, que a própria Ré confirma na alínea d) das conclusões que o Autor “auferia, antes da integração no ACT, um total de 1.255,04 (base + adiantamento)”, pelo que, de acordo com o Anexo III-A (Tabela salarial) do ACT, publicado no BTE n.º 16, de 29.04.2006, pág. 1478, o nível salarial mais próximo é, efetivamente, o de referência 23, no valor de € 1.270,00, a que corresponde o grau de desenvolvimento 2B, como mencionado supra.


Deste modo, inexiste a alegada violação do artigo 3.º do Protocolo de Acordo do ACT em causa.


4.3. - Da violação do disposto no artigo 74.º do CPT, (i)por desnecessário o uso desse mecanismo e (ii)por não estarem verificados os respetivos pressupostos.


Nas alíneas f), g) e h) das conclusões da revista, a Ré invocou a manifesta violação do disposto no artigo 74.º do CPT.


O artigo 74.º do CPT - Condenação extra vel ultra petitum - prescreve: “O juiz deve condenar em quantidade superior ao pedido ou em objeto diverso dele quando isso resulte da aplicação à matéria provada, ou aos factos de que possa servir-se, nos termos do artigo 412.º do Código de Processo Civil, de preceitos inderrogáveis de leis ou instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho.”.


A doutrina e a jurisprudência têm-se pronunciado, bastamente, sobre o teor do citado normativo, sendo predominante o entendimento de que a retribuição é irrenunciável e sujeita ao dever previsto no artigo 74.º do CPT.


No dizer de Abílio Neto, in Código de Processo do Trabalho Anotado, 5.ª edição, 2011, p. 193, “o art. 74.º (…) constitui precisamente um caso em que a lei impõe ao julgador um dever oficioso de aplicar a lei aos factos de que possa servir-se, em homenagem ao interesse e ordem pública que constituem pressuposto das normas imperativas e indisponíveis de natureza laboral, interesse este que é mais vasto do que o interesse individual dos titulares dos inerentes direitos na sua satisfação efectiva e que justifica a impossibilidade de afastamento de aplicação destas normas por livre determinação da vontade das partes”.


E prossegue referindo que “têm a doutrina e a jurisprudência feito uma distinção básica entre os direitos de existência necessária, mas que não são de exercício necessário, como é o caso do direito ao salário após a cessação do contrato, e os direitos cuja existência e exercício são necessários, aí situando justamente o caso dos direitos a reparação por acidente de trabalho (…) e, também, do direito ao salário na vigência do contrato. É pacífico que a condenação “extra vel ultra petitum” só se justifica neste segundo tipo de direitos, que têm subjacentes interesses de ordem pública, cabendo ao juiz o suprimento dos direitos de exercício necessário imperfeitamente exercidos pelo seu titular (ou seu representante)”. (negrito nosso)


Albino Mendes Baptista, in Código de Processo do Trabalho, anotado, 2ª edição (reimpressão), 2002, páginas 180/181, notas 5ª/6ª, ao artigo 74º, escreveu: “[a] possibilidade de condenação ultra petita é uma decorrência natural do princípio da irrenunciabilidade de determinados direitos do trabalhador.


Assim, só os direitos irrenunciáveis constituem preceitos inderrogáveis.


Exemplo de preceito inderrogável é o direito à retribuição, mas apenas na vigência do contrato, dada a situação de subordinação jurídica em que se encontra o trabalhador relativamente à sua entidade patronal.” (negritos nossos)


No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.01.2021, proc. n.º 13769/18.7T8PRT.P1.S1, in www.dgsi.pt, foi afirmado:


“(…), o Tribunal invoca o artigo 74.º do CPT porquanto a Autora pedira a sua reclassificação como a que correspondia um nível retributivo ainda superior, o nível V. Considerando que a reclassificação foi pedida em grande medida para obter a retribuição correspondente às atividades efetivamente exercidas, pode questionar-se se vai para além do pedido uma reclassificação a que corresponde uma retribuição inferior (nível VII e nível VI). Mas, em todo o caso, justifica-se plenamente a invocação do artigo 74.º do CPT e o Acórdão recorrido respeitou os pressupostos legais de aplicação do preceito: está em jogo o direito indisponível à retribuição por parte de uma trabalhadora cujo contrato está em vigor e o princípio de que há que atender às funções efetivamente exercidas pelo trabalhador para o cálculo desta retribuição, como, por exemplo, se tem reiteradamente afirmado em matéria de igualdade salarial.”.


[No mesmo sentido, cfr.:


- O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.12.2017, proc. 399/13.9TTLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt, que cita o acórdão do Supremo Tribunal de 31.10.2007, processo n.º 07S2091: “É vasta a jurisprudência e doutrina de onde ressalta que é de entender como direito de existência e exercício necessário e absoluto (e, como se deixou dito, é o exercício necessário e absoluto que confere a característica de irrenunciabilidade) o direito ao salário na vigência do contrato.


- O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.12.2018, proc. 620/16.1T8LMG.C1.S1, in www.dgsi.pt, que cita os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 30.09.2004 - Proc. 03S3775 e de 30.04.2003, proc. 2321/02 in www.dgsi.pt: «[t]êm a doutrina e a jurisprudência feito uma distinção básica entre os direitos de existência necessária, mas que não são de exercício necessário, como é o caso do direito ao salário após a cessação do contrato, e os direitos cuja existência e exercício são necessários, como é o caso do direito a indemnização por acidente de trabalho do direito ao salário na vigência do contrato, considerando que a condenação “extra vel ultra petitum” só se justifica neste segundo tipo de direitos que têm subjacentes interesses de ordem pública, cabendo ao juiz o suprimento dos direitos de exercício necessário imperfeitamente exercidos pelo seu titular (ou seu representante).”]. (negritos nossos)


No caso dos autos, mantendo-se em vigor o contrato de trabalho celebrado pelas partes, o direito à retribuição – e suas actualizações – é irrenunciável [cfr. artigo 337.º n.º 3 º do CT] e deve o Juiz protegê-lo, nos termos expostos no artigo 74.º do CPT.


Bem andou, pois, o Tribunal da Relação na concreta aplicação do artigo 74.º do CPT,


4.4. - Da violação do disposto no artigo 72.º do CPT.


Na alínea i) das conclusões da revista, a Ré defendeu a violação pelo acórdão recorrido do disposto no artigo 72.º do CPT.


O artigo 72.º - Discussão e julgamento da matéria de facto – do CPT, dispõe:


1 - Sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 5.º do Código de Processo Civil, se no decurso da produção da prova surgirem factos essenciais que, embora não articulados, o tribunal considere relevantes para a boa decisão da causa, deve o juiz, na medida do necessário para o apuramento da verdade material, ampliar os temas da prova enunciados no despacho mencionado no artigo 596.º do Código de Processo Civil ou, não o havendo, tomá-los em consideração na decisão, desde que sobre eles tenha incidido discussão.”.


E o artigo 411.º - Princípio do inquisitório - do mesmo diploma, determina:


Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.”. (negritos nossos).


Decorre dos citados normativos – e ainda do artigo 436.º do CPC: “1 - Incumbe ao tribunal, por sua iniciativa ou a requerimento de qualquer das partes, requisitar informações, pareceres técnicos, plantas, fotografias, desenhos, objetos ou outros documentos necessários ao esclarecimento da verdade.” (negrito nosso) – o poder/dever do Juiz no apuramento da verdade material.


E tal poder/dever judicial é tão relevante no sistema jurídico processual português, que o citado artigo 72.º do CPT impõe ao juiz considerar na decisão da causa factos essenciais que, embora não tenham sido articulados pelas partes, hajam surgido no decurso da produção da prova em audiência de julgamento.


Ora, no caso concreto dos autos, tendo o acórdão recorrido condenado a Ré extra vel ultra petitum com base em factos articulados pelas partes, portanto, sem a intervenção permitida pelo artigo 72.º do CPT, inexiste a alegada violação deste normativo.


4.5. - Do acórdão recorrido ser parcialmente ilegal por a Recorrente não ser responsável pelo pagamento da remuneração no período em que o Autor esteve requisitado na Câmara Municipal ....


A Ré invoca a ilegalidade parcial do acórdão recorrido com base nos fundamentos descritos na alínea j) das conclusões do recurso de revista.


No ponto 9. dos factos provados consta: “O A. esteve a trabalhar, por conta da R., mas ao serviço da Câmara Municipal ... de 1/1/2010 até 31 de dezembro de 2013 com manutenção das condições vigentes, mas pagas por aquela autarquia;”.


O artigo 241.º - Regras gerais de cedência de interesse público – da Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho (Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas), dispõe:


1 - Mediante acordo de cedência de interesse público entre empregador público e empregador fora do âmbito de aplicação da presente lei pode ser disponibilizado trabalhador para prestar a sua atividade subordinada, com manutenção do vínculo inicial.”.


E o artigo 242.º - Regime jurídico da cedência de interesse público – do mesmo diploma, determina:


1 - O trabalhador cedido fica sujeito ao regime jurídico aplicável ao empregador cessionário e ao disposto no presente artigo, salvo quando não tenha havido suspensão do vínculo, caso em que a situação é regulada pelo regime jurídico de origem, incluindo em matéria de remuneração.


2 - A cedência de interesse público sujeita o trabalhador às ordens e instruções do empregador onde vai prestar funções, sendo remunerado, salvo acordo em contrário, pela entidade cessionária.”. (negritos e sublinhado nossos)


A Ré não alegou, nem muito menos provou, como lhe competia – cfr. artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil –, se a cedência do Autor à Câmara Municipal ... foi, ou não, com suspensão do vínculo contratual, e, na afirmativa, qual a retribuição paga pela Câmara Municipal ... durante o período de 01.01.2010 até 31.12.2013.


Assim, não tendo a Ré cumprido tal ónus probatório, é da sua responsabilidade o pagamento da diferença entre a retribuição devida e a retribuição efetivamente liquidada.


Inexiste, pois, a invoca a ilegalidade parcial do acórdão recorrido.


IV. - Decisão


Atento o exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Social julgar improcedentes os recursos de revista do Autor e da Ré e manter o Acórdão recorrido.


Custas a cargo do Autor e da Ré, na proporção de metade.


Lisboa, 12 de abril de 2024


Domingos José de Morais (Relator)


Mário Belo Morgado


Júlio Manuel Vieira Gomes