REVISTA EXCECIONAL
Sumário


Assumindo o Acórdão recorrido expressamente a oposição com o Acórdão fundamento numa questão essencial para a decisão da causa há que aceitar a revista excecional.

Texto Integral



Processo n.º 1354/22.3T8LRA.C1.S2 (Revista excecional)


Acordam na Formação prevista no artigo 672.º n.º 3 do CPC junto da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,


AA, Autor da presente ação declarativa sob a forma comum, emergente de contrato individual de trabalho, contra Vidrala – Logistics, Unipessoal, Lda., veio interpor recurso de revista excecional, ao abrigo do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC, invocando contradição com o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no processo n.º 176/22.6T8LRA.C1.


Por despacho do Exmo. Relator decidiu-se estarem reunidos os requisitos gerais de admissibilidade deste recurso.


Cabe a esta Formação decidir se estão reunidos os pressupostos especiais previstos no artigo 672.º n.º 1 do CPC (no caso, mais concretamente, a alínea c) do n.º 1)


Tanto no Acórdão fundamento, como no Acórdão recorrido discutiu-se o direito a receber a retribuição específica prevista na Cláusula 61.ª dos CCTV entre ANTRAM e outra e a FECTRANS e outros, com publicação nos BTE, nº 34 de 15.09.2018 e nº 45 de 18.12.2019, respetivamente.


No Acórdão fundamento pode ler-se o seguinte:


“Como acima se referiu as Clªs em questão vieram nos CCTs de 2018 e 2019 a substituir a Clª 74º nº 7 de CCTV de 1980.


Era jurisprudência consolidada que a retribuição especial prevista na cláusula 74.ª, n.º 7, do CCT celebrado entre a ANTRAM (Associação Nacional de Transportes Rodoviários de Mercadorias) e a FESTRU (Federação dos Sindicatos de Transportes Rodoviários e Urbanos e Outros), publicado no BTE, 1.ª série, n.º 9, de 08-03-80, tem por objectivo compensar os trabalhadores motoristas de transportes internacionais rodoviários de mercadorias da maior penosidade e esforço acrescido inerentes à sua actividade, tendo sido atribuída pela consideração de que essa actividade impõe, normalmente, a prestação de trabalho suplementar de difícil controlo.


Também se encontrava consolidado o entendimento de que a referida retribuição especial não pressupõe uma efectiva prestação de trabalho suplementar, revestindo carácter regular e permanente e, como tal, integra o conceito de retribuição, sendo devida em relação a todos os dias do mês, independentemente da prestação efectiva de qualquer trabalho, acrescendo à retribuição de base.


No domínio do CCTV de 2018 seria de aceitar a interpretação segundo a qual, à semelhança do que acontecia no anterior CCTV (de 1980), a quantia prevista na sua Clª 61ª só seria devida aos motoristas de pesados quando estivesse demonstrado que o desempenho da condução fosse susceptível de apresentar uma maior penosidade e um esforço acrescido.


Contudo, no que concerne `Clª 61ª do CCTV de 2018 não se pode olvidar o que as partes outorgantes fizeram consignar na acta interpretativa de 09.01.2019, que (ponto 13): “A presente cláusula, apesar de ter como epigrafe “Regime de trabalho para os trabalhadores deslocados”, não é por esta que resulta o seu âmbito de aplicação; efectivamente tal é fixado pelo disposto no seu nº 1. A opção por esta redacção, no que à epígrafe diz respeito, visou apenas tornar mais claro que esta cláusula visa substituir a anterior cláusula 74 /7 do anterior CCTV – embora com algumas alterações - adoptando-se por isso parte da epígrafe desta última. Assim, todo e qualquer trabalhador com a categoria de motorista de pesados e ligeiros – com excepção dos motoristas ligeiros afectos ao transporte nacional -, têm direito a receber estas prestações pecuniárias, sendo irrelevante qual a distância realizada pelos veículos cuja condução estão afectos. Em suma para a aplicação desta cláusula é indiferente se a distância percorrida pelo veículo que o trabalhador está afecto, é de 2km, 10 km, 20 km ou mais.”


Em face na vontade das partes outorgantes, que é de respeitar, feita consignar na acta interpretativa, a prestação prevista na Clª 61ª do CCT de 2018 é devida sem que haja necessidade de demonstrar ser a condução penosa para o motorista, exigindo-se-lhe um esforço acrescido, sendo indiferente, para o efeito, as distâncias que o mesmo percorre com o veículo que lhe está atribuído.


Mas se acta interpretativa é de ter em conta na interpretação da Clª 61ª do CCT de 2018, já o mesmo não acontece com o CCT de 2109.


Desde logo porque a acta foi elaborada para o CCT de 2018 e ainda pelo facto da Clª 61ª do CCT de 2019 ter uma redacção diferente da mesma cláusula do CCT de 2018.


É na cláusula do CCT de 2019 que se alude à situação da prestação de uma actividade que implique regularmente um elevado grau de autonomia e a possível realização de trabalho suplementar de difícil controlo e verificação pela empresa, decorrente da imprevisibilidade da duração concreta dos serviços a serem realizados encontrando-se deslocados das instalações dos empregadores e sem controlo hierárquico directo.


(…)


Na nossa interpretação o autor beneficia da aplicação da Clª 61ª do CCT de 2018 e, em princípio, não beneficiará da Clª 61ª do CCT de 2019.


E dizemos em princípio porque há que atentar no que dispõe a Clª 89ª do CCT de 2019.


Sob a epígrafe “manutenção de regalias anteriores e prevalência de normas” preceitua a citada cláusula que “1- Da aplicação do presente CCTV não poderão resultar quaisquer prejuízos, designadamente baixa ou mudança de categoria ou classe, diminuição de retribuição e outras regalias de carácter regular ou permanentes, não contempladas neste CCTV e, bem assim, diminuição da retribuição líquida do trabalhador.


2- (..)


3- (..)


4- A presente norma tem natureza imperativa.”


Desta norma decorre que, embora o trabalhador não reúna as condições para que possa beneficiar do regime da Clª 61º do CCT de 2019, nem por isso deixará de ter direito à quantia pecuniária nela prevista pois, de contrário, tal traduzir-se-ia numa diminuição de uma regalia de carácter regular e permanente com influência na retribuição líquida do trabalhador.”


Já no Acórdão recorrido pode ler-se:


“Como acima se referiu as Clªs em questão vieram nos CCTs de 2018 e 2019 a substituir a Clª 74º nº 7 de CCT de 1980.


Era jurisprudência consolidada que a retribuição especial prevista na cláusula 74.ª, n.º 7, do CCT celebrado entre a ANTRAM (Associação Nacional de Transportes Rodoviários de Mercadorias) e a FESTRU (Federação dos Sindicatos de Transportes Rodoviários e Urbanos e Outros), publicado no BTE, 1.ª série, n.º 9, de 08-03-80, tem por objetivo compensar os trabalhadores motoristas de transportes internacionais rodoviários de mercadorias da maior penosidade e esforço acrescido inerentes à sua atividade, tendo sido atribuída pela consideração de que essa atividade impõe, normalmente, a prestação de trabalho suplementar de difícil controlo.


Também se encontrava consolidado o entendimento de que a referida retribuição especial não pressupõe uma efetiva prestação de trabalho suplementar, revestindo carácter regular e permanente e, como tal, integra o conceito de retribuição, sendo devida em relação a todos os dias do mês, independentemente da prestação efetiva de qualquer trabalho, acrescendo à retribuição de base.


Esta Relação teve já oportunidade de se pronunciar sobre esta questão no acórdão 176/22.6T8LRA.C1 de 28.04.2023, consultável em www.dgsi.pt/jtrc.


Neste aresto, afirmou-se que no domínio do CCTV de 2018 seria de aceitar a interpretação segundo a qual, à semelhança do que acontecia no anterior CCTV (de 1980), a quantia prevista na sua Clª 61ª só seria devida aos motoristas de pesados quando estivesse demonstrado que o desempenho da condução fosse suscetível de apresentar uma maior penosidade e um esforço acrescido.


No entanto, apelando à ata interpretativa de 09.01.2019 elaborada para o CCTV de 2018, segundo a qual “a presente cláusula (61ª), apesar de ter como epigrafe “Regime de trabalho para os trabalhadores deslocados”, não é por esta que resulta o seu âmbito de aplicação; efetivamente tal é fixado pelo disposto no seu nº 1. A opção por esta redação, no que à epígrafe diz respeito, visou apenas tornar mais claro que esta cláusula visa substituir a anterior cláusula 74 /7 do anterior CCTV – embora com algumas alterações - adotando-se por isso parte da epígrafe desta última. Assim, todo e qualquer trabalhador com a categoria de motorista de pesados e ligeiros – com exceção dos motoristas ligeiros afetos ao transporte nacional -, têm direito a receber estas prestações pecuniárias, sendo irrelevante qual a distância realizada pelos veículos cuja condução estão afetos. Em suma para a aplicação desta cláusula é indiferente se a distância percorrida pelo veículo que o trabalhador está afeto, é de 2km, 10 km, 20 km ou mais”, entendeu-se e decidiu-se que para o trabalhador motorista ter direito à prestação pecuniária prevista nesta cláusula não era necessário demonstrar que o desempenho da condução fosse suscetível de apresentar uma maior penosidade e um esforço acrescido.


Após melhor reflexão sobre a questão que se controverte, propendemos agora que da ata interpretativa não resulta a conclusão a que havíamos chegado no citado aresto.


Com efeito, embora a questão não seja totalmente isenta de dúvidas, se esta cláusula 61ª se destinou a substituir a cláusula a 74º nº 7 do CCTV de 1980 (e nisto todos estão de acordo), para que o trabalhador tenha direito a receber a quantia nela prevista, necessário se torna que se encontram reunidos os requisitos exigidos para que, em face da Clº 74º nº7, fosse atribuído tal direito ao trabalhador motorista.


Ou seja: exige-se a prova por parte do trabalhador (o respetivo ónus sobre ele recai) dos factos donde se possa extrair que o desempenho da sua atividade como motoristas apresenta uma maior penosidade, um esforço acrescido e um maior isolamento.


E, ponderando melhor sobre a ata interpretativa, não vemos agora que da mesma resulte a interpretação de que a atribuição da prestação prevista na Clª 61º do CCTV de 2018 prescinda da demonstração da maior penosidade no desempenho das funções por parte do motorista.


Na ata interpretativa afirma-se expressamente que visa substituir a anterior cláusula 74 /7 do anterior CCTV esclarecendo-se que todo e qualquer trabalhador com a categoria de motorista de pesados e ligeiros – com exceção dos motoristas ligeiros afetos ao transporte nacional -, têm direito a receber estas prestações pecuniárias, sendo irrelevante qual a distância realizada pelos veículos cuja condução estão afetos.


Apenas se pretende esclarecer quais as categorias de trabalhadores abrangidos pela cláusula e não afastar a verificação dos requisitos da penosidade, esforço acrescido e maior isolamento.


Também é esta a melhor interpretação tendo em conta a uniformidade do sistema jurídico e o teor da mesma cláusula do CCTV de 2019


Nesta, evitando quaisquer dúvidas de interpretação, alude-se expressamente à situação da prestação de uma atividade que implique regularmente um elevado grau de autonomia e a possível realização de trabalho suplementar de difícil controlo e verificação pela empresa, decorrente da imprevisibilidade da duração concreta dos serviços a serem realizados encontrando-se deslocados das instalações dos empregadores e sem controlo hierárquico direto; ou seja, consignaram-se os motivos que a jurisprudência havia considerado como sendo necessários verificarem-se para que que fosse atribuída a quantia da anterior clª 74º nº 7 do antigo CCTV de 1980.


Com a redação dada à Clª 61ª do CCT de 2019 houve, no entendimento que agora perfilhamos, uma clara intenção das partes outorgantes em precisar o que havia sido estipulado na mesma Clª do CCT de 2018 no sentido da retribuição especial ser devida para compensar os trabalhadores motoristas de pesados da maior penosidade e esforço acrescido inerentes à sua atividade, partindo do pressuposto que essa atividade impõe, normalmente, a prestação de trabalho suplementar de difícil controlo.


Ora, no caso, considerando a matéria provada, como se demonstra na sentença impugnada na parte acima transcrita, que se sufraga “a atividade do Autor não exige esforços e riscos acrescidos inerentes à atividade dos demais motoristas que trabalham no transporte nacional, longe das instalações da entidade empregadora e com autonomia na organização dos serviços, longe do controlo e verificação do trabalho suplementar prestado, dada a sua imprevisibilidade, com possibilidade de terem de pernoitar fora da área da sua residência”.


Ou seja, não está provado que inerente a atividade de motorista do autor revista uma maior penosidade ou um esforço acrescido e, designadamente, que a prestação de trabalho, dadas as suas características seja de difícil controlo para efeitos de contabilização do trabalho suplementar prestado.


Na verdade, a duração concreta dos serviços a realizar pelo autor não é imprevisível, nem o autor se encontra deslocado das instalações da ré sem controlo hierárquico direto, gozando de um elevado grau de autonomia.


Por tudo isto, entendemos agora que, após melhor ponderação e estudo, ao contrário do decidido no aresto desta Relação acima referido, o autor não tem direito a receber a quantia a que se referem as Clªs 61ª dos CCTVS de 2028 e 2019 do CCTVS entre a ANTRAM e a FECTRANS.” (sublinhado nosso).


Como se vê, o Acórdão recorrido assume expressamente a mudança de posição face ao Acórdão fundamento, aliás ambos do mesmo Relator, pelo que há que concluir pela existência da oposição invocada sobre um aspeto essencial para a decisão da causa. Aliás, a oposição não incide apenas ou tanto sobre o valor da ata interpretativa, mas sobre a interpretação a dar à cláusula 89.ª do CCT de 2019.


Decisão: Admite-se a presente revista excecional.


Custas a decidir a final.


Lisboa, 12 de abril de 2024


Júlio Gomes (Relator)


Ramalho Pinto


Mário Belo Morgado