ASSÉDIO MORAL
CONTRATO DE TRABALHO
JUSTA CAUSA DE RESOLUÇÃO
PODER DE DIREÇÃO
Sumário


I- O assédio moral pressupõe comportamentos real e manifestamente humilhantes, vexatórios e atentatórios da dignidade do trabalhador, aos quais estão em regra associados mais dois elementos: certa duração; e determinadas consequências.

II- De acordo com o disposto no art. 29.º, n.º 2, do CT, no assédio não tem de estar presente o “objetivo” de afetar a vítima, bastando que este resultado seja “efeito” de um comportamento do “assediante” com idoneidade ofensiva dos valores juridicamente protegidos.

III- Apesar de o legislador ter (deste modo) prescindido de um elemento volitivo dirigido às consequências imediatas de determinado comportamento, o assédio moral, em qualquer das suas modalidades, tem, em regra (mas não necessariamente), associado um objetivo final ilícito ou, no mínimo, eticamente reprovável.

IV- Nem todo o conflito no trabalho constitui assédio, sob pena de se descaracterizar a figura.

V- O poder de organizar e ordenar o trabalho no seio da empresa (poder de direção), enquanto corolário do princípio constitucional da liberdade de empresa [art. 80º, c), da CRP], exige toda uma série de decisões frequentemente dissemelhantes, sendo que a ilicitude deste tipo de situações pressupõe a violação do princípio da não discriminação ou da esfera de proteção do princípio da igualdade (cfr. arts. 23º, 25º e 26º, do CT).

Texto Integral



Revista n.º 17592/19.3T8PRT.P1.S1


MBM/JES/DM


Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça


I.


1. AA e BB intentou ação declarativa de condenação, com processo comum, contra Instituto Português de Oncologia do Porto Francisco Gentil, EPE e CC.


2. Na 1ª Instância, a ação foi julgada parcialmente procedente.


3. O Tribunal da Relação do Porto (TRP), concedendo provimento ao recurso de apelação interposto pela autora, decidiu:


– Reconhecer a existência de justa causa de resolução, pela A., do contrato de trabalho (ao contrário do decidido na 1ª Instância).


– Condenar o R. Instituto Português de Oncologia do Porto Francisco Gentil, EPE, a pagar à A. a quantia de 29.217,98 €a título de indemnização (por danos patrimoniais e não patrimoniais) decorrente da justa causa de resolução do contrato de trabalho.


– Condenar a R. CC a pagar à A. a quantia de 4.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais decorrente de assédio moral.


4. O R. Instituto Português de Oncologia do Porto Francisco Gentil, EPE, interpôs recurso de revista, sustentando, essencialmente, não ter violado os deveres de respeito, de urbanidade e de proporcionar boas condições de trabalho do ponto de vista moral, nem ter incorrido em assédio, não se verificando, por isso, justa causa de resolução do contrato de trabalho pela A.


5. A autora contra-alegou.


6. O Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido do improvimento do recurso, em parecer a que as partes não responderam.


7. Em face das conclusões da alegação de recurso, e inexistindo quaisquer outras de que se deva conhecer oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC), a única questão a decidir1 consiste em determinar se a autora foi vítima de assédio e, nessa medida, se há justa causa de resolução do contrato de trabalho.


E decidindo.


II.


8. Foi fixada pelas instâncias a seguinte matéria de facto:

A. A Autora foi estagiária do Réu IPO entre novembro de 2001 e outubro de 2003.

B) Terminado o estágio, em 1 de outubro de 2003, a Autora celebrou com o Réu IPO um contrato individual de trabalho do sector da saúde, nos termos do qual exerceu a profissão de nutricionista no Serviço de Nutrição e Alimentação do referido Réu, com o número mecanográfico deste Instituto 10579 e a categoria profissional de Assistente, no âmbito da carreira de Técnico Superior de Saúde.


C) A Ré CC foi superior hierárquica da Autora quer durante o estágio, quer durante a relação laboral que lhe sucedeu.


D) Por carta datada de 1 de julho de 2019, a Autora resolveu, com efeitos imediatos, o contrato individual de trabalho que a unia ao Réu IPO, com os fundamentos da carta junta como Doc. 2 junto à petição inicial (…).


E) Em 13 de Janeiro de 2011, a Autora foi considerada pela Ré CC como “(…) um elemento com potencial elevado e uma mais-valia para o SNA do IPO-Porto”, tendo ainda sido salientado que “(…) os materiais que tem vindo a desenvolver no sentido de otimizar o seu trabalho têm sido de grande utilidade e os desafios que lhe têm sido lançados, a nível de objetivos pessoais para a avaliação de desempenho, têm sido cumpridos e maioritariamente superados. (…)”.


F) Em 15 de Julho de 2016, por expressa indicação médica, a Autora requereu a redução do período normal de trabalho de 40 para 32 horas semanais, pelo período de 6 meses.


G) Após parecer da médica de medicina ocupacional nesse sentido e da não oposição da Ré CC, na sua qualidade de Diretora do Serviço de Alimentação e Nutrição, o pedido de redução do período normal de trabalho foi deferido pelo Réu IPO em 10 de agosto de 2016, com efeitos a partir de 5 de setembro de 2016, tendo a Autora, a partir de então, passado a trabalhar 4 dias por semana, com descanso semanal intercalado à quarta-feira, dia por si escolhido.


H) No decorrer do ano de 2016, foi realizada uma reunião com a presença de todas as nutricionistas do Serviço de Nutrição, a saber, Senhoras Dras. DD, EE, FF, GG e a própria Autora, em que esteve igualmente presente a Senhora Dra. HH, gestora de risco do Réu IPO, cujo tema foi a “Gestão de Risco no Ambiente de Trabalho”, tendo sido analisados os riscos específicos que poderiam ocorrer no Serviço de Nutrição.


I) Em março de 2017 foi autorizada a prorrogação por mais 6 meses da redução do período normal de trabalho.


J) Em 9/07/17 foi realizada uma reunião em que estiveram presentes a Autora, a Ré CC, DD, EE e FF.


K) No decurso do ano de 2017, foi atribuída à Autora o acompanhamento duma estagiária, Senhora Dra. II, que foi aprovada com distinção no final do estágio, tendo a Autora integrado o painel do júri como sua orientadora.


L) A Dra. JJ, estagiária orientada pela Autora, entre 3/04/17 a 3/10/17, viria também a ser aprovada com distinção.


M) De acordo com a redução do horário de trabalho, para além do referido em G), em janeiro de 2017 foram retirados à Autora o serviço relativo ao Piso 9 e as consultas semanais de Radioterapia (sete em média) que esta realizava à 2ª feira, que passou a realizar de 3 em 3 semanas.


N) Ficou estabelecido que as consultas de Radioterapia seriam alternadas rotativamente entre a Autora, a Dra. EE e a Dra. FF, o que veio efetivamente a ocorrer no período entre janeiro e junho de 2017.


O) O trabalho da Autora era avaliado anualmente em função dos objetivos que lhe eram fixados, sendo o resultado da avaliação determinante para, entre outros aspetos, a progressão na carreira.


P) A Ré CC manteve intactos os objetivos da Autora no período em que esta gozou a redução de horário.


Q) A Autora deu conhecimento ao Réu IPO através de carta datada de 9 de abril de 2017 dirigida pela Autora ao Dr. KK, administrador daquele Réu, do infra referido em WWW) solicitando, em suma, que fossem contabilizadas as referidas horas.


R) O Réu IPO respondeu através da carta datada de 29 de maio de 2017, referindo, além do mais, que “No caso em apreço, a autorização de tais prolongamentos encontra-se delegada na Directora de Serviço, Senhora Dra. CC, a quem compete, em face das circunstâncias e necessidades do serviço, avaliar casuisticamente a fundamentação apresentada para o efeito. Ora, sucede que, não tendo o pedido sido autorizado pela Dra. CC, nem tampouco estaria em condições de ser homologado posteriormente pelo Conselho de Administração.”.


S) O trabalho referido em WWW) não foi considerado pela Ré CC para o banco de horas.


T) As horas de trabalho prestadas para além do período normal de trabalho pelas colegas da Autora foram consideradas para a bolsa de horas.


U) (…)


V) (…)


W) Em 24 de novembro de 2017, a Autora requereu ao Réu IPO a prorrogação do prazo de redução do período normal de trabalho inicialmente concedido, o que foi deferido.


X) Durante o mês de janeiro de 2018, o período normal de trabalho da Autora foi de 40 horas semanais, tendo em fevereiro reduzido para 32 horas semanais, distribuídas por 4 dias da semana-Segunda-Feira, Terça-Feira, Quinta-Feira e Sexta-Feira.


Y) Numa reunião que teve lugar em janeiro de 2018, com a presença das restantes colegas de serviço, Dras. EE, FF, DD e GG, a Ré CC informou que não voltaria a falar a sós com a Autora e que apenas reuniria com esta na presença da Dra. EE.


Z) (…)


AA) Em reunião ocorrida em 26 de fevereiro de 2018, na presença da trabalhadora EE, a Ré CC alertou a Autora de que não correspondia a boa prática o ter escrito num papel de rascunho “dieta mole ou cremosa (passado pela varinha mágica)” e ter entregue o mesmo a um doente de Radioterapia em regime de alojamento no Centro Hoteleiro de Apoio, o qual tinha pedido à Autora para saber qual seria a sua dieta, alertando a autora para não o fazer mais.


BB) A Autora atuou como descrito a pedido do doente que, por não conseguir falar, acabou por entregar aquele papel à Assistente Operacional.


CC) A Ré CC bloqueou as consultas da Autora de Radioterapia durante as férias, impedindo que quem a substituísse nas férias realizasse estas consultas.


DD) Em vários períodos, a Dra. DD tirou férias e as suas consultas de Radioterapia foram mantidas e asseguradas, na íntegra, pela sua estagiária.


EE) A Ré CC agendou uma reunião, que se realizou em 15 de maio de 2018, com todas as colegas do Serviço de Nutrição presentes para obter destas “parecer” sobre a participação da Autora no Congresso de Nutrição Pediátrica do Hospital de São João, em 25 de maio de 2018.


FF) Na referida reunião, a Ré CC justificou a realização da mesma com a necessidade de saber a opinião das restantes colegas, uma vez que o trabalho iria implicar a redistribuição do serviço.


GG) A Ré CC enviou a todas as nutricionistas seniores do serviço um e-mail com a versão final do folheto sobre a obesidade (atividade desenvolvida pelas profissionais estagiárias), com exceção da Autora.


HH) A Ré CC havia dirigido à Autora um convite para participar no desenvolvimento dos conteúdos relativos ao dia nacional de Luta contra a Obesidade, em momento anterior ao envio da versão final do folheto.


II) No ano de 2018, a Autora tinha direito a 17 dias de férias não gozadas no ano de 2017, a serem gozados até 30 de abril de 2018, acrescidos dos 22 dias de férias que se venceram em 1 de janeiro de 2018.


JJ) Em 5 de Janeiro de 2018, a Autora marcou os dias 15 de janeiro e 12 de fevereiro desse mesmo ano, tendo reiterado tal pedido no dia 11 desse mesmo mês.


KK) A Ré CC não autorizou a marcação desses dias de férias.


LL) Nessa sequência, em 16 de janeiro de 2018, a Autora alterou a sua marcação de férias tendo marcado o dia 22 de janeiro (em substituição do dia 15) de 2018 e mantendo o pedido quanto ao dia 12 de fevereiro do referido ano.


MM) Tal pedido mereceu a seguinte resposta por parte da Ré CC: “Conforme falado pessoalmente o que te referi foi que não poderias estar a solicitar dias de férias, isoladamente, sempre à 2ª feira, caso pretendas colocar férias no dia 22 (2ªF) a 2ªf de fevereiro que tinhas pedido na mesma ocasião não será autorizada. Sendo assim escolhe qual a 2ª feira pretendida (a de janeiro ou a de fevereiro) e quando retificares a situação valido pois não posso validar apenas um dos dias do teu pedido.”.


NN) A recusa de autorizar a Autora a tirar férias à segunda-feira tinha como fundamento o facto de esse ser o dia em que esta dava consultas.


OO) A Ré CC autorizou que a trabalhadora Dra. DD tirasse os dias 26 e 27 de abril que são dois dias de consulta.


PP) Em janeiro de 2018, a Autora procedera igualmente à marcação de parte dos 22 dias de férias vencidos nesse ano, para os dias 6 a 14 de agosto de 2018.


QQ) O pedido de marcação de férias para agosto foi recusado pela Ré CC, por se sobrepor ao de outra colega, Dra. FF.


RR) A Dra. FF tira sempre férias nesse período.


SS) Em janeiro de 2018, a Autora marcou férias para os dias 27 e 28 de dezembro de 2018.


TT) A Ré CC recusou a marcação de férias realizada pela Autora.


UU) Durante as férias da Autora, no mês de agosto, o estado de saúde desta piorou e as férias foram interrompidas, por incapacidade temporária para o trabalho, tendo ficado por gozar 6 (seis) dias de férias dos inicialmente previstos.


VV) A Autora procedeu à marcação desses dias de férias para os dias 25, 26 e 29 de outubro de 2018, e 23, 26 e 27 de novembro de 2018.


WW) A Ré CC recusou as férias pretendidas pela Autora e agendou o período de férias desta para os dias 23 a 30 de novembro de 2018.


XX) Nessa sequência, a Autora voltou a solicitar a alteração do período de férias para os dias 22, 23, 26 e 27 de novembro e 13 e 14 de dezembro (dado 17 de dezembro já fazer parte do plano de férias inicial).


YY) O que foi, novamente, recusado tendo-se mantido o período de 23 a 30 de novembro de 2018.


ZZ) O motivo para a recusa de férias foi o facto de se tratar de férias interpoladas e por curtos períodos.


AAA) A Ré CC autorizou os dias 15 de fevereiro e 26 e 27 de abril de 2018 à trabalhadora Dra. DD e autorizou os dias 22 de Fevereiro, 15 e 16 de Março, 18 de Maio, 1 de Junho e 26 de Novembro, todos de 2018 à trabalhadora Dra. EE.


BBB) Ao longo dos anos ao serviço do Réu IPO, a Autora orientou vários estagiários do serviço, tendo dado formação e transmitido os conhecimentos necessários a que alguns deles fossem aprovados com distinção.


CCC) Em 19 de Janeiro de 2018, realizou-se uma reunião de serviço no decurso da qual a Ré CC informou as restantes colegas que a redução do período normal de trabalho concedida à Autora fora prorrogada por 12 meses.


DDD) Em 26 de Janeiro de 2018, foi realizada uma reunião entre a Autora, a Ré CC e a Senhora Dra. LL (Médica de Saúde de Trabalho), na qual foram abordados vários temas relacionados com a organização do trabalho decorrente da redução do período normal de trabalho concedida tendo a Autora questionado se lhe podia ser atribuído um estagiário à Ordem dos Nutricionistas para a auxiliar no trabalho a desenvolver, à imagem do que acontecera no passado e do que acontecia com todas as restantes colegas.


EEE) A Ré CC informou que considerava que o acompanhamento de estagiários implicava um dispêndio de tempo incompatível com a redução do seu período normal de trabalho, recusando tal atribuição à Autora.


FFF) A Autora tinha já sido orientadora de estágio durante o seu primeiro período de trabalho com redução do horário (anos de 2016 e 2017).


GGG) A Autora era única trabalhadora que não tinha afeta ao seu serviço um estagiário (exceção feita à colega GG e apenas desde julho de 2018).


HHH) No início do estágio, um estagiário exige de quem o orienta um maior dispêndio de tempo; cerca de 3 meses depois, tornam-se mais autónomos e adquirem a capacidade de desenvolver atos que se traduzem numa significativa ajuda às nutricionistas efetivas.


III) No serviço da Autora as estagiárias substituem, muitas vezes e sozinhas, as restantes colegas e a própria Ré CC.


JJJ) No ano de 2018, a Ré CC excluiu a Autora dos e-mails de serviço relativamente à atribuição de estagiárias, tendo enviado a todas as colegas um pedido de aceitação de estagiárias, excluindo, unicamente a Autora.


KKK) Na reunião de 26 de janeiro de 2018, a Autora manifestou interesse em participar numa palestra para funcionários do IPO do Hospital de Dia, contra o que a Ré se insurgiu atenta a redução de horário concedida à autora.


LLL) Em 26 de Fevereiro de 2018, o Réu recusou à Autora a possibilidade de ministrar uma aula de Mestrado de Nutrição Clínica, para a qual fora convidada e na qual manifestou interesse mesmo sendo num Sábado, sendo que o fazia há vários anos (há pelo menos uma década).


MMM) O motivo da recusa foi, mais uma vez, o facto de se encontrar em redução de período normal de trabalho.


NNN) A prestação de trabalho para além dos limites normais de trabalho é uma necessidade recorrente das trabalhadoras do serviço de nutrição do réu IPO.


OOO) Em 29 de Agosto de 2018, a Ré CC anulou a bolsa de horas da Autora que registava, de anos anteriores, 30,6 horas de trabalho, o que justificou diversos pedidos da Autora ao Departamento de Recursos Humanos.


PPP) O mesmo nunca se verificou com todas as restantes trabalhadoras, as quais sempre mantiveram a sua bolsa de horas dos anos anteriores.


QQQ) A autora solicitou a correção do referido registo o que a Ré CC não fez.


RRR) Apenas no final de setembro de 2018, após insistência da Autora, a sua bolsa de horas foi reposta, com as 30,6 horas.


SSS) Em 2019 a Autora pediu à Ré CC para utilizar as horas da Bolsa de Horas para poder ir ao Congresso da Associação Portuguesa de Nutricionistas (APN).


TTT) Face à recusa da Ré CC em autorizar a Autora a utilizar as horas angariadas na sua bolsa de horas, esta pediu àquela para usufruir de um dos dias de Comissão Gratuita, mas a Ré CC negou também tal pedido desta vez com fundamento no facto de tal pedido ter sido apresentado “fora de prazo”, mas meses antes a Ré CC tinha aceite o pedido da trabalhadora EE, o qual não tinha respeitado o prazo indicado.


UUU) A bolsa de horas não pode ser utilizada para períodos de ausência superiores a meio-dia, sendo que o Congresso referido tinha duração superior.


VVV) Segundo orientações do IPO, as comissões gratuitas devem ser requeridas com 20 dias úteis de antecedência, sendo que o incumprindo desse prazo pode ser justificada pelo requerente, o que aconteceu com EE, tendo a Ré alertado o Conselho de Administração para o efeito, deixando a respectiva autorização a consideração superior.


WWW) A autora prestou as horas de trabalho descritas nos seguintes dias:


Em 2016: dia 17/08, qua, das 08:00-14:00,


Dia 22/08, Seg, das 08:00-16:30;


Dia 24/08, Qua, das 08:00-14:00;


Dia 30/08, Ter, das 08:00-16:30;


Dia 23/09, Sex, das 08:30-16:30;


Dia 26, Seg, das 08:30-16:30;


Dia 27, Ter, das 08:30-16:30;


Dia 4/10, Ter, das 08:30-16:30;


Dia 6/10, Qui, das 08:30-16:30;


Dia 7/10, Sex, das 08:30-16:30;


Dia 10/10, Seg, das 08:30-16:30;


Dia 17/10, Seg, das 08:30-16:30;


Dia 18/10, Ter, das 08:30-16:30;


Dia 25/10, Ter, das 08:30-16:30;


Dia 28/10, Sex, das 08:30-16:30;


Dia 31/10, Seg, das 08:30-16:30;


Em 2017:


dia 10/01, Ter, das 08:30-16:30;


Dia 16/01, Seg, das 08:30-16:30;


Dia 17/01, Ter, das 08:30-16:30;


Dia 20/01, Sex, das 08:30-16:30;


Dia 24/01, Ter, das 08:30-16:30;


Dia 30/01, Seg, das 08:30-16:30;


Dia 3/02, Sex, das 08:00-16:30;


Dia 24/02, Sex, 08:00-16:30;


Dia 27/02, Seg, das 08:00-16:30;


Dia 24/03, Sex, das 08:00 - 16:30;


Dia 27/03, Seg, 08:00-16:30.


XXX) No período de férias da Ré CC (de 3 a 9 de julho 2018), em virtude de um erro, o horário que foi determinado à Autora foi das 08:00h às 16:30h (quando havia sido sempre das 08:30h às 17h), facto que levou a Autora a trabalhar das 8h às 17h.


YYY) Quando deu conhecimento à Ré CC, esta corrigiu o erro mudando o horário para o período anterior mas não contabilizou as 2:30 horas (30 minutos por cada dia) trabalhadas a mais.


ZZZ) Em fevereiro de 2019 terminou o prazo de redução do período normal de trabalho, tendo a Autora passado a trabalhar no período normal de trabalho inicialmente acordado de 40 horas.


AAAA) Por e-mail de 10 de abril de 2019, a Ré CC informou o departamento de gestão de agendas, com conhecimento de todas as trabalhadoras que quem já tivesse consultas marcadas para dias de férias (o que iria acontecer já nesse mês de abril) deveria reagendar as consultas ou criar dias extra de consulta.


BBBB) As trabalhadoras que tinham férias marcadas nessa altura eram a Autora, para os dias 15 a 19 de abril e 22 a 26 de abril, e a Dra. DD.


CCCC) A Autora solicitou que as 4 consultas que tinha agendadas para dia 22 de abril de 2019 fossem redistribuídas pelas restantes colegas e realizadas a dia 24 desse mesmo mês ou que lhe fosse proposta uma alternativa que fosse adequada.


DDDD) Em resposta, a Autora foi informada pela Ré CC que, à semelhança da sua outra colega que teria o mesmo problema, a Autora deveria reagendar as consultas para dias próximos das férias ou para dia 29 (que estaria com vagas), sendo que se não fosse possível deveria abrir outro período de consultas que lhe fosse conveniente, o que a autora fez.


EEEE) Quatro das consultas da Dra. DD do dia 15 de abril de 2019 foram mantidas, tendo em conta a especificidade dos doentes e foram realizadas pela estagiária da Ré CC, Dra. MM, pois esta estava contemporaneamente a realizar consultas de Nutrição-Radioterapia.


FFFF) No mesmo mês de abril de 2019, a Ré CC voltou a recusar a integração das horas de trabalho que a Autora comunicou como tendo sido prestadas fora do período normal de trabalho na bolsa de horas.


GGGG) Nos primeiros meses, após ter regressado ao período normal de trabalho habitual (40 horas), a Ré CC recusou a integração da Autora na bolsa de horas porque, ao contrário das suas colegas, a Autora “não registava a justificação para a prestação de horas para além do horário normal de trabalho”, informação que lhe transmitiu em reunião de 12 de abril de 2019.


HHHH) Sempre que as colegas da autora tinham necessidade de prolongar o seu horário de trabalho, contactavam a Diretora de Serviço justificando a necessidade, ou solicitavam a sua colaboração para o evitar e apenas quando não era possível ultrapassar esta necessidade com recurso a auxílio de colegas, é que era autorizado o prolongamento do tempo de trabalho.


IIII) No decorrer de outubro de 2018, a Ré CC apresentou queixa ao Conselho de Administração em virtude da Autora ter deixado o telemóvel de serviço no serviço de Nutrição numa quarta feira, tendo um médico ligado para aquele telefone com vista a dar alta a um doente e o telefone estar desligado.


JJJJ) (…)


KKKK) A autora remeteu ao Réu IPO carta datada de 13 de novembro de 2018 junta a fls. 139 a 149 (…) e apresentou uma participação formal de assédio, junta a fls. 151-152 (…).


LLLL) O réu IPO respondeu nos termos da carta junta a fls. 152, verso (…).


MMMM) O Réu IPO nunca convocou a Autora para uma reunião sobre a queixa apresentada, nem a encaminhou para qualquer serviço de acompanhamento, não instaurou procedimento disciplinar contra a Ré CC, nem ouviu testemunhas, tendo ouvido apenas a ré CC.


NNNN) A Autora remeteu ao Réu IPO carta em 8 de janeiro de 2019, junta a fls. 153, verso a 154 (…), à qual o réu respondeu nos termos da carta junta a fls. 155.


OOOO) O Réu IPO deu início a um inquérito prévio para instauração de procedimento disciplinar contra a Autora, com base uma reclamação da Ré CC, com base nas seguintes ocorrências:


- a referida em IIII), e


- em reunião de serviço de 7 de Dezembro de 2018, em que estiveram presentes a Ré CC, a Autora e as colegas Dras. FF, DD e EE, a Autora foi acusada de ter gravado o que foi dito na referida reunião.


PPPP) GG relatou à Ré CC que tinha sido ela a desligar o telemóvel referido em IIII), o que a Ré CC ignorou e reportou o mesmo ao Réu IPO como tendo sido uma falha imputável à Autora.


QQQQ) Após ter realizado diligências no processo prévio de inquérito, o Réu IPO decidiu instaurar contra a Autora processo disciplinar, tendo a autora sido notificada da Nota de Culpa proferida no âmbito do processo disciplinar em 28 de fevereiro de 2019, não constando da mesma o episódio referido em IIII).


RRRR) A Autora respondeu à Nota de Culpa em 14 de março de 2019, tendo requerido a inquirição de duas testemunhas, bem como a junção ao processo de documentação em poder do próprio Réu IPO.


SSSS) (…)


TTTT) Desde 27 de Março de 2019, não foi a Autora notificada de qualquer ato posterior.


UUUU) A Autora apresentou contra os Réus, em 18 de março de 2019, procedimento cautelar de tutela da personalidade do trabalhador em que peticionou medidas destinadas a evitar a consumação de qualquer violação dos direitos de personalidade do trabalhador ou atenuar os efeitos da ofensa já praticada, conforme Doc. 68 junto à petição inicial.


VVVV) Os Réus IPO e CC contestaram o referido procedimento.


WWWW) No ano de 2016 a autora esteve de "baixa médica" entre meados de fevereiro e em 15/07, tendo gozado 13 dias de férias.


XXXX) No ano de 2017 a autora esteve de "baixa médica" entre 12/06 e 20/12, tendo gozado 14 dias de férias e 3 de tolerância de ponto.


YYYY) No ano de 2018, a autora gozou 39 dias de férias, em 14 períodos diferentes, e, entre os dias 13 e 24 de Agosto de 2018, esteve de baixa médica.


ZZZZ) A Autora acumulava (há alguns anos) as suas funções no IPO com a prestação de serviços numa clínica de hemodiálise.


AAAAA) Pelo menos desde 2015, a Autora foi sendo considerada pela Médica do trabalho, como "apta condicional" para o trabalho, tendo progressivamente deixando de realizar consultas externas de maior complexidade e morosidade, como são o caso das consultas de Nutrição Geral e Nutrição Endocrinologia.


BBBBB) Era prática corrente na Instituição anular o agendamento de consultas quando o profissional de saúde em causa se encontra ausente por férias e, caso fosse necessário, após aferição da Directora de Serviço, poderá a respetiva Nutricionista agendar um dia "extra" para assegurar o seguimento dos respetivos pacientes, sendo prática do Serviço, em caso de ausência programada, na hipótese de as colegas terem disponibilidade de horário de consulta para o efeito, ser considerado como medida necessária a abertura de período extra de consultas para a colega que se vai ausentar do serviço, para ser assegurado o acompanhamento dos pacientes por nutricionista do Serviço, sendo o agendamento em dias de consultas de outras colegas seja com estas combinado, o que a Autora não fez.


CCCCC) A autora, ao invés de criar um dia extra de consulta, ou caso não se justificasse, procurasse combinar com as suas colegas a melhor forma de "encaixar" os doentes por si seguidos na sua ausência, conforme instruções e prática de Serviço, de seu livre mote, agendou os seus pacientes, sem previamente avisar a colega em causa, para os dias de consulta da Dra. DD.


DDDDD) Sempre que vários colegas solicitam o gozo de dias de férias, para os dias mais "concorridos", como sejam os que precedem ou sucedem a pontes ou feriados, a Ré autoriza-os, de acordo com um critério de não desfavorecer quem não beneficiou de tal possibilidade no passado.


EEEEE) A autora solicitou vários dias de férias às segundas-feiras, que eram os seus dias de consulta de Nutrição-Radioterapia.


FFFFF) A autora não avisou a sua superior hierárquica da necessidade de se manter para além do horário de trabalho, nem solicitou qualquer colaboração que evitasse esse excesso.


GGGGG) Em consequência do referido nas als. O), P), Q), R), S). T),Y),CC), DD),GG), HH), JJ), KK), LL), MM), OO), VV), WW), XX), YY), ZZ), AAA), DDD), EEE), FFF), GGG), KKK), LLL), MMM), OOO) a RRR), SSS), TTT), YYY), FFFF), IIII) a MMMM), OOOO), PPPP), QQQQ) a TTTT) a A. sentiu-se impotente, frustrada, discriminada, ansiosa, angustiada, tendo ficado com insónias e algumas noites sem dormir.2


HHHHH) Durante as insónias de que, em consequência do referido em GGGGG) padeceu, a A. contactava a irmã para desabafar em como se sentia triste e humilhada e pedir conselhos e modos de reagir perante as situações que considerava inadequadas, assim como chorava e, em alguns jantares de família, o conflito que considerava ter com o Réu era mencionado.3


IIIII) A A., à data da resolução do contrato de trabalho a que se reporta a al. D) dos factos provados, auferia a retribuição base mensal de €1.855,11.4


III.

a. Considerações gerais.

9. Em linha com o preceituado no art. 15.º, do CT5, segundo o qual o trabalhador goza do direito à respetiva integridade física e moral, e ainda nos arts. 23.º, 24.º, 25.º, e 129.º, n.º 1, c), estabelece o art. 29.º, n.º 2, que por assédio se entende “o comportamento indesejado, nomeadamente o baseado em fator de discriminação, praticado aquando do acesso ao emprego ou no próprio emprego, trabalho ou formação profissional, com o objetivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador”.6


Com amplitude acrescida em relação ao regime consagrado no CT/2003, as condutas neste âmbito relevantes deixam de estar necessariamente reportadas a situações de discriminação, abrangendo agora a lei, expressis verbis, a par do assédio sexual –que constitui uma discriminação de género (cfr. art. 29.º, n.º 3)– as seguintes formas de assédio:


O assédio moral discriminatório, baseado, nomeadamente, num dos fatores discriminatórios descritos no art. 24.º;


– O assédio moral não discriminatório, quando o comportamento indesejado não se baseia em qualquer fator discriminatório concreto, mas, pelo seu carácter continuado e insidioso, tem os mesmos efeitos hostis, almejando, em última análise, afastar determinado trabalhador da empresa, sendo que “apenas esta modalidade de assédio tem estruturalmente implícita a exigência de um comportamento reiterado e prolongado no tempo, ao passo que as outras formas (…) podem corresponder a uma conduta momentânea”.7 Numa formulação sintética, pode dizer‑se que esta modalidade de assédio implica comportamentos (em regra oriundos do empregador ou de superiores hierárquicos do visado) real e manifestamente humilhantes, vexatórios e atentatórios da dignidade do trabalhador8, aos quais estão em regra associados mais dois elementos: certa duração; e determinadas consequências.


A este propósito, como assinala Júlio Manuel Vieira Gomes, importa destacar que “as humilhações são proibidas porque são uma afronta à dignidade da pessoa e uma violação dos seus direitos e não porque constituem um tratamento desigual” [“o assédio não é mais aceitável só porque o empregador insulta indiscriminadamente todos os seus trabalhadores”], pelo que as situações em que o assédio não reveste natureza discriminatória em nada lhe retiram ou diminuem a ilicitude/gravidade9.


Na verdade, na expressão do mesmo autor: “[A]s proibições de discriminação visam (…) evitar a injustiça criada pela circunstância de um comportamento que, em si mesmo, seria legítimo, se tornar ilegítimo por uma diferenciação injusta”; e, ao invés, “no comportamento humilhante ou insultante, não é preciso fazer qualquer comparação com outros trabalhadores para identificar a injustiça”, uma vez que “o comportamento é injusto em sim mesmo, e não por comparação com outros” 10.


Podendo resultar, pois, dos mais díspares sentimentos e motivações envolvidos nas relações interpessoais no seio da empresa11, é possível distinguir, agora em função da motivação da conduta, duas modalidades de assédio moral:


– O assédio emocional/psicológico (decorrente, por exemplo, de animosidade, antipatia inveja, desconfiança ou insegurança), em regra dirigido à obtenção de um efeito psicológico na vítima, desejado pelo assediante (animus nocendi);


– O assédio estratégico, merecedor de especial atenção e que se reconduz a uma técnica perversa de gestão, dirigida a objetivos estratégicos definidos, com frequência utilizada como meio para contornar as proibições de despedimento sem justa causa12 e, por outro lado, como instrumento de alteração das relações de poder no local de trabalho (por exemplo, com o fito de levar o trabalhador a aceitar condições laborais menos favoráveis) ou para implementar determinados padrões de cultura empresarial e/ou de disciplina.


Em função da relação existente entre o assediante e a vítima, distingue-se ainda o assédio horizontal (entre colegas) do vertical, sendo este em regra descendente (a vítima é um subordinado), embora sejam configuráveis casos de mobbing vertical ascendente.


10. A situação típica de assédio moral envolve em regra uma conduta abusiva/arbitrária (ou expressivamente anómala/irregular) do poder empresarial ou uma prática de violência psicológica, em qualquer dos casos com carácter mais ou menos continuado/sistemático.


Porém, importa destacar que, “sendo o assédio um processo continuado mais ou menos longo deve ser analisado no seu conjunto e sem segmentá-lo nos momentos que o integram já que o real sentido e gravidade dos mesmos só pode ser apreendido com essa visão de conjunto”, como decidiu o Ac. de 15.12.2022 desta Secção Social, Proc. nº 252/19.2T8OAZ.P1.


O elemento decisivo reside na idoneidade ofensiva de certo comportamento para lesar os bens jurídicos aqui protegidos, o que exige uma abordagem teleológica e global do mesmo13.


São várias as áreas em que o assédio se manifesta, bem como, consequentemente, as categorias e definições operatórias propostas pelos autores.


Uma taxonomia suficientemente abrangente e clarificadora é, por exemplo, a seguinte14.


– Na vertente do contexto laboral: v.g. marginalização/exclusão pelos colegas; denegação, controlo e manipulação da informação transmitida ao trabalhador; induzir em erro; ordens contraditórias; controlo e abuso das condições de trabalho; vigilância excessiva e injustificada.


Abuso emocional: ações e expressões ofensivas especialmente dirigidas a atacar, ferir ou desconsiderar o trabalhador, atingindo-o nos seus sentimentos e emoções (v.g., insultos, piadas excessivas, divulgação de boatos, rumores e maledicência, críticas persistentes e injistificadas, intimidação ou comunicação perversa, como é o caso de evitar o diálogo, insinuações e silêncios, sarcasmo, desqualificar, desacreditar ou isolar).


Descrédito profissional: subestimar ou denegrir a reputação ou categoria do trabalhador, desvalorizando injustificadamente os seus conhecimentos, experiência, esforço ou desempenho.


Degradação das funções laborais: desautorização sistemática; diminuição da importância do papel desempenhado pelo trabalhador, retirando-lhe injustificadamente responsabilidades ou atribuindo-lhe tarefas inúteis, insignificantes, impossíveis (v.g. prazos de entrega ou volume de trabalho impraticáveis) ou demasiado exigentes ou claramente inferiores em face da categoria.


11. Numa abordagem apenas assente no elemento literal do transcrito art. 29.º, n.º 2, é patente que esta disposição legal se revelaria demasiado abrangente, pelo que se impõe um esforço adicional para adequadamente delimitar a sua esfera de proteção.


Como enfatiza Monteiro Fernandes, “a definição do art. 29º não parece constituir o instrumento de diferenciação que é necessário”, uma vez que “nela cabem, praticamente, todas as situações que o mau relacionamento entre chefes e empregados pode gerar”15.


Também Júlio Manuel Vieira Gomes realça: «[I]mporta (…) advertir que nem todos os conflitos no local de trabalho são, obviamente, um “mobbing”, sendo (…) importante evitar que a expressão assédio se banalize. Nem sequer todas as modalidades de exercício arbitrário do poder de direção são necessariamente um “mobbing”, quer porque lhes pode faltar um carácter repetitivo e assediante, quer porque não são realizados com tal intenção»16.


12. Ensaiando uma noção de assédio no trabalho “capaz de servir as suas finalidades operatórias”, diz Monteiro Fernandes17:


«Entrando em linha de conta com o texto da lei e os contributos da jurisprudência, parece possível identificar os seguintes traços estruturais (…):


a) Um comportamento (não um ato isolado) indesejado, por representar incómodo injusto ou mesmo prejuízo para a vítima (…);


b) Uma intenção imediata de, com esse comportamento, exercer pressão moral sobre o outro, tirando partido de algum fator seu de debilidade ou menor resistência (…), ou, no mínimo, a desconsideração da possibilidade de tal efeito;


c) Uma relação de causalidade adequada entre esse comportamento e efeitos perturbadores, constrangedores, atentatórios da dignidade ou geradores de clima social negativo para o destinatário (ficando à margem todos os comportamentos integráveis em padrões de normalidade no contexto social concreto);


d) Um objetivo final ilícito ou eticamente reprovável, consistente na obtenção de um efeito psicológico na vítima, desejado pelo assediante (submissão total à vontade do assediante, penalização por atos legítimos da vítima, indução à resolução do contrato ou abandono do trabalho, aceitação de uma modificação negativa das condições de trabalho).


A definição do art. 29.º prescinde do elemento intencional na identificação do assédio.


É verdade que a referência aos “efeitos” da conduta assediante, para além da intencionalidade pura, permite enquadrar e valorar negativamente situações em que o agente se comporta com indiferença ou inconsideração pelas prováveis consequências da sua atuação sobre a vítima. A enfatização dos “efeitos” imediatos dos comportamentos gera uma acentuação dos deveres de cuidado (…).


(…)


No entanto, não se vê que a figura (…) possa (…) prescindir inteiramente do elemento intenção. Percebe-se a razão pela qual a lei se basta com a produção, no imediato, de certos efeitos, ainda que não queridos ou representados pelos agentes (…): trata-se de dispensar a prova, sempre difícil, da intenção subjacente aos comportamentos visados.


Mas essa dispensa de prova tem um preço, que consiste numa dificuldade acrescida para os tribunais: a de, na grande massa dos comportamentos (…) próprios (…) das relações de trabalho numa organização, geradores (…) de manifestações de stress, depressão, mal-estar e de toda a gama dos (…) riscos psicossociais, diferenciar os que podem qualificar-se como assédio, daqueles (…)que refletem, simplesmente, disfunções organizacionais (…) que podem implicar violação de específicos direitos dos trabalhadores, o nem sequer justificam o labéu da ilicitude.»


13. A propósito da dimensão volitiva/final do conceito de assédio, a doutrina sempre se mostrou dividida.


“[E]nquanto para alguns o mobbing pressupõe uma intenção persecutória ou de chicana (ainda que não necessariamente a intenção de expulsar a vítima da empresa), para outros, o essencial não são tanto as intenções, mas antes o significado objetivo das práticas reiteradas18.


Neste âmbito, havendo que reconhecer a necessidade de uma interpretação prudente da sobredita disposição legal, também importa ter presente que não pode ser considerado pelo intérprete um pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, devendo ainda presumir-se que o legislador soube expressar o seu pensamento em termos adequados e que consagrou as soluções mais acertadas – art. 9.º, n.ºs 2 e 3, C. Civil.


Incontornavelmente, a lei estipula que no assédio não tem de estar presente o “objetivo” de afetar a vítima, bastando que este resultado seja “efeito” do comportamento adotado pelo “assediante”, como é jurisprudência firmada da Secção Social do STJ (v.g., Acs. de 06.12.2023, Proc. nº 1110/22.9T8CTB.C1.S1, e de 08.02.2024, Proc. nº 1868/21.2T8CTB.C1.S1).


Não obstante, uma vez que a esfera de proteção da norma se circunscreve a comportamentos que intensa e inequivocamente infrinjam os valores protegidos, não pode deixar de notar-se que é dificilmente configurável a existência de (verdadeiras) situações de assédio que –no plano da vontade do agente– não imponham concluir que ele, pelo menos, representou as consequências imediatas da sua conduta, conformando-se com elas.


Refira-se ainda que a circunstância de o legislador ter prescindido de um elemento volitivo dirigido às consequências imediatas de determinado comportamento não obsta à afirmação de que o assédio moral, em qualquer das suas modalidades, tem associado, em regra, um objetivo final “ilícito ou, no mínimo, eticamente reprovável” (v.g. a discriminação, a marginalização/estigmatização ou neutralização do trabalhador, atingir a sua autoestima ou, no tocante ao “assédio estratégico”, os objetivos específicos supra expostos). Associado em regra a determinado objetivo, mas não necessariamente, sendo – no limite – configuráveis quadros de assédio resultantes de repetidas e graves “descargas emocionais do assediador, sem qualquer intenção [específica] de sujeição da vítima”, como nota Rita Garcia Pereira19.


Por outro lado, é importante ter presente que a existência de intencionalidade (e o respetivo grau) sempre constituirá um fator de graduação da gravidade da conduta do assediante e que, para além disso, em situações fronteiriças, este elemento poderá revelar-se decisivo no plano do juízo atinente à “tipicidade” de certo comportamento.


Especificamente quanto ao “assédio estratégico”, vale isto por dizer que a fórmula legislativa não impede a constatação de que a esta figura se encontra em regra associado o facto de o empregador agir animado por determinados objetivos/finalidades (afastar determinado trabalhador da empresa ou forçá-lo a aceitar condições laborais menos favoráveis), nos termos supra expostos; tal como não obsta à afirmação de que o assédio, em qualquer das suas modalidades, tem em regra associado um “objetivo final ilícito ou, no mínimo, eticamente reprovável” (neste sentido, v.g. os Acs. desta Secção Social de 03.12.2014, Proc. n.º 712/12.6TTPRT.P1.S1, e de 11.09.2019, Proc. n.º 8249/16.8T8PRT.P1.S1).


14. Como já foi referido, nem todos os conflitos no local de trabalho constituem mobbing, embora não possa deixar de se ter presente que as situações de grave e sistemática conflitualidade/animosidade configuram com frequência situações deste tipo, em especial quando têm lugar num quadro de exercício arbitrário e excessivo do poder de direção.

b. Se a autora foi vítima de assédio e, nessa medida, se há justa causa de resolução do contrato de trabalho.

15. Ponderadas global e conjuntamente à luz dos princípios e quadros analíticos antes expostos as concretas circunstâncias da situação em apreço, afigura-se-nos que não existem elementos suficientes para considerar verificada uma situação de assédio moral, pelas razões que se passam a expor.


16. Os factos que neste âmbito o acórdão recorrido considerou, tiveram lugar no seguinte contexto:


– A autora, após um burnout, regressou ao serviço em 2016, tendo requerido a redução do tempo de trabalho por motivos de saúde, o que lhe foi concedido, com efeitos a 5.09.2016 (e posterior prorrogação em março de 2017). A mesma passou a trabalhar apenas 4 dias por semana, mais concretamente às segundas-feiras, terças-feiras, quintas-feiras e sextas-feiras, por escolha sua [factos F) e G)].


– Essa redução foi acompanhada de uma diminuição de tarefas. A autora deixou de realizar o serviço relativo ao Piso 9 e passou a realizar consultas de radioterapia às segundas-feiras, de 3 em 3 semanas (facto M).


– A Autora esteve de baixa médica entre 12.06.2017 e 20.12.2017, ou seja, um pouco mais de 6 meses (facto XXXX).


– A Autora orientou em 2017 os estágios das Dras. JJ e II [factos K), L) e FFF)], à semelhança de anos anteriores (facto BBB). Ora, se a Autora esteve de baixa médica entre 12.06.2017 e 20.12.2017, resultando do facto L) que um dos estágios decorreu entre 04.04.2017 e 02.10.2017, tal significa que, na prática, a Autora apenas orientou aquele estágio durante cerca de 2 meses (por ter estado de baixa nos outros meses) e ainda assim apenas 4 dias por semana (em vez de 5) em virtude da redução do tempo de trabalho.


– No ano de 2018, a autora gozou 39 dias de férias (22 dias úteis vencidos em janeiro de 2018 e 17 dias úteis de férias não gozados em 2017). Estes 39 dias de férias foram gozados em 2018 em 14 períodos diferentes (factos II), portanto, necessariamente, de forma interpolada e em curtos períodos.


– De acordo com o procedimento instituído no IPO, em caso de necessidade de o trabalhador prolongar o horário de trabalho, teria de justificar tal necessidade à Diretora de Serviço ou solicitar a respetiva colaboração para evitar esse prolongamento, sendo que tal só era autorizado se não fosse possível ultrapassar a necessidade com recurso ao auxílio de colegas (facto HHHH) e só eram incluídas em bolsa de horas as horas “extra” autorizadas por aquela.


17. Posto isto, analisemos os factos que na decisão recorrida são suscetíveis de configurar assédio:


A) - Não atribuição de estagiários, em 2018, apenas à Autora.


Não se vê que este caso corporize uma prática discriminatória, abusiva ou arbitrária, desde logo porque a redução do tempo de trabalho de que beneficiava a Autora não se afigura compatível, nem coerente, com a sobrecarga exigida por uma orientação zelosa e diligente de um estágio, ao que acresce que o estagiário ficaria sem orientação todas as quartas-feiras.


Por outro lado, não se pode ignorar que a autora esteve 6 meses de baixa no ano de 2017, o que terá implicado o não acompanhamento dos estágios durante aquele período, com o inerente e natural impacto na formação, bem como uma sobrecarga para os outros profissionais que tiveram de colmatar tal ausência.


Mesmo considerando que após os primeiros 3 meses o estagiário faz algum do trabalho do formador, esse trabalho é efetuado sob a orientação do formador, o que pressupõe a disponibilidade deste. Mais: o estágio é feito em benefício do estagiário e não em benefício do orientador, sendo que a autora admite que pretendia ter um estagiário para a auxiliar (facto DDD).


Em suma, as circunstâncias em que a autora exercia as suas funções são distintas das demais, o que permite compreender que não lhe tenha sido atribuída a orientação de estagiários.


B) Quanto ao gozo de férias em 2018, resulta dos factos provados II), JJ), KK), LL), MM), NN), PP), QQ), SS), TT, UU, VV, WW), XX), YY), ZZZ), AAA) e EEEE):


– A autora marcou os dias 15 de janeiro (depois alterado para 22 do mesmo mês) e 12 de fevereiro. Estes 3 dias correspondem todos a segundas-feiras, que são os dias em que a autora dava consultas na Radioterapia, tendo sido esse o fundamento invocado para a aceitação de marcação de apenas uma segunda-feira. Este argumento da Ré não é despiciendo, considerando o prejuízo para o serviço decorrente de os doentes ficarem sem consulta nesses dias, de não haver uma estagiária para assegurar as consultas e, não dispondo a autora de outros dias de consulta para os quais pudesse proceder a remarcações, a sobrecarga daí adveniente para os demais colegas.


– A autora marcou os dias 6 a 14 de agosto de 2018, que coincidiam com férias da sua colega Dra. FF, devendo-se a recusa a este motivo. Entretanto, esteve de baixa médica em agosto, ficando com 6 dias para gozar;


– A autora marcou os dias 27 e 28 de dezembro, que foram recusados.


– A autora marcou os 6 dias de agosto não gozados para os dias 25, 26 e 29 de outubro e 23, 26 e 27 de novembro de 2018 (como a autora não trabalhava às quartas-feiras, acrescia sempre mais esse dia de ausência em cada período), tendo sido autorizado que gozasse os 6 dias juntos e não em 2 períodos distintos e que o fizesse de 23 a 30 de novembro (coincidindo parcialmente com os dias pretendidos). Ainda assim, mesmo com os ajustes levados a cabo, resulta do facto II que a autora gozou 39 dias úteis interpolados em 14 períodos, o que indica que lhe foi concedida uma ampla margem para marcação de férias, tanto mais que está em causa um serviço onde é necessário conciliar os interesses de vários profissionais na marcação de férias.


Acresce, mais uma vez, que a situação da autora é distinta da das outras nutricionistas da equipa, não se podendo exigir que se trate de forma igual o que é diferente, sob pena de violação do princípio da igualdade.


É certo estar provado que foi autorizado que DD tirasse férias em 15 de fevereiro e 26 e 27 de abril de 2018 (o que equivale a um fim-de-semana prolongado, já que dia 25.04 é feriado) e que EE tirasse férias em 22 fevereiro, 15 e 16 de março, 18 de maio, 1 de junho e 26 de novembro de 2018. Contudo, não só as outras nutricionistas não tinham limitações nos dias de consulta, como tal significa que DD foi autorizada a gozar 2 períodos de férias curtos e EE 5 períodos de férias curtos, por oposição à Autora que tirou 14 períodos de férias.


Não se alcança como é que uma trabalhadora que é autorizada a tirar 14 períodos de férias (uma média de 2,7 dias para cada período) – sendo que a lei impõe o gozo de 10 dias úteis consecutivos (artigo 241.º, n.º 8 do Código do Trabalho) –, pelo facto de terem tido lugar ajustes pontuais, para não colidir sempre com o único dia em que dá consultas de radioterapia e para ser feita conciliação entre vários elementos do serviço (necessariamente difícil e que nunca agrada a todos), possa, por isso, considerar-se vítima de assédio …


A este propósito refira-se que o poder de organizar e ordenar o trabalho no seio da empresa (poder de direção), enquanto corolário do princípio constitucional da liberdade de empresa [art. 80º, c), da CRP], exige toda uma série de decisões frequentemente dissemelhantes, sendo que a ilicitude deste tipo de situações pressupõe a violação do princípio da não discriminação ou da esfera de proteção do princípio da igualdade (cfr. arts. 23º, 25º e 26º, do CT).


C) Quanto à anulação da bolsa de horas em 29 de agosto de 2018 (cujos motivos não se apuraram) e que foi reposta, após reclamação, no final do mês de setembro, não assume relevância no plano da questão em análise, já que demorou um mês a ser apreciada a reclamação e a ser reposta a situação.


D) Quanto à não contabilização das horas “extra” comunicadas pela Autora, resulta dos factos provados que a autora não informou da necessidade de prolongar o tempo de trabalho, nem solicitou colaboração em concreto para algum excesso de trabalho, tal como não pediu a necessária autorização, pelo que o comportamento da ré, ao considerar não justificada a inclusão de tais horas na bolsa de trabalho, está conforme aos procedimentos internos [factos FFFF), GGGG) e HHHH) e facto não provado nº 62].


E) Quanto ao não envio do email sobre o trabalho das estagiárias sobre a obesidade, embora pareça ser adequado o seu envio a todas as nutricionistas seniores, a verdade é que, considerando que a autora não orientava nenhuma das estagiárias, não reveste especial expressão o não envio do email para si, sendo até compreensível eventual esquecimento.


F) Quanto à não autorização para participar em palestra no IPO, ministrar aula de mestrado e participar em Congresso, afigura-se especialmente relevante o facto de a autora trabalhar menos um dia por semana e de, em virtude do período de baixa médica no ano de 2017, ter um número acrescido de dias de férias que seriam gozadas em 2018. É razoável que, nesse contexto, não lhe fossem concedidas autorizações para outras ausências ao serviço, que, para além do mais, implicavam redistribuição do trabalho.


Por outro lado, não constitui prática discriminatória, abusiva ou arbitrária o cumprimento da lei, não autorizando que as horas da respetiva bolsa sejam utilizadas para ida a Congressos (pois não podem ser utilizadas em períodos superiores a meio dia e o evento tinha duração superior), nem exigindo o cumprimento do prazo de 20 dias úteis para as comissões gratuitas decorrentes dos procedimentos internos [factos SSS), TTT) e UUU) e VVV)]. O facto de isso ter sido autorizado a outra trabalhadora, que também não cumpriu o prazo (VVV), não é suficiente para que se considere ter ocorrido discriminação, na medida em que se desconhece a justificação apresentada por essa trabalhadora para o atraso, bem como o motivo do pedido de dispensa.


Igualmente se considera justificado que um trabalhador que não se encontra em condições de saúde para cumprir o horário de trabalho completo, queixando-se de excesso de trabalho, não seja autorizado a exercer outras atividades profissionais de natureza lateral.


Quanto ao mestrado, cuja aula era ao sábado, não se vislumbram razões para a sua recusa. Todavia, só por si, este facto é insuficiente para integrar um quadro de assédio, tanto mais que esta decisão – para além de se tratar de facto isolado – não pode ser desligada da circunstância de a trabalhadora se encontrar abrangida por uma redução do tempo de trabalho por motivos médicos. Com efeito, a autora pretendia autorização para lecionar num dia de descanso quando, por razões de saúde, tinha uma redução de tempo de trabalho.


G) Quanto ao agendamento de consultas em virtude de férias, o procedimento definido era o reagendamento pelo próprio para os seus dias de consulta ou a criação de um dia extra de consultas (facto AAAA), ou o agendamento para outro colega com o acordo deste (BBBBB), tendo sido dadas instruções à autora para reagendar 4 consultas (CCCC e DDDD). Contudo, a Autora reagendou as consultas para os dias de outra colega, sem a avisar, o que vai contra os procedimentos, para além de ser desrespeitoso e desleal.


O facto de 4 consultas da colega DD, que estava de férias, terem sido realizadas pela estagiária, tendo em conta a especificidade dos doentes (EEEE), não assume natureza discriminatória, abusiva ou arbitrária: naturalmente, quem tem estagiários tem o inerente acréscimo de responsabilidade e disponibilidade, mas também beneficia da sua ajuda [facto DD)]. Vale por dizer que, não tendo a autora condições para assegurar cabalmente um estágio, é justificado que também não beneficie das possibilidades de substituição.


H) Quanto ao procedimento disciplinar (factos OOOO a TTTT), não estamos perante sucessivas queixas e procedimentos disciplinares, mas perante a abertura de inquérito prévio na sequência de uma informação da superior hierárquica da autora (a ré CC), reportando duas situações. O facto de a ré CC ter participado o incidente do telemóvel desligado, apesar de uma outra nutricionista ter assumido as culpas, parece conter-se ainda dentro dos poderes e obrigações de uma superior hierárquica.


Aliás, na motivação de facto da Sentença, resulta expresso que existiriam “duas facões”, o que é suscetível de explicar que aquela ré não tivesse “acreditado” na outra colega:


Diga-se que do conjunto da prova produzida, não restaram quaisquer dúvidas ao tribunal que o serviço de nutrição tinha, à data dos factos, “duas fações”, cujas diferenças se foram acentuando com o tempo: por um lado, a autora e a testemunha GG e, por outro, a ré CC, EE, NN e DD, sendo claro o desconforto e o mau clima ali instalado.


Alguns dos episódios relatados por estas últimas testemunhas foram descritos pela testemunha GG de forma algo diferente, mas, no entendimento do tribunal, esta sua perceção mostra-se inquinada com o sentimento persecutório de que esta testemunha sentia vítima, quer a autora, quer a si própria.


É exemplo disso o seu relato relativamente ao episódio referido em IIII), no qual entendeu que a ré devia ter considerado como suficiente a sua palavra e não ter colocado à apreciação da Administração do IPO aquele comportamento, donde resultou claro para o tribunal que estaria instalada naquele serviço um clima tal que qualquer atuação daria azo a interpretações muito pouco objetivas.”.


Feitas as diligências, o IPO instaurou procedimento disciplinar apenas por um dos factos reportados, sendo certo que a circunstância de ter deixado cair um dos factos é claramente contrário a uma situação de assédio.


A ausência de conhecimento de atos praticados no procedimento disciplinar durante cerca 3 meses, sem que tenha sido excedido qualquer dos prazos previstos no 329.º do Código do Trabalho, de forma alguma permite concluir que se pretendeu pressionar ou assediar a autora, sendo que, o facto objetivo, só por si, não reveste neste âmbito qualquer importância.


I) Quanto à queixa da autora por assédio, embora não conste dos factos assentes, resulta da documentação junta pela autora que, em abril de 2019, o IPO respondeu a ofício da Inspeção Geral das Atividades em Saúde remetido na sequência de tal queixa. Esta entidade apreciou a questão, tendo arquivado o processo em maio de 2019, pelo que, pese embora a resposta lacónica do IPO, há uma coincidência de posição entre o IPO e a IGAS.


J) Por fim, os seguintes episódios parecem conter-se dentro dos poderes hierárquicos de supervisão e gestão e/ou justificados no contexto de manifesto mau ambiente e desconfiança que existia:


– Numa reunião que teve lugar em janeiro de 2018, com a presença das restantes colegas de serviço, Dras. EE, FF, DD e GG, a ré CC informou que não voltaria a falar a sós com a Autora e que apenas reuniria com esta na presença da Dra. EE (Y);


– Em reunião ocorrida em 26 de fevereiro de 2018, na presença da trabalhadora EE, a ré CC alertou a autora de que não correspondia a boa prática ter escrito num papel de rascunho “dieta mole ou cremosa (passado pela varinha mágica)” e ter entregue o mesmo a um doente de Radioterapia em regime de alojamento no Centro Hoteleiro de Apoio, o qual tinha pedido à autora para saber qual seria a sua dieta, alertando a autora para não o fazer mais (AA).


L) Dois episódios isolados traduzem um deficiente exercício do poder hierárquico e não se apresentam como justificados, embora, só por si, e em face de todo o demais contexto, não sejam suficientes para concluir no sentido de um exercício arbitrário e excessivo do poder de direção. A saber: i) a manutenção dos objetivos sem adaptação proporcional à redução do tempo de trabalho (apesar da eventual pressão que possa ter sido sentida, nada mais se provou quanto a esta questão, designadamente, que a autora tivesse incumprido os objetivos, tenha sido prejudicada ou não progredido); ii) a não contabilização de 2h30m referentes ao erro no horário da Autora de 3 a 9 de julho 2018 (XXX e YYY), facto que, tendo em conta o diminuto período temporal, não assume especial gravidade.


18. Ao contrário do decidido na decisão em apreço, a R. CC não incorreu, pois, em assédio moral, tal como não se mostram infringidos os deveres de respeito e urbanidade e de proporcionar boas condições de trabalho do ponto de vista moral a que se encontra adstrito o empregador [art. 127º, a) e c)], sendo certo que, conforme se referiu, nem todo o conflito no trabalho constitui assédio, sob pena de se descaracterizar a figura.


Consequentemente, impondo-se concluir que a autora resolveu injustificadamente o contrato de trabalho, procede o recurso interposto pelo réu Instituto Português de Oncologia do Porto Francisco Gentil, EPE.


A R. CC não interpôs recurso de revista, até porque isso lhe estava vedado, tendo em conta o valor em que sucumbiu (art. 629º, nº 1, do CPC).


Todavia, encontrando-se verificado o condicionalismo previsto no art. 634º, nº 2, b), do mesmo diploma, são-lhe extensíveis os efeitos do recurso, impondo-se, deste modo, a absolvição de ambos os réus.


IV.


19. Em face do exposto, acorda-se:


a) em conceder a revista do réu Instituto Português de Oncologia do Porto Francisco Gentil, EPE, cujos efeitos de se declaram extensíveis à ré CC;


b) em repristinar a sentença de 1ª instância, assim se absolvendo os réus dos pedidos em que decaíram no Tribunal da Relação.


Custas da revista, bem como da apelação, a cargo da autora.


Lisboa, 12 de abril de 2024


Mário Belo Morgado (Relator)


José Eduardo Sapateiro


Domingos Morais





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1. O tribunal deve conhecer de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.º, 663.º, n.º 2, e 679º, CPC], questões (a resolver) que, como é sabido, não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, os quais não vinculam o tribunal, como decorre do disposto no art. 5.º, n.º 3, do mesmo diploma.↩︎

2. Facto aditado pelo TRP.↩︎

3. Facto aditado pelo TRP.↩︎

4. Facto aditado pelo TRP.↩︎

5. Como todas as disposições legais citadas sem menção em contrário.↩︎

6. Todos os sublinhados e destaques são nossos.↩︎

7. Cfr. Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, II, 9ª edição, p. 214 e 231 – 236.↩︎

8. Cfr. Pedro Romano Martinez (e outros), Código do Trabalho Anotado, 9.ª edição, p. 187, e Bernardo da Gama Lobo Xavier, Direito do Trabalho, 2011, p. 450.↩︎

9. Ob. cit., p. 410/(1079) e 412.↩︎

10. Ibidem.↩︎

11. V.g., a animosidade decorrente de diferenças políticas, culturais ou religiosas, a rivalidade inerente à dinâmica competitiva no local de trabalho, desafio, inveja, desconfiança, ambição, deslumbramento pelo exercício do poder, antipatia e insegurança.↩︎

12. “Transformando-se num mecanismo mais expedito e económico da empresa se desembaraçar de trabalhadores que, por qualquer razão, não deseja conservar”, na expressão de Júlio Gomes, ibidem, p. 431.↩︎

13. Cfr. Gloria P. Rojas Rivero, El daño por mobbing: delimitación y responsabilidades, Editorial Bomarzo, pp. 39 – 40.↩︎

14. Cfr. Jordi Escartín, Álvaro Rodríguez-Carballeita e Dieter Zapf, Mobbing, Acoso psicológico en el trajajo, Editorial Sintesis, pp. 24 – 32, e Marie-France Hirigoyen, El acosso moral, Paidós, 2023, p. 120 e ss.↩︎

15. Direito do Trabalho, Almedina, 22ª edição, p. 302.↩︎

16. Direito do Trabalho, I, 2007, p. 436.↩︎

17. Ibidem, pp. 302 - 303.↩︎

18. Júlio Manuel Vieira Gomes, ob. cit., p. 436.↩︎

19. Mobbing ou Assédio Moral no Trabalho, Coimbra Editora, 2009, p. 100.↩︎