ACIDENTE DE TRABALHO
RESPONSABILIDADE CIVIL EMERGENTE DE ACIDENTE DE TRABALHO
COMITENTE
COMISSÁRIO
MÉDICO
Sumário


A empregadora não é responsável pela conduta do clínico do trabalho que também labora em centro de saúde, emitindo baixas por doença natural fora do âmbito da sua atividade de médico do trabalho.

Texto Integral



Revista n.º 186/17.5T8HRT.L1.S1


MBM/DM/RP


Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça


I.


1.1. Autor/recorrente: AA.


1.2. Rés: Atlânticoline S.A. (recorrida) e Seguradoras Unidas, S.A.


1.3. Intervenientes Principais: Dr. BB (médico) e FacingTrouble, Serviços Médicos, Lda.


X X X


2. O A. demandou as RR., pedindo a sua condenação a pagarem-lhe solidariamente: a) a quantia de 13 966,50 Euros, relativos à reposição do subsídio por doença entre 20.01.2011 e 14.12.2013, acrescida de juros de mora; b) o diferencial entre o valor auferido por subsídio por doença período e o da remuneração base e outras remunerações com caráter de regularidade que o A. auferia, que cifra em 15 000,00 Euros, quantia também acrescida de juros moratórios; e c) 10 000,00 Euros, a título de danos morais.


Alega, no essencial:


É trabalhador da ré Atlânticoline, S.A., desde 2007. Foi vítima de acidente de trabalho em 21.02.2010, com lesão grave no joelho direito, com incapacidade temporária absoluta desde 22.03.2010 até 24.12.2010.


Em 24.12.2010 o médico da ré Companhia de Seguros Açoreana, S.A., emitiu boletim de alta, atribuindo incapacidade permanente parcial de 13,6 %, pelo que o A. se apresentou ao trabalho em 25.12.2010, com o apoio de muletas. A empregadora considerou que não estava em condições de prestar trabalho, pelo que deveria tirar férias. Por indicação da ré Atlânticoline, S.A., foi consultado pelo Dr. BB, médico de medicina no trabalho da empresa, o qual lhe passou baixa por doença natural por 30 dias, em vez de atestado por acidente de trabalho.


Em fevereiro de 2011, o A. e a Atlânticoline foram convocados para tentativa de conciliação no processo de acidente de trabalho que correu nos serviços do Ministério Público, não tendo havido acordo quanto ao grau de incapacidade permanente parcial. Foi proferida sentença no processo de acidente de trabalho n.º 11/11.0..., na sequência de junta médica, que fixou a IPP de 14,5 %. Em 05.12.2013 foi novamente consultado pelo Dr. BB, o qual emitiu uma ficha a declará-lo inapto temporariamente para o trabalho de marinheiro.


Posteriormente dirigiu-se à Inspeção do Trabalho e voltou a apresentar-se ao trabalho, mas a ré Atlanticoline não o quis receber, alegando que estava inapto. Na sequência de reuniões com a Inspeção do Trabalho foi trabalhar a partir de 14 de dezembro de 2013, até 26.01.2015, data em que iniciou baixa médica por doença natural. Antes esteve de baixa médica por doença natural desde 20.01.2011 a 14.12.2013, período em que auferiu subsídio por doença da Segurança Social.


Por ofício de 19.05.2015 da Segurança Social, o A. foi notificado para proceder à devolução de quantias que correspondem ao subsídio por doença auferido, no valor de 13.966,50 Euros.


3. Foi admitida a intervenção principal de FacingTrouble, Serviços Médicos, Lda, e de BB, requerida pela R. Atlanticoline, S.A., alegando que em caso de condenação no pedido teria direito a ser indemnizada, com base em direito de regresso, pela empresa prestadora no serviço externo de segurança e saúde no trabalho.


4. Na 1ª Instância, o Tribunal julgou a ação parcialmente procedente, decidindo:


a) Condenar a ré Atlanticoline, S.A., na qualidade de comitente, pelos atos praticados pelo interveniente principal BB, a pagar ao A: i) a quantia de 13 966,50 Euros, acrescida de juros de mora, sobre as quantias já pagas pelo autor à Segurança Social; ii) a quantia que apurar em incidente de liquidação, a titulo de diferenças do valor auferido pelo A. por subsídio de doença e o valor do seu vencimento, diuturnidades e outras remunerações a que tenha direito nos termos do seu contrato de trabalho, referente ao período de 20.01.2011 a 14.12.2013; iii) a quantia de 8.000,00 Euros, a título de danos não patrimoniais.


b) Absolver a ré Seguradoras Unidas, S.A. dos pedidos contra si formulados.


5. O Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), concedendo provimento ao recurso de apelação interposto pela R. Atlanticoline, SA, absolveu-a do pedido.


6. O A. interpôs recurso de revista, não tendo sido apresentadas contra-alegações.


5. O Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido do improvimento do recurso, em parecer a que as partes não responderam.


6. Em face das conclusões1 da alegação de recurso, e inexistindo quaisquer outras de que se deva conhecer oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC), a única questão a decidir2 consiste em determinar se a empregadora é responsável pela conduta do clínico do trabalho que também labora em centro de saúde, emitindo baixas por doença natural fora do âmbito da sua atividade de médico do trabalho.


Decidindo.


II.


7. Com relevo para a decisão do litígio, mostra-se fixada a seguinte matéria de facto:


1. O autor é trabalhador da sociedade Atlanticoline, S.A., com a categoria profissional de marinheiro de tráfego local.


(…)


4. O autor foi vítima de um acidente de trabalho em 21-02-2010, com lesão grave no joelho direito.


5. A responsabilidade por acidente de trabalho encontrava-se transferida para a então Companhia de Seguros Açoreana, S.A., pela apólice n.º 10112967.


(…)


8. Na sequência do acidente de trabalho o autor esteve com incapacidade temporária absoluta para o trabalho, reconhecida e paga pela Companhia de Seguros Açoreana, S.A., desde 22-03-2010 até 24-12-2010.


9. Em 24-12-2010 o médico da Companhia de Seguros Açoreana, S.A., emitiu boletim de alta, atribuindo uma incapacidade permanente parcial de 13,6 % ao autor.


10. Nessa sequência, o autor apresentou-se ao trabalho na então T..., em 25-12-2010, com o apoio de muletas.


11. CC, mestre da embarcação, realizou uma viagem com o autor, no exercício das suas funções e disse ao autor que este não estava em condições de embarcar, pois qualquer trabalho nos cruzeiros implica boa mobilidade.


12. Regressado à ..., CC ordenou ao autor que ficasse em terra e comunicou a DD, superior hierárquico do autor.


13. O autor acordou com a entidade empregadora gozar dias de férias.


14. Por indicação da entidade empregadora, no dia 17-01-2011, o autor foi consultado pelo Dr. BB, médico de medicina do trabalho contratado por aquela empresa.


15. No mesmo dia 17-01-2011, o Dr. BB preencheu uma “Ficha de Aptidão” relativa ao autor, de onde consta “data do exame: 2011-01-17”, bem como a seleção da opção “tipo ocasional após doença” e “inapto temporariamente”.


16. Da mesma ficha consta a seguinte observação: “Foi emitida Baixa Médica”.


17. O Dr. BB emitiu um certificado de incapacidade temporária para o trabalho por doença natural, a favor do autor, no dia 17-01-2011, por 30 dias.


18. O autor dirigiu-se aos serviços da Segurança Social da Horta para entregar o referido certificado, tendo aí sido informado que a primeira baixa só podia ser até 15 dias.


19. O Dr. BB emitiu novo certificado pelo período de 14 dias, no dia 20-01-2011.


20. O autor veio a ser novamente observado em consulta de ortopedia nos serviços clínicos da Companhia de Seguros Açoreana, S.A. em 28-04-2011, tendo o médico da companhia de seguros emitido novo boletim de alta, atestando incapacidade absoluta temporária desde 20-01-2011 até 29-04-2011.


21. Nessa sequência, a Companhia de Seguros Açoreana, S.A. procedeu ao pagamento da quantia de 891,06 € referente ao período entre 20-01-2011 e 19-04-2011.


22. Em abril de 2011 e em fevereiro de 2013, o autor, a entidade empregadora, T... e a Companhia de Seguros Açoreana, S.A. foram convocados para tentativa de conciliação, no âmbito da fase conciliatória do processo por acidente de trabalho em curso nos serviços do Ministério Público da Horta, tendo sido frustrada a conciliação apenas por discordância da incapacidade parcial permanente a fixar.


23. Por sentença de 16-05-2013, proferida no processo por acidente de trabalho n.º 11/11.0..., que correu ternos no Tribunal Judicial da Horta, e na sequência de junta médica, foi fixada a incapacidade permanente parcial de 14,5 % e a pensão anual de 1.039,65 €.


24. Em 05-12-2013 o autor foi novamente observado pelo médico de medicina no trabalho da ré Atlanticoline, Dr. BB, no escritório da sede da então T..., na Rua ..., tendo sido por este emitida ficha de aptidão a declarar o autor como «inapto temporariamente» e a recomendar que fosse observado por médico ortopedista.


25. Entre 20-01-2011 e 14-12-2013 o autor esteve de baixa médica por alegada doença natural em virtude dos certificados emitidos por médicos.


26. O Dr. BB emitiu vinte e sete certificados de incapacidade temporária por doença natural a favor do autor.


(…)


28. O autor ia buscar os certificados emitidos pelo Dr. BB diretamente e quando este não estava presente, o autor pedia a um médico do centro de saúde, com vista a justificar a sua ausência ao trabalho.


29. O autor não padecia de doença natural que o impossibilitasse de prestar trabalho, no dia 17-01-2011, data em que o Dr. BB emitiu o primeiro certificado de incapacidade temporária por doença natural.


30. Nem nas restantes datas em que o Dr. BB emitiu novos certificados com vista à renovação da baixa, o autor padecia de doença natural que o impossibilitasse de trabalhar.


31. O autor ficou com um grau de desvalorização de 14,5 % de incapacidade permanente parcial decorrente da lesão no joelho provocada pelo acidente de trabalho acima referido.


(…)


41. Durante o período entre 20-01-2011 até 14-12-2013, o autor recebeu subsídio de doença, pago pelo Instituto da Segurança Social dos Açores (ISSA), em valor mensal de valor não concretamente apurado, de cerca de 300,00 € por mês.


42. Por ofícios do ISSA, datados de 19-05-2015, o autor foi notificado para proceder à restituição dos subsídios por doença indevidamente pagos no período entre 20-01-2011 até 14-12-2013, constantes de três notas de reposição, nos valores de 1 271,48 €, 814,32 € e 11 849, 94 €, num total de 13 966,50 €.


43. O ISSA está a repor a quantia, acrescida de juros e custas, através do desconto no subsídio por doença que o autor se encontra a auferir atualmente.


(…)


55. A ré Atlanticoline, S.A. nunca condicionou, solicitou ou negou qualquer emissão de baixas médicas a qualquer seu trabalhador.


56. As baixas foram sempre apresentadas pelo autor quer na Segurança Social, quer nos serviços da ré, para justificação da sua ausência ao trabalho.


57. O autor tinha conhecimento que os certificados atestavam doença natural, não tendo conhecimento, porém sobre se era a baixa adequada ao seu caso ou não.


58. A ré Atlanticoline, à data T..., celebrou com BB, médico com cédula profissional n.º 38132, um contrato de prestação de serviços de medicina no trabalho, pelo qual este ficou obrigado a prestar serviços de medicina no trabalho a favor daquela.


III.


8. É manifesta a improcedência do recurso, pelas concludentes e inultrapassáveis razões expendidas no acórdão recorrido, do qual se destaca o seguinte passo:


«[A] responsabilidade assacada a ré Atlânticoline prende-se necessariamente com a atividade do médico de medicina do trabalho contratado por ela, no exercício das suas funções enquanto clínico do trabalho. No dizer da sentença recorrida “está em causa a prática de atos de medicina do trabalho, obrigação legal que recai sobre a entidade empregadora”.


Ora, o art. 98, n.º 1, da Lei 102/2009, na versão vigente até às alterações consagradas na Lei n.º 3/2014, de 28/01, aplicável à data dos factos (art.º 12, n.º 1, do Código Civil), enunciava as funções do médico do trabalho, por referência às competências do serviço correspondente.


(…)


[É] claro que os certificados emitidos pelo interveniente Dr. BB, respeitando a baixas médicas por doença natural do sinistrado, não se reportam à atividade profissional do trabalhador, sendo alheios aos riscos profissionais e ao infortúnio laboral (…). Como nota o Sr. Procurador-geral adjunto, “tais declarações médicas foram, como só podiam ser, emitidas enquanto médico dos serviços públicos de saúde”. Que assim é, aliás, mostra-o bem o facto de 9 certificados terem sido emitidos por outros 3 médicos do centro de saúde, a quem, quando o Dr. BB não estava presente, o autor os solicitava (factos n.º 26 e 27).


Daí ser incontornável a conclusão do parecer de que “a ré é totalmente alheia a essa atuação do médico interveniente principal nos autos. Não se vislumbra, por isso … que se possa afirmar a existência da responsabilidade do comitente por atos do Comissário”.


9. No mesmo sentido se pronuncia, no seu douto parecer, o Exmº Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal, nos seguintes termos:


“[A] emissão pelo médico que é interveniente principal nestes autos de Certificados de Incapacidade Temporária (CIT) por motivo de doença, não cabe no âmbito das suas funções de médico do trabalho.


Tais declarações médicas foram, como só podiam ser emitidas enquanto médico dos serviços públicos de saúde.


O médico do trabalho emite fichas de aptidão ou de inaptidão para o trabalho, nos termos previstos no art.º 110.º do Regime jurídico da promoção da segurança e saúde no trabalho, aprovado pela Lei n.º 102/2009, de 10 de Setembro, sendo que essas fichas devem ser entregues à entidade empregadora, mas não ao trabalhador.


Essa ficha, quando seja de inaptidão, tem natureza e finalidade distinta do CIT ou “documento de “baixa médica”, dado que este visa certificar a incapacidade para o trabalho por motivo de doença e tem por efeitos a justificação de faltas ao trabalho, com fundamento em doença, e a atribuição de subsídio de doença pela Segurança Social.


A ré é, por isso, totalmente alheia a essa atuação do médico interveniente principal nos autos. Não se vislumbra, por isso, que se possa afirmar a existência de responsabilidade do comitente por atos do comissário, dado que a emissão das “baixas” não foi feita pelo médico enquanto exercia as funções de médico do trabalho ao serviço da ré, mas sim como médico dos serviços de saúde.


O que parece estar na base da emissão dos certificados de incapacidade temporária por doença é uma recidiva ou agravamento da situação de saúde do sinistrado em consequência do acidente de trabalho de que fora vítima.


Nessa situação, deveria o sinistrado ter requerido à seguradora que o seu processo fosse reaberto, especialmente para, sendo esse o caso, ser submetido a novos tratamentos e para lhe ser atribuída incapacidade temporária para o trabalho, nos termos previstos no art.º 16.º da LAT (L 98/2009, de 04-09).


E, ocorrendo eventualmente alguma divergência entre o sinistrado e a seguradora, poderia o sinistrado fazer intervir o tribunal, reabrindo o processo emergente de acidente de trabalho. Ou seja, as questões relativas à recaída ou agravamento em consequência do acidente de trabalho deveriam necessariamente ter sido tratadas no processo de acidente de trabalho.”


10. Integralmente acompanhamos as transcritas considerações, não se vislumbrando qualquer necessidade/utilidade em proceder a desenvolvimentos argumentativos adicionais, sendo certo que o recorrente não aduz qualquer argumento jurídico real em contrário.


IV.


11. Em face do exposto, confirmando o acórdão recorrido, acorda-se em negar a revista.


Custas pelo recorrente.


Lisboa, 12 de abril de 2024


Mário Belo Morgado (Relator))


Domingos Morais


Ramalho Pinto





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1. A saber:

A) Todos os problemas médicos do Recorrido foram consequência do acidente de trabalho e a emissão de baixas médicas foram sempre por esse motivo e o Recorrido, recorria ao Dr. BB, por ser o médico indicado pela entidade patronal.

B) Só quando era impossível entrar em contacto com o médico, (lembramos que o Recorrido reside na ilha do ... e o médico é residente no Continente, só se deslocando periodicamente aos Açores) é que pedia a renovação da baixa médica a médico do Centro de Saúde).

C) Ou seja, para o Recorrido não havia diferenciação da entidade patronal e médico, e a entidade patronal recebia as baixas, sem nunca por em causa as mesmas.

D) Não vemos razão para excluir o art.º 500.º do C.C., da responsabilidade do comitente/Recorrente.↩︎

2. O tribunal deve conhecer de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.º, 663.º, n.º 2, e 679º, CPC], questões (a resolver) que, como é sabido, não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, os quais não vinculam o tribunal, como decorre do disposto no art. 5.º, n.º 3, do mesmo diploma.↩︎