ACIDENTE DE VIAÇÃO
ACIDENTE DE TRABALHO
CUMULAÇÃO DE INDEMNIZAÇÕES
EXCLUSÃO DE RESPONSABILIDADE
Sumário


I- Sendo o acidente simultaneamente de viação e de trabalho, a indemnização das perdas salariais associadas à incapacidade laboral, fixada no processo por acidente de trabalho, não exclui o ressarcimento pelo dano biológico, na sua vertente patrimonial, por serem distintos os danos a ressarcir.

II- A indemnização pelo dano biológico, além de compensar a perda de capacidade de ganho, visa ainda compensar o lesado pelas limitações funcionais que se refletem na maior penosidade e esforço no exercício da atividade diária e na privação de futuras oportunidades profissionais.

III- A exclusão de responsabilidade contemplada no art. 17º, nºs 2 e 3, da Lei n.º 98/2009, de 04/09 (a que corresponde o processo previsto no art. 151º, n° 1, do Código de Processo do Trabalho) tem (apenas) como limite a parte da indemnização civil correspondente aos danos refletidos no processo laboral (ainda que a indemnização civil se baseie em retribuição do sinistrado superior à considerada nas prestações reparatórias provenientes do acidente de trabalho).

Texto Integral



Revista n.º 34/14.8T8PNF-A.P1.S2


MBM/DM/JES


Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça


I.


1. Fidelidade Companhia de Seguros, S.A, intentou ação declarativa para declaração de suspensão de direitos resultantes de acidente de trabalho contra o sinistrado AA.


O R. contestou, sustentando, em síntese, que o dano patrimonial que a indemnização fixada na ação cível visou ressarcir se trata de um dano biológico, que não reveste natureza laboral, pelo que a pensão arbitrada ao sinistrado no processo emergente de acidente de trabalho deverá cumular-se com aqueloutra.


2. A ação foi julgada parcialmente procedente na 1ª Instância, lendo-se no dispositivo da sentença: “[P]rovado que está ter o sinistrado recebido indemnização nos termos gerais de direito pelos danos patrimoniais decorrentes do acidente de viação e de trabalho quanto a dano emergente e futuro da perda da capacidade de ganho, tem a ora Requerente direito à desoneração da sua responsabilidade na medida do recebido pelo mesmo Requerido/Sinistrado do terceiro responsável cível, declarando a suspensão da obrigação da Requerente (…) a pagar a pensão anual devida ao sinistrado (…) até perfazer o montante de € 400.000.


3. Interposto recurso de apelação pelo R., o Tribunal da Relação do Porto (TRP) confirmou a decisão recorrida, por acórdão assim sumariado:


“I) Quando na apreciação do acidente enquanto acidente de viação (processo cível) é arbitrada quantia a título de dano biológico (na vertente patrimonial, mais concretamente perda da capacidade de ganho) com recurso à equidade, ainda que para tal sejam ponderados alguns elementos objetivos referenciais, entre eles a retribuição anual auferida pelo sinistrado, o valor é fruto de um juízo equitativo;


II) Assim, o facto do valor dessa retribuição referencial ser superior à considerada para fixar as prestações devidas por aplicação da LAT [por aquela incluir prémio de produtividade e ajudas de custo] não permite dizer que o dano concreto reparado não é o mesmo, muito menos se podendo afirmar que se o valor da indemnização pelo dano biológico recorrendo, entre outros elementos, a uma retribuição de X foi de € 400.000,00, se fosse ponderada uma retribuição de Y a indemnização seria de W, e considerar este valor W como limite até ao qual tem lugar a suspensão de direito a pensões/direitos resultantes de acidente de trabalho, pois tal desvirtuaria a ponderação equitativa do "tribunal cível.".


4. O sinistrado interpôs recurso de revista excecional, com fundamento, nomeadamente, no art. 672º, nº 1, alínea), do CPC, alegando em síntese:


– A indemnização pelo dano patrimonial futuro emergente da IPP, fixada em processo emergente de acidente de trabalho, e a indemnização pelo dano biológico, na sua vertente patrimonial, são realidades distintas entre si, tal como são diferentes os correspondentes danos.


– A indemnização pecuniária de 400.000,00 €, fixada pelo STJ na ação cível, não tinha como função ou finalidade a compensação das perdas salarias e prejuízo patrimonial decorrentes do grau de incapacidade laboral fixado no âmbito do processo de acidente de trabalho, mas indemnizar o dano biológico.


– Caso assim não se entenda, sempre se imporá destrinçar, no plano do montante global da indemnização fixada na ação cível, qual o sub-montante alocado ao ressarcimento da incapacidade laboral e respetiva perda de rendimentos do trabalho e qual o sub-montante alocado à satisfação do dano biológico patrimonial.


– O acórdão recorrido sustenta que não é possível proceder a essa destrinça, invocando o facto de a indemnização ter sido fixada, na ação cível, com recurso à equidade, mas sem razão.


– Tal entendimento implicaria que o valor ressarcitório fixado em sede de ação cível, pelo facto de ter sido fixado com recurso à equidade, constitui sempre duplicação da indemnização fixada em acidente de trabalho, pelo que seria irrelevante que a indemnização cível fosse calculada, ou não, com base em rendimentos do trabalho que não fossem elegíveis para o cômputo da indemnização de natureza jus laboral.


5. A revista excecional foi admitida pela formação dos três Juízes desta Secção Social a que se refere o n.º 3 do artigo 672.º, do CPC.


6. Neste Supremo Tribunal, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser concedida parcialmente a revista.


7. Em face das conclusões da alegação de recurso, e inexistindo quaisquer outras de que se deva conhecer oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC), a única questão a decidir1 consiste em saber se a decretada exclusão (“suspensão”) de responsabilidade (ao abrigo do art. 17º, nºs 2 e 3, da Lei n.º 98/2009, de 04/09, e a que corresponde o processo previsto no art. 151º, n° 1, do Código de Processo do Trabalho) tem como limite a totalidade da indemnização arbitrada no processo cível a título de danos patrimoniais (400.000,00 €) ou, tão somente, a parte correspondente aos danos refletidos no âmbito laboral


E decidindo.


II.


8. Com relevância para a decisão, há a considerar os seguintes factos:


1. Fidelidade-Companhia de Seguros, SA, celebrou com a sociedade F..., Lda –, um contrato de seguro do ramo Acidentes de Trabalho.


2. Na sequência de acidente de trabalho ocorrido a 30.09.2013, em 26.09.2018, no decurso da fase conciliatória, Fidelidade Companhia de Seguros, S.A., assumiu a responsabilidade de proceder ao pagamento, da pensão anual, vitalícia e atualizável ao sinistrado AA, no valor de 8.967,98 €, acrescida do valor de 2.241,99 €, relativos a familiares a cargo, devidas desde 31.03.2016, correspondendo cada prestação a 1/14 da pensão anual, bem como o subsídio de férias e de Natal, cada um, igualmente no valor de 1/14 da pensão anual, conforme o disposto nos arts. 48.º n.º 3, alínea a), 49.º n.º 1, alínea c), 60.º, n.º 1, e 72.º, n.º 2, da Lei 98/2009, de 04/09, e o subsídio de elevada incapacidade permanente, no valor de 5.533,70 €.


3. Em consequência do acidente em questão, o sinistrado AA intentou contra a Caravela – Companhia de Seguros, S.A., ação judicial que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Juízo Central Cível de ..., Juiz ..., sob o n.º de Processo n.º 2712/18.3..., na qual peticionou o pagamento de uma indemnização, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais.


4. Tal ação culminou com Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, já transitado em julgado, tendo sido decidido:


4.1. A título da “indemnização devida a título de compensação dos danos de natureza patrimonial futuros, decorrentes da incapacidade permanente geral para o trabalho (IPG), também denominado défice funcional permanente” (“dano biológico, na sua vertente patrimonial”, como expressamente se afirma), considerando que o sinistrado ficou impedido de exercer a sua atividade profissional habitual, bem como qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional, fixar tal indemnização em 400.000 EUR, “valor ao qual tem de ser subtraídas as verbas recebidas da ISS e da Interveniente [Fidelidade Companhia de Seguros, S.A.] pelo dano em causa”.


4.2. A título de ressarcimento dos danos de cariz não patrimonial, foi mantido o valor de 75.000 EUR fixado pela Relação.


III.


9. Relativamente à questão de saber se a indemnização pelo dano patrimonial futuro emergente da IPP, fixada em sede de processo emergente de acidente de trabalho, e a indemnização pelo dano biológico, na sua vertente patrimonial, são realidades distintas entre si, bem como se são diferentes os correspondentes danos, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem coincidindo no entendimento expresso v.g. no Ac. do STJ de 17.11.2021, Proc. n.º 3496/16.5T8FAR.E1.S1, 7.ª Secção, assim sumariado:


I – Sendo o acidente simultaneamente de viação e de trabalho, o recebimento pelo lesado de um certo capital de remissão no âmbito do processo por acidente de trabalho, não exclui o direito à indemnização pelo dano biológico, na sua vertente patrimonial, por serem distintos os danos a ressarcir;


II – O capital de remissão visa ressarcir as perdas salariais associadas à incapacidade laboral fixada no processo por acidente de trabalho; a indemnização pelo dano biológico, além de compensar a perda de capacidade de ganho, visa ainda compensar o lesado pelas limitações funcionais que se refletem na maior penosidade e esforço no exercício da atividade diária e na privação de futuras oportunidades profissionais


10. Aresto em cuja fundamentação se afirma:


«Na doutrina e na jurisprudência fala-se em dano biológico para aludir ao dano causado ao corpo e à saúde do lesado; ao dano causado à integridade física e psíquica que a todos assiste.


É entendimento pacífico que a limitação funcional, ou dano biológico, em que se traduz essa incapacidade, é apta a provocar no lesado danos de natureza patrimonial e não patrimonial. E tem sido considerado que, no que aos primeiros respeita, os danos futuros decorrentes de uma lesão física não se reconduzem apenas à redução da sua capacidade de trabalho, já que, antes do mais, se traduzem numa lesão do direito fundamental à saúde e à integridade física; por isso, não deve ser arbitrada uma indemnização que tenha em conta apenas aquela redução. (cf. Acórdão proferido na Revista nº 1333/18.8T8PDL1.S1, com o mesmo relator e adjuntos, ainda os Acórdãos do STJ de 19.09.2019, P. 2706/17, de 14.12.2016, P. 37/13, de 20.11.2014, P. 5572/05, de 10.11.2016, P. 175/05 e de 10.12.2019, P. 97/15).


Como referido no Acórdão de 29.09.2019, P. 683/11 (…):


“A vertente patrimonial do dano biológico tem a virtualidade de ressarcir não só i) as perdas de rendimentos profissionais correspondentes à impossibilidade de exercício laboral e/ou económico-empresarial e as frustrações de proveitos existentes à data da lesão (ponderadas até um certo momento da via ativa), mas também ii) a privação de futuras oportunidades profissionais e o esforço acrescido de reconversão (enquanto determinado pela incapacidade resultantes da lesão) para o exercício profissional, num caso e noutro, danos patrimoniais futuros previsíveis, na variante de lucros “cessantes” (arts. 562º, 564º, nºs 1 e 2 do CCivil)”.


O recente acórdão de 21.01.2021, desta secção, (…) decidiu:


“A limitação funcional em que se traduz a incapacidade permanente de que ficou afectada a vítima de um acidente de viação, mesmo quando não implica a redução da capacidade de ganho, mas obriga a um esforço acrescido para a evitar, é apta a provocar no lesado danos de natureza patrimonial e não patrimonial.


Em ambos os casos, a indemnização deve ser calculada segundo a equidade.”


(…)


O STJ tem decidido constantemente que quando o acidente for, simultaneamente, de viação e de trabalho as respetivas indemnizações não são cumuláveis, mas antes complementares, assumindo a responsabilidade infortunístico laboral carácter subsidiário (cf. Acórdãos do STJ de 14.12.2016, (secção social), e de 11.07.2019, P. 1456/15).


Como se escreveu neste último aresto, “a responsabilidade primeira é a que incide sobre o responsável civil. É essa responsabilidade que vai definir o quadro indemnizatório geral, sendo certo que, quanto a este mesmo dano concreto, não pode haver duplo ressarcimento.”.


(…)


Ora, as duas indemnizações visam compensar danos distintos: a pensão vitalícia fixada no processo por acidente de trabalho corresponde á redução na capacidade de ganho do sinistrado, por incapacidade parcial permanente, como resulta do art. 10º, alínea b) da Lei nº 100/97 de 13.09, que aprovou o regime jurídico dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais; a indemnização pelo dano biológico visa ressarcir, além da redução da capacidade de ganho, ainda as limitações funcionais do lesado, um dano que vai para além do tempo de vida ativa, e o esforço acrescido no exercício das atividades profissionais e pessoais.”


Neste sentido decidiu o Acórdão deste Tribunal de 11.12.2012 (…):


“São de considerar como dano diferente o que decorre da perda de rendimentos salariais associado ao grau de incapacidade laboral fixado no processo por acidente de trabalho e compensado pela atribuição de um certo capital de remissão, e o dano biológico decorrente das sequelas incapacitantes do lesado, que envolvem restrições acentuadas à sua capacidade, implicando esforços acrescidos, quer para a realização das tarefas profissionais, quer para as atividades da vida pessoal e corrente.”


(…)


A Relação confirmou o quantum indemnizatório de €270.000,00, fixado na sentença [a título de dano patrimonial futuro/dano biológico].


(…)


[N]ão pode olvidar-se que o Autor já recebeu a título de capital de remissão no âmbito do processo por acidente de trabalho a quantia de €37.098,24, uma indemnização que visa justamente ressarcir a perda de rendimentos salariais associados ao grau de incapacidade laboral, um dano que, como vimos, integra o dano biológico na sua vertente patrimonial. Assim, e para evitar um duplo ressarcimento do mesmo dano, aquele recebimento não pode deixar de ser considerado na fixação da indemnização por dano biológico, o que não parece ter ocorrido nas decisões das instâncias.


Assim, e dando em parte razão à Recorrente, num juízo equitativo entendemos fixar a indemnização a este título em €240.000,00.»


11. E, relativamente à conexa questão de saber em que termos as indemnizações por acidentes que sejam simultaneamente de viação e de trabalho se complementam entre si, problemática que – tendo como pano de fundo o tema da natureza do dano biológico – tem subjacente o imperativo de evitar a duplicação de indemnizações relativamente ao mesmo dano e a rigorosa delimitação dos danos em presença, destacam-se neste Supremo Tribunal as seguintes linhas jurisprudenciais:


– Ac. do STJ de 21.06.2022, Proc. n.º 1633/18.4T8GMR.G1.S1, 1.ª Secção:


IV- Entre os danos indemnizáveis encontra-se, na moderna terminologia o chamado dano biológico, que costuma ser definido como um estado de danosidade físico-psíquico em que ficou a pessoa lesada, com repercussões negativas na sua vida.


V - Dano esse que tanto pode ser ressarcido enquanto dano patrimonial futuro, como compensado a título de dano não patrimonial, o que resultará de uma a avaliação casuística, e que normalmente resultará da verificação/conclusão se a lesão originou no futuro, e só por si, uma perda da capacidade de ganho do lesado ou se traduz, apenas, numa afetação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade.


VI - Nessa sua dimensão/vertente patrimonial (que decorre, em regra, de uma limitação ou défice funcional), esse dano abrange ou inclui em si um espetro/leque alargado de prejuízos que se refletem na esfera patrimonial do lesado, e que vão desde a perda do rendimento total ou parcial auferido no exercício da sua atividade profissional habitual até à frustração de previsíveis possibilidades de desempenho de quaisquer outras atividades ou tarefas de cariz económico (traduzidas em perdas de chance ou oportunidades profissionais), passando ainda pelos custos de limitações ou de maior onerosidade/esforço no exercício ou no incremento de quaisquer dessas atividades ou tarefas, com a consequente repercussão de maiores despesas daí advenientes ou no malogro do nível de rendimentos normalmente expectáveis, assumindo neste último a caso a indemnização como uma adição ou complemento compensatórios.


VII - Dano patrimonial futuro (vg. na vertente de lucro cessante) esse cuja indemnização, quando decorra da perda ou diminuição da capacidade aquisitiva, motivada pelo défice funcional de que o lesado ficou afetado, deve, como regra, ser calculada em atenção ao tempo provável de vida do lesado, ou seja, à esperança média da sua vida, e não apenas em função da duração da sua vida profissional ativa (vg. prevista até à sua reforma), de forma a representar um capital produtor de rendimento que cubra a diferença entre a situação anterior e a atual até final desse período.


VIII - Consabidas que são as dificuldades que existem em tal domínio, devido à ausência de regras legais que concretamente enunciem objetivamente os critérios a seguir e não podendo ser averiguado o valor exato dos danos – sendo certo que aqueles constantes das Portaria nº. 377/2008, de 26/05, com ou sem as alterações introduzidas pela Portaria nº. 679/2009, de 25/06, não vinculam os tribunais, não derrogando, a esse respeito os princípios insertos nos Código Civil, pois que apenas visam facilitar e acelerar a regularização extrajudicial do sinistros em matéria de acidentes rodoviários -, devem os mesmos ser sempre, em última instância, apurados à luz da equidade, emergente caso concreto, devendo o recurso as quaisquer tabelas matemáticas ou financeiras servir, quando muito, como meios auxiliares de orientação com vista a atingir a tal desiderato equitativo da indemnização do dano.


– Ac. do STJ de 29.10.2020, Proc. n.º 111/17.3T8MAC.G1.S1, 2.ª Secção:


I. De acordo com jurisprudência consolidada do STJ, consideram-se reparáveis como danos patrimoniais as consequências danosas resultantes da incapacidade geral permanente (ou vertente patrimonial do denominado “dano biológico”), ainda que esta incapacidade não tenha tido repercussão directa no exercício da profissão habitual.


II. Equívoco muito comum na prática judiciária nacional consiste em perspectivar o défice funcional por perda de capacidade geral como se correspondesse a um índice de incapacidade parcial para o exercício da profissão habitual, com perda da remuneração na proporção de tal índice.


III. Estando em causa duas dimensões distintas, são também distintos os critérios para avaliar cada uma das incapacidades, assim como os critérios para fixar a correspondente indemnização, a saber: (i) a afectação da capacidade para o exercício de profissão habitual é aferida em função dos índices previstos na Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais e, na medida em que tal afectação se traduza na perda, total ou parcial, da remuneração percebida no exercício dessa mesma profissão, é susceptível de ser calculada de acordo com a fórmula da diferença prevista no n.º 2 do art. 566.º do CC; (ii) enquanto a afectação da capacidade geral é aferida em função dos índices da Tabela de Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil e, na medida em que a afectação em causa se traduza em danos patrimoniais futuros previsíveis, a indemnização deve ser fixada segundo juízos de equidade, dentro dos limites que o tribunal tiver como provados, conforme previsto no n.º 3 do art. 566.º do CC.


IV. Recorde-se que os índices de Incapacidade Geral Permanente não se confundem com os índices de Incapacidade Profissional Permanente, correspondendo a duas tabelas distintas, aprovadas pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro.


V. Sublinhe-se a relevância teórica e prática do reconhecimento legal da incapacidade geral permanente, assim como da orientação consolidada da jurisprudência do STJ de lhe atribuir, à luz do princípio geral do ressarcimento de danos, efeitos indemnizatórios. É através da reparabilidade das consequências patrimoniais da afectação da capacidade geral que se contribui para um tratamento mais igualitário das vítimas, não serão indemnizadas com base na remuneração laboral, mais ou menos elevada, percebida à data da lesão.


(…)


VII. De acordo com a jurisprudência do STJ, a atribuição de indemnização por perda de capacidade geral de ganho, segundo um juízo equitativo, tem variado, essencialmente, em função dos seguintes factores: a idade do lesado; o seu grau de incapacidade geral permanente; as suas potencialidades de aumento de ganho - antes da lesão -, tanto na profissão habitual, como em profissão ou actividade económica alternativas, aferidas, em regra, pelas suas qualificações e competências. A que acresce um outro factor: a conexão entre as lesões físico-psíquicas sofridas e as exigências próprias da actividade profissional habitual do lesado, assim como de actividades profissionais ou económicas alternativas (tendo em conta as qualificações e competências do lesado).


– Ac. do STJ de 30.04.2020, Proc. n.º 6918/16.1T8VNG.P1.S1, 7.ª Secção:


I - Os danos futuros decorrentes de uma lesão física não se reconduzem apenas à redução da sua capacidade de trabalho, já que, antes do mais, se traduzem numa lesão do direito fundamental do lesado à saúde e à integridade física


II - Quando o acidente reveste simultaneamente a natureza de acidente de viação e de trabalho, as indemnizações destinadas a ressarcir o mesmo dano não são cumuláveis, mas sim complementares.


III - A indemnização devida ao sinistrado a título de perda da sua capacidade de ganho, no regime jurídico das prestações por acidente de trabalho, não contempla a compensação do dano biológico, consubstanciado na diminuição somático-psíquica e funcional do lesado.


– Ac. do STJ de 12.07.2018, Proc. nº 1842/15.8T8STR.E1.S1, 2ª Secção:


I - As indemnizações devidas pelo responsável civil e pelo responsável laboral em consequência de acidente, simultaneamente de viação e de trabalho, assentam em critérios distintos e têm uma funcionalidade própria, não sendo cumuláveis, mas antes complementares até ao ressarcimento total do prejuízo causado ao lesado/sinistrado.


II - Esta concorrência de responsabilidades configura uma solidariedade imprópria ou imperfeita, podendo o lesado/sinistrado exigir, alternativamente, a indemnização ou ressarcimento dos danos a qualquer dos responsáveis, civil ou laboral, escolhendo aquele de que pretende obter em primeira linha a indemnização, sendo que o pagamento da indemnização pelo responsável pelo sinistro laboral não envolve extinção, mesmo parcial, da obrigação comum, não liberando o responsável pelo acidente.


III - A indemnização devida ao lesado/sinistrado a título de perda da sua capacidade de ganho, mesmo no caso do autor ter optado pela indemnização arbitrada em sede de acidente de trabalho, não contempla a compensação do dano biológico, consubstanciado na diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com substancial e notória repercussão na sua vida pessoal e profissional, porquanto estamos perante dois danos de natureza diferente.


IV - A indemnização fixada em sede de acidente de trabalho tem por objeto o dano decorrente da perda total ou parcial da capacidade do lesado para o exercício da sua atividade profissional habitual, durante o período previsível dessa atividade e, consequentemente, dos rendimentos que dela poderia auferir.


V - A compensação do dano biológico tem como base e fundamento a perda ou diminuição de capacidades funcionais que, mesmo não importando perda ou redução da capacidade para o exercício profissional da atividade habitual do lesado, impliquem ainda assim um maior esforço no exercício dessa atividade e/ou a supressão ou restrição de outras oportunidades profissionais ou de índole pessoal, no decurso do tempo de vida expetável, mesmo fora do quadro da sua profissão habitual.


VI - Neste campo, relevam apenas e tão só as implicações de alcance económico e já não as respeitantes a outras incidências no espetro da qualidade de vida, mas sem um alcance dessa natureza (…).


12. Corretamente, o acórdão recorrido teve presente que o dano biológico, além de compensar a perda de capacidade de ganho, fixada no processo por acidente de trabalho, visa ainda compensar o lesado pelas limitações funcionais que se refletem na maior penosidade e esforço no exercício da atividade diária e na privação de futuras oportunidades profissionais.


Todavia, se os danos patrimoniais ressarcidos no processo cível são mais amplos que os considerados no processo laboral, suscita-se, desde logo, a questão de saber se a decretada exclusão de responsabilidade (ao abrigo do art. 17º, nºs 2 e 3, da Lei n.º 98/2009, de 04/09, e a que corresponde o processo previsto art. 151º, n° 1, do Código de Processo do Trabalho) tem como limite a totalidade da indemnização ali arbitrada a título de danos patrimoniais (400.000,00 €) ou, tão somente, a parte correspondente aos danos refletidos no âmbito laboral (ainda que a indemnização civil se baseie em retribuição do sinistrado superior à considerada nas prestações reparatórias provenientes do acidente de trabalho).


13. In casu, o acórdão do STJ (de 17.02.2022) proferido na ação cível atribuiu ao lesado uma indemnização de 400.000,00 €, com base num critério de equidade corporizado no seguinte raciocínio:


“(…)


Tudo em conjunto, entende o tribunal que o valor justo da indemnização deve ser na ordem dos 400.000,00, valor ao qual tem de ser subtraídas as verbas recebidas da ISS e da Interveniente pelo dano em causa.


Este valor é acima do valor da remuneração anual de 9.475,25 x 41anos (=388 475,00), o que permite acomodar a diferença de valores entre os montantes acima apresentados, calculados por via da consideração da remuneração não permanente, seja reportado ao valor máximo, seja ao mínimo, seja ao número de meses do seu pagamento, o que se afigura mais equitativo em face do facto não provado 1, sem desconsiderar a dimensão humana do dano sofrido pelo A. e da revolução que o mesmo introduziu na sua vida pessoal, com inúmeras referências nos autos (por especialista médicos) à sua situação psíquica e anímica, que não pode ser desconsiderada no contexto global e no recurso à equidade.”


14. As prestações resultantes da reparação do acidente de trabalho foram calculadas no respetivo processo com base na retribuição anual de 11.209,97 € [= (545,00 € x 14) + (5,65 € x 242) + 2.212,67 €], valor que é superior ao referido em supra nº 13.


15. Por outro lado, como bem refere o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, no seu douto parecer, «verifica-se que, com recurso ao referido critério da equidade, a indemnização cível fixada atribuiu um acréscimo de 11.525,00 € [400.000,00 € – 388 475,00 €] sobre o valor obtido em relação ao dano por perda da capacidade de ganho com base na remuneração permanente, diferencial que foi imputado à remuneração não permanente (prémio de produtividade e ajudas de custo), bem como à “dimensão humana do dano sofrido pelo A. e da revolução que o mesmo introduziu na sua vida pessoal, com inúmeras referências nos autos (por especialista médicos) à sua situação psíquica e anímica”».


Consequentemente, como lapidarmente se remata no mesmo parecer:


«Ora, retomando o princípio já mencionado que a acumulação de indemnizações não é permitida, ou só não é permitida, em relação a indemnizações de natureza idêntica, ou seja, que visem reparar o mesmo dano, parece resultar que a suspensão da indemnização laboral tem como limite apenas a parte correspondente aos danos refletidos nesse âmbito, precisamente porque coincidentes em ambas as indemnizações.


Com efeito, só se pode cumprir esse desígnio com a limitação da suspensão da pensão fixada no processo de acidente de trabalho ao montante atribuído na indemnização cível referente apenas à reparação pelos danos futuros resultantes da perda da capacidade de ganho, excluindo a parte referente à reparação pelo dano biológico produzido no estado geral de saúde do sinistrado.


E isto independentemente de a indemnização civil até ter integrado uma retribuição auferida pelo sinistrado superior à considerada nas prestações reparatórias provenientes do acidente de trabalho.


Da passagem acima transcrita do acórdão recorrido, constata-se que este entendeu que o valor da indemnização encontrado no aresto deste Supremo Tribunal foi obtido em resultado da equidade, «pelo que não se pode teorizar sobre qual seria o montante arbitrado se considerasse apenas a retribuição considerada na fixação das prestações derivas da LAT».


Não nos parece, com o devido respeito, que tal impossibilidade derive propriamente do facto da indemnização ter resultado da equidade, mas sim porque não se distingue o que se imputa à retribuição não permanente auferida pelo sinistrado e o que se atribui em relação ao dano biológico não referente à perda da capacidade de ganho, embora essa diferença conste na respetiva fundamentação.


E não nos parece que exista possibilidade de se obter um valor preciso sobre essa parte, nomeadamente através de ação judicial para esse efeito, tendo em conta a forma como foi fundamentada a fixação dessa indemnização.


Ora, é indiscutível que a recorrida tem o ónus da prova sobre a possibilidade da desoneração do pagamento da pensão em que foi condenada no processo de acidente de trabalho, com a respetiva suspensão, decorrente do disposto no art. 342.º do CC.


E, assim sendo, entendemos que não se tendo provado qual a parte do diferencial daquela indemnização que ainda inclui a reparação pela perda da capacidade de ganho do sinistrado, no valor de € 11.525,00, deverá então esse montante ser deduzido à indemnização civil considerada como suscetível de ser desonerada.»


16. Acompanhamos integralmente esta conclusão, pelo que se impõe alterar o acórdão recorrido em conformidade com o exposto.


IV.


17. Nestes termos, concedendo parcialmente a revista e, nessa medida, alterando o acórdão recorrido, acorda-se em declarar que a suspensão dos direitos emergentes do acidente de trabalho tem como limite a quantia de 388.475,00 €.


Custas – neste Supremo Tribunal, bem como nas instâncias – na proporção do vencido.


Lisboa, 12 de abril de 2024


Mário Belo Morgado (Relator)


Domingos Morais


José Eduardo Sapateiro





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1. O tribunal deve conhecer de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.º, 663.º, n.º 2, e 679º, CPC], questões (a resolver) que, como é sabido, não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, os quais não vinculam o tribunal, como decorre do disposto no art. 5.º, n.º 3, do mesmo diploma.↩︎