INSOLVÊNCIA
INTEGRAÇÃO DO DEVEDOR NO PERSI
CONDIÇÃO PRÉVIA DE ADMISSIBILIDADE DA AÇÃO
OPORTUNIDADE DE ARGUIÇÃO DA EXCEÇÃO
NULIDADE DO DESPACHO DE SANEAMENTO
Sumário


Se na oposição ao pedido de declaração de insolvência a requerida suscita a não integração no procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento (PERSI), instituído pelo Dec. Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, o Tribunal tem de averiguar tal circunstancialismo.
Não o tendo feito no momento do saneamento do processo e tendo inclusive indeferido requerimento de prova da requerida tendo em vista tal desiderato, o respetivo despacho é nulo, nomeadamente porque o valor dos créditos a considerar tem influência na apreciação da situação de solvência.

Texto Integral


Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I   RELATÓRIO (por consulta eletrónica do processo principal e em parte conforme o elaborado em 1ª instância).

Em 30/9/2021, o Banco 1..., S.A., veio requerer a DECLARAÇÃO JUDICIAL DE INSOLVÊNCIA de AA.
Para o efeito, invocou a celebração de um mútuo com hipoteca entre o Banco e a requerida e marido, pelo qual se confessaram devedores de € 180.000,00, o qual seria reembolsado através do pagamento de prestações de capital e juros remuneratórios, tendo constituído hipoteca sobre imóvel como forma de garantia.
Sucede que os mutuários cessaram o pagamento das convencionadas prestações de reembolso do empréstimo contraído, o que veio a ocorrer, em termos definitivos, a partir de 2 de julho de 2012, não tendo mais retomado esse pagamento, ou regularizado e prosseguido o plano de pagamento em prestações de reembolso dos empréstimos fixados nos termos convencionados.
Face ao incumprimento do pagamento das prestações, tal implicou o vencimento de toda a dívida, no valor de € 274.312,24.
Acresce que é portador de uma livrança, emitida em ../../2012 e vencida em 19 de fevereiro de 2015, subscrita pela devedora e marido, no valor de 40.697,28, a qual, vencida, não foi paga.
É por isso titular de um crédito certo, líquido e exigível no valor global de € 315.009,52.
A devedora está em situação de insolvência, dado o elevado valor das obrigações vencidas, a circunstância de apenas ser conhecido património imobiliário com valor inferior às suas dívidas, existir uma manifesta insuficiência do seu activo perante o valor do seu passivo e inexistir possibilidade de obtenção de crédito. Mas referiu que o marido da mesma foi declarado insolvente.
Citada, a requerida deduziu oposição.
Em 5/11/2021, constatando-se que a oposição apresentava incongruências, notificou-se a requerida para juntar nova oposição corrigida.
A requerida juntou nova oposição corrigida.
Refere que não está em situação de insolvência, pois tem um ativo superior ao passivo, não tem credores a não ser o requerente, relativamente ao qual se encontra a cumprir; por isso nunca foi interpelada pelo requerente de qualquer quantia em incumprimento, e nunca foi incluída pelo mesmo e previamente em PERSI, como lhe incumbia. Tem rendimentos, e ainda que faseadamente encontra-se a cumprir com as suas obrigações.
Por cautela pede a exoneração do passivo restante.
Termina pedindo a absolvição, mas caso seja decretada a insolvência, pede que seja notificada para apresentar plano de recuperação.
Foi admitida a prova, inclusive a prova pericial.
Foi realizada a prova pericial e, por fim, prestados esclarecimentos em fevereiro de 2023.
Em diligência realizada em 11/10/2023, foi feito o saneamento dos autos, concluindo-se que “Não se verificam nulidades, outra exceção ou quaisquer questões prévias ou incidentais suscetíveis de obstar ao conhecimento do mérito da causa.” Também foi identificado o objeto do litígio e foram enunciados os temas de prova.
De seguida, a devedora requereu que fosse o banco oficiado para juntar aos autos o comprovativo de notificação do PERSI. Dada a palavra à ilustre mandatária do requerente, pela mesma foi requerido prazo para proceder a sua junção.
Nessa sequência foi proferido o seguinte despacho:
“Estatui o artigo 30º, nº 1 do CIRE, que o devedor pode, em 10 dias, deduzir oposição à qual é aplicável o disposto no nº 2 do artigo 25º.
Vejamos.
A oposição corrigida foi apresentada em 19-11-2021. Nesse articulado, a requerida enunciou a prova que pretendia produzir, indicando prova testemunhal, documental e prova pericial, requerendo, ainda, que a requerida fosse ouvida em declarações. Nada requereu quanto à existência ou não de PERSI, embora tenha feito uma referência lacónica ao aludido procedimento, nos artigos 21º e 22º da contestação corrigida.
O peticionado pela requerida é manifestamente extemporâneo. Assim, indefere-se o peticionado.”
A requerida arguiu a nulidade processual por requerimento apresentado em ata do mesmo dia 11/10/2023 (que ficou gravado e que se ouviu). A requerente opôs-se (também gravado). Foi relegado para sentença o seu conhecimento.

*
Foi proferida sentença em que se decidiu:
“Da nulidade “por falta de desencadeamento de mecanismo de prova”:
Em sede de audiência de discussão e julgamento, após inúmeros adiamentos, após a realização de prova pericial e de esclarecimentos sempre demorados e após a apresentação de duas oposições, decorridos dois anos, veio a Requerida argumentar que se deveria notificar o Banco requerente para comprovar que iniciara um procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento (PERSI), instituído pelo Dec. Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro.
O Tribunal indeferiu o requerido.
A Requerida veio arguir nulidade consubstanciada, na sua tese, na “falta de desencadeamento de mecanismo de prova”.
Vejamos.
De forma sucinta, como é consabido, o procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento (PERSI) foi instituído pelo Dec. Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro (alterado pelo DL n.º 70B/2021, de 06/08) e tem aplicação obrigatória quando o cliente bancário (consumidor) incorre numa situação de mora ou de incumprimento de obrigações resultantes de contratos de crédito, nos moldes consignados pelos seus artigos 2.º, n.º 1 e 14.º, n.º 1.
Este diploma – que foi desenvolvido através do Aviso do Banco de Portugal n.º 17/2012, de 17 de dezembro – introduziu na nossa ordem jurídica, princípios e regras a observar pelas instituições de crédito na prevenção e regularização das situações de falta de cumprimento de contratos de crédito pelos clientes bancários (susceptíveis de serem qualificados como consumidores para efeitos da Lei de Defesa do Consumidor, aprovada pela Lei n.º 24/96, de 31 de julho) e criar uma rede extrajudicial de apoio a esses clientes no âmbito da regularização dessas situações.
Entrou o mesmo em vigor em 01/01/2013 – artigo 40.º - e as suas alterações em 7/8/2021.
Estatui o seu artigo 2.º (na versão actual):
1 - O disposto no presente decreto-lei aplica-se aos seguintes contratos de crédito celebrados com clientes bancários:
a) Contratos de crédito relativos a imóveis abrangidos pelo Decreto-Lei n.º 74-A/2017, de 23 de junho, na sua redação atual;
b) (Revogada.)
c) Contratos de crédito aos consumidores abrangidos pelo disposto no Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de junho, na sua redação atual;
d) Contratos de crédito ao consumo celebrados ao abrigo do disposto no Decreto-Lei n.º 359/91, de 21 de setembro, na sua redação atual;
e) Contratos de crédito sob a forma de facilidades de descoberto que estabeleçam a obrigação de reembolso do crédito no prazo de um mês.
2 - O disposto no presente decreto-lei não prejudica o regime aplicável aos sistemas de apoio ao sobre-endividamento, instituído pela Portaria n.º 312/2009, de 30 de março, na sua redação atual.
Prescreve o artigo 39.º:
Aplicação no tempo
1 - São automaticamente integrados no PERSI e sujeitos às disposições do presente diploma os clientes bancários que, à data de entrada em vigor do presente diploma, se encontrem em mora relativamente ao cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito que permaneçam em vigor, desde que o vencimento das obrigações em causa tenha ocorrido há mais de 30 dias.
2 - Nas situações referidas no número anterior, a instituição de crédito deve, nos 15 dias subsequentes à entrada em vigor do presente diploma, informar os clientes bancários da sua integração no PERSI, nos termos previstos no n.º 4 do artigo 14.º
3 - Os clientes bancários que, à data de entrada em vigor do presente diploma, se encontrem em mora quanto ao cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito há menos de 31 dias são integrados no PERSI nos termos previstos no n.º 1 do artigo 14.º
Dispõe o artigo 40.º:
Entrada em vigor
O presente diploma entra em vigor no dia 1 de janeiro de 2013.
Aqui chegadas, diremos que conhecemos a jurisprudência dos Tribunais superiores que têm vindo a defender que, caso seja preterida a integração de devedores no PERSI, se verificaria uma excepção dilatória inominada.
Transcrevemos, a título de exemplo, o recente acórdão do TRL: Tendo um “requerente intentado acção com vista à declaração de insolvência dos requeridos, sem que previamente tenha cumprido com a obrigação de os integrar no PERSI (nos moldes decorrentes do Dec. Lei n.º 227/2012) – (…)-, estar-se-á, perante uma violação, por omissão, de normas imperativas, a saber, os artigos 14.º e 18.º, n.º 1, al. b). Tal imperatividade resulta do teor dessas mesmas normas – no artigo 14.º refere-se expressamente que “o cliente bancário é obrigatoriamente integrado no PERSI” e no artigo 18.º consigna-se que “No período compreendido entre a data de integração do cliente bancário no PERSI e a extinção deste procedimento, a instituição de crédito está impedida de (…) intentar ações judiciais tendo em vista a satisfação do seu crédito” – a que não é alheio o fim de cariz social visado pelo diploma no seu preâmbulo – “adoção de comportamentos responsáveis por parte das instituições de crédito e dos clientes e a redução dos níveis de endividamento das famílias”; “prevenção do incumprimento e, bem assim, a regularização das situações de incumprimento de contratos celebrados com consumidores que se revelem incapazes de cumprir os compromissos financeiros assumidos perante instituições de crédito por factos de natureza diversa, em especial o desemprego e a quebra anómala dos rendimentos auferidos em conexão com as atuais dificuldades económicas”; “adequada tutela dos interesses dos consumidores em incumprimento e a atuação célere das instituições de crédito na procura de medidas que contribuam para a superação das dificuldades no cumprimento das responsabilidades assumidas pelos clientes bancários”. Tal omissão, como tem vindo a ser decidido pela jurisprudência (pese embora, na quase globalidade dos casos, em sede de acções executivas), configura uma excepção dilatória inominada, insuprível, de conhecimento oficioso, que impede ab initio a instauração de acções judiciais e que, como tal, terá de acarretar a absolvição da instância dos requeridos - artigos 576.º, n.º 2, 577.º e 578.º, todos do CPC, ex vi artigo 17.º do CIRE. Como se defendeu no acórdão da Relação de Évora de 31/01/2019 (Processo n.º 832/17.0T8MMN-A.E1, relatado por Tomé de Carvalho), “existe uma situação de um crédito que não é exigível, por incumprimento de norma imperativa, a qual constitui, do ponto de vista adjectivo – com repercussões igualmente no domínio substantivo -, uma condição objectiva de procedibilidade.”. Também a Relação do Porto, no seu acórdão proferido em 14/01/2020 (Processo n.º 4097/14.8TBMTS.P1, relatado por Ana Lucinda Cabral), defendeu: “E o certo é que a execução não poderia ter sido instaurada sem ter ocorrido previamente o dito Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI). Do prisma do demandante este era uma condição de acção. Mais precisamente uma específica condição de acção cuja inexistência conduz à carência da acção, causa de extinção do processo sem julgamento de mérito. Do ponto de vista da defesa do demandado é uma excepção dilatória, isto é, uma circunstância que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância. Uma excepção de cunho eminentemente processual visto o moderno entendimento da autonomia entre o processo e o direito material. Ela opera no plano da eficácia: não intenta extinguir a pretensão exercida mas apenas neutralizá-la ou retardá-la.” Este entendimento, defendido para a acção executiva, terá necessariamente de ser válido para a acção na qual a instituição de crédito venha peticionar a declaração de insolvência do mutuário consumidor. Com efeito, representando o processo de insolvência a execução universal, também no mesmo se visa, em última escala, por efeito da liquidação do património do devedor, a satisfação dos credores (nestes se incluindo as instituições de crédito relativamente a clientes que se encontrem em situação de mora ou de incumprimento) – como se estatui no artigo 1.º, n.º 1, do CIRE, “O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores. Incumbia, pois, à requerente, previamente à instauração da presente acção, ter promovido pelas necessárias diligências inerentes à implementação do PERSI – cfr. artigos 12.º, 13.º e 14.º, n.º 1, do DL” - – cfr. o AC. do TRL de 12/10/2021, inwww.dgsi.pt. E conclui-se ali, de forma sumária: “II. O recurso a tal procedimento constitui condição prévia de admissibilidade e procedibilidade à instauração de acção pela qual a instituição bancária peticiona a declaração de insolvência de clientes bancários que entraram em incumprimento do contrato de mútuo com hipoteca para aquisição de imóvel que corresponda à casa de morada de família e constitua a habitação própria e permanente dos mesmos. III – Sendo tal acção intentada com preterição dessa obrigação, estar-se-á perante uma excepção dilatória inominada, a qual é insuprível e de conhecimento oficioso, acarretando a absolvição da instância dos requeridos.”
Façamos, então, o caminho.
Compulsada a primeira oposição (que apresentava incongruências flagrantes) e mesmo a segunda oposição, verificamos que a Requerida se limitou a dizer, de forma lacónica, que o requerente a não tinha “englobado primeiramente em PERSI, como lhe competia”.
Em sede de requerimento probatório, apesar de ter indicado prova testemunhal, pedido a prestação de declarações de parte, junto documentos e requerido a produção de prova pericial, a Requerida quedou-se absolutamente inerte quanto à questão agora suscitada passados dois anos.
Numa primeira aproximação, reiteramos que as provas em sede de processo de insolvência devem ser apresentadas ou requeridas junto com o articulado de oposição – artigo 25.º, n.º 2 ex vi do artigo 30.º, n.º 1 do CIRE. Ademais, poder-se-ia ainda dizer que está aqui em causa também o principio da concentração dos meios de defesa no articulado. Ademais, mesmo que se defenda, como o faz o Ac. do TRL de 15/12/2022, que a invocação da possível excepção dilatória inominada está subtraída ao prazo concedido para a defesa, regendo a última parte do n.º 2 do artigo 573.º do NCPC, o certo é que cabia à requerida invocar factos que permitissem ao Tribunal atentar ou não que se estava perante um caso de subsunção dos factos à aplicabilidade do DL que entrou em vigor após o incumprimento do crédito do requerente. Nenhum facto foi invocado pela requerida.
Apenas uma mera frase conclusiva e lacónica.
Vir agora, passados dois anos de pendência da acção, após sucessivos adiamentos a seu pedido, após a produção de inúmera prova, suscitar esta questão em julgamento configura, quanto a nós, um verdadeiro abuso de direito.
Num segundo patamar, esclareçamos, em resposta ao possível argumento que defenderia que bastaria ler a petição inicial para presumir que o crédito invocado era subsumível ao regime do PERSI: Na verdade, ainda que se defendesse que, da leitura da petição inicial e do contrato de mútuo com hipoteca resultava que, aquando da entrada em vigor do DL 227/2012, de 5/10, o requerente deveria ter dado cumprimento ao disposto no artigo 39.º daquele diploma, sempre se dirá que o requerente se arrogou, ainda, titular do crédito que identifica no seu artigo 11.º da petição inicial, relativamente ao qual, fundado que é numa livrança, no valor de €40.697,28 o aludido regime é inaplicável. Logo, a existência deste crédito permite afirmar que a presente acção seria sempre admissível (ainda que se julgasse verificada a aludida excepção quanto a parte do crédito).
Em face do exposto, julgo inverificada a invocada nulidade por falta de desencadeamento de meio de prova, tanto mais que, mesmo que tivesse sido incumprido (e não sabemos se foi) o dever de submeter a dívida decorrente do mútuo hipotecário a PERSI, sempre o requerente poderia ter intentado a presente acção por ser (como a requerida assume que é) titular de um outro crédito de valor superior a quarenta mil euros.
Quanto ao objeto do litígio, foi decidido declarar a insolvência de AA, com as consequências legais que se determinaram.
E mais foi decidido:
“Do pedido subsidiário de prazo para a apresentação de plano de recuperação:
Como é consabido e unânime na doutrina e jurisprudência, nas insolvências de pessoas singulares não há lugar à possibilidade de apresentação de qualquer plano de insolvência – cfr. artigo 251.º do CIRE. Apenas seria admissível a apresentação de plano de pagamento, coisa que a requerida não suscitou em tempo e que importava a confissão da sua situação de insolvência – artigo 253.º do CIRE. Notifique.”
*
Inconformada, a requerente apresentou recurso com alegações que terminam com as seguintes
-CONCLUSÕES-(que se reproduzem)

I - As normas constantes nos artigos 14º e 18º do Decreto-lei n.º 227/2012, de 25/10 tem um caracter imperativo, e como consta na douta sentença recorrida, «tal imperatividade resulta do teor dessas mesmas normas – no artigo 14.º refere-se expressamente que “o cliente bancário é obrigatoriamente integrado no PERSI” e no artigo 18.º consigna-se que “No período compreendido entre a data de integração do cliente bancário no PERSI e a extinção deste procedimento, a instituição de crédito está impedida de (…) intentar ações judiciais tendo em vista a satisfação do seu crédito” – a que não é alheio o fim de cariz social visado pelo diploma no seu preâmbulo – “adoção de comportamentos responsáveis por parte das instituições de crédito e dos clientes e a redução dos níveis de endividamento das famílias”; “prevenção do incumprimento e, bem assim, a regularização das situações de incumprimento de contratos celebrados com consumidores que se revelem incapazes de cumprir os compromissos financeiros assumidos perante instituições de crédito por factos de natureza diversa, em especial o desemprego e a quebra anómala dos rendimentos auferidos em conexão com as atuais dificuldades económicas”; “adequada tutela dos interesses dos consumidores em incumprimento e a atuação célere das instituições de crédito na procura de medidas que contribuam para a superação das dificuldades no cumprimento das responsabilidades assumidas pelos clientes bancários”.»
II - A consequência da omissão do cumprimento das normas supra citadas é apenas uma: «configura uma excepção dilatória inominada, insuprível, de conhecimento oficioso, que impede ab initio a instauração de acções judiciais e que, como tal, terá de acarretar a absolvição da instância dos requeridos - artigos 576.º, n.º 2, 577.º e 578.º, todos do CPC, ex vi artigo 17.º do CIRE.»
III - Isto, salvo o devido respeito só pode entender-se de uma forma: o cumprimento das normas citadas é, em si mesmo, um facto constitutivo do direito da entidade bancária em agir contra os clientes bancários, que se não for demonstrado gera a absolvição destes nas acções judiciais que forem interpostas.
IV - Pelo que e nos termos do disposto no artigo 342º do CPC caberá sempre ao credor recorrido a prova de que cumpriu as normas citadas do regime do PERSI.
Assim
V - Por um lado e por força do disposto nos artigos 411º e 8.º n.º1 do CPC ex vi artigo 17 do CIRE, tendo a recorrente alegado que o recorrido não a englobou em qualquer PERSI e não tendo o recorrido juntado aos autos prova de que deu cumprimento ao disposto nos artigos 14º e 18º do Decreto-lei n.º 227/2012, de 25/10, impunha-se ao Tribunal a quo determinar a notificação deste para que junta-se comprovativo de instauração de PERSI quanto à recorrida.
VI - Pelo que ao indeferir o requerimento, de facto o douto Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 8.º, n.º 1 e 411.º do CPC, impedindo assim apuramento da verdade e a justa composição do litígio, pelo que deverá ser declarada a nulidade do despacho que indefere a notificação do recorrido para que junte comprovativo de englobamento da recorrente em PERSI, declarando-se ainda que a referida nulidade afecta toda a marcha do processo ordenando-se a repetição dos actos subsequentes nos termos do disposto no artigo 191º n.º 1 do CPC ex vi artigo 17º do CIRE.
Sem prescindir
VII - Em rigor e por um lado, a prova de inexistência do cumprimento do regime de PERSI pela recorrida sempre redundará numa situação de ónus de prova de facto negativo que recai numa situação de prova diabólica ou impossível (na medida em que impõe que alguém prove que algo que devia ter acontecido por impulso de outrem não aconteceu), proibida pelo princípio fundamental da proibição da indefesa, consagrado no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
VIII - Por outro lado, sendo o cumprimento das regras do regime jurídico do PERSI condição prévia para que possa a entidade bancária proceder judicialmente contra o cliente em incumprimento, tal prova sempre teria que caber nos termos do artigo 342º do CC, ao banco recorrido.
IX - O digno tribunal a quo porém interpreta o disposto nos artigos 14º e 18º do regime do PERSI, conjugado com o artigo 342º do CC, como impondo à recorrente o ónus da prova de inexistência de cumprimento das obrigações daquelas normas, em violação do disposto no artigo 20º da CRP.
X - Ao interpretar em sentido contrário o digno Tribunal a quo contradiz-se ao dar como provados os factos 3) e 9) da matéria dada como provada e como não provada a alínea c) da matéria não provada.
XI - Os autos demonstram que o contrato de mútuo celebrado entre a recorrente e o banco recorrido integra a norma do artigo 2º do Decreto-lei n.º 227/2012, de 25/10 – vide facto 3 da matéria dada como provada.
XII - Os autos demonstram igualmente que a recorrente cessou o pagamento das prestações acordadas no contrato de mútuo em Junho de 2022 (vide facto 9 da matéria dada como provada).
XIII - E os autos não demonstram que, apesar da recorrente, a 01/01/2013, estar em mora há mais de 30 dias, o recorrido tenha dado início ao PERSI no cumprimento dos artigos 14º e 18º do Decreto-lei n.º 227/2012, de 25/10 (prova que cabia à recorrida por força do supra alegado).
XIV - O Tribunal a quo ao dar como não provado o ponto violou o disposto nos artigos 342º do CC e artigos 14º e 18º do Decreto-lei n.º 227/2012, de 25/10.
XV - Nessa medida deve ser dado como provado que o Requerente [leia-se banco recorrido] não a englobou a recorrente em PERSI” e nessa consequência absolvido a recorrente na instância quanto ao crédito hipotecário no valor de 274.312,24 (duzentos e setenta e quatro mil, trezentos e doze euros e vinte e quatro cêntimos).
Por outro lado
XVI - Por outro lado, o douto tribunal à quo deu como provado que a recorrente é titular do direito de propriedade de bens avaliados, em valores de mercado, que na sua globalidade ascendem a cerca de € 500.000,00 (quinhentos mil euros).
XVII - Ao passo que o banco recorrido apresenta validamente um crédito no valor de cerca de 40 mil euros (titulado por uma livrança), sendo o demais incerto, ilíquido e inexigível por força do já alegado quanto ao incumprimento da legislação sobre o regime jurídico do PERSI.
XVIII - Pelo que salvo o devido respeito e ainda que o Tribunal acrescente os créditos invocados e assumidos pela recorrente junto do PEAP que não os da recorrente, na realidade o seu passivo ascende a pouco mais de € 100.000,00, notoriamente inferior ao activo da recorrente.
XIX - E salvo o devido respeito no que diz respeito à insolvência da própria requerida há apenas que analisar as suas condições pessoais e da insolvente para aferir do preenchimento da norma do artigo 3º do CIRE.
XX - Porque a decorre do artigo 264º, nº1 do CIRE que só em casos excecionais é possível a coligação dos devedores, atento o carater pessoal da insolvência no âmbito das pessoas singulares: quando sejam casados entre si sob o regime de bens que não seja o da separação de facto e ambos incorram na situação de insolvência.
XXI - A coligação, neste caso, tem fundamento na necessidade de proteger o casamento, mas só tem sentido quando as suas relações patrimoniais estão reguladas de forma a que exista uma comunhão de bens.
XXII - Ora estando o cônjuge da recorrida já declarado insolvente, não se aplica aqui a questão da coligação, pelo que se torna oneroso o facto de considerar a insolvência daquele como factor de avaliação do estado patrimonial e financeiro da recorrente.
XXIII - Por outro lado, o incumprimento generalizado das obrigações vencidas não é bastante para se verificar uma situação de insolvência atual.
XXIV - O que carateriza a situação de insolvência é a impossibilidade de cumprimento enquanto incapacidade económico-financeira, o que exige uma avaliação do património do devedor, nomeadamente da existência de meios económicos ou financeiros suficientes para satisfazer as obrigações vencidas.
XXV - Assim, atentos ao caso em concreto, apreciado o património da recorrente resulta um valor patrimonial dos imóveis no montante global de 249.750,00€, valor este resultante de relatório de avaliação efetuado no âmbito de processo de insolvência do marido da insolvente, sendo que, assim, permaneceria superior o valor do ativo ao valor do passivo alegadamente existente no montante global de 134.509,09€, pelo que não se verifica a situação de insolvência.
XXVI - Pelo que ao decidir como decidiu o douto Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 264º n.º 1 e 3º do CIRE, devendo a decisão ser revogada e substituída por outra que absolva a recorrida da declaração de insolvência proferida.
Termos em que deverá o presente recurso ser julgado procedente por provado e, em consequência, deverá:
a) Declarar-se a inconstitucionalidade da norma que resulta do disposto nos artigos 14º e 18º do regime do PERSI, conjugado com o artigo 342º do CC, no sentido de impor aos devedores ónus da prova de inexistência de cumprimento das obrigações daquelas normas, por violação do disposto no artigo 20º da CRP.
b) Declarar nulo o despacho que indefere a notificação do credor recorrido para que junte comprovativo do cumprimento nos artigos 14º e 18º do PERSI por violação do disposto nos artigos 8.º, n.º 1 e 411.º do CPC, impedindo assim apuramento da verdade e a justa composição do litígio, e consequentemente declarar que a referida nulidade afecta toda a marcha do processo ordenando-se a repetição dos actos subsequentes nos termos do disposto no artigo 191º n.º 1 do CPC ex vi artigo 17º do CIRE
Em prescindir, deverá ainda
c) Declarar que o Tribunal a quo ao dar como não provado o ponto violou o disposto nos artigos 342º do CC e artigos 14º e 18º do Decreto-lei n.º 227/2012, de 25/10 e consequentemente alterar a matéria de facto declarando-se como provado que o Requerente [leia-se banco recorrido] não a englobou a recorrente em PERSI” e nessa consequência absolver a recorrente na instância quanto ao crédito hipotecário no valor de 274.312,24 (duzentos e setenta e quatro mil, trezentos e doze euros e vinte e quatro cêntimos).
d) Declarar que douto Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 264º n.º 1 e 3º do CIRE, devendo a decisão ser revogada e substituída por outra que absolva a recorrida da declaração de insolvência proferida.”
*
Não foram apresentadas contra-alegações.
*
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, em separado e efeito devolutivo, o que foi confirmado por este Tribunal.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
***
II QUESTÕES A DECIDIR.

Decorre da conjugação do disposto nos artºs. 608º, nº. 2, 609º, nº. 1, 635º, nº. 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que resultem dos autos.
Impõe-se por isso no caso concreto e face às elencadas conclusões decidir:
-se o Tribunal violou alguma norma ou o seu dever de ofício, ou alguma norma ordinária ou constitucional, ao não determinar a notificação do requerente para que juntasse comprovativo de instauração de PERSI quanto à recorrida;
-na afirmativa, quais as consequências dessa violação;
-se a requerida está em situação de insolvência.
***
III FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

O Tribunal recorrido considerou o elenco de factos que passamos a reproduzir.

“Resultaram provados os seguintes factos:
1) O Banco Requerente é uma entidade bancária autorizada a praticar, no país, todas as operações bancárias em direito permitidas, nomeadamente a recepção de depósitos e a concessão de créditos e empréstimos.
2) A Requerida é uma Pessoa Singular, casada no regime da comunhão de adquiridos com BB, Cliente do Requerente, com quem praticou operações de crédito que lhe foram concedidas a seu pedido e delas beneficiou, sendo que tais responsabilidades, chegadas ao seu vencimento não foram, todavia, pagas.
3) Por escritura pública denominada "Mútuo com Hipoteca", outorgada e celebrada em 28 de Dezembro de 2010 no Cartório Notarial em ... do Notário CC, a aqui Requerida AA e o então marido BB confessaram-se solidariamente devedores ao Banco aqui Requerente da quantia de € 180.000,00 (cento e oitenta mil euros), que do mesmo Banco receberam por empréstimo.
4) Neste mesmo acto contratual e notarial, os mutuários, atrás referidos, obrigaram-se a reembolsar o Banco mutuante do capital do empréstimo e respectivos juros remuneratórios através de 360 (trezentas e sessenta) prestações mensais e sucessivas, de capital e juros, e com vencimento, a primeira delas, em 15 de Janeiro de 2011 e as demais em igual dia dos meses subsequentes, até ao termo do contrato.
5) E para garantia do pagamento ou restituição de tal quantia mutuada e seus juros, remuneratórios e/ou moratórios, os mutuários, acima indicados, declararam então e nesse acto notarial que constituíam hipoteca, até ao montante máximo de capital e acessórios de € 84.983,48 (oitenta e quatro mil novecentos e oitenta e três euros e quarenta e oito cêntimos), a favor do Banco aqui Requerente sobre seguinte bem imóvel: - Prédio urbano, composto pela casa de habitação de e rés-do-chão e andar, anexos e logradouro, situado no lugar de ... ou ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na competente Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...1 – ... e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo ...96.º da União das freguesias ... e ....
6) Tal imóvel deu, entretanto, origem às fracções autónomas designadas pelas letras ..., ..., ... e ....
7) A aludida hipoteca foi constituída sobre o prédio supra identificado com todas as suas construções ou benfeitorias edificadas ou a edificar para garantir ao Banco Requerente o pontual pagamento de:
a) De todas as responsabilidades emergentes do empréstimo de € 180.000,00, que a Requerida recebeu do Requerente e do qual se confessou devedora;
b) Dos respectivos juros à taxa anual de 9%, acrescida, em caso de mora, da sobretaxa de 4% ao ano; e
c) Das despesas extrajudiciais fixadas, para efeitos de registo predial, em € 7.200,00.
8) Hipoteca essa que se encontra definitivamente registada na competente Conservatória do Registo Predial sob a Ap. ...34 de 2010/12/29.
9) Os mutuários cessaram o pagamento das convencionadas prestações de reembolso do empréstimo contraído, o que veio a ocorrer, em termos definitivos, a partir de 02 de Julho de 2012, não tendo mais retomado esse pagamento, ou regularizado e prosseguido o plano de pagamento em prestações de reembolso dos empréstimos fixados nos termos convencionados.
10) Pelo que, nos termos das cláusulas dos contratos de mútuo em causa e as normas legais aplicáveis, tal empréstimo venceu-se antecipadamente e na íntegra no montante de € 274.312,24 (duzentos e setenta e quatro mil, trezentos e doze euros e vinte e quatro cêntimos), conforme print de dívida que se junta e cujo teor se dá por integramente reproduzido para todos os efeitos legais – doc. n.º ....
11) O Banco Requerente é dono e legitimo portador de uma livrança da importância de € 40.697,28 (quarenta mil, seiscentos e noventa e sete euros e vinte e oito cêntimos), emitida em ../../2012 e vencida em 19 de Fevereiro de 2015, subscrita pela Requerida AA e pelo seu marido, BB, a qual titula as responsabilidades decorrentes do Contrato de empréstimo denominado ... ...71 (ora ... ...07).
12) Vencida e apresentada a pagamento, não foi paga, daí que o aqui Banco Requerente a tenha dado à execução – Proc. n.º 3619/15.... que corre os seus termos no Juízo de Execução de Vila Nova de Famalicão – Juiz ... – onde, até à data, não obteve pagamento.
13) A Requerida é devedora ao Banco Requerente do montante global de € 315.009,52 (trezentos e quinze mil, nove euros e cinquenta e dois cêntimos).
14) O crédito do Requerente é certo, líquido e exigível.
15) A Requerida é devedora por créditos vencidos e há muito exigíveis.
16) A Requerida deixou de pagar as suas obrigações vencidas hipotecárias em 2012 e as decorrentes da livrança em 2015.
17) O montante elevado das obrigações vencidas da Requerida é revelador da sua impossibilidade de pagar as demais obrigações contraídas, vencidas e exigíveis.
18) O património da Requerida é composto pelas fracções autónomas identificadas no Ponto 6.º e ainda por um outro prédio inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...57 da União de Freguesias ... e ..., do concelho ....
19) Esses imóveis, no seu conjunto, apresentam o valor patrimonial de € 197.482,27, insuficiente para fazer face ao seu passivo.
20) Para além deste imóvel, não são conhecidos à Requerida bens ou rendimentos que permitam pensar que à custa dele os credores obterão pagamento.
21) É notória a insuficiência do activo relativamente ao passivo da Requerida.
22) A Requerida não tem capacidade presente ou futura para pagar as dívidas vencidas.
23) Encontra-se, completamente, impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas.
24) A Requerida apresenta manifesta impotência de satisfazer as suas obrigações vencidas, a que não é alheia a insuficiência de património, rendimentos ou créditos para satisfação de tais dívidas.
25) O marido da Requerida foi declarado insolvente, cujo processo corre termos sob o n.º 5232/19.... no Juízo de Comércio de Vila Nova de Famalicão – Juiz ....
26) Na relação de créditos reconhecidos a que se refere o artigo 129.º do CIRE, junta no Processo a que alude o Ponto 25), consta como montante global dos créditos reconhecidos o valor de € 747. 750,68.
27) Os seguintes imóveis são propriedade da Requerida e do seu marido insolvente e apresentam o seguinte valor de mercado:
a) prédio urbano destinada a habitação, com 1 divisão para arrumos no R/C e 5 divisões para habitação no primeiro andar, ... em ..., ..., ... ..., concelho ..., inscrito na matriz predial urbana sob o art. ...57 da União de Freguesias ... e ..., concelho ... e descrito na CRP ... sob o nº ...44 da freguesia ..., concelho ..., com o valor de mercado de €153000,00;
b) Fração designada pela letra ... do prédio urbano ... em Rua ..., ... ..., concelho ..., no ..., destinada a estacionamento coberto e fechado, inscrito na matriz predial urbana sob o art. ...96 da União de Freguesias ... e ..., concelho ... e descrito na CRP ... sob o nº ...1 da freguesia ..., concelho ..., com o valor de mercado de €74000,00;
c) Fração designada pela letra ... do prédio urbano ... em Rua ..., ... ..., concelho ..., no rés-do-chão, destinada a estacionamento coberto e fechado, inscrito na matriz predial urbana sob o art. ...96 da União de Freguesias ... e ..., concelho ... e descrito na CRP ... sob o nº ...1 da freguesia ..., com o valor de mercado de €58500,00;
d) Fração designada pela letra ... do prédio urbano ... em Rua ..., ... ..., concelho ..., no primeiro andar, destinada a habitação, tipologia ..., inscrito na matriz predial urbana sob o art. ...96 da União de Freguesias ... e ..., concelho ... e descrito na CRP ... sob o nº ...1 da freguesia ..., com o valor de mercado de €107000,00;
e) Fração designada pela letra ... do prédio urbano ... em Rua ..., ... ..., concelho ..., no primeiro andar, destinada a habitação, tipologia ..., inscrito na matriz predial urbana sob o art. ...96 da União de Freguesias ... e ..., concelho ... e descrito na CRP ... sob o nº ...1 da freguesia ..., com o valor de mercado de €107000,00;
28) Os prédios estão em bom estado de conservação, apresentando apenas marcas decorrentes da idade e do seu uso;
29) O prédio identificado em a) está ocupado pela devedora e os prédios identificados em d) e em e) estão ocupados.
30) EM 28/12/2021, foram juntos aos autos:
- um documento intitulado contrato de comodato, com data de 9/2/2017, de onde consta que o marido da insolvente deu em comodado a fracção ... e este cessaria com a comunicação do primeira com a antecedência de 180 dias;
- um documento intitulado contrato de comodato, com data ilegível, de onde consta que o marido da insolvente deu em comodado a fracção ... e este cessaria com a comunicação do primeiro com a antecedência de 180 dias;
Não resultou provado que:
a) A devedora tenha um activo superior ao passivo;
b) A devedora não tenha credores que não o requerente, nem que esteja a cumprir essa obrigação;
c) O Requerente a não tenha interpelado para cumprimento de qualquer obrigação, nem a englobado em PERSI;
d) As dívidas da requerida estejam controladas, nem que esta esteja em condições de a pagar, de forma faseada;
e) Que a requerida esteja reformada ou que o marido esteja no activo, auferindo rendimento, nem que conjuntamente possam suportar o pagamento das suas obrigações.”
*
Para a presente apreciação importa a descrição que consta do relatório supra, em conjugação com a matéria considerada pelo Tribunal recorrido, nos termos que melhor se explicarão, e sem prejuízo deste elenco conter juízos de direito e matéria conclusiva, que sempre seria de expurgar, numa fase posterior de apreciação a que não chegaremos, face à análise da questão prévia.
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IV MÉRITO DO RECURSO.

-DECISÃO DE DIREITO.

QUESTÃO PRÉVIA.
O recurso em apreciação tem duas matérias: a parte relativa ao indeferimento da nulidade processual, e a parte relativa ao mérito da ação.
Teremos de começar pela apreciação da nulidade, cuja procedência pode prejudicar a decisão que declarou a insolvência da requerida.
Insurge-se a recorrente contra o indeferimento da sua pretensão de ver anulado o processado por preterição de uma formalidade probatória (nas suas palavras, por “falta de desencadeamento de mecanismo de prova”).
Numa primeira leitura, está em causa o seu pedido de notificação do requerente para juntar aos autos comprovativo que iniciara um procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento (PERSI).
O Tribunal indeferiu tal pedido, e a recorrente arguiu a nulidade do despacho (ou não propriamente do despacho, como veremos) que assim decidiu.
Na verdade, ouvida a gravação do requerimento apresentado em ata no dia 11/10/2023, e se bem interpretamos, o que a recorrente invoca é a preterição de uma formalidade imposta ao Tribunal, por ser seu dever de ofício apurar se a requerida foi previamente integrada em PERSI, com relevância na decisão relativa à sua insolvência.
Ponderamos a aplicação do regime do art.º 195º, n.º 1, do C.P.C..
Impõe-se por isso saber se cabe ao Tribunal averiguar dessa circunstância.
Ora, conforme jurisprudência do STJ, essa matéria será de conhecimento oficioso. Em abono dessa afirmação, assim entendeu o STJ, no Ac. de 19-05-2020 (processo n.º 6023/15.8T8OER-A.L1.S1), sumariando: “2. Enquanto o mutuante não proporcionar ao devedor consumidor a oportunidade para encontrar uma solução extrajudicial, tendo em vista a renegociação ou a modificação do modo de cumprimento da dívida, não lhe é permitido o recurso à via judicial para fazer valer o seu crédito (como se extrai do art.18º daquele diploma). 3. O cumprimento prévio dos deveres impostos pelo regime do PERSI constitui um pressuposto específico da ação executiva movida por uma entidade financeira contra um devedor consumidor, cuja ausência se traduz numa exceção dilatória inominada de conhecimento oficioso que conduz à absolvição da instância”.
No mesmo sentido se pronunciou o Ac. do S.T.J de 13-4-2021 (processo n.º 1311/19.7T8ENT-B.E1.S1) onde se sumariou que “A comunicação de integração no PERSI, bem como a de extinção do mesmo, constituem condição de admissibilidade da acção (declarativa ou executiva), consubstanciando a sua falta uma excepção dilatória insuprível, de conhecimento oficioso, que determina a extinção da instância (art. 576.º, n.º 2, do CPC)”. Estes dois acórdãos são citados no de 16/11/2021, por sua vez citado pela recorrente no seu requerimento.
Esta questão prende-se também com a vertente processual do exercício do direito à prova; recorremos ao que elencamos nos acórdãos proferidos nos processos n.ºs 3170/20.8T8VCT-B.G1 e 2685/19.5T8BCL-F.G1 (mesma relatora), dada a aplicação dos mesmos princípios.
No que concerne ao direito à prova, começa por dispor o art.º 341º do C.C. que as provas têm como função a demonstração da realidade dos factos.
O direito à prova decorre da garantia constitucional do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva que emana do art.º 20º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa. Concretamente no seu n.º 4 diz-se que “Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo.”
O direito à prova implica que as partes têm o direito a utilizar a prova em seu benefício e como fundamento das suas pretensões ou defesas. Têm ainda o direito a contradizer as provas apresentadas pela parte contrária ou suscitadas oficiosamente pelo tribunal, bem como o direito à contraprova – veja-se o Ac. desta Relação de 25/11/2021 (processo n.º 3589/19.7T8VCT-A.G1, www.dgsi.pt).
O direito à prova constitui por isso também uma vertente do princípio do contraditório, e exige que à parte seja, em igualdade, facultada a proposição de todos os meios probatórios potencialmente relevantes para o apuramento da realidade dos factos (principais ou instrumentais) da causa. E, por força do contraditório, as partes têm também direito à admissão de todas as provas relevantes para o objeto da causa, pelo que o juiz não pode, em despacho de admissão das provas ou na fase da instrução, rejeitar um meio de prova por irrelevância, baseado na convicção que já tenha formado quanto à não verificação do facto que se pretende provar através desse meio; apenas é admissível que o faça quando, ao invés, esteja já convencido da verificação do facto que a parte pretende provar, sem que haja meios de prova ainda a produzir que possam vir abalar essa convicção – José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, pág. 213 da 3ª edição. Os mesmos autores destacam as dúvidas face a juízos de constitucionalidade da concessão ao juiz do poder de recusar meios de prova desnecessários (cfr. art.ºs 443º, n.º 1, e 411º a contrario, do C.P.C.).
O procedimento probatório respeita ao esquema dos atos processuais relativos à utilização dum meio de prova, e desenvolve-se ao longo das fases de fixação do objeto da atividade probatória, fixação dos meios de prova, produção de prova e apreciação da prova – Manuel de Andrade, “Noções elementares de processo civil”, pág. 206; Castro Mendes, “Do conceito de prova em processo civil”, pág. 193.
A instrução é orientada pelos factos necessitados de prova e pela incumbência do juiz de realizar ou ordenar mesmo oficiosamente todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos que lhe é lícito conhecer (- pode tratar-se de factos principais - essenciais e complementares- , e factos instrumentais), devendo tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las (art.ºs 410º, 411º e 413º, C.P.C.). Acresce que dispõe ainda o art.º 6º, n.º 1, do C.P.C. que cabe ao juiz recusar o que for impertinente ou meramente dilatório.
Desta conjugação resulta que à requerente, tal como ao tribunal, importa a realização da verdade material.
A requerente pode ter interesse na obtenção de documentos/informações. Uma parte pode ter interesse na junção de documentos em poder da parte contrária ou de terceiro (art.ºs 429º e 432º do C.P.C.), buscando-se a justificação da pertinência do pedido ao interesse para a decisão da causa. Igual consideração resulta do disposto no art.º 436º do C.P.C., que atribuiu ao tribunal a incumbência de (por sua iniciativa ou a requerimento) requisitar informações (…) ou outros documentos necessários ao esclarecimento da verdade.
Assim, para apreciar do interesse para a decisão da causa de meios de prova requeridos somos remetidos para a aferição da sua pertinência e necessidade.
Veja-se ainda o disposto no art.º 438º, n.º 2, do C.P.C., que sanciona a parte que requereu que se requisitassem documentos que se vem a apurar não assumirem aquele relevo – pertinência e necessidade -, sendo o seu comportamento censurável.
A impertinência resulta do facto de se destinar a provar ou infirmar facto irrelevante para a decisão da causa; será desnecessária se se destinar a provar (ou infirmar) facto já provado.
Já Alberto dos Reis (“Código de Processo Civil Anotado”, vol. IV, pág. 58) dizia a propósito de provas documentais que “documentos impertinentes são os que dizem respeito a factos estranhos à matéria da causa; documentos desnecessários são os relativos a factos da causa, mas que não importa apurar para o julgamento da acção”.
E em igual tema, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa (“Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, pág. 512, dizem que “São desnecessários os documentos que, atento o estado da causa, sejam insusceptíveis de acrescentar um elemento probatório que se repercuta no desfecho da lide, ou por dizerem respeito a factos que já se mostram devidamente comprovados, ou por dizerem respeito a factos que não constam do elenco a apurar na causa, ou ainda por já constar no processo documento de igual ou superior relevo”.
O dever de colaboração ou cooperação do juiz com as partes (art.º 7º C.P.C.) nunca poderia ir ao ponto de ultrapassar ou fazer letra morta do princípio do dispositivo e o princípio do ónus da prova (artºs. 3º C.P.C. e 342º C.C.), substituindo o poder do tribunal ao “trabalho” das partes, uma vez que, como dizem António Geraldes, Paulo Pimenta, e Luís Pires de Sousa em anotação ao artº. 436º -“Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, pág. 508- e remetendo também para o “Processo Civil Declarativo” do segundo autor citado, págs. 372 e 373 da 2ª edição, o princípio do inquisitório não é pretexto para as partes delegarem ou confiarem, sem mais, no tribunal a realização de diligências probatórias, recaindo pois sobre elas o ónus da iniciativa da prova; as competências instrutórias outorgadas ao juiz estão longe de constituir mera faculdade legitimadora de inércia.
De facto, os poderes/deveres inquisitórios do juiz não são ilimitados quanto à determinação de provas. “Se fosse este o alcance, então teríamos de admitir que as partes estavam dispensadas de indicar provas, já que o juiz tinha o dever de procurá-las, de diligenciar, por exemplo, quem residia nas imediações onde ocorreram os factos para verificar se alguém os tinha constatado, ou procurar entre familiares e amigos das partes as possíveis provas que poderiam existir e, claro está, as contraprovas” - cfr.A. da Rel. de Coimbra de 12/3/2019 (processo n.º 141/16.2T8PBL-A.C1, www.dgsi.pt).
Igualmente vigorando no processo civil o princípio da cooperação – art.º 7º- este impõe-se a todos os intervenientes processuais - “Cada parte, sem prejuízo das naturais divergências que se mantenham quanto à matéria de facto ou quanto à solução jurídica do caso, deve encarar o processo como um simples instrumento necessário à busca da solução justa” – Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, obra citada, pág. 33.
Uma das suas manifestações encontra-se precisamente no dever de o juiz providenciar pela remoção dos obstáculos que qualquer das partes encontre quando se trata de obter algum documento ou informação ou exercer algum direito, ónus ou dever processual – cfr. o n.º 4 do art.º 7º.
São os temas da prova que delimitam o âmbito da instrução; mas a instrução terá como objeto os factos naturalísticos em que se traduzem ou desdobram e sobre os quais incidirá o juízo probatório, nos termos do art.º 607º, n.ºs 3 e 4 do C.P.C.; conforme Ac. desta Rel. de 5/5/2022 (relator Pedro Maurício) “…já os factos a provar são os factos essenciais ou principais da causa, que constituem a causa de pedir e em que se baseiam as excepções invocadas, que deverão ser alegados pelas partes (cfr. art. 5º/1 do C.P.Civil de 2013), os factos instrumentais e os factos «complementares e concretizadores», desde que resultem da instrução da causa e relativamente aos quais inexiste qualquer vinculação temática [cfr. art. 5º/2a) e b) do C.P.Civil de 2013], tudo sem prejuízo dos casos excepcionais em que o juiz pode oficiosamente introduzir factos principais na causa [cfr. art. 5º/2c) do C.P.Civil de 2013].”.
Os temas da prova na sua função delimitadora, visam evitar “excessos” de modo a que seja permitido às partes a discussão das matérias, mas são os factos alegados que limitam o conhecimento do Tribunal (cfr, a propósito o Ac. da Rel. de Porto de 23/11/2021, processo n.º 8994/19.6T8VNG.P1, wwwdgsi.pt).
É sempre sobre os factos que a produção de prova e respetivos meios incidirão, como se infere dos art.ºs 452º, n.ºs 1 e 2, 454º, 460º, 466º, n.º 1, 475º, 490º ou 495º, n.º 1, do C.P.C., e 341º do C.C., e não sobre os respetivos temas de prova enunciados; e são o que o art.º 607º do C.P.C. impõe que sejam discriminados e declarados provados e/ou não provados pelo julgador, na sentença. Os factos são os constantes dos articulados apresentados pelas partes, cabendo-lhes a alegação dos factos essenciais ou principais - causa de pedir e excepções – cabendo, quer ao juiz, quer às partes, fazer com que sejam adquiridos para o processo os factos instrumentais (cfr. maior desenvolvimento no Ac. da Rel. de Lisboa de 23/4/2015, processo n.º 185/14.9TBRGR.L1-2, www.dgsi.pt).
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Sob este ponto de vista, cabe dizer, face ao desenrolar do processo, que: a requerida alegou que o credor em causa, nunca a interpelou de qualquer quantia em incumprimento, nem englobou a mesma primeiramente em PERSI, tal como lhe incumbia – artigos 21 e 22 da sua contestação; tal não foi levado a tema de prova expresso ou autónomo; não corroboramos que a alegação tenha sido “lacónica”; facto é facto, nada mais haveria que lhe acrescentar, estando os créditos já devidamente identificados, bem como as datas relevantes, tudo indicado na p.i.. Havia, pois, que atentar nessa factualidade.
O requerido não é extemporâneo. De acordo com o disposto no art.º 35º, n.º 5, CIRE, é em audiência de julgamento, no circunstancialismo aí previsto, que são, como foram, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova. É verdade que o art.º 25º, n.º 2 (ex vi art.º 30º, n.º 1) CIRE impõe a apresentação dos meios de prova com a respetiva peça (cfr. paralelamente o art.º 423º, n.º 1, C.P.C.). Mas, por força do art.º 17º, n.º 1, CIRE, tal não afasta a possibilidade de, nessa fase, a prova ser alterada/aditada, nomeadamente porque a requerida é confrontada nesse momento com a “falta” de conhecimento da exceção que configura a não integração prévia no PERSI.
Neste campo, apreciou-se no Ac. da Rel. do Porto (processo n.º 3384/19.3T8STS-A.P1, www.dgsi.pt): “…a questão que se coloca é a de saber se o princípio vigente no processo declarativo comum em sede de prova documental (artigo 423º, nº 3, do Código de Processo Civil) e de acordo com o qual no caso de não oferecimento da prova documental até vinte dias antes da realização da audiência final, ainda podem ser oferecidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior, deve ser aplicado por analogia para as restantes provas[7] e, desse modo, por efeito da subsidiariedade do processo civil relativamente ao processo de insolvência (artigo 17º do CIRE), ser acolhido nestes autos.
A nosso ver, não obstante a natureza urgente destes autos[8], tendo em conta que o direito à prova é um componente fundamental do direito constitucional a um processo equitativo[9], não vemos objeção de princípio a que em face da produção de prova num processo de insolvência se venha a tornar necessária a produção de uma outra prova e assim venha a ser requerido por algumas das partes ou o tribunal oficiosamente assim o venha a determinar.”
Esta consideração tem aqui total pertinência, uma vez que, repetimos, sendo confrontada na audiência com a falta de apreciação da exceção, a requerida podia “reagir”, solicitando-se a produção de meio de prova tendente a demonstrar o facto, independentemente de se determinar a quem cabia o ónus da prova, já que, como vimos, o direito à prova e à contraprova têm igual dimensão/relevância.
Como devia a recorrente ter reagido ao indeferimento do por si peticionado? Arguindo a nulidade, como fez, ou recorrendo do despacho – cfr. art.º 644º, n.º 2, d), C.P.C. aqui aplicável por força do citado princípio da subsidiariedade-?
Inclinámo-nos para ter como adequado o recurso. Nessa perspetiva, não importaria o despacho subsequente que indeferiu a suscitada nulidade, dado que, sendo o meio de reação errado, o primeiro transitava.
Porém, tal não significa que a recorrente esteja aqui impedida de suscitar a questão, em recurso da decisão que declarou a insolvência sem apreciar a questão.
De facto, voltamos à ponderação do art.º 411º do C.P.C. reforçado nesta sede pelo disposto no art.º 11 do CIRE, que, dando realce ao princípio do inquisitório (reforçando-o e alargando-o), dispõe que: “No processo de insolvência, (…), a decisão do juiz pode ser fundada em factos que não tenham sido alegados pelas partes.”
Visto sob esta perspetiva, a nulidade invocada pode ser tida, não propriamente sobre o despacho de indeferimento do meio de prova requerido, mas ser assacada ao saneamento do processo sem que fosse cogitada/averiguada a exceção invocada, e ainda que não invocada, para quem defende essa tese, de conhecimento oficioso.
Por essa perspetiva, o recurso incide sobre o indeferimento dessa nulidade, sujeita ao mesmo regime. E sob essa perspetiva, deve proceder, como melhor se justificará.
Ainda que assim não fosse, podia ainda a recorrente reagir contra a sentença que não se pronunciou, omitindo, a apreciação de uma questão – o que impunha que fosse suscitada a nulidade de sentença prevista no art.º 615º, n.º 1, d), C.P.C..
Por último, podia a recorrente reagir contra a decisão por omissão do prévio poder/dever do Tribunal de diligenciar pela averiguação daquela circunstância, o que inquinaria a sentença de nulidade por excesso de pronúncia – cfr., por todos, Ac. da Rel. de Lisboa de 9/2/2023 (processo n.º 17956/18.0T8LSB.L1-6, www.dgsi.pt).
Como se disse no Ac. da Rel. de Coimbra de 26/10/2021 (processo n.º 852/20.8T8FIG-A.C1, www.dgsi.pt) “…tal poder-dever, inerente ao indeclinável compromisso do juiz com a verdade material, emerge e justifica-se independentemente da vontade das partes na realização das diligências/produção de meios de prova (e da tempestividade dessa iniciativa).”
E ainda que se entenda que a nulidade de sentença não foi pertinentemente colocada nestes autos, restaria ainda a este Tribunal de recurso o disposto no art.º 662º, n.º 2, c), do C.P.C. competindo oficiosamente anular a decisão proferida na 1.ª instância porque, não constando do processo todos os elementos que, (“nos termos do número anterior,”) permitem a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, considera-se indispensável a ampliação da matéria de facto, abarcando aquele circunstancialismo relativo ao PERSI.
Ultrapassada a perspetiva da impugnação por parte da recorrente, e concluindo-se pela sua admissibilidade, resta saber se os argumentos do Tribunal recorrido afastavam a necessidade daquela averiguação.
O Tribunal recorrido cita o Ac. da Rel. de Lisboa de 12/10/2021, destacando-se o que aí se sumariou:
“I – O procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento (PERSI), instituído pelo Dec. Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, tem aplicação obrigatória quando o cliente bancário (consumidor) incorre numa situação de mora ou de incumprimento de obrigações resultantes de contratos de crédito, nos moldes consignados pelos seus artigos 2.º, n.º 1, e 14.º, n.º 1.
II – O recurso a tal procedimento constitui condição prévia de admissibilidade e procedibilidade à instauração de acção pela qual a instituição bancária peticiona a declaração de insolvência de clientes bancários que entraram em incumprimento do contrato de mútuo com hipoteca para aquisição de imóvel que corresponda à casa de morada de família e constitua a habitação própria e permanente dos mesmos.
III – Sendo tal acção intentada com preterição dessa obrigação, estar-se-á perante uma excepção dilatória inominada, a qual é insuprível e de conhecimento oficioso, acarretando a absolvição da instância dos requeridos.”
Cita o disposto no art.º 573º, n.º 2, C.P.C.: “Depois da contestação só podem ser deduzidas as exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente.” Cita o Ac. da Rel. de Lisboa de 15/12/2022 (processo n.º 23116/16.7T8SNT-C.L1-8) que afasta o princípio da preclusão, face ao dever de conhecimento oficioso. Todavia, diz, a requerida “…não alegou factos que permitissem ao Tribunal atentar ou não que se estava perante um caso de subsunção dos factos à aplicabilidade do DL que entrou em vigor após o incumprimento do crédito do requerente. Nenhum facto foi invocado pela requerida.
Apenas uma mera frase conclusiva e lacónica.
Vir agora, passados dois anos de pendência da acção, após sucessivos adiamentos a seu pedido, após a produção de inúmera prova, suscitar esta questão em julgamento configura, quanto a nós, um verdadeiro abuso de direito.”
Não podemos concordar com esta posição.
Em primeiro lugar, como já dissemos, foram alegados factos suficientes, ora relativos ao crédito e prazos respetivos, logo na p.i., ora relativo à não integração no PERSI, na oposição. Qualquer outro facto que ainda carecesse de ser esclarecido, seria sempre apenas concretizador e não essencial –cfr. art.º 5º do C.P.C.. Face aos art.ºs 2º, 12º, 14º, 39º e 40º do DL n.º 227/2012, de 25 de outubro, que instituiu o PERSI, cogita-se a sua aplicabilidade.
Depois, e ainda que se aceitasse a tese do abuso de direito – a qual não colhe, a nosso ver face ao art.º 334º do C.C. e tendo em conta que o direito de defesa é legítimo (cfr. Ac. da Rel. do Porto de 4/5/2022, processo n.º 3751/20.0T8MAI.P1, www.dgsi.pt), não passando a ilegítimo por ser exercido tardiamente -, tal não afastava o dever de conhecimento oficioso da exceção.
Veja-se ainda a propósito da oportunidade de dedução da exceção face ao art.º 573, n.º 2, C.P.C., última parte, o Ac. da Rel. de Évora de 11/2/2021 (processo n.º 4637/16.8T8ENT-D.E1, www.dgsi.pt).
Acrescenta então o Tribunal recorrido que “…sempre se dirá que o requerente se arrogou, ainda, titular do crédito que identifica no seu artigo 11.º da petição inicial, relativamente ao qual, fundado que é numa livrança, no valor de €40.697,28 o aludido regime é inaplicável. Logo, a existência deste crédito permite afirmar que a presente acção seria sempre admissível (ainda que se julgasse verificada a aludida excepção quanto a parte do crédito).”
Também não podemos aceitar esta interpretação. De facto, é completamente diferente analisar o caso perante um crédito de € 40.697,28, e perante um crédito de € 315.009,52, nomeadamente face ao que se consignou no ponto 19 dos factos provados: “Esses imóveis, no seu conjunto, apresentam o valor patrimonial de € 197.482,27, insuficiente para fazer face ao seu passivo”.
Assim, ao invés de dar como não provado que “c) O Requerente a não tenha interpelado para cumprimento de qualquer obrigação, nem a englobado em PERSI;”, impunha-se ao Tribunal ter averiguado essa situação e conhecido da exceção.
Aliás, o Tribunal recorrido reconhece que estamos perante uma execução universal, que constitui o processo de insolvência (art.º 1º CIRE), e os objetivos visados pelo PERSI: visa o mesmo promover a adequada tutela dos interesses dos consumidores em incumprimento e a atuação célere das instituições de crédito na procura de medidas que contribuam para a superação das dificuldades no cumprimento das responsabilidades assumidas pelos clientes bancários – cfr. preâmbulo do diploma citado. Logo não faria qualquer sentido olvidar esse procedimento no caso, e desde que verificados os pressupostos de aplicabilidade do regime. Defende a pertinência desta matéria no caso de estarmos perante um processo de insolvência o Ac. da Rel. de Évora de 24/9/2020 (processo n.º 3242/18.9T8STR-B.E1, www.dgsi.pt), o que partilhamos.
Também se tem vindo a entender que estamos perante normas imperativas: aquelas que impõem a adoção do procedimento - art.ºs 12º e 14º-, e que visam viabilizar um mútuo acordo, que passará pela renegociação do contrato, evitando-se o recurso à via judicial, e, em último grau, a insolvência do devedor.
Diz-se no Ac. da Rel. de Évora de 31/01/2019 (processo n.º 832/17.0T8MMN-A.E1, www.dgsi.pt), que “…existe uma situação de um crédito que não é exigível, por incumprimento de norma imperativa, a qual constitui, do ponto de vista adjectivo – com repercussões igualmente no domínio substantivo -, uma condição objectiva de procedibilidade.”.
Por tudo o exposto, deve proceder a primeira questão argumentativa da recorrente, a qual prejudica a seguinte (cfr. art.º 608º, n.º 2, ex vi art.º 663º, n.º 2, C.P.C.): a aferição da sua solvência. Fica nomeadamente prejudicada a apreciação da inconstitucionalidade levantada, independentemente de outras razões, porque não apreciamos a aplicação do art.º 342º do C.P.C., norma de direito probatório material.
Assim, na procedência parcial do recurso, declara-se a nulidade do despacho de saneamento do processo que não apreciou a exceção invocada, nem remeteu o seu conhecimento para sentença, bem como a sentença subsequente (que também não a apreciou) – art.º 195º, n.ºs 1 e 2, C.P.C.. Deve ser proferida decisão que conheça a exceção, diligenciando o Tribunal previamente pela obtenção dos elementos que para tal se mostrarem necessários. No mais improcede a apelação.
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As custas do recurso devem onerar ambas as partes dado que a requerente não obtém provimento total, pelo que decai parcialmente (art.º 527º, n.ºs 1 e 2, C.P.C.).
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V DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso da requerente parcialmente procedente, e em consequência, conceder provimento parcial à apelação, anulando o saneamento do processo, bem como a sentença proferida, devendo ser apreciada a exceção de não integração da requerente no PERSI pelo banco credor.
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Custas a cargo de ambas as partes na proporção de metade (artº. 527º, nºs. 1 e 2, do C.P.C.).
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Guimarães, 4 de abril de 2024.
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Os Juízes Desembargadores
Relator: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1º Adjunto: José Alberto Moreira Dias
2º Adjunto: Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício

(A presente peça processual tem assinaturas eletrónicas)