PROCEDIMENTO CAUTELAR INOMINADO
INDEFERIMENTO LIMINAR
PERICULUM IN MORA
LESÃO CONSUMADA
Sumário


I. O fundado receio de que o direito do requerente de procedimento cautelar inominado «sofra lesão» pressupõe que o respectivo titular se encontre perante simples ameaças (uma vez que, se a lesão já está consumada, não há prejuízo a evitar ou a acautelar), excepto se a violação cometida for índice objectivo de que outras (idênticas) se seguirão.

II. O corte de árvores em terreno alheio e a sua remoção para local desconhecido, bem como a destruição de um muro de vedação e de um marco de demarcação, consubstanciam lesões do direito de propriedade já consumadas; e, não tendo sido alegados factos que permitam afirmar que, no mesmo prédio, foi igualmente iniciada qualquer de obra (v.g. terraplanagem, aterro, corte de outras árvores deixadas - total ou parcialmente - no local) que tivesse sido deixada manifestamente interrompida (isto é, por concluir, sem que a fase inicial, já executada comportasse em si mesma qualquer utilidade), não pode afirmar-se que aquela lesão consumada é, por si só, indício de que outras ocorrerão.

III. O «carácter fundado do receio» do requerente de procedimento cautelar comum de que o seu direito sofra lesão não se satisfaz com um mero juízo de probabilidade, correspondente a um estado de espírito que derivou de uma apreciação ligeira da realidade, de simples ou meras dúvidas, desconfianças e conjecturas, subjectivas e precipitadas (sendo, por isso, um receio porventura conjecturado ou exagerado). Exige, sim, se não um juízo de realidade ou de certeza, pelo menos um receio assente em factos objectivos (concretos e positivos) e avaliados num juízo distanciado (de prudente apreciação), tornando-se por isso convincente.

IV. A prévia e inédita violação do direito de propriedade do requerente de procedimento cautelar inominado (por meio de corte e emoção de árvores em prédio seu, e destruição parcial e negligente de vedação e de marco de demarcação) não permite, por si só, firmar objectivamente o receio de novas lesões, para além de qualquer subjectiva desconfiança que o requerente possa ter (o que sucederia com a alegação de que o requerido é proprietário de prédio contíguo ao dele próprio, contestando a exacta estrema de ambos, reivindica o direito de propriedade, ou um direito real menor, sobre o prédio deles próprio ou sobre uma sua parcela, ou sobre espécies florestais nele existentes, deixou visivelmente marcadas no local outras árvores, destruiu intencionalmente o muro divisório ou marcos de demarcação, substitui e alterou as suas vedação e demarcação, preparou ou iniciou nele obras de movimentação de terras, e preparou, iniciou ou realizou obras de condução para o seu exterior de utilidades neles existentes).

V. A «gravidade» e a «difícil reparabilidade» da lesão que justifica a tutela cautelar comum afere-se por um duplo critério: objectivo, atendendo ao tipo de lesão que a situação de perigo pode vir a provocar na esfera jurídica do requerente (o que dependerá da natureza do direito alvo dessa lesão); e subjectivo, atendendo às possibilidades concretas do requerido para suportar economicamente uma eventual reparação do direito do requerente (por reconstituição natural, ou por sucedânea indemnização).

VI. Uma acrescida perda de árvores e destruição de muro de vedação e de marcos divisórios, e uma inédita alteração da configuração de prédio rústico (por movimentação de terras, em terraplanagem ou aterro), consubstanciam danos causados sobre coisa (e não sobre pessoas), de natureza material (e não de natureza corporal ou moral), passíveis de ressarcimento através de um processo de reconstituição natural (v.g. replantação de árvores, reconstituição do muro de divisão, recolocação dos marcos de divisão, reposição da configuração inicial do terreno), ou de indemnização substitutiva (v.g. quanto ao valor das espécies arbóreas objecto de corte e apropriação); e, por isso, objectivamente, não consubstanciam lesões graves e dificilmente reparáveis.

VII. Face ao momento precoce em que o julgamento antecipado do mérito da causa é realizado, o despacho de indeferimento liminar por manifesta improcedência da pretensão do autor deve ser reservado para situações em que seja evidente e inequívoco que a acção nunca poderá proceder, qualquer que seja a interpretação jurídica que se faça da lei em vigor (tendo, nomeadamente, em conta os diferentes contributos da doutrina e da jurisprudência), ou a sua concreta aplicação ao caso sub judice.

VIII. Sendo complexa causa de pedir do procedimento cautelar inominado, impõe-se que, relativamente a cada um dos respectivos requisitos de procedência, sejam alegados factos essenciais idóneos ao seu preenchimento; e, falecendo essa alegação quanto a um, ou a alguns deles, deverá o mesmo ser liminarmente indeferido, por manifesta improcedência.

IX. Estando em causa num procedimento cautelar inominado a defesa do direito de propriedade sobre um prédio rústico, e na ausência de outra e distinta alegação por parte do requerente (particularizando e quantificando os eventuais danos que sobre ele o requerido possa produzir), afigura-se correcto que o valor desse genérico prejuízo corresponde ao valor do dito prédio.

Texto Integral


Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO

1.1. Decisão impugnada
1.1.1. AA e mulher, BB (aqui Requerentes e Recorrentes), residentes na Rua ..., na freguesia ..., em ..., propuseram o presente procedimento cautelar comum, contra CC, residente na Rua ..., da freguesia ..., concelho ... (aqui Requerido e Recorrido), pedindo que:

· o Requerido fosse condenado a abster-se, por si ou por interposta pessoa, de entrar, circular e praticar quaisquer actos sobre um prédio rústico deles próprios (que identificaram), nomeadamente susceptíveis de lhe diminuir o valor;

· o Requerido fosse condenando a abster-se de impedir o normal uso e fruição do referido prédio por eles próprios;

· e fosse fixada uma sanção pecuniária compulsória no montante de € 500,00, por cada acto lesivo que o Requerido viesse a praticar.

Alegaram para o efeito, e em síntese, serem proprietários de um prédio rústico (que identificaram), por o terem adquirido por contrato de compra e venda e por usucapião, encontrando-se registado a seu favor.
Mais alegaram ter o Requerido, em 05 de Dezembro de 2023, invadido o dito prédio; e, com dois tractores e um camião, ter cortado e removido árvores nele existentes (56 pinheiros e 11 eucaliptos), apropriando-se das mesmas, destruindo ainda parte do muro de vedação e um dos marcos de pedra.
Alegaram igualmente pretender o Requerido apropriar-se de parte do prédio deles próprios, perturbando e privando-os da respectiva fruição.
Por fim, alegaram que, sendo «pessoas de provecta idade (76 anos)», e residindo «numa freguesia distinta da situação daquele prédio», recearem, perante «a lesão já consumada»: outras «lesões que se avolumarão se não forem tomadas imediatas providências, designadamente que o Requerido introduza máquinas no referido prédio de molde a alterar a sua configuração, tal como terraplanagem, aterro ou outras»; e que, «perante uma nova lesão, que poderá ser grave e de difícil reparação, não disponham de meios eficazes e/ou não cheguem em tempo útil de impedir o Requerido».
Os Requerentes atribuíram à acção o valor de € 5.000,01.

1.1.2. Foi proferido despacho de indeferimento liminar do procedimento cautelar comum, lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…)
Ora, realizado este enquadramento prévio e volvendo ao caso dos autos, considera o Tribunal que do simples facto de o Requerido ter, alegadamente, cortado as árvores existentes no prédio dos Requerentes não decorre que o mesmo tenha pretendido, ou ainda pretenda, apropriar-se desse mesmo prédio (mas antes, e unicamente, das árvores que ali se encontravam).
Tal intenção de apropriação também não resulta, julga-se, dos danos alegadamente causados nesse prédio no decurso dos trabalhos de corte das referidas árvores.
Posto isto, a única lesão de um direito invocada pelos Requerentes consiste no efetivo corte das árvores, lesão esta já totalmente consumada, conforme os requerentes admitem no artigo 20.º do requerimento inicial, e que, nessa medida, não preenche o requisito do fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável a um direito.
No mais, quanto ao alegado a propósito da possibilidade de o Requerido introduzir “máquinas no referido prédio de molde a alterar a sua configuração, tal como terraplanagem, aterro ou outras”, não foi apresentado qualquer facto ou indício do qual resulte que estamos perante mais do que uma simples hipótese antecipada pelos Requeridos, tanto mais quanto não foi referido que o Requerido se tenha, realmente, apropriado do prédio dos Requerentes desde o dia ../../2023, impedindo-os, designadamente, de ali aceder, a fim de se concluir que, realmente, o Requerido se arroga proprietário do referido prédio e, nesse pressuposto, poderia vir a ali praticar os atos indicados pelos Requerentes.
De todo o modo, e mesmo que ficasse demonstrado que se verifica um fundado receio por parte dos Requerentes de que o Requerido viesse a causar uma nova lesão ao seu direito de propriedade, também nada foi alegado que permita concluir que se trataria de uma lesão grave ou dificilmente reparável, pois a eventual alteração da configuração do terreno poderia ser revertida pelo Requerido, suportando este o custo correspondente.
Neste contexto, e uma vez que os requisitos do procedimento cautelar comum são cumulativos, é de concluir que não estão verificados os pressupostos para que possa ser decretada a providência, pelo que se impõe, por ser manifestamente improcedente, indeferir liminarmente o presente procedimento.
Ressalva-se, porém, que mesmo que se equacionasse que os Requerentes pretendiam requerer o procedimento cautelar de restituição provisória da posse (atendendo, designadamente, à referência que consta do requerimento inicial ao artigo 378.º do Código de Processo Civil), certo é que não foi expressamente requerida a restituição da posse, nem mesmo alegado o esbulho do prédio cuja restituição se pretenderia (mas antes e unicamente das árvores que ali se encontravam plantadas), pelo que também nesta hipótese não poderia ser decretada a providência.
Pelo exposto, e nos termos das sobreditas normas legais, decide-se indeferir liminarmente o presente procedimento cautelar.
Custas a cargo dos Requerentes (artigos 527.º, n.º 1 e 2 do CPC), sem prejuízo do benefício de apoio judiciário, se lhes vier a ser concedido, fixando-se o valor da causa em 2,39€, por ser esse o valor patrimonial tributário do prédio dos Requerentes e, por conseguinte, do prejuízo que se pretende evitar com o presente procedimento cautelar - artigos 304.º, n.º3, al. d), 305.º e 306.º, n.º 1 e 2 do CPC.
Registe e notifique os requerentes.
(…)»

*
1.2. Recurso
1.2.1. Fundamentos
Inconformados com esta decisão, os Requerentes (AA e mulher, BB) interpuseram recurso de apelação, pedindo que lhe fosse dado provimento.

Concluíram as suas alegações da seguinte forma (aqui se reproduzindo as respectivas conclusões ipsis verbis, com excepção da concreta grafia utilizada e de manifestos e involuntários erros e/ou gralhas de redacção):

A) Vem o presente recurso interposto do douto Despacho liminar que determinou:
«Pelo exposto, e nos termos das sobreditas normas legais, decide-se indeferir liminarmente o presente procedimento cautelar.

Custas a cargo dos Requerentes (artigos 527.º, n.º 1 e 2 do CPC), sem prejuízo do benefício de apoio judiciário, se lhes vier a ser concedido, fixando-se o valor da causa em 2,39€, por ser esse o valor patrimonial tributário do prédio dos Requerentes e, por conseguinte, do prejuízo que se pretende evitar com o presente procedimento cautelar – artigos 304.º, n.º 3, al. d), 305.º e 306.º, n.º 1 e 2 do CPC.»

B) Tal Despacho, que constituiu uma verdadeira surpresa, não teve em linha de conta que os recorrentes se veem na (mesma) iminência de virem a ser, irremediavelmente prejudicados, sem possibilidade de serem ressarcidos e reconstituída, a situação que antes existia, ou seja, do ponto de vista de uma verdadeira “reconstituição natural”, nos seus direitos que venham a ser ofendidos e constrangidos pelo recorrido CC;

C) Sucede que, no caso concreto já foram violados direitos dos recorrentes e está-se na iminência de poderem ocorrer mais violações, as quais poderão ser irreversíveis e que não foram acauteladas pelo Tribunal “a quo”;

D) Com efeito, no caso sub judicio, como V.as Excelências poderão constatar, a decisão do Tribunal “a quo” faz uma segmentação na análise do Requerimento inicial, não analisando o seu todo, olvidando factos essenciais e que, a serem devidamente analisados, nunca poderiam ter sido postergados;

E) Designadamente, não podia o Tribunal “a quo” ignorar que nos art.ºs 9.º e 10.º do seu RI, os recorrentes alegaram o seguinte:
«(…)
9.º
No passado dia 05 de Dezembro de 2023, ao início da tarde, os Requerentes foram alertados pelo Ex.º Sr. DD, de que naquele seu prédio se encontravam estranhos, que manobrando dois tratores e maquinaria moderna, se encontravam a cortar as árvores existentes naquele seu prédio e a carrega-las para um camião.
10.º
O Requerente marido deslocou-se imediatamente ao seu prédio, acompanhado pelo seu filho EE, onde se deparou com um cenário de total destruição e devastação de todas as árvores existentes numa das extremidades do prédio.
(...)»

F) Sucede que, no terreno propriedade dos recorrentes, há algumas árvores (que não as referidas na extremidade do mesmo) que, tendo dezenas de anos (algumas centenárias), ainda que fossem substituídas por outras árvores novas a expensas do recorrido, jamais e em vida, os recorrentes as veriam do tamanho das que ainda lá se encontram e que não foram (ainda?!) cortadas pelo recorrido!!!

G) Pelo que, não tem razão o Tribunal “a quo” quando afirma que a situação pode ser reconstituída a expensas do recorrido;

H) É certo que existiu, efectivamente no RI um lapso, mas que se torna evidente e resulta do seu contexto, e que está no art.º 24º do RI, onde dizem os requerentes o seguinte:
«(…)
24.º
Aliás, para o Requerido não resulta qualquer prejuízo, porquanto, já se apropriou de todas as árvores existentes nesse prédio, sendo certo que a propriedade não lhe pertence, como nunca pertenceu.
(...)»

I) Ora, do contexto resulta que os recorrentes se queriam referir a «todas as árvores existentes nessa faixa do prédio».

J) Mas, o Tribunal “a quo” laborou nesse lapso, na medida em que a decisão recorrida afirma:
«(…)
De todo o modo, e mesmo que ficasse demonstrado que se verifica um fundado receio por parte dos Requerentes de que o Requerido viesse a causar uma nova lesão ao seu direito de propriedade, também nada foi alegado que permita concluir que se trataria de uma lesão grave ou dificilmente reparável, pois a eventual alteração da configuração do terreno poderia ser revertida pelo Requerido, suportando este o custo correspondente.
Neste contexto, e uma vez que os requisitos do procedimento cautelar comum são cumulativos, é de concluir que não estão verificados os pressupostos para que possa ser decretada a providência, pelo que se impõe, por ser manifestamente improcedente, indeferir liminarmente o presente procedimento.
Ressalva-se, porém, que mesmo que se equacionasse que os Requerentes pretendiam requerer o procedimento cautelar de restituição provisória da posse (atendendo, designadamente, à referência que consta do requerimento inicial ao artigo 378.º do Código de Processo Civil), certo é que não foi expressamente requerida a restituição da posse, nem mesmo alegado o esbulho do prédio cuja restituição se pretenderia (mas antes e unicamente das árvores que ali se encontravam plantadas), pelo que também nesta hipótese não poderia ser decretada a providência.
(...)»

K) Parece assim resultar, que o Tribunal “a quo” se ateve apenas a este segmento do RI.

L) Naturalmente, o receio de desconfiguração do terreno também foi invocado e não é de somenos importância, pois reconfigurá-lo, tal qual, pode tornar-se impossível, tudo dependendo do grau da lesão que se possa verificar e cujo receio é perfeitamente justificado face às atitudes já tomadas pelo recorrido.

M) O despacho recorrido, é bastante genérico, apenas revertendo para o caso “sub judicio”“a final”, mas sem uma fundamentação que se adeque e seja proporcional ao caso concreto.

N) Com efeito, o douto despacho recorrido não atentou que a tutela cautelar se caracteriza, designadamente, pela instrumentalidade ou dependência em relação a uma ação principal, com vista a assegurar a utilidade da sentença de procedência a proferir nesta.

O) Com a devida vénia, a rejeição liminar do requerimento cautelar deve ser utilizada com cautela e reserva, pois que a regra é a do prosseguimento dos autos, com a citação do requerido, a apresentação por este da sua defesa, a instrução do processo e a prolação de decisão, tanto mais que o despacho de rejeição é proferido sem audição da parte.

P) Ademais, à luz do princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva, ínsito no artigo 20.º, n.ºs 4 e 5 da CRP, pretenderam os requerentes acautelar os efeitos consequentes de uma iminente ameaça de lesão ainda mais grave, em relação àquela que já se verificara e que, poderia ser, eventualmente irremediável e jamais reconstituível, o que, neste hiato temporal, ainda poderá acontecer.

Q) Sucede que, com a providência cautelar, pretenderam os requerentes, sob a égide do princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva, obter uma decisão que regulasse a situação jurídica de forma perfunctória, mas mais célere e eficaz e, por conseguinte, mais justa.

R) Porém, como se percebe, não logrou o Tribunal a quo interpretar adequadamente o pedido formulado pelos recorrentes no sentido da condenação do requerido a abster-se de continuar os seus comportamentos lesivos, sob pena de se tornar impossível a reconstituição da situação de facto antes existente.

S) Mas, se porventura o Tribunal a quo conseguiu apreender corretamente os pedidos dos recorrentes formulados no RI e que, nessa perspectiva, reduz o peticionado da forma como o faz, então, sempre se dirá que, com todo o respeito, tal redução do pedido, para além de fazer tábua rasa às consequências, constitui violação do princípio do dispositivo, previsto no artigo 3º do CPC, uma vez que, de acordo com a jurisprudência, cabe às partes (e não ao Tribunal) definir o objecto do litígio através da dedução das suas pretensões.

T) Assim, não será lícito ao Tribunal “a quo” substituir-se às partes na definição do objecto do litígio (salvo no uso dos poderes gestionários do processo e/ou perante a manifesta falta de fundamento), devendo, antes, acomodar as suas pretensões ao abrigo da legislação substantiva e processual aplicáveis,

U) Pelo que, entendendo-se que o Tribunal a quo procedeu a uma redução do peticionado pelos recorrentes, revela-se que o douto Despacho recorrido procedeu a errónea interpretação e aplicação das normas processuais aplicáveis e, ainda, à violação do princípio do dispositivo, impondo-se a respetiva revogação.

V) Ainda que se admitisse que os recorrentes apenas haviam formulado um pedido de acautelamento quanto à desconfiguração do terreno, nem por isso tal circunstância seria bastante para coartar a tutela cautelar exigida no caso vertente, lançando mão de um surpreendente e infundamentado Despacho liminar.

W) Aliás, mediante um simples juízo de prognose, seria fácil antever que a concepção redutora do Tribunal “a quo” não garante a reconstituição da situação de facto ex ante e não evita a potencial lesão dos direitos fundamentais dos recorrentes.

X) Porém, ainda que assim não se entendesse, à luz dos ensinamentos da jurisprudência, perante o preenchimento dos critérios de decisão do processo cautelar, incumbe ao Juiz o poder-dever de decretar a providência concretamente mais adequada ao risco de lesão invocado.

Y) Igualmente redutor, é atribuir à causa o valor de 2,39 €, por, alegadamente «... ser esse o valor patrimonial tributário do prédio dos Requerentes e, por conseguinte, do prejuízo que se pretende evitar com o presente procedimento cautelar - artigos 304.º, n.º 3, al. d), 305.º e 306.º, n.º 1 e 2 do CPC».

Z) Assim, o valor da causa deve manter-se, tal qual foi indicado pelos requerentes.

AA) Demitindo-se o Tribunal a quo do seu sobredito “poder-dever” sem que fundamente, em concreto, o motivo pelo qual não será admissível no presente caso a adoção de qualquer providência cautelar, salvo o devido respeito, o Tribunal a quo violou o direito fundamental dos recorrentes à tutela jurisdicional efetiva, previsto no artigo 20.º, n.ºs 4 e 5 da CRP, motivo também pelo qual o douto Despacho recorrido se afigura ilegal e, consequentemente, deverá ser revogado, com todas as devidas e legais consequências, ordenando-se a baixa dos autos para prolação de despacho de admissão e citação, prosseguindo a tramitação do processo cautelar até à decisão final, se a tal nada obstar.
*
1.2.2. Contra-alegações
Citado para o efeito, o Requerido (CC) não apresentou contra-alegações.
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II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR

2.1. Objecto do recurso - EM GERAL
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art.º 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC) [1].
Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida) [2], uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação/reponderação e consequente alteração e/ou revogação, e não a um novo reexame da causa).
*
2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar
Mercê do exposto, duas questões foram submetidas à apreciação deste Tribunal ad quem:

1.ª - Errou o Tribunal a quo na interpretação e aplicação das normas legais que deveria considerar, ao indeferir liminarmente o procedimento cautelar comum (por pretensamente os Requerentes não terem alegado factos suficientes para preencherem os pressupostos do seu decretamento) ?

2.ª - Errou o Tribunal a quo na interpretação e aplicação das normas legais que deveria considerar, ao fixar o valor da acção em € 2,39 (devendo antes corresponder-lhe o valor de € 5.000,01, conforme lhe foi proposto pelos Requerentes)  ?
*
III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Com interesse para a apreciação das questões enunciadas, encontram-se assentes (mercê do conteúdo dos próprios autos) os factos já discriminados em «I - RELATÓRIO», que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
*
IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Procedimento cautelar comum - Pressupostos de decretamento
4.1.1.1. Pressupostos próprios
Lê-se, no art.º  362.º, do CPC, que: sempre «que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado» (n.º 1); o «interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em ação constitutiva, já proposta ou a propor» (n.º 2); e não «são aplicáveis as providências referidas no n.º 1 quando se pretenda acautelar o risco de lesão especialmente prevenido por alguma das providências tipificadas no capítulo seguinte» (n.º 3).
Mais se lê, no art.º 368.º, do CPC, que a «providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão» (n.º 1); e «pode, não obstante, ser recusada pelo tribunal quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar» (n.º 2).

Logo, quem instaure em juízo uma providência cautelar não especificada terá que alegar os factos que consubstanciem os seguintes requisitos, cumulativos [3], de procedência:

a) a probabilidade séria da existência de um direito (fumus boni iuris), isto é, não que o mesmo é certo ou indiscutível (prova que ficará reservada para a acção principal), mas sim que há grandes probabilidades de ele existir; e, por isso, bastando que a  existência do direito se apresente  como  verosímil [4]
Logo, exige-se aqui um juízo de mera probabilidade e de verosimilhança da existência do direito subjectivo (v.g. de personalidade singular, patrimonial, familiar, real ou obrigacional) invocado, um «”meio termo” entre a certeza - que apenas será estabelecida na acção principal - e a incerteza que se encontra na base do processo judicial» (Marco Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares, 2016, 2.ª edição, Almedina, Fevereiro de 2016, págs. 185-6).
           
b) o suficientemente fundado receio de que esse direito sofra lesão grave e de difícil reparação (periculum in mora).
Com efeito, qualquer processo cautelar destina-se a remover o periculum in mora, «isto é, o perigo resultante da demora a que está sujeito um processo (o processo principal) ou, por outras palavras, o perigo derivado do caminho, mais ou menos longo, que o processo principal tem de percorrer até à decisão definitiva, para se dar satisfação à necessidade impreterível de justiça, à necessidade de que o julgamento final ofereça garantias de ponderação e acerto» (Alberto dos Reis, BMJ, n.º 3, págs. 31 a 34).
Logo, o dano que aqui se visa prevenir é, única e precisamente, o «que pode resultar da demora da ação judicial, e não o dano de que qualquer direito é suscetível de padecer e que encontra tutela adequada no direito de ação principal», Ora, se o que se pretende aqui prevenir é o «perigo de dano marginal relativamente ao prevenido pela ação principal» e  perante o qual esta «não tem capacidade de atuar», a tutela cautelar será sempre complementar e não substitutiva: «uma vez concedida a providência cautelar, o requerente não» perde «o interesse na ação principal» (Rita Lynce de Faria, A Tutela Cautelar Antecipatória No Processo Civil Português. Um difícil equilíbrio entre a Urgência e a Irreversibilidade, Universidade Católica Portuguesa, Junho de 2016, págs. 131 e 132).  

Dito, e precisando o carácter «fundado» do receio, não basta um mero juízo de probabilidade, um receio correspondente a um estado de espírito que derivou de uma apreciação ligeira da realidade, de simples ou meras dúvidas, desconfianças e conjecturas, subjectivas e precipitadas, um receio porventura conjecturado e exagerado. Exige-se, se não um juízo de realidade ou de certeza, pelo menos um receio assente em factos objectivos (concretos e positivos) e avaliados num juízo distanciado (de prudente apreciação), tornando-se por isso convincentes [5].
Contudo, será o mesmo variável em função das circunstâncias próprias da providência em causa, podendo justificar-se uma maior ou menor exigência na sua demonstração [6].
           
Precisando agora os requisitos da «gravidade» e da «dificuldade da reparação» (uma vez que a tutela cautelar tem um reflexo imediato na esfera jurídica do requerido), sendo os mesmos «cumulativos», «ficam afastadas da tutela cautelar as lesões que sejam facilmente reparáveis ou que, apesar de serem irreparáveis ou de difícil reparação, não revistam uma gravidade suficientemente forte que justifique o recurso à tutela cautelar» (Marco Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares, 2016, 2.ª edição, Almedina, Fevereiro de 2016, pág. 203).
Tradicionalmente, a jurisprudência apela a um duplo critério - subjectivo e objectivo - para aferir do carácter grave e irreparável, ou dificilmente reparável, da lesão: subjectivo, quando «atende às possibilidades concretas do requerido para suportar economicamente uma eventual reparação do direito do requerente»; e objectivo, quando atende ao «tipo de lesão que a situação de perigo pode vir a provocar na esfera jurídica do requerente, o que significa que dependerá da natureza do direito alvo dessa lesão sendo admissível o recurso à tutela cautelar, sempre que a reparação da lesão possa implicar a chamada reparação por sucedâneo» (Marco Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares, 2016, 2.ª edição, Almedina, Fevereiro de 2016, pág. 215).
Compreende-se, por isso, que «especialmente quanto aos prejuízos materiais, o critério deva ser bem mais rigoroso do que o utilizado quanto à aferição dos danos de natureza física ou moral, uma vez que, em regra, aqueles são passíveis de ressarcimento através de um processo de reconstituição natural ou de indemnização substitutiva» (António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, III Volume, 5. Procedimento Cautelar Comum, Almedina, Abril de 1998, pág. 85).
Dir-se-á, assim, que, por princípio, «as lesões suscetíveis de reintegração in natura não podem ser consideradas dificilmente reparáveis», excepto «quando, devido à situação económica do lesante, não» seja «possível obter a reconstituição no caso concreto»; e que o serão as «lesões que não sejam suscetíveis de reintegração específica» quando a respectiva indemnização não permita «reparar integralmente o dano sofrido» (como, em regra, sucederá com a violação  dos direitos de personalidade), ou, de novo, quando o requerido não tenha a necessária capacidade económica para o efeito  (Rita Lynce de Faria, A Tutela Cautelar Antecipatória No Processo Civil Português. Um difícil equilíbrio entre a Urgência e a Irreversibilidade, Universidade Católica Portuguesa, Junho de 2016, págs. 147 a 163).

Isto pressupõe, é claro, que o titular do direito se encontra perante simples ameaças; se a lesão já está consumada, a providência não tem razão de ser, uma vez que já não há prejuízo a evitar ou a acautelar.
Contudo, se a violação cometida for índice de que outras se seguirão, o titular do direito pode invocar a lesão efectuada como fundamento de justo receio de outras lesões idênticas, mantendo-se a actualidade do fundado receio [7].

c) a adequação da providência requerida para evitar a lesão (adequação), isto é‚ a natureza do perigo determina a natureza da providência, devendo a mesma ser idónea para assegurar a conservação do stato quo de facto e de direito relativamente a uma situação da qual resultam interesses que o direito protege [8].
Isto significa igualmente que a providência cautelar requerida não pode estar abrangida por qualquer dos outros processos cautelares especificados, do Capítulo II, do Título IV, do Livro II, do CPC, só assim se mostrando assegurado o seu carácter subsidiário.

d) e não ser o prejuízo resultante da concessão da providência superior ao dano que com ela se pretende evitar (proporcionalidade), isto é, na presença de dois interesses em conflito deve o julgador sacrificar o interesse menor em benefício do interesse maior [9].
Contudo, a lei basta-se aqui com uma mera superioridade, não exigindo que a mesma revista qualquer grau (v.g. excesso considerável).
Precisa-se, porém, que a «proporcionalidade entre o benfício concedido e o prejuízo causado com a decretação da providência (…) funciona como um pressuposto negativo, ou seja, a sua não verificação impede a concessão da tutela cautelar. Nestes termos, não constitui facto essencial à procedência do pedido cautelar do requeente, constituindo antes exceção peremptória cujo ónus da prova pertence ao requerido» (Rita Lynce de Faria, A Tutela Cautelar Antecipatória No Processo Civil Português. Um difícil equilíbrio entre a Urgência e a Irreversibilidade, Universidade Católica Portuguesa, Junho de 2016, pág. 110, com indicação de doutrina e jurisprudência conformes).
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4.1.1.2. Pressuposto geral
Lê-se no art.º 364.º, n.º 1, do CPC, que, excepto «se for decretada a inversão do contencioso, o procedimento cautelar é dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado como preliminar ou como incidente de acção declarativa ou executiva».
Logo, num juízo sobre a (in)viabilidade do procedimento, haverá ainda que atentar no respectivo carácter instrumental, face à acção principal.
Precisando-o, significa o mesmo que o procedimento cautelar «é um instrumento ao serviço da acção judicial a que se encontra associado, com o propósito de garantir a utilidade da respectiva decisão. Daqui decorre que a acção cautelar não constitui um fim em si mesma. Constitui apenas um meio, um instrumento, que permite alcançar a utilidade da decisão, objecto de outro processo, a que se encontra acoplada» (Rita Lynce de Faria, A função instrumental da tutela cautelar não especificada, Universidade Católica Editora, 2003, págs. 34-35, com bold apócrifo).
Assim, e «uma vez que o processo cautelar nasce para ser posto ao serviço dum processo principal, a fim de dar ensejo a que este processo siga o seu curso normal sem o risco da decisão final chegar tarde e ser, por isso, ineficaz, vê-se claramente que a função do processo cautelar é nitidamente instrumental; o processo cautelar é um instrumento apto a assegurar o pleno rendimento do processo definitivo ou principal. Não satisfaz, por isso mesmo, o interesse da justiça; não resolve definitivamente o litígio; limita-se a preparar o terreno, a tomar precauções para que o processo possa realizar completamente o seu fim» (Alberto dos Reis, BMJ, n.º 3, págs. 31 a 34, com bold apócrifo).
Compreende-se, por isso, que se afirme que: as providências cautelares não constituem meio adequado para se criarem e definirem direitos, visando tão só acautelar e proteger os que já existem [10]; e, a não ser assim, a providência substituir-se-ia à acção adequada para obter tal efeito [11].
A referida instrumentalidade perante a acção principal ocorre: quer quanto ao objecto, na medida em que o juiz não pode «alocar ao requerente uma vantagem excedente dos limites do que, a título principal, lhe poderia ser acordado»; quer quanto à sua utilidade, porquanto não se pode retirar, por esvaziamento, utilidade à decisão final ou atacar esta, ou seja, a medida cautelar não pode antecipar a medida final: o tribunal deve decretar a medida sem pré-julgar o fundo da questão (Rui Pinto, A questão de mérito na tutela cautelar, Coimbra Editora, 2009, págs. 235-236, com bold apócrifo). Se o efeito útil que o autor (requerente do procedimento) pretende se revelasse autonomamente cumprido por via do procedimento cautelar, este desenvolveria uma função substitutiva e não de garantia do processo principal [12].
Deste modo, constitui jurisprudência reiterada que uma providência cautelar em regra (isto é, fora dos casos excepcionais - expressa e mais ou menos recentemente - admitidos por lei para o efeito) não pode substituir o efeito jurídico que dimanará da acção principal: terá sempre efeitos provisórios, cuja subsistência exige a confirmação daquilo que sumariamente se apure relativamente aos requisitos específicos das providências cautelares. De outro modo, estaria descoberto o sistema de, por esta via, dar imediata e directa realização ao direito substancial e alcançar-se a satisfação desse direito que só através da respectiva acção principal se deve concretizar [13].
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4.1.1.3. Indeferimento liminar (manifesta improcedência)
Lê-se no art.º 590.º, n.º 1, do CPC, que, nos «casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente».
Pretende-se, deste modo, salvaguardar o princípio da economia processual, defendendo-se simultaneamente o réu: não «vale a pena prosseguir com a acção, sujeitando o réu a incómodos e a despesas, se pela simples leitura da petição o juiz se persuadir (…) que a pretensão do autor não pode prosperar» (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pág. 258).

Contudo, face ao momento precoce em este julgamento antecipado de lide é feito (em que o réu ainda nem sequer foi autorizado a contraditar a pretensão do autor, ao contrário do que sucede com o conhecimento imediato do mérito da causa em sede de despacho saneador) [14], o mesmo apenas se justifica quando seja evidente - manifesta - a inutilidade de qualquer instrução ou discussão posterior, isto é: quando seja inequívoco (indiscutível) que a acção nunca poderá proceder, qualquer que seja a interpretação jurídica que se faça da lei em vigor (tendo nomeadamente em conta os diferentes contributos da doutrina e da jurisprudência) [15], ou a sua concreta aplicação ao caso sub judice (por insuprível falta alegação de factos necessários para a preenchimento dos requisitos de procedência da acção) [16].
Com efeito, estando nomeadamente omissa a alegação de um núcleo de factos essenciais e estruturantes da causa de pedir [17], a petição ou o requerimento inicial serão ineptos, determinando a nulidade de todo o processo (art.ºs 186.º, n.º 1 e n.º 2, al. a), do CPC).
Compreende-se, por isso, que se afirme que os «casos de indeferimento liminar correspondem a situações em que a petição apresenta vícios formais ou substanciais de tal modo graves que permitem prever, logo nesta fase, que jamais o processo assim iniciado terminará com uma decisão de mérito ou que é inequívoca a inviabilidade da pretensão apresentada pelo autor» (António Santos Abrantes Geraldes, Temas da reforma de processo civil, I Volume, Coimbra, Almedina, 1997, Tomo I, págs. 225-227).
Ficarão, assim, de fora do indeferimento liminar todas aquelas situações em que as deficiências notadas sejam estritamente formais ou de natureza secundária, já que, perante o seu suprimento, não se corre o risco de se reabrir a possibilidade de reformulação substancial da própria pretensão ou impugnação e dos termos em que assentam (conforme art.º 590.º, n.º 6, do CPC [18], e art.º 265.º, do mesmo diploma [19]).
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Mais se lê, no art.º 226.º, n.º 4, al. b), do CPC, que a «citação depende (…) de prévio despacho judicial» nos «procedimentos cautelares».
Defende-se, por isso, pacificamente que nesta sede é possível o indeferimento liminar da pretensão naqueles ínsita, por manifesta improcedência, nos termos discriminados supra [20].
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4.1.1.4. Despacho de aperfeiçoamento
Lê-se no art.º 552.º, n.º 1, al. d), do CPC, que «na petição, com que propõe a acção, deve o autor expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à acção».

Mais se lê, no art.º 572.º, als. b) e c), do CPC, que, na «contestação deve o réu expor as razões de facto e de direito por que se opõe à pretensão do autor», e «expor os factos essenciais em que se baseiam as excepções deduzidas, especificando-as separadamente, sob pena de os respectivos factos não se considerarem admitidos por acordo por falta de impugnação».      Deverá igualmente «tomar posição definida perante os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo autor» (art.º 574.º, n.º 1, do CPC).
Lê-se ainda, no art.º 590.º, n.º 2, al. b), e n.º 4, do CPC, que, findos «os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados», nomeadamente convidando «as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido».
Precisando o que sejam articulados insuficientes ou imprecisos, são aqueles que, reunindo em termos de exposição de facto os requisitos mínimos - e, por isso, não sendo ineptos (v.g. por falta de alegação de factos essenciais e estruturantes que consubstanciem a causa de pedir, ainda que complexa [21]) -, não permitem, porém, a procedência da acção, por insuficiência, deficiência ou imprecisão, vacuidade, ambiguidade ou incoerência, da respectiva matéria de facto.
Com efeito, só pode ser mandado aperfeiçoar aquilo que seja pré-existente, isto é, uma prévia alegação de factos essenciais, ainda que insuficiente ou imprecisa. Se, pelo contrário, essa perfunctória ou ambígua alegação não chegou sequer a existir, a petição inicial é inepta (sendo os factos essenciais, a falta de um deles implica a incompletude da causa de pedir, já que esta falta e aquela essencialidade comprometem o conhecimento do mérito da causa), com a consequente nulidade de todo o processo (nos termos do art.º 186.º, n.º 1 e n.º 2, al. a), do CPC); e, por isso, está excluída qualquer possibilidade de prolação de um despacho de aperfeiçoamento [22].

Precisa-se ainda que este despacho de aperfeiçoamento, quando justificado, consubstancia um poder-dever do juiz, e não uma mera faculdade que possa, discricionariamente, exercer ou não exercer (assim se justificando a redação do art.º 590.º, n.º 4, do actual CPC - «incumbe ao juiz convidar as partes» - , face à redacção do art.º 508.º, n.º 3, do anterior CPC -  «pode o juiz convidar as partes») [23].
Logo, a omissão da devida prolação consubstancia uma nulidade, nos termos do art.º 195.º, n.º 1, do CPC (sendo, porém, discutível se apenas do processo ou da própria decisão que se profira de seguida); e, em regra, tida como de conhecimento não oficioso, tendo de ser arguida pela parte a quem aproveita.
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Defende-se, em sede de procedimentos cautelares, que também aqui é admissível a prolação de um despacho de aperfeiçoamento [24].
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4.1.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)
4.1.2.1. Falta absoluta de alegação de factos essenciais
4.1.2.1.1. «Probabilidade séria da existência de direito»
Concretizando, verifica-se que, tendo os Requerentes (AA e mulher, BB) proposto o presente procedimento cautelar comum contra o Requerido (CC), pediram que o mesmo fosse condenado a abster-se de uma série de acções sobre um prédio rústico deles próprios (nomeadamente, de nele entrar, circular e praticar quaisquer actos susceptíveis de lhe diminuir o valor), por desse modo «impedir o normal uso e fruição do referido prédio por parte» deles próprios.
Alegaram para o efeito terem-no adquirido, quer por contrato de compra e venda, quer por usucapião; e mostrar-se o mesmo registado em seu nome.

Dir-se-á, por isso, que, sendo indubitável que os Requerentes (AA e mulher, BB) pretendem aqui a tutela do seu direito de propriedade, alegaram factos essenciais susceptíveis de, uma vez provados, demonstrarem a probabilidade séria da sua existência (primeiro requisito de procedência da presente providência cautelar inominada). 
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4.1.2.1.2. «Fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável»
4.1.2.1.2.1. Lesão já consumada
Concretizando novamente, verifica-se que os Requerentes (AA e mulher, BB) invocaram como dano que lhes foi causado o ter o Requerido (CC), em 05 de Dezembro de 2023: entrado no seu prédio rústico, com dois tractores e um camião; ter cortado numa das suas extremidades 56 pinheiros de grande porte e 11 eucaliptos; ter-se apropriado destas árvores, removendo-as para lugar desconhecido; e ter destruído parte do muro de vedação e um dos marcos de pedra.
Mais alegaram que, mercê desta conduta, «o Requerido causou prejuízos aos Requerentes, os quais se traduzem na perda de todas as árvores existentes na parte do prédio afectada, na danificação do muro de vedação e do marco em pedra, na diminuição do valor do seu prédio e na impossibilidade de fruição e uso pleno do seu direito de propriedade».

Dir-se-á, assim, ser inegável que houve uma alegação idónea a caracterizar a violação do direito de propriedade dos Requerentes (AA e mulher, BB) e os danos resultantes da mesma; e que os mesmos foram por eles próprios expressamente considerados como correspondentes à perda das árvores cortadas, à danificação do muro de veação e do marco de pedra, à consequente desvalorização do seu prédio e à impossibilidade de fruição e pleno uso do mesmo.

Logo, e salvo o devido respeito por opinião contrária, a lesão do direito de propriedade cuja tutela provisória e urgente os Requerentes (AA e mulher, BB) aqui pretendem, e tal como ele próprios a descreveram, já ocorreu e se consumou, no próprio dia 05 de Dezembro de 2023.
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4.1.2.1.2.2. Fundado receio de novas lesões
Contudo, alegaram ainda os Requerentes (AA e mulher, BB) que, mercê dessa lesão já ocorrida e consumada, o «Requerido tem o claro objetivo de se apossar do prédio» deles próprios, «que nunca lhe pertenceu»; e, perante «a lesão já consumada, (…) receiam lesões que se avolumarão se não forem tomadas imediatas providências, designadamente que o Requerido introduza máquinas no referido prédio de molde a alterar a sua configuração, tal como terraplanagem, aterro ou outras».
Dir-se-á, porém, não terem alegado factos suficientes para, uma vez provados, permitirem afirmar que a lesão já consumada é índice de que outras se lhe seguirão; e/ou de ser fundado o seu receio de que as ditas lesões futuras ocorram.

Com efeito, tendo os factos aqui em causa ocorrido no dia 05 de Dezembro de 2023, sem que antes (nomeadamente, desde que adquiriram o prédio rústico em causa, em 14 de Março de 2008), ou depois, os Requerentes (AA e mulher, BB) tivessem dado notícia de outros idênticos, não se pode singelamente afirmar que esta inédita e concreta violação do seu direito de propriedade pressupõe, por sua natureza, que outras necessariamente ocorrerão.
Seria, por exemplo, o caso de ali ter sido iniciada qualquer de obra (v.g. terraplanagem, aterro, corte de árvores deixadas - total ou parcialmente - no local) que tivesse sido deixada manifestamente interrompida, isto é, por concluir, sem que a fase inicial, já executada comportasse em si mesma qualquer utilidade.
Ora, não é esse, manifestamente o caso do corte de árvores denunciado pelos Recorrentes (AA e mulher, BB), já que os mesmos afirmaram que foram todas removidas do local, consumando-se desse modo a actuação apropriativa do Requerido (CC) sobre elas; e igualmente não referiram o início ou preparação no local de qualquer obra de terraplanagem ou aterro.

Já quanto ao fundado receio dos Requerentes (AA e mulher, BB) de reiteradas violações do seu direito de propriedade, com a produção de novas lesões, dir-se-á que o enunciaram como mera desconfiança sua, sem a simultânea alegação de factos objectivos (concretos e positivos), susceptíveis de serem do mesmo modo avaliados, num alter e distanciado juízo (que, não exigindo um grau de certeza ou de realidade, assegurasse, porém, um prudente convencimento).
Com efeito, os Requerentes (AA e mulher, BB) não esclareceram (por meio de alegação idónea) se o Requerido (CC) é, ou não, proprietário de qualquer prédio contíguo ao deles próprios, contestando a exacta estrema de ambos (nomeadamente, na extremidade onde procedeu ao derrube do muro divisório e do marco de demarcação, e ao corte de árvores).
Desconhece-se, igualmente, se o Requerido (CC) actuou de molde a criar a justificada convicção de que reiterará a sua anterior conduta, nomeadamente por: reivindicar publicamente, ou tê-lo feito particularmente a outrem, o direito de propriedade, ou um direito real menor, sobre o prédio ou sobre uma sua parcela (v.g. aquela sobre a qual agiu), ou sobre as espécies florestais ali existentes; ter deixado visivelmente marcadas outras árvores no local (v.g. com tinta, com entalhe, com corte parcial de ramos); ter destruído intencionalmente o muro divisório ou marcos de demarcação, para além do que os Recorrentes (AA e mulher, BB) dizem ter resultado da mera circulação dos dois tractores e do camião usados («a circulação dos tratores e do camião provocaram a destruição de parte do muro de vedação e de um dos marcos de pedra»); ter procedido a qualquer substitutiva e alterada vedação e demarcação do mesmo; ter realizado preparativos para, ou ter mesmo iniciado obras de, movimentação de terras (v.g. terraplanagem, aterro); ou ter preparado, iniciado ou realizado obras de condução para o exterior do prédio de utilidades neles existentes (v.g. água, inertes).
Logo, nada na conduta imputada aos Requerido (CC) permite afirmar, objectivamente (para além de qualquer subjectiva desconfiança que, quem quer que seja, possa ter), que reiterará a sua antes inédita actuação violadora do direito de propriedade dos Requerentes.

Neste sentido depõe igualmente a participação criminal dos factos em causa, realizada pelos Requerentes (AA e mulher, BB), correndo agora contra o Requerido (CC) o inquérito com o NUIPC 1056/23...., do DIAP, Instância Local de ....
Admite-se, assim, que, se o mesmo agiu inicialmente de forma leviana, quiçá convicto de qualquer título bastante que o autorizasse para o efeito, ficou com o dito inquérito advertido da efectiva e jurídica oposição à sua acção. Nessa lógica se poderá, igualmente, ler a sua inércia na contestação destes autos, uma vez citado para o efeito.

Logo, e salvo o devido respeito por opinião contrária, os Requerentes (AA e mulher, BB) não alegaram nos autos factos essenciais que, uma vez provados, permitissem afirmarem terem um  fundado receio de que o Requerido (CC) venha a actuar de forma idónea a lesar o seu direito de propriedade (para além da sua pretérita actuação e da lesão já consumada do dito direito), justificando-se, por isso, a tutela provisório e urgente do mesmo.
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4.1.2.1.2.3. Gravidade e difícil reparabilidade de novas lesões
Contudo, e ainda que outro fosse o juízo deste Tribunal ad quem (isto é, que, por natureza, a lesão já consumada fosse indício de que outras se lhe seguiriam, ou que fosse fundado o receio dos Requerentes de que assim sucedesse), ficaram ainda por alegar factos que permitissem afirmar que tais danos (futuros e eventuais) são graves e dificilmente reparáveis, isto é, que a natural demora de uma acção definitiva (de que o presente procedimento cautelar comum será necessariamente dependente) poderá inviabilizar a sua reparação, ou total reparação.

Começa-se por precisar (embora se tenha essa precisão quase por  desnecessária), que, quer o Tribunal a quo, quer este Tribunal ad quem, apenas se poderão valer para o efeito do que foi inicialmente alegado pelos Requerentes (AA e mulher, BB), e não também do que depois acrescentaram nas suas alegações de recurso.
Com efeito, e uma vez confrontados com o juízo do Tribunal a quo, de que «nada foi alegado que permita concluir que se tataria de uma lesão grave ou dificilmente reparável, pois a eventual alteração da configuração do terreno poderá ser revertida pelo Requerido, suportando este o custo correspondente», vieram, no recurso interposto, procurar contrariar este juízo, mas mediante a alegação de novos factos.
Lê-se, a propósito, no mesmo: «Sucede [adversativa ao juízo do Tribunal a quo] que, no terreno propriedade dos recorrentes, há algumas árvores (que não as referidas na extremidade do mesmo) que, tendo dezenas de anos (algumas centenárias), ainda que fossem substituídas por outras árvores novas a expensas do recorrido, jamais e em vida, os recorrentes as veriam do tamanho das que ainda lá se encontram e que não foram (ainda?!) cortadas pelo recorrido!!!»; e «Naturalmente, o receio de desconfiguração do terreno também foi invocado e não é de somenos importância, pois reconfigurá-lo, tal qual, pode tornar-se impossível, tudo dependendo do grau da lesão que se possa verificar e cujo receio é perfeitamente justificado face às atitudes já tomadas pelo recorrido».
Ora, a existência de árvores com dezenas de anos, e mesmo centenárias, cuja perda consubstanciaria para os Requerentes (AA e mulher, BB) um dano insusceptível de reparação, não foi oportunamente alegada; e igualmente não o foi a impossibilidade de recolocação do seu prédio no estado inicial, caso o mesmo fosse objecto de futuras e eventuais obras de movimentação de terras por parte do Requerido (CC).

Atendendo assim, e necessariamente, apenas às futuras e eventuais lesões invocadas oportunamente pelos Requerentes (AA e mulher, BB), e apelando ao critério objectivo de aferição da sua gravidade (natureza própria), consistem as mesmas na acrescida perda de árvores, na acrescida danificação do muro de vedação e de marcos divisórios e na alteração da configuração do prédio (por movimentação de terras, em terraplanagem ou aterro), tudo isto susceptível de lhe diminuir o valor e impossibilitando efectivamente os seus plenos uso e fruição.
Está-se, indiscutivelmente, perante danos causados sobre coisa (e não sobre pessoas), de natureza material (e não de natureza corporal ou moral); e, considerando a inicial alegação dos Requerentes (AA e mulher, BB), indiscutivelmente passíveis de ressarcimento através de um processo de reconstituição natural (v.g. replantação de árvores, reconstituição do muro de divisão, recolocação dos marcos de divisão, reposição da configuração inicial do terreno), ou de indemnização substitutiva (v.g. quanto ao valor das espécies arbóreas objecto de corte e apropriação).
Apreciando agora  gravidade e difícil reparabilidade das receadas futuras lesões pelo citério subjectivo (concretas possibilidades do requerido para suportar economicamente a reparação do direito do requerente), dir-se-á que nada foi alegado pelos Requerentes (AA e mulher, BB) relativamente à condição económica do Requerido (CC), nomeadamente quanto à sua capacidade, ou incapacidade, para  vir a custear a realização dos trabalhos necessários à reconstituição natural, e/ou para vir a pagar a indemnização por sucedâneo, em que seja condenado.

Logo, e salvo o devido respeito por opinião contrária, os Requerentes (AA e mulher, BB) não alegaram factos essenciais susceptíveis de, uma vez provados, demonstrarem o carácter grave e dificilmente reparável da lesão (futura e eventual) que receia ser infligida ao seu direito de propriedade.
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Concluindo, e tal como o ajuizou o Tribunal a quo, por falta de idónea alegação de factos essenciais não seria verificável nos autos o segundo requisito de procedência da presente providência cautelar inominada, isto é, o fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito de propriedade invocado. 
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4.1.2.2. Insusceptibilidade de suprimento (aperfeiçoamento) da falta absoluta de alegação de factos essenciais
Dir-se-á, ainda, que, estando em causa a omissão de alegações de factos essenciais, também não seria possível a emissão, inicialmente pelo Tribunal a quo e agora por este Tribunal ad quem, de um qualquer despacho de aperfeiçoamento.

Com efeito, sendo complexa a causa de pedir do presente procedimento cautelar inominado, impunha-se que, relativamente a cada um dos respectivos requisitos de procedência, os Requerentes (AA e mulher, BB) tivessem alegado os factos essenciais idóneos ao respectivo preenchimento; e, conforme se deixou já antes detalhadamente explicado, não o fizeram.
Sendo assim, e quanto aos concretos requisitos em falta, não se trataria de mandar aperfeiçoar uma inicial alegação insuficiente ou ambígua, mas sim de suprir a sua total ausência; e, para esta, a consequência legal imperativa é de manifesta improcedência.
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Deverá, assim, decidir-se em conformidade, pela improcedência do primeiro fundamento do recurso em apreciação (relativo ao indeferimento liminar, por manifesta improcedência, do procedimento cautelar comum em apreciação).
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4.2. Valor da acção
4.2.1.1. Critério geral de determinação
Lê-se no art.º 296.º, do CPC, que a «toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido» (n.º 1), e ao qual se atende «para determinar a competência do tribunal, a forma do processo de execução comum e a relação da causa com a alçada do tribunal» (n.º 2), contribuindo ainda para a determinação do valor da taxa de justiça a pagar pelas partes (n.º 3).

Enunciando o citério geral definidor do que seja esta «utilidade económica imediata do pedido», lê-se no art.º 297.º, n.º 1, do CPC que, se «pela ação se pretende obter qualquer quantia certa em dinheiro, é esse o valor da causa», enquanto «se pela ação se pretende obter um benefício diverso, o valor da causa é a quantia em dinheiro equivalente a esse benefício».
Logo, o valor da causa é função do seu objecto, isto é, do pedido deduzido pelo autor, do efeito jurídico que o mesmo pretende obter com a acção (art.º 581.º, n.º 3, do CPC); e afirma-se como princípio fundamental que «Valor da causa igual a valor do pedido expresso em moeda legal» (Professor José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 3.º, Coimbra Editora, Limitada, Coimbra, 1946, pág. 591).
Contudo, enquanto que no primeiro caso (em que se pretende obter quantia certa em dinheiro) o valor da acção é necessariamente igual ao montante do pedido, não podendo o tribunal atribuir à causa valor diverso, nem por sua iniciativa, nem por vontade das partes (n.º 1 do art.º 297.º do CPC), no segundo caso (em que se pretende obter um benefício diverso de quantia certa em dinheiro), ter-se-á que atender simultaneamente ao pedido e à causa de pedir, para se verificar qual a utilidade económica imediata que o autor pretende obter, isto é, qual o benefício, expresso em dinheiro, que corresponde à sua pretensão [25].
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4.2.1.2. Critério especial (de determinação) - Prejuízo que se quer evitar
A par do referido critério geral de determinação do valor da causa («a utilidade económica imediata do pedido»), a lei fornece ainda critérios especiais, prevalentes, aplicáveis sempre que o objecto do processo não seja uma quantia monetária ou algo equivalente (facilitando desse modo a concretização ou adaptação do dito critério geral).
Lê-se, a propósito, no art.º 304.º, n.º 3, al. d), do CPC, que o «valor dos procedimentos cautelares é determinado», «nas providências cautelares não especificadas, pelo prejuízo que se quer evitar».
Mais se lê, no art.º 302.º, n.º 1, do CPC, que se «a ação tiver por fim fazer valer o direito de propriedade sobre uma coisa, o valor desta determina o valor da causa».
Assim, nas acções reais «(e também nas ações possessórias), isto é, naquelas em que se pretende fazer valer um direito real de gozo sobre uma coisa, o valor da ação é definido pelo objeto do próprio direito real. Tratando-se de fazer valer o direito real pleno (direito de propriedade), o valor da coisa sobre que incide o direito determina o valor da ação (nº 1). Tratando-se de um direito real limitado (usufruto, uro e habitação, superfície, direito real de habitação periódica, servidão predial), o valor da ação depende do conteúdo e da duração provável do direito feito valer (nº 4)».
Contudo, o critério referido «terá ainda de ser ajustado nos casos em que o litígio gira apenas em torno de uma parcela do prédio, o que ocorre, por exemplo, em ações de demarcação ou em ações de reivindicação de uma parcela de terreno. Atenta a desatualização das matrizes prediais, são pouco fiáveis os valores delas constantes, o que pode justificar a realização do arbitramento referido no art. 309º» (António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires e Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Almedina, Setembro de 2018, pág. 351) [26]
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4.2.1.3. Fixação oficiosa
Lê-se no art.º 306.º, do CPC, que compete «ao juiz fixar o valor da causa, sem prejuízo do dever de indicação que impende sobre as partes» (n.º 1), devendo em regra fazê-lo «no despacho saneador» (n.º 2).
Reitera-se aqui a solução introduzida pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, na redacção que conferiu então ao art.º 315.º do anterior CPC, impondo doravante ao juiz que fixasse o valor da causa: verificou-se que a mesma era, na esmagadora maioria dos casos, deixada simplesmente ao acordo expresso ou tácito das partes; e que estas eram cúmplices na atribuição de um valor que, permitindo embora o recurso ordinário, mantinha a base de tributação processual nos mínimos, resultando sempre ou quase sempre na fixação de um valor desfasado da realidade (Ac. da RC, de 26.11.2013, Henrique Antunes, Processo n.º 9/11.9TBTCS-C.C1).
 Assim, a «regra da fixação obrigatória do valor da causa pelo juiz foi claramente assumida como uma das medidas inseridas no "desígnio de racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça" (cfr. preâmbulo do citado DL 303/2007). O objectivo, no fundo, foi, pois, o de controlar efectivamente o valor da causa, em muitos casos desfasado da realidade e indicado pelas partes em função do mínimo necessário para aceder ao tribunal superior (sob pena de a alteração das alçadas não ter qualquer efeito útil na aludida racionalização)». Atribuiu-se, por isso, «ao juiz o poder-dever de fixar o valor da causa, mesmo quando o valor aceite pelas partes, tácita ou expressamente, não esteja em "flagrante oposição com a realidade"» (Ac. da RP, de 26.01.2012, Pinto de Almeida, Processo n.º 5978/08.3TBMTS.P1, com bold apócrifo) [27].
Pretendeu-se, deste modo, «evitar a manipulação do valor processual, nuns casos (aumento), para potenciar a recorribilidade das decisões em diversos graus, noutros casos (redução), para evitar o pagamento das taxas de justiça legalmente devidas. Ora, acima dos interesses das partes foi colocado o interesse do sistema de administração da justiça, que passa por assegurar o pagamento das taxas de justiça que correspondam efetivamente à aplicação dos critérios legais, mas que se entende também a outros campos, onde domina a racionalização dos recursos cuja admissibilidade dependa do (correto) valor processual ou da sucumbência (art. 629º, nº 1)» (António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires e Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Almedina, Setembro de 2018, pág. 355).

Mais se lê, no art.º 308.º, do CPC, que, quando «as partes não tenham chegado a acordo ou o juiz o não aceite, a determinação do valor da causa faz-se em face dos elementos do processo ou, sendo estes insuficientes, mediante as diligências indispensáveis, que as partes requererem ou o juiz ordenar»; e lê-se, no art.º 309.º, do CPC, que, se «for necessário proceder a arbitramento, é este feito por um único perito nomeado pelo juiz, não havendo neste caso segundo arbitramento».
Compreende-se esta limitação, tendo em conta que nos encontramos perante um mero incidente da instância.
Logo, os «primeiros elementos a considerar para determinação do valor processual da causa ou do incidente são os constantes do processo, designadamente o núcleo fáctico da causa de pedir e a vertente do pedido, os elementos de prova, designadamente  acordo ou a confissão das partes,  e os documentos». Mas quando estes «elementos se revelarem insuficientes», actuará então o juiz, a requerimento das partes ou oficiosamente, podendo inclusivamente determinar a realização de um arbitramento, «poder-dever» que «só pode deixar de ser exercido quando a diligência em causa se revelar desnecessária ou inútil» (Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 5.ª edição, Almedina, Setembro de 2008, pág. 76).
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4.2.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)
Concretizando, e conforme desde logo decorre do seu petitório final, verifica-se que os Requerentes (AA e mulher, BB), com o presente procedimento cautelar comum, pretendiam prevenir a violação do seu direito de propriedade sobre prédio rústico, assim se justificando que o Requerido (CC) fosse «condenado a abster-se de, por si ou por interpostas pessoas, entrar, circular e praticar quaisquer actos sobre o identificado prédio», «de praticar quaisquer factos suscetíveis de diminuir o valor» do mesmo, por forma a não «impedir o [seu] normal uso e fruição (…) por parte dos requerentes».
Os Requerentes (AA e mulher, BB) atribuíram aos autos o valor de € 5.000,01, mas sem, porém, o justificar; e reiteraram essa omissão em sede do presente recurso, limitando-se a concluir que «o valor da causa deve manter-se, tal qual foi indicado pelos requerentes».
Contudo, e salvo o devido respeito por opinião contrária, não lhes assiste razão.

Com efeito, estando em causa a defesa do seu direito de propriedade sobre um prédio rústico, e na ausência de outra e distinta alegação da sua parte (particularizando e quantificando os eventuais danos que sobre ele o Requerido possa produzir) afigura-se correcto que o valor desse genérico prejuízo corresponde ao valor do dito prédio.
Estando o mesmo avaliado fiscalmente em € 2,39, das duas uma: ou o Tribunal a quo considerava que, atenta a manifesta desactualização da generalidade das matrizes prediais, o prédio devia ser objecto de avaliação, apenas para este efeito (de fixação do valor da causa); ou - ponderando a natureza urgente dos autos, o beneficiarem os Requerentes (AA e mulher, BB) de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos, e estar no caso dos autos assegurado o seu direito de recurso para o Tribunal da Relação independentemente do valor da causa (conforme art.ºs 370.º, n.º 2 e 629.º, n.º 3, als. b) e c), do CPC) - bastava-se com aquele valor.
Tendo optado por esta última solução, afigura-se a mesma justificada no caso concreto, face à ponderação referida
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Deverá, assim, decidir-se em conformidade, pela igual improcedência do segundo e remanescente fundamento do recurso em apreciação (relativo à fixação do valor da causa).
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V - DECISÃO

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pelos Requerentes (AA e mulher, BB), e, em consequência, em:

· Confirmar integralmente a decisão recorrida, que indeferiu liminarmente a presente providência cautelar inominada por eles intentada contra CC e lhe fixou o valor de € 2,39.
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Custas pelos Requerentes apelantes (art.º 527.º, n.º 1 e n.º 2, do CPC), sem prejuízo do benefício de apoio judiciário que lhes foi concedido.
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Guimarães, 04 de Abril de 2024.

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;
1.º Adjunto - José Carlos Pereira Duarte;
2.ª Adjunta - Alexandra Maria Viana Parente Lopes.


[1] «Trata-se, aliás, de um entendimento sedimentado no nosso direito processual civil e, mesmo na ausência de lei expressa, defendido, durante a vigência do Código de Seabra, pelo Prof. Alberto dos Reis (in Código do Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 359) e, mais tarde, perante a redação do art. 690º, do CPC de 1961, pelo Cons. Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, Vol. III, 1972, pág. 299» (Ac. do STJ, de 08.02.2018, Maria do Rosário Morgado, Processo n.º 765/13.0TBESP.L1.S1, nota 1 - in www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicação de origem). 
[2] Neste sentido, numa jurisprudência constante, Ac. da RG, de 07.10.2021, Vera Sottomayor, Processo n.º 886/19.5T8BRG.G1, onde se lê que questão nova, «apenas suscitada em sede de recurso, não pode ser conhecida por este Tribunal de 2ª instância, já que os recursos destinam-se à apreciação de questões já levantadas e decididas no processo e não a provocar decisões sobre questões que não foram nem submetidas ao contraditório nem decididas pelo tribunal recorrido».
[3] Sendo requisitos cumulativos, não se encontrando alegados todos os factos necessários e suficientes para a verificação de qualquer um deles, a providência não poderá proceder, ficando assim prejudicado o conhecimento da verificação dos demais, nos termos do art.º 608.º, n.º 2, do CPC.
[4] Neste sentido, Alberto dos Reis, BMJ, n.º 3, pág. 51.
Ainda Rita Lynce de Faria, A Tutela Cautelar Antecipatória No Processo Civil Português. Um difícil equilíbrio entre a Urgência e a Irreversibilidade, Universidade Católica Portuguesa, Junho de 2016, págs. 117 e 118, onde se lê, ao contrário do que sucede das acções «chamadas de “cognição plena”», «o requerente de tutela cautelar não necessita de fazer prova efetiva da existência do seu direito para que lhe seja concedida a providência requerida»: solução «diferente em que se exigisse um conhecimento pleno do direito prejudicaria a urgência imposta pelo periculum in mora e levaria a uma duplicidade de conhecimentos injustificado entre o procedimento cautelar e a ação principal. O conhecimento cautelar acabaria por constituir um pré-julgamento, em prejuízo da urgência do procedimento e a independência do juiz na ação principal». 
[5] Neste sentido: Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 3.ª edição reimpressão, Coimbra 1982, pág. 684 e 685; António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, III Volume, 5. Procedimento Cautelar Comum, Almedina, Abril de 1998, pág. 87; ou Marco Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares, 2.ª edição, Almedina, Fevereiro de 2016, págs. 210 a 215.
[6] Neste sentido, Rita Lynce de Faria, A Tutela Cautelar Antecipatória No Processo Civil Português. Um difícil equilíbrio entre a Urgência e a Irreversibilidade, Universidade Católica Portuguesa, Junho de 2016, onde a págs. 163 e163 refere que a «demonstração do grupo de facos que integram o receio de lesão, por se referir a uma ocorrência futura, implica necessariamente um nexo de causalidade presuntivo entre o ato criador do perigo e a lesão futura, sendo o primeiro um ato presente, ao contrário do segundo. Esta demonstração assente, assim, na prova dos factos base integrantes de uma presunção judicial fundada em máximas da experiência».
«Assim, e como bem exemplifica RUI PINTO, A questão de mérito na tutela cautelar, p. 593, “que (1) da colocação reiterada de vários anúncios de venda de um imóvel, presume-se, segundo as regras da experiência, que a venda de um imóvel, pelo vendedor, ocorrerá, salvo motivos de força maior; (2) da realização de obras num estabelecimento comercial até então encerrado, presume-se, segundo as regras da experiência, que vai ter lugar a abertura de um estabelecimento comercial concorrente com o autor, salvo motivos de força maior”».
[7] Neste sentido, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 3.ª edição reimpressão, Coimbra 1982, pág. 684.
Ainda Rita Lynce de Faria, A Tutela Cautelar Antecipatória No Processo Civil Português. Um difícil equilíbrio entre a Urgência e a Irreversibilidade, Universidade Católica Portuguesa, Junho de 2016, pág. 137, onde se lê que «alguns atos lesivos, ainda que já ocorridos, podem fazer temer a sua reiteração provável, de acordo com as regras da experiência, podendo constituir fundamento para uma intervenção cautelar eu impeça ou atenue a sua verificação. Assim, por exemplo, a ocorrência de atos de desvio de clientela poderá justificar uma intervenção cautelar no sentido de impedir que novos atos semelhantes venham a ocorrer, na pendência da ação principal. O mesmo acontecerá se estiver em causa a ocupação reiterada de um lugar de garagem pelo requerido, que cause ao requerente prejuízos graves e dificilmente reparáveis. A ocupação frequente daquele lugar, ainda que já tenha ocorrido, não pode considerar-se irrelevante para o efeito de considerar que é justificado temer pela reiteração dessas lesões».  
[8] Neste sentido, L. P. Moitinho de Almeida, Providências Cautelares Não Especificadas, Coimbra Editora, Limitada, 1981, pág. 19.
[9] Neste sentido, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 3.ª edição reimpressão, Coimbra 1982, pág. 678.
[10] Neste sentido, Ac. do STJ, de 21.04.1953, RLJ, 86, pág. 111
[11] Neste sentido, Ac. do STJ, de 14.06.1957, BMJ, n.º 68, pág. 542.
[12] Neste sentido, Lucinda D. Dias da Silva, Processo Cautelar Comum, Princípio do contraditório e dispensa de audição prévia do requerido, Coimbra Editora, 2009, pág. 135.
[13] Neste sentido: Ac. da RL, de 26.06.2008, Ana Luísa Geraldes, Processo n.º 5235/2008; Ac. da RL, de 01.10.2009, Ferreira de Almeida, Processo n.º 83/09; ou Ac. da RL, de 02.02.2010, Maria Rosário Barbosa, Processo n.º 1214/09.
[14] Enfatizando esta circunstância, Decisão Sumária, de 16.12.2015, José Eduardo Sapateiro, Processo n.º 20345/15.4T8LSB.L1-4, onde se lê que, «face à interpretação que é feita pela nossa melhor doutrina e jurisprudência relativamente à “manifesta improcedência do pedido” enquanto fundamento do despacho de indeferimento liminar que pode ser proferido no âmbito da ação declarativa com processo comum ou especial», há que ter bem presente que é prolatado «de forma unilateral e sem ter ouvido a parte contrária», antecipando um «julgamento final e definitivo do pleito», no momento em que o «julgador (…), em regra, se defronta pela primeira vez com as pretensões e correspondente causa ou causas de pedir que as sustentam e em que, numa apreciação necessária limitada e perfunctória (digamos assim), pondera acerca da verificação das condições de ação e pressupostos processuais reclamados pelo caso concreto, assim como da viabilidade de tais pedidos e fundamentos factuais e jurídicos».
[15] No mesmo sentido, na doutrina:
. António Santos Abrantes Geraldes, Temas da reforma de processo civil, III Volume, Coimbra, Almedina, 1998, pág. 154, onde se lê, que o «juiz deve reservar esta decisão apenas para os casos em que a tese propugnada pelo autor não tenha possibilidade de ser acolhida perante a lei em vigor e a interpretação que dela faça a doutrina e a jurisprudência».
.  José Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2013, pág. 56, nota 44, onde se lê que a «simples interpretação ou aplicação duma norma de direito que possa, nomeadamente segundo a doutrina ou a jurisprudência, ter mais de um entendimento não deve levar nunca ao indeferimento liminar».
Na jurisprudência:
. Ac. do STJ, de 05.03.1987, BMJ, n.º 365, pág. 562 - onde se lê que o indeferimento liminar por manifesta improcedência só será possível de proferir «quando a pretensão não tiver quem a defenda, nos tribunais, ou na doutrina, isto é, quando for evidente que a tese do autor não tem condições para vingar nos tribunais»;
. Ac. da RG, de 23.05.2019, José Alberto Moreira Dias, Processo n.º 2259/19.0T8BRG.G1 - onde se lê que o indeferimento liminar da providência «está reservado a situações em que ocorram exceções dilatórias insupríveis, de que o juiz possa conhecer oficiosamente, ou quando a tese do requerente não tenha qualquer possibilidade de ser acolhida perante a lei em vigor e a interpretação que dela faz a doutrina e a jurisprudência, sendo, por isso, o pedido manifestamente improcedente».
[16] Neste sentido, Ac. da RE, de 02.10,1986, CJ, Tomo IV, pág. 283, onde se lê onde se lê que o indeferimento liminar por manifesta improcedência só será possível de proferir quando «não houver interpretação possível ou desenvolvimento possível da factualidade articulada que viabilize ou possa viabilizar o pedido».     
[17] Entende-se por causa de pedir o «facto jurídico» de onde procede a pretensão dos autos (art. 581.º, n.º 4 do CPC).
Precisa-se, porém, que «quando se diz que a causa de pedir é o acto ou facto jurídico de que emerge o direito que o autor se propõe fazer valer, tem-se em vista, não o facto jurídico abstracto, tal como a lei o configura, mas um certo facto jurídico concreto, cujos contornos se enquadram na configuração legal». Logo, «há que repelir antes do mais a ideia de que a causa petendi seja a norma de lei invocada pela parte», já que a «acção identifica-se e individualiza-se, não pela norma abstracta da lei, mas pelos elementos de facto que converteram em concreto a vontade legal» (Professor Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume III, 4.ª edição, reimpressão, Coimbra Editora, Limitada, Coimbra, 1985, págs. 121 a 124, com bold apócrifo).
Precisa-se, ainda, que na causa se pedir contêm apenas os factos essenciais (tal como definidos no art.º 5.º, n.º 1, do CPC).
[18] Lê-se no art.º 590.º, n.º 6, do CPC que as «alterações à matéria de facto alegada, previstas nos n.ºs 4 e 5, devem conformar-se com os limites estabelecidos no artigo 265.º, se forem introduzidas pelo autor, e nos artigos 573.º e 574.º, quando o sejam pelo réu».
[19] Lê-se no art.º 265.º, do CPC,  que: na «falta de acordo, a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceita pelo autor, devendo a alteração ou ampliação ser feita no prazo de 10 dias a contar da aceitação» (n.º 1); o «autor pode, em qualquer altura, reduzir o pedido e pode ampliá-lo até ao encerramento da discussão em 1.ª instância se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo» (n.º 2); e é «permitida a modificação simultânea do pedido e da causa de pedir desde que tal não implique convolação para relação jurídica diversa da controvertida» (n.º 6).
[20] Neste sentido, na jurisprudência, Ac. do TC, de 22.04.1987, BMJ, nº 366, p. 234, onde se lê que o indeferimento liminar de providência cautelar não especificada depende da constatação de que, «face aos factos alegados pelo requerente, de modo algum pudesse ser atendida».
[21] Uma causa de pedir complexa é aquela em que a previsão da norma jurídica substantiva cuja tutela se pretende exige a alegação de um conjunto de factos jurídicos concretos, todos eles imprescindíveis para consubstanciarem a relação material controvertida invocada (e dos quais procede o efeito jurídico pretendido).
Assim, e nomeadamente: na acção de reivindicação ter-se-á que alegar o facto jurídico de onde nasce o direito de propriedade de que o autor se arrogue e, cumulativamente, a concreta ou histórica ofensa desse direito; e numa acção de indemnização por responsabilidade civil por acidente de viação ter-se-á que alegar, não apenas os factos jurídicos caracterizadores da dinâmica do acidente e os danos dele resultantes, como ainda todos aqueles que permitem a qualificação do facto lesivo como ilícito, e a sua imputação ao agente (ou em termos de culpa, ou em termos de risco).
[22] Neste sentido, pacífico (quer na doutrina, quer na jurisprudência), Ac. da RG, de 15.11.2018, Jorge Teixeira, Processo n.º 7144/16.T8BRG-I.G1, onde se lê que «o poder de mandar aperfeiçoar os articulados para serem supridas insuficiências ou imprecisões na exposição e concretização da matéria de facto alegada (art. 590º, nº4 do NCPC) tem de ser entendido em rigorosos limites, e isto porque este convite se realiza apenas quando existam as apontadas insuficiências ou imprecisões que possam ser resolvidas com esclarecimentos, aditamentos ou correcções, ou seja, anomalias que não ponham em causa, em absoluto, o conhecimento da questão jurídica e a decisão do seu mérito mas que possam facilitar que este conhecimento e decisão sejam realizados de forma mais eficaz.
Por decorrência, não é de convidar à correcção da petição inicial (nos termos do art. 590 nºs 2 al. b), 3 e 4 do CPC) quando a petição seja inepta nos termos do art. 186 do mesmo diploma uma vez que só um articulado que não padeça dos vícios mencionados neste último preceito pode ser objecto desse convite à correcção e isto porque se a parte declinar tal convite tal comportamento de inércia não obsta a que a acção prossiga os seus termos, contrariamente à consequência para a ineptidão que é a de determinar a nulidade de todo o processo».
Ainda: Ac. da RG, de 01.03.2018, José Flores, Processo n.º 850/16.6T8VCT.G1; Ac. da RL, de 07.11.2019, Manuel Rodrigues, Processo n.º 14013/17.0T8LSB.L1-6; Ac. da RP, de 21.11.2019, Paulo Duarte Teixeira, Processo n.º 20935/18.3T8PRT.P1; Ac. da RP, de 30.04.2020, Joaquim Moura, Processo n.º 639/18.8T8PRD.P1; Ac. da RG, de 28.10.2021, Maria dos Anjos Nogueira, Processo n.º 315/20.1T8PTB.G1; ou Ac. do STJ, de 07.06.2022, Manuel Capelo, Processo n.º 3786/16.7T8BRG.L1.S3.
[23] Neste sentido (embora nem sempre coincidindo quanto à concreta consequência da não emissão - quando devida - do despacho de aperfeiçoamento):
. na doutrina - Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Volume I, Almedina, Outubro de 2013, págs. 480-481; Rui Pinto, Notas ao Código de Processo Civil, Volume II, 2.ª edição, Coimbra Editora, Novembro de 2015, págs. 47 e 48; José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª edição, Almedina, Março de 2018, págs. 635 e 636; ou António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Almedina, Setembro de 2018, págs. 681 a 683.  
. na jurisprudência - Ac. da RL, de 20.03.2014, Isoleta Almeida Costa, Processo n.º 710/11.7TCFUN.L1-8; Ac. da RL, de 15.05.2014, Ezaguy Martins, Processo n.º 26903/13.4T2SNT.L1-2; Ac. da RG, de 19.06.2014, Isabel Rocha, Processo n.º 3552/12.7TBBCL.G1; Ac. da RP, de 26.02.2015, Pedro Martins, Processo n.º 5807/13.6TBMTS.P1; Ac. da RG, de 23.06.2016, António Beça Pereira, Processo n.º 713/14.0T8VRL.G1; Ac. da RG, de 26.01.2017, António Figueiredo de Almeida, Processo n.º 1927/14.8TBGMR.G1; Ac. da RE, de 26.10.2017, Ana Margarida Leite, Processo n.º 2929/15.2T8STR-A.E1; Ac. da RL, de 27.11.2018, Diogo Ravara, Processo n.º 1660/14.0T8OER-E.L1-7; ou Ac. da RP, de 11.01.2021, Mendes Coelho, Processo n.º 3163/19.8T8OAZ.P1.
[24] Neste sentido, para normas idênticas do anterior CPC, Ac. da RE, de 07.10.2009, Mata Ribeiro, CJ, 2009, Tomo IV, págs. 247-249, onde se lê que, «tendo em conta o alcançar dos objectivos preconizados pela reforma processual civil de 1996, o julgador deve usar da possibilidade que lhe foi conferida do convite ao aperfeiçoamento, em consonância com o disposto no arts. 265º nº 2 e 508º nº 2 e 3 do CPC, que muito embora sejam normas de carácter geral e não específicas das providências cautelares, estas não excluíam esta intervenção judicial, plenamente justificada pela necessidade de se assegurarem eficazmente os objectivos que através deles se pretendiam alcançar, sem quebra de determinados requisitos de ordem substancial ou formal».
[25] No mesmo sentido, Professor José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 3.º, Coimbra Editora, Limitada, Coimbra, 1946, pág. 593; José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 3.ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2014, pág. 386; Salvador da Costa, Os Incidentes da instância, 5.ª edição, Almedina, Setembro de 2008, pág. 21; ou Eurico Lopes-Cardoso, Manual dos Incidentes da Instância em Processo Civil, 3.ª edição, Livraria Petrony, Limitada, 1999, pág. 40.
Na jurisprudência, Ac. da RL, de 12.03.2013, Roque Nogueira, Processo n.º 82/12.2YHLSB-A.L1-7.
[26] No mesmo sentido, na doutrina:
. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, 3ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2014, pág. 596 - onde se lê que o «critério do valor da coisa carece de ser adaptado quando não está em litígio a totalidade dela, mas apenas uma parte ou fração, só ao valer desta se atendendo então».
. Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 5.ª edição, Almedina, Setembro de 2008, pág. 47 - onde se lê que, sendo «o valor da acção de reivindicação» o «da coisa reivindicada, ainda que o réu invoque, em contestação, a existência de algum contrato de arrendamento que a tenha por objecto mediato», «se apenas estiver em causa parte de uma coisa, ainda que se peça a declaração do direito de propriedade sobre toda ela, é o valor da parte em litígio que marca o valor processual em causa».
. Eurico Lopes-Cardoso, Manual dos Incidentes da Instância em Processo Civil, Livraria Petrony, Lda., Maio de 1992, págs. 54 e 55 - onde se lê que o «preceito tem, porém, que entender-se em termos hábeis, quer num caso, quer noutro caso. Pode muito bem suceder que o direito discutido, de propriedade ou de posse, respeite tão somente a uma parcela da coisa ou a uma fracção dela. Então o valor da causa terá de ser determinado, como é óbvio, não pelo valor de toda a coisa, mas pelo da parcela ou fracção em litígio». 
Na jurisprudência:
. Ac. da RC, de 11.07.2012, Freitas Neto, Processo n.º 286/10.2TBSPS-B.C1 -  onde se lê que não «é pelo facto de o autor pedir o reconhecimento da propriedade de todo o seu prédio que o valor da acção passa necessariamente a ser o de todo esse prédio. Se afinal o A. apenas pretende que se reconheça que certa faixa faz parte do seu prédio por força da linha divisória que o separa de outro, há um “contraste manifesto entre o pedido formulado pelo autor e o objectivo real da acção”». Logo, o «interesse do autor é, tão só, a resolução do litígio e este cinge-se à porção de terreno que é negada pelo réu. Quanto ao restante - isto é, quanto à propriedade do terreno restante do prédio do autor - não há qualquer diferendo a dirimir. Daí que não haja qualquer utilidade para o autor na declaração de tal extensão»; e, «uma vez fixado por arbitramento o valor da faixa de terreno controvertida, nos termos do art.º 318 do CPC, como já sucedeu, nada mais importa averiguar para o apuramento da utilidade da acção».
.  Ac. da RG, de 14.02.2013, Antero Veiga, Processo n.º 1226/11.7TBFAF-A.G1 -  onde se lê  que o «nº 1 do art. 311º do Código de Processo Civil, que estabelece ser o valor da acção determinado pelo valor da coisa quando a acção tem por fim valer o direito de propriedade, deve ser aplicado de forma hábil quando está em causa apenas uma parte da coisa”. É que, neste “caso, não há razão para o valor da acção corresponder ao valor da totalidade da coisa, mas apenas à parte em discussão, o que está em consonância, aliás, com a utilidade económica imediata do pedido a que alude o art. 305º, nº 1, do mesmo Código».
[27] No mesmo sentido, Salvador da Costa, Os Incidentes da instância, 5.ª edição, Almedina, Setembro de 2008, págs. 67 e 68.