DESPACHO DE SANEADOR
DESPACHO QUE PÕE TERMO AO PROCESSO
Sumário

I - A decisão do processo na fase do saneador-sentença só pode suceder quando, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, a matéria de facto não deixar dúvidas a ninguém sobre a sua procedência ou improcedência.
II - Se de acordo com as soluções plausíveis da questão e direito, a decisão final puder ser afetada com a prova dos factos controvertidos, que mostram algum relevo para a decisão, não se mostra justificado o julgamento antecipado da causa, devendo o juiz proceder ao prévio apuramento de todos os factos que interessem á correta e completa integração jurídica da questão a decidir.

Texto Integral

Proc. n.º 666/22.0T8AMT-M.P1

Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este -Juízo de Comércio de Amarante - Juiz 2


Juíza Desembargadora Relatora:
Alexandra Pelayo
Juízes Desembargadores Adjuntos:
Alberto Eduardo Taveira
Anabela Andrade Miranda



SUMÁRIO:
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Acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação do Porto:

1.RELATÓRIO:

A..., LDA., ... ... .47, com sede na Rua ..., ... ..., veio propor AÇÃO DE PROCESSO COMUM, contra a MASSA INSOLVENTE de B..., S.A.

Pede que, pela sua procedência:

a) Seja proferida sentença que produza os efeitos da promessa contida no contrato-promessa de compra e venda invocado, transmitindo-se para a Autora a propriedade do ativo objeto do mesmo –mediante o depósito, à ordem do Tribunal, do remanescente do preço em dívida, a saber: €1.310.000,00.

b) Seja o Autor notificado, previamente à prolação da sentença, para depositar o referido remanescente do preço em dívida.

c) Seja a Ré condenada a pagar à Autora, o montante de €23.484,59, correspondentes ao prejuízo que esta última sofreu, até à presente data, por força da imobilização do capital, imposta pelo incumprimento daquela.

d) Seja a Ré condenada a indemnizar a Autora, nos sobreditos termos, pelo prejuízo que a manutenção da imobilização do capital, causará a esta última, até definitiva transmissão do ativo objeto do contrato promessa em crise nos presentes autos.

Subsidiariamente, para o caso de se entender, não se realizar a escritura de compra e venda do ativo leiloado, mas antes ser considerado apenas resolvido o contrato, por incumprimento por parte da Ré, deve:

e) Ser declarado resolvido o contrato por incumprimento por parte da Ré assim como condenar a Ré a proceder ao pagamento do sinal em dobro no valor de 291.000,00€ e do valor da comissão paga à entidade leiloeira no valor de 89.482,50€ acrescido de juros que se cifram até à presente data em 3 .474,44€

f) Deverá ainda a Ré, ser condenada ao pagamento de juros desde a data da comunicação do email de 30/03/2023, da quantia de 1.310.000,00€, referente ao remanescente do preço para a aquisição do ativo leiloado, que se encontra alocado para o cumprimento da obrigação a que se comprometeu, que até á data se cifra em 15.504,66€,

Subsidiariamente, para o caso de se entender, não existir qualquer contrato:

g) Deve a Ré ser condenada a restituir todas as quantias que a A. transferiu para a concretização do negócio, no valor de 234.982,50€;

h) Condenar-se a Ré a pagar à A. a quantia 100.000,00€ (cem mil euros), a título de indemnização acrescido de juros de mora à taxa legal contados desde a citação até efetivo e integral pagamento;

Para tanto e em suma alegou que, na sequência da insolvência da sociedade B..., foi proposto pela Sra. AI, e deliberado pela Assembleia de Credores, a liquidação do património daquela sociedade.

A Sra. AI entendeu que essa liquidação deveria ser feita por recurso a uma entidade leiloeira.

Foi estabelecido um preço base de venda, bem como um preço mínimo.

No âmbito do leilão efetuado, com ampla divulgação, a Autora efetuou a licitação mais elevada e acima do preço mínimo.

A Autora foi notificada pela entidade leiloeira para depositar os 10% da licitação, bem como para pagar a comissão cobrada por aquela entidade pelos serviços prestados, o que fez.

A escritura não se realizou.

Como pedido principal, pretende que o negócio se cumpra, uma vez que estamos perante um verdadeiro contrato promessa.

Caso assim não se entenda, pretende ser compensada, nos termos acima adiantados, pelos prejuízos causados.

Citada, a ré apresentou contestação, defendendo-se alegando que, o valor da avaliação, e que correspondia ao valor base, era 1.524.270,00€.

A licitação da Autora situou-se abaixo do valor base.

Qualquer proposta abaixo do valor base carecia de autorização dos credores, como estava previsto no contrato de prestação de serviços celebrado entre a ré e a C... SA (D...), contrato este do conhecimento da autora.

A C..., SA, desempenhava apenas o papel de mediadora da venda através do leilão que promoveu, organizou e agendou, cabendo aos credores a decisão final da venda.

O Estabelecimento de Leilão, não tem quaisquer poderes para adjudicar o ativo no sentido de “transmitir a propriedade” a quem quer que seja, mormente quando o valor da venda fica, como ficou, abaixo do valor da avaliação.

Nem na substância, nem na forma, se encontra preenchido qualquer contrato de promessa de compra e venda entre a sociedade C... SA e a autora, muito menos entre a autora e a ré.

A venda em questão é uma venda sujeita à condição de aprovação dos credores, pelo que não pode a autora vir pedir a execução de um contrato que não existe, relativamente a uma licitação em leilão anulado por deliberação da assembleia de credores perante o tribunal e por este validada, por decisão transitada em julgado.

Conclui que não pode deixar de se conhecer da ausência de contrato promessa e do seu direito apenas à restituição do sinal em singelo no que à ré diz respeito e da ausência do direito à execução específica do contrato promessa cujo pedido registou.

Por fim, diz que, conforme resulta das condições do leilão, quaisquer quantias pagas pelo arrematante ser-lhe-ão devolvidas em singelo. De resto, os 10% entregues pela Autora após a licitação já lhe foram devolvidos pela Ré, sendo que as demais quantias terão de ser pedidas por esta junto da entidade leiloeira.

Deduz pedido reconvencional contra a Autora pedindo a condenação desta no pagamento dos prejuízos que a presente demanda lhe causa e que identifica.

Na réplica, a Autora pugna pela inadmissibilidade do pedido reconvencional apresentado.

Pede, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 316º do Código Civil, a intervenção principal da D..., MARKET PARTNERS DE C..., a citar na Rua ..., ... Porto, entidade a quem liquidou a remuneração pela venda efetuada.

Foi proferido despacho que não admitiu a intervenção da leiloeira.

Também a reconvenção não veio a ser admitida.

Veio a ser proferido saneador-sentença, com o seguinte dispositivo:

“Termos em que se decide julgar a presente ação totalmente improcedente, por não provada, e absolver a Ré dos pedidos.

Custas pela Autora.”

Inconformada, A..., Lda, não se conformando com sentença proferida, veio interpor o presente recurso, tendo apresentado as seguintes conclusões:

“A – Por razões que facilmente se intuem, não pode a recorrente conformar-se com a decisão prolatada;

B – A modalidade de venda, in casu, escolhida foi a “VENDA EM ESTABELECIMENTO DE LEILÃO”;

C – Daí decorrendo que, enquanto se mantiver em vigor o contrato que formalizou a sobredita escolha, a venda só pode ocorrer através da referida modalidade, mediante a intervenção da entidade mandatada para o efeito;

D – A menos que também se pretenda desconsiderar a escolha efetuada pela AI designada e as obrigações emergentes do contrato de prestação de serviços outorgado naquela decorrência, tanto mais que a dita modalidade de venda não se confunde com o concreto leilão, entretanto, realizado;

E – Por outro lado, desborda de sentido tudo quanto na sentença recorrida se reporta à aplicação –no caso concreto – do regime previsto no artigo 161.º do CIRE;

F – Como a própria sentença recorrida reconhece:

- A AI designada, no relatório a que se reporta o art.º 155 do CIRE, propôs a liquidação do património da insolvente – sublinha-se, de todo o património da insolvente, ou seja: da totalidade dos ativos que integram a Massa Insolvente, entretanto constituída;

- A dita proposta foi sufragada em competente assembleia de credores;

- A Sra. Administradora decidiu – sem a oposição de qualquer credor – concretizar a referida venda, através duma modalidade expressamente consignada no artigo 811.º do CPC, “Venda em Estabelecimento de Leilão”;

- A entidade contratada para o efeito, operacionalizou a referida venda, ou seja: a venda da totalidade do ativo apreendido em favor da Massa Insolvente, através de leilão eletrónico.

G – Ou seja, a Massa Insolvente, através do procedimento operacionalizado pela entidade encarregada, promoveu a venda da totalidade do ativo apreendido em favor da Massa Insolvente;

H – Obviamente, de acordo com o proposto no relatório da Sra. AI, devidamente sufragado pela Assembleia de Credores;

I – E as Condições Gerais do Leilão fixavam – como não -, como a própria sentença recorrida reconhece, as condições a que a proposta de venda, consubstanciada no Leilão promovido, estava sujeita;

J – Estipulando, designadamente, o valor mínimo de venda;

K – Ou seja, o valor pelo qual a Massa Insolvente estava disposta a vender;

L – Que, nos termos que ninguém pode ignorar, corresponde a 85% do valor base fixado;

M – Ora, como a própria sentença recorrida declara expressamente, a proposta da Autora (que foi a maior das licitações apresentadas) excedeu, de forma clara, o sobredito valor mínimo;

N – Noutras palavras: a Autora propôs comprar, nos termos e condições que a Ré propôs vender;

O – Ao contrário do que a sentença recorrida parece indiciar, não foi a encarregada de venda que vendeu o que quer que seja;

P – Resultando evidente que a mesma não tem competência para tanto;

R – Quem vendeu foi a Massa Insolvente;

S – A encarregada de venda (o Estabelecimento de Leilão designado para o efeito) limitou-se a operacionalizar o procedimento de venda – realizando o leilão – nos exatos termos que a Massa Insolvente determinou;

T – Conforme se viu, com a autorização prévia dos credores e com a aquiescência do Tribunal;

U – Nenhuma dúvida podendo subsistir que quando o licitante (com a licitação mais alta) apresenta uma proposta de compra que cumpre as exigências do vendedor (in casu, vertidas nas Condições Públicas do Leilão), estão irrevogavelmente emitidas as declarações negociais tendentes à transmissão pretendida;

V – Cuja concretização definitiva apenas não ocorre naquele momento (impondo o pagamento do preço e a entrega do ativo) em face da exigência legal de forma imposta para a transmissão de imóveis;

W – Resultando, ademais, evidente que as propostas contratuais consubstanciadas na realização do leilão (proposta de venda) e na licitação mais alta que exceda o valor mínimo fixado (proposta de compra) têm uma natureza irrevogável, nos termos do n.º 1, do artigo 230.º do Código Cível;

X – Sendo que o dito regime não é, em momento algum, afastado por qualquer solução especial do CIRE;

Y – Resumindo:

- A venda foi promovida pela Massa Insolvente, nos termos previamente aprovados pelos credores;

- O Estabelecimento de Leilão designado operacionalizou a venda nas referidas condições;

- A Autora, perante as condições de venda anunciadas, apresentou a licitação mais alta que satisfez as mesmas, designadamente, excedendo o valor mínimo de venda proposto;

- Resultando evidente que o procedimento de venda que se considera (com as propostas contratuais que o integram) ficou, naquela sequência, concluído.

Z – Bem se percebendo que a eficácia plena do mesmo não pode ser questionada;

AA – Até porque o mesmo não apresentou vício algum que pudesse contaminar a respetiva legalidade;

BB – Impondo dizer-se que mesmo que tal hipótese se tivesse verificado (e, como se disse, assim não aconteceu), era ao Tribunal (e só ao Tribunal) que competia anular / revogar o leilão realizado;

CC – Resultando absurda a asserção – de que a sentença recorrida também se socorre – segundo a qual a assembleia de credores anulou / revogou o leilão realizado;

DD – Sendo evidente que, como já se adiantou, a solução propugnada pela sentença que se contesta, contrariando integralmente o quadro legal aplicável, impõe a completa descredibilização dos procedimentos judicias de venda;

EE – Porquanto, como resulta evidente, transformou o leilão realizado em ato absolutamente inócuo e de nenhum efeito;

FF – Frustrando, sem fundamento, as legítimas expectativas da maior licitante, cuja proposta excedeu o valor mínimo de venda;

GG – E tudo com o ínvio propósito de garantir, no recato que só a negociação particular propicia, a aquisição do ativo a quem recusou (por razões que se não vislumbram) participar, de forma transparente, num procedimento público de venda; pontos da ordem de trabalhos da Assembleia de Credores, cuja deliberação tanto impressionou a sentença recorrida;

II – ATENTEMOS:

PONTO UM:

“A revogação do leilão eletrónico realizado na sequência da Assembleia de Credores de 05/01/2023, designadamente pela proposta apresentada pela A..., LDA. ser inferior ao valor base de venda.”.

PONTO DOIS:

“Autorizar a administradora de insolvência a abrir nova modalidade de venda por negociação particular com a sociedade E..., LDA., nomeadamente tendo em conta a proposta por esta apresentada, após o encerramento da modalidade de venda por leilão eletrónico.”.

JJ – O primeiro sinal de alerta é o reconhecimento de que o leilão realizado (e as condições a que o mesmo foi sujeito – até porque nunca foram postas em causa), tinha o respaldo de competente decisão da própria Assembleia de Credores, tomada em 05/01/2023;

KK – Resultando estranho que a sentença recorrida não tenha percebido que a autorização para a venda realizada, cuja necessidade tanto reclama, já estava, obviamente, concedida;

LL – Daí que se venha, sucessivamente, dizendo que a venda ocorrida, na sequência do leilão operacionalizado pela D..., foi efetuada pela Massa Insolvente, com a prévia aquiescência da Assembleia de Credores;

MM – O segundo é manifestamente mais impressivo;

NN – Segundo decorre do “ponto um” da ordem de trabalhos a pretendida revogação do leilão devia-se ao facto da proposta da Autora ter sido inferior ao valor base de venda;

OO – Sem prejuízo da já referenciada ausência de sustento da dita invocação – porquanto, conforme se vem dizendo, apenas faria sentido se reportada ao “valor mínimo de venda” -, sempre se poderia dizer que a maioria dos credores, desapontados com os resultados do leilão, pretendiam abrir uma nova frente de venda, com vista à máxima valorização dos ativos apreendidos;

PP – Ou seja, tendo percebido, pela apresentação da proposta após o encerramento do leilão, que era possível vender os ativos por valor superior, promoviam, por exemplo, a abertura de licitação presencial entre o autor da maior proposta no leilão e aquele que agora se mostrava disponível para a superar;

QQ – Ou seja, não obstante a ausência de fundamento legal (o procedimento escolhido foi o leilão e quem quisesse comprar tinha que participar no mesmo. Defender coisa diversa, constitui manifesto desrespeito pelos tribunais e pelos procedimentos judiciais de venda), sempre se compreenderia a dita opção na ótica da valorização dos ativos a liquidar que os credores não podem deixar de promover;

RR – Curiosamente – ou talvez não –, não foi esse o caminho trilhado pela maioria dos credores, porquanto, nos termos da deliberação apenas mandataram a Sra. AI para negociar, privada e exclusivamente, com a tal entidade que havia apresentado a proposta depois de encerrado o leilão;

SS – Ou seja, curiosamente – ou talvez não – o propósito da maioria dos credores nunca foi a verdadeira frutificação da liquidação em curso, mas antes e tão-só a garantia de que a adjudicação do ativo não escapava ao dito pretendente que, conforme se disse, deixou propositadamente (seguro da sua heterodoxa estratégia) encerrar o leilão para depois apresentar a sua proposta;

TT – Com o devido respeito, não se percebe como deu o Tribunal a quo guarida a tão impróprio comportamento;

UU – Na esteira do que se vem explicando, não o podia ter feito;

VV – A venda, tal como foi proposta no leilão realizado, foi promovida pela Massa Insolvente, com o devido respaldo dos credores e do Tribunal;

WW – Ou seja, ao contrário do que a sentença recorrida repetidamente consigna, a venda realizada foi devidamente autorizada;

YY – O quadro procedimental que parece subjazer ao entendimento do Tribunal a quo não pode merecer qualquer acolhimento;

ZZ – Sendo, ademais, arredio à lógica procedimental consignada na Lei;

AAA – Com efeito, se bem percebemos, o Tribunal a quo, considera viável o seguinte procedimento:

- A assembleia de credores cauciona a decisão de escolha da modalidade de venda, a saber: a Venda em Estabelecimento de Leilão;

- Mais cauciona a opção de concretização da venda através de leilão eletrónico;

- O leilão é realizado com integral respeito pelas condições impostas;

- A maior licitação efetuada, observa as ditas condições, excedendo, além do mais, o preço mínimo de venda;

- Todavia, encerrado o leilão, não pode considerar-se que o referido licitante tem direito à adjudicação do ativo;

- Porquanto, a venda deve voltar ao escrutínio dos credores que, eventualmente confrontados com uma nova proposta, efetuada depois de encerrado o leilão, por terceiro que não participou no mesmo, podem desconsiderar o procedimento desenvolvido, e adjudicar a quem, ostensiva e propositadamente, não cumpriu as regras estipuladas;

BBB – Com o devido respeito, o cenário efabulado não pode merecer reconhecimento num estado de direito;

CCC – Na verdade, a venda que se considera ficou materialmente concluída quando a proposta de compra da Autora cumpriu integralmente as respetivas condições;

DDD – As propostas contratuais das partes ficaram perfeitas e, nos termos sobreditos, insuscetíveis de revogação;

EEE – A transação apenas não ficou concluída – impondo a imediata entrega do ativo e o correspondente pagamento do preço – porque a transmissão de imóveis, no ordenamento jurídico português, depende da observância de forma mais solene: escritura pública ou documento particular autenticado;

FFF – Com efeito, as propostas contratuais consubstanciadas, respetivamente, na promoção do leilão e na apresentação da licitação mais elevada que exceda o valor mínimo de venda, têm um caráter absolutamente vinculativo;

GGG – E só não determinam automaticamente a transferência da titularidade dos ativos vendidos por força dos constrangimentos formais acima destacados;

HHH – Devendo, todavia, considerar-se que as ditas propostas contratuais – ainda que de modo sui generis – configuram um verdadeiro contrato promessa de compra e venda;

III – É evidente que se trata de contrato promessa com configuração atípica;

JJJ – Surpreendendo-se, todavia, no mesmo, todas as características essenciais do negócio em apreço;

KKK – Nomeadamente, a proposta de venda e a proposta de compra;

LLL – Encontrando-se a proposta de venda consubstanciada na promoção do leilão – em determinadas condições - por parte da Massa Insolvente;

MMM – Desde logo, sustentada na subscrição, com o dito propósito, do contrato de prestação de serviços celebrado com o Estabelecimento de Leilão encarregue da venda;

NNN – E a proposta de compra na apresentação da licitação mais alta que excedeu o valor mínimo de venda;

OOO - Podendo e devendo valer aqui a construção, doutrinal e jurisprudencialmente, desenvolvida a propósito do exercício do Direito de Preferência;

PPP – Cujos contornos, são cristalinamente desenhados pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no processo n.º 609/19.9T8FND.C1. S1, de 23/03/2021, em que, para além do mais, se prescreve expressamente: “A comunicação do obrigado feita ao preferente, não deixa de ser uma proposta vinculativa, quer o preferente a ela adira quer a rejeite. Se aderir consuma-se o contrato respetivo, se rejeitar ou nada disser, verifica-se a caducidade do direito do preferente… Em resumo, desde que os requisitos enunciados no n.º 1 do artigo 416.º do CC estejam preenchidos, ou seja, desde que a comunicação para preferência contenha os elementos necessários à decisão do preferente, aquela deve ser qualificada como uma proposta de contrato. Se este não estiver sujeito a forma (ou depender de formalidades a que a comunicação do obrigado à preferência e a resposta do preferente obedeçam), deve entender-se que a declaração de querer preferir feita pelo preferente aperfeiçoa o contrato (…). Caso a celebração do contrato dependa de requisitos formais que a comunicação do obrigado à preferência e a resposta do preferente não preencham, importa distinguir (…) Se a comunicação do obrigado à preferência e a resposta do preferente forem feitas em documento assinado (A., por exemplo, tendo-se comprometido a dar preferência a B. na venda de determinado imóvel, comunica-lhe, por carta, que projeta vendê-lo a C e indica as cláusulas da projetada venda; B., também por carta, responde que quer preferir), deve entender-se que se concluiu um contrato promessa (cfr. o artigo 410.º, n.º 2), com as respetivas consequências (…).” Sublinhado nosso.

QQQ – Resultando evidente que o caso dos autos reclama idêntico enquadramento jurídico;

RRR – Não podendo o dito enquadramento ser prejudicado pelo pendor formalista e construtivista da fórmula consignada na sentença que se contesta;

SSS – Que não permite a exigível adequação do regime legal à utilização corrente das novas tecnologias na operacionalização das vendas judiciais e extrajudiciais;

TTT – O que, no caso dos autos, conduz, além do mais, a uma solução profundamente injusta;

UUU – Obliterante das fundadas expectativas contratuais adquiridas pela ora Autora;

VVV - Aliás, a invocação da Ré / recorrida, quando consigna que não emitiu qualquer proposta contratual e que, nessa sequência, não está sujeita a qualquer vinculação contratual – que a sentença recorrida lamentavelmente sufraga – sempre constituiria, na pior das hipóteses, abuso de direito, o que desde já se invoca, para todos os efeitos legais atendíveis;

WWW – Consagra, cristalinamente, o artigo 334.º do Código Civil que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito;

XXX – Ora, no caso dos autos, a Ré, promoveu a venda de um ativo, com recurso a um leilão eletrónico;

YYY – Determinou as condições em que o leilão devia ocorrer, fixando, além do mais, o preço mínimo de venda;

ZZZ – A aqui recorrente participou no leilão, cumprindo as respetivas condições e apresentando a licitação mais alta que excedeu o valor mínimo de venda;

AAAA – Encerrado o leilão, a encarregada de venda – no estrito cumprimento do mandato que lhe foi atribuído pela Massa Insolvente, comunicou a adjudicação à aqui recorrente;

BBBB – Todavia, a aqui insolvente, na sequência dos dislates supra relatados, desconsidera em absoluto o procedimento de venda desenvolvido e declara não estar contratualmente vinculada à concretização da venda;

CCCC – Ora, admitindo – sem conceder – que a Ré tinha o direito de recusar à Autora a concretização da venda, o exercício do mesmo excederia largamente os limites impostos pela boa-fé e, nessa medida, constituiria abuso de direito, o que, reiterando o sobredito, desde já se invoca, para todo e qualquer efeito legal.

DDDD - Não parece despiciendo para uma perfeita interpretação e integração do negócio jurídico em causa, dizer que a senhora AI, em requerimento dirigido ao Meritíssimo Juiz do processo de insolvência a fls , considerou que a venda efetuada em leilão eletrônico, foi realizada com o respeito de todas as normas estabelecidas.

EEEE - Referiu no nº 12 desse requerimento: "Em face a tudo o acima exposto, furtando-se a Massa Insolvente â referida venda e à adjudicação dos bens apreendidos à E..., está a empresa A..., Lda, melhor licitante, em condições de intentar a competente ação judicial para cumprimento da referida obrigação".

FFFF - E no nº 14 desse requerimento refere: "...é a Administradora da Insolvência contra a adjudicação dos bens apreendidos (Lote 1) à E...".

GGGG - No nº 16 do mesmo requerimento pede: "Pelas razões aludidas a Administradora da Insolvência vem requerer expressamente a autorização desse Venerando Tribunal para consumar o negócio em apreço com a licitante A..., lda".

HHHH - A decisão do meritíssimo juiz face à pretensão deduzida foi a seguinte: "Atento o exposto e equacionando todas as questões mencionadas cabe à Sra. AI tomar a decisão quanto à questão suscitada".

IIII - Verifica-se que a Sra. AI não resistiu à pressão ilegítima e já referida sobre si exercida e atuou mal, não cumprindo o seu dever.

JJJJ - Não se pode objetar que tal facto não possa agora ser invocado, com efeito, e bem, o Meritíssimo juiz a quo, na motivação da matéria de facto, refere: " Ponderaram-se os autos principais de insolvência, concretamente ..."

LLLL - Tal facto também deveria ter sido ponderado, pois, no seu já referido despacho, a propósito do disposto no nº 3 do artigo 164 do CIRE, diz: "Sucede que não é este o cenário que se encontra desenhado nos autos. Com efeito, foram cumpridas todas as formalidades legais por parte da Sra Administradora. Na verdade, a mesma indicou logo em sede de relatório que a liquidação seria efetuada através de leilão eletrónico (de resto e como acima referido, a modalidade que a lei preferencialmente estabelece) não tendo havido oposição de quem quer que fosse, nomeadamente o credor hipotecário."

MMMM - E, nos termos do disposto no nº2, alínea c) do artigo 5º do CPC, - "...aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções." - tais factos devem ser tomados em consideração.

NNNN - É incompreensível, por contrária à razão, a decisão sobre o pedido subsidiário de restituição do valor da remuneração da entidade leiloeira, por considerar que a Autora liquidou a comissão devida de forma intempestiva e por sua conta e risco uma vez que a mesma ainda não era considerada adquirente, mas tão só, licitante ou proponente e conclui que a Ré em nada contribuiu para o pagamento efetuado e é alheia ao mesmo, devendo a questão ser resolvida no âmbito das relações estabelecidas entre a Autora e a entidade leiloeira.

OOOO - No sentido de evitar repetições, para responder a esta decisão, remete-se para as razões já acima aduzidas mas, sempre se dirá que mais elucidativo será responder às seguintes questões:

Atendendo ao facto de a Ré ter contratado a leiloeira que efetuou o leilão tendo procedido à venda dos bens, com o direito à comissão fixado no contrato, tem ou não direito à remuneração?; Quem tem de pagar essa remuneração, a Autora se a venda se considerar revogada pela Ré?; A leiloeira devolverá à Autora a comissão referida e, assim, não cobrar nada pelo seu trabalho?

PPPP - As respostas são inequívocas, podemos, pois, dizer que a referida decisão ilustra o absurdo da sentença em causa.

QQQQ - A sentença em mérito violou ou fez menos boa interpretação, do disposto nos artigos 230, nº 1, 236º, 239º, 334º e 830º do Código Civil, 816, nº 2 do Código de Processo Civil e artigos 17º e 164º do CIRE.

Termos em que deve ser dado provimento ao recurso, revogando- se na totalidade, a decisão recorrida nos moldes acima apontados como é de inteira Justiça”

A Ré MASSA INSOLVENTE de B... SA, veio responder ao recurso, pugnando pela sua improcedência, concluindo que:

“I- A venda dos autos está sujeita ao consentimento dos credores nos termos do n.º 1º do artigo 161º do CIRE.

II- No processo não foi constituída comissão de credores e só houve duas assembleias gerais uma em 05/01/2023, para apreciação do relatório a que se refere o artigo 156º do CIRE, portanto antes da liquidação e do leilão onde a recorrente apresentou a sua proposta, e cujas deliberações poderiam sempre ser revogadas ou modificadas em assembleia ulterior nos termos do n.º 6 do artigo 156º do CIRE e a de 4 de julho de 2023, onde foi negado o consentimento à venda que a apelante pretende que lhe seja feita.

III- Assim a deliberação dos credores sobre a venda que a apelante pretende que lhe seja feita foi precisamente no sentido de não a consentir, como está espelhado na ata da assembleia de 04/07/2023.

IV- Essa deliberação tal como as demais ali tomadas foram validadas pelo tribunal no despacho de 12/07/2023.

V- A pretensão da recorrente e suas alegações colidem com a lei , o direito e a realidade.

VI- Nenhuma censura merece a decisão recorrida.”

O recurso foi admitido.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II - OBJETO DO RECURSO:

Resulta do disposto no art.º 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, aqui aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1 a 3, do mesmo Código, que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso.

As questões decidendas consistem em saber:

-se a venda em leilão havia sido autorizada pela massa insolvente;

-se ocorre recusa da massa insolvente em celebrar a compra e venda, após a proposta da apelante ter sido aceite pela leiloeira no leilão realizado, geradora de responsabilidade contratual;

-se existe abuso de direito.

 

III - FUNDAMENTAÇÃO:

Com interesse para a decisão da causa, foi considerada assente a seguinte factualidade:

1.A B..., S.A. foi declarada insolvente em 16/11/2022, tendo sido, nessa sequência, nomeada Administradora de Insolvência a Exma. Sra. Dra. AA.

2.De acordo com o consignado no relatório elaborado à situação patrimonial da empresa, nos termos do art.º 155.º do CIRE, a Sra. AI propôs a liquidação do património da insolvente.

3. A sobredita proposta foi sufragada em competente assembleia de credores.

4. Nessa sequência, a Sra. Administradora decidiu concretizar a liquidação através da venda em estabelecimento de leilão, designando, para o efeito, a C..., S.A., que utiliza a designação comercial D...;

5. A dita D... organizou e realizou competente leilão destinado à venda da totalidade do acervo apreendido em favor da massa insolvente, consubstanciado no estabelecimento comercial detido pela insolvente (imóvel – prédio urbano, situado no Lugar ..., ..., da União de Freguesias ... e ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Lousada sob o n.º ...47 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...33 - e equipamentos industriais para a indústria de madeira).

6. De acordo com o expressamente consignado nas condições gerais do leilão o mesmo decorreria entre os dias 09 e 23 de março de 2023 e ao ativo objeto do mesmo foi atribuído um valor base de € 1.533.270,00 e um valor mínimo de €1.294.270,00.

7. O referido leilão foi objeto de divulgação.

8. A Autora apresentou uma proposta para a aquisição do ativo leiloado, no valor de €1.455.000,00.

9. A proposta da Autora foi a maior proposta apresentada.

10. O Estabelecimento de Leilão encarregado da venda enviou um email à Autora, em 24 de março de 2023, com o seguinte teor:

“Exmos. Senhores A....

Permitam-nos desde já felicitar V/Exas. Pela licitação vencedora do leilão “estabelecimento comercial e armazém industrial e equipamentos industriais para a indústria da madeira” da massa insolvente B..., SA”.

Nesta circunstância, o Estabelecimento Comercial é adjudicado nos termos das condições de venda que presidiu a este Leilão Eletrónico”.

Com vista à formalização do negócio, segue quadro dos valores a liquidar:



Agradecemos que o pagamento seja efetuado por transferência bancária para os seguintes Nibs, e que nos remetesse comprovativos.

-€145.500,00 – ...2- M.I. B....

- €178.965,00 – ...5- C.... SA.

11. No email referido em 10. o sobredito Estabelecimento de Leilão, informou a Autora para proceder ao pagamento dum sinal de 10% do valor global da venda e à liquidação da comissão devida.

12. Em 30.3.2023, a Autora procedeu aos seguintes pagamentos:

- €145.500,00 para a conta  ...2 da Massa Insolvente de B..., SA.

- €89.482,50 para a conta n.º  ...5 da C.... SA.

13. Em 11 de abril de 2023 a Autora remeteu um email à entidade leiloeira com o seguinte teor:

“...Uma vez que o sinal e a comissão estão pagos, queiram por favor marcar com o máximo de brevidade a escritura do imóvel”.

14. Na cláusula 2.3 do contrato de prestação de serviços formalizado entre a Massa Insolvente a C... SA (D...) designada “Objeto Do Contrato” – consta o seguinte:

“Embora a intermediação dos negócios seja da responsabilidade da D..., cabendo-lhe a respetiva direção e orientação exclusiva, a decisão final de venda dos bens caberá sempre e será da responsabilidade do AI, de acordo com as regras estipuladas no CIRE, ou seja, sob autorização da Assembleia de Credores, ou da Comissão de Credores.

15. Não foi formalizada a escritura de venda do imóvel licitado.

16. Em 4.37.2023 foi realizada assembleia de credores nestes autos com a seguinte ordem de trabalhos:

“Ponto um:

"a revogação do leilão eletrónico realizado na sequência da Assembleia de Credores de 05/01/2023, designadamente pela proposta apresentada por A..., Ldª, ser inferior ao valor base de venda".



Ponto dois:

"Autorizar a administradora de insolvência a abrir nova modalidade de venda por negociação particular com a sociedade E..., Ldª, nomeadamente tendo em conta a proposta por esta apresentada, após o encerramento da modalidade de venda por leilão eletrónico".

17. As deliberações acima referidas foram aprovadas pelos credores.

18. A Ré devolveu à Autora a quantia de 145.500,00€ por esta adiantados à massa insolvente na sequência da comunicação referida em

10., por transferência bancária efetuada em 18/7/2023 da conta da insolvente para a conta n.º ...-3 da autora na mesma entidade bancária.

19. Na cláusula 4 do contrato de prestação de serviços formalizado entre a Massa Insolvente a C... SA (D...) designada “Objeto Do Contrato” – consta o seguinte:

“As partes convencionam que o pagamento da remuneração pela prestação dos serviços ora contratadas será, salvo estipulação expressa em contrário, da responsabilidade dos adquirentes dos bens, conforme estipulado nas condições de venda da D..., sendo o valor da comissão, atendendo aos usos do mercado”.

20. A cláusula 22 das condições do leilão tem o seguinte teor:

“se por motivos alheios à Leiloeira a escritura de venda não for celebrada (por decisão do administrador ou por decisão judicial, nomeadamente, em caso de irregularidade ou outro vício que seja impeditivo ou torne inválido ou ineficaz a venda - quaisquer quantias pagas pelo arrematante ser-lhe-ão devolvidas em singelo”.

E foram julgados não provados os seguintes factos:

a) A Autora tenha pago à C.... SA. o valor de €178.965,00.

b) A Sra. AI enviou à Autora a seguinte comunicação:

“Exmo. Senhor BB

Representante na A..., Lda

Por referência ao processo de insolvência acima mencionado, serve o presente para comunicar a V. Exa. que por deliberação de assembleia de credores foi decidido a revogação do leilão eletrónico realizado, designadamente pela proposta apresentada por A..., Lda, ser inferior ao valor base de venda.

Em face do exposto, solicito que seja enviado à signatária, mesma via, os correspondentes dados bancários, a fim de ser devolvido o valor depositado na conta da massa insolvente a título de sinal.

Sem outro assunto de momento, subscrevo-me com a mais elevada consideração, encontrando-me disponível para eventual esclarecimento adicional.

IV - APLICAÇÃO DO DIREITO:

O processo de insolvência, tal como resulta do artigo 1º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo DL53/2004 de 18.3, com as alterações entretanto introduzidas, (a seguir designado CIRE), tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e na repartição do produto obtido pelos credores.

O processo de insolvência é um processo de execução universal, cuja finalidade se reconduz à satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência ou, quando tal não se afigure possível, através da liquidação do património do devedor insolvente e subsequente repartição do produto obtido pelos credores (art. 1º n.º 1 do CIRE).

Resulta assim do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que, transitada em julgado a sentença declaratória da insolvência e realizada a assembleia de apreciação do relatório, o administrador da insolvência procede com prontidão à venda de todos os bens apreendidos para a massa insolvente, independentemente da verificação do passivo, na medida em que a tanto se não oponham as deliberações tomadas pelos credores na referida assembleia (art. 158º, n.º 1 do CIRE).

E uma vez encerrada a liquidação da massa insolvente, segue-se a distribuição e rateio final, efetuados pela secretaria do tribunal quando o processo é remetido à conta e em seguida a esta (art. 182º, n.º 1 do CIRE).

No âmbito do Incidente de LIQUIDAÇÃO, a Sra. Administradora de Insolvência decidiu concretizar a liquidação através da venda em estabelecimento de leilão, designando, para o efeito, a C..., S.A., que utiliza a designação comercial D...;

A dita D... organizou e realizou competente leilão destinado à venda da totalidade do acervo apreendido em favor da massa insolvente, consubstanciado no estabelecimento comercial detido pela insolvente (imóvel – prédio urbano, situado no Lugar ..., ..., da União de Freguesias ... e ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Lousada sob o n.º ...47 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...33 - e equipamentos industriais para a indústria de madeira).

De acordo com o expressamente consignado nas condições gerais do leilão o mesmo decorreria entre os dias 09 e 23 de março de 2023 e ao ativo objeto do mesmo foi atribuído um valor base de € 1.533.270,00 e um valor mínimo de € 1.294.270,00.

O referido leilão foi objeto de divulgação pública, através dos canais habituais.

A Autora apresentou uma proposta para a aquisição do ativo leiloado, no valor de €1.455.000,00, que foi a maior proposta apresentada.

Aquele Estabelecimento de Leilão encarregado da venda enviou um email à Autora, em 24 de março de 2023, com o seguinte teor:

“Exmos. Senhores A....

Permitam-nos desde já felicitar V/Exas. Pela licitação vencedora do leilão “estabelecimento comercial e armazém industrial e equipamentos industriais para a indústria da madeira” da massa insolvente B..., SA”.

Nesta circunstância, o Estabelecimento Comercial é adjudicado nos termos das condições de venda que presidiu a este Leilão Eletrónico”.

Com vista à formalização do negócio, segue quadro dos valores a liquidar:…

Agradecemos que o pagamento seja efetuado por transferência bancária para os seguintes Nibs, e que nos remetesse comprovativos.

-€145.500,00 –  ...2- M.I. B....

- €178.965,00 –  ...5- C.... SA.

O mesmo Estabelecimento de Leilão, informou a Autora para proceder ao pagamento dum sinal de 10% do valor global da venda e à liquidação da comissão devida.

Em 30.3.2023, a Autora procedeu aos seguintes pagamentos:

- €145 500,00 para a conta  ...2 da Massa Insolvente de B..., SA.

- €89 482,50 para a conta n.º  ...5 da C.... SA.

Pese embora os pagamentos efetuados pela ora Apelante, não veio porém a ser formalizada a escritura de venda do imóvel licitado.

Isto, porque, em 4.37.2023 foi realizada uma Assembleia de Credores que deliberou "a revogação do leilão eletrónico realizado na sequência da Assembleia de Credores de 05/01/2023, designadamente pela proposta apresentada por A..., Ldª, ser inferior ao valor base de venda".

E "Autorizar a administradora de insolvência a abrir nova modalidade de venda por negociação particular com a sociedade E..., Ldª, nomeadamente tendo em conta a proposta por esta apresentada, após o encerramento da modalidade de venda por leilão eletrónico".

Parece-nos incontestável que esta decisão da Assembleia de Credores, ao “revogar o leilão eletrónico” e ao conceder nova autorização para ao Srª Administradora de Insolvência proceder a nova venda, traduz-se numa recusa de celebração do negócio jurídico, - escritura pública de compra e venda do estabelecimento comercial  - na sequência de, no leilão eletrónico, ter sido adjudicado à ora apelante “ …o Estabelecimento Comercial é adjudicado nos termos das condições de venda que presidiu a este Leilão Eletrónico”.

E de esta, com vista à formalização do negócio, ter liquidado os valores que lhe foram solicitados.

Dispõe o art.164º do C.I.R.E., o seguinte:

“1- O administrador da insolvência escolhe a modalidade da alienação dos bens, podendo optar por qualquer das que são admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente.”

Como ensinam C. Fernandes e J. Labareda,[1] a decisão quanto à escolha da modalidade de alienação dos bens integrantes da massa insolvente é cometida, em exclusivo, ao administrador da insolvência, segundo o seu critério e tendo em conta o que entenda ser mais conveniente para os interesses dos credores.

É o administrador da insolvência quem escolhe a modalidade de venda. Ele pode contratar auxiliares, remuneradamente, em vista do benefício dos credores.

A venda da massa insolvente levada a efeito em estabelecimento de leilões no âmbito de uma insolvência, não é uma venda extrajudicial, mas sim judicial.

Caberá assim ao Administrador Judicial, no âmbito das competências que lhe são atribuídas, (nomeadamente no âmbito do art. 164º do CIRE), necessitando do auxílio de terceiros, para dessa forma conseguir vender melhor o bem, em benefício dos credores, acordar com a leiloeira os termos da remuneração desta enquanto sua auxiliar na venda.

Se o administrador contrata uma leiloeira, os atos da leiloeira inserem-se no âmbito duma relação de comissão e, por isso, são imputáveis ao comitente administrador.

Ora, defende a recorrente que:

- A venda foi promovida pela Massa Insolvente, nos termos previamente aprovados pelos credores;

- O Estabelecimento de Leilão designado operacionalizou a venda nas referidas condições;

- A Autora, perante as condições de venda anunciadas, apresentou a licitação mais alta que satisfez as mesmas, designadamente, excedendo o valor mínimo de venda proposto;

- Resultando evidente que o procedimento de venda que se considera (com as propostas contratuais que o integram) ficou, naquela sequência, concluído.

– Bem se percebendo que a eficácia plena do mesmo não pode ser questionada;

– Até porque o mesmo não apresentou vício algum que pudesse contaminar a respetiva legalidade;

 – Impondo dizer-se que mesmo que tal hipótese se tivesse verificado (e, como se disse, assim não aconteceu), era ao Tribunal (e só ao Tribunal) que competia anular / revogar o leilão realizado.

Vejamos.

Como diz Maria do Rosário Epifânio,[2] pg. 341, “há um conjunto de atos jurídicos que assumem particular relevo para o processo de insolvência e, por isso, cuja prática depende do consentimento da comissão de credores, ou se esta não existir da assembleia de credores. (art. 161º nº 1). A atribuição de especial relevo a um ato depende dos riscos a ele associados, das suas repercussões na tramitação ulterior do processo, das perspetivas de satisfação dos credores da insolvência e da suscetibilidade de recuperação da empresa (nº 2 do art. 161º).

A lei conte um elenco (não exaustivo) de atos de especial relevo.

No despacho sob recurso, o tribunal a quo entendeu ser lícita a recusa de celebração da escritura pública por parte da massa insolvente, por se tratar de venda que carecia de consentimento da Assembleia de Credores.

A recorrente defende, porém que tal consentimento havia sido dado, na assembleia que aprovou o relatório do art. 155º do CIRE.

Interessaria assim apurar se, quando é feito o leilão eletrónico esse consentimento havia sido dado, ou se o leilão é levado a cabo, por determinação da AI, sem a existência de tal consentimento.

Entendeu a sentença que “Pois bem, quanto aos valores pagos à Massa Insolvente, temos que tendo a licitação ocorrido a coberto das normas citadas, facto bem esclarecido no contrato invocado pela Autora de onde, reitera-se, resulta de forma clara que se impõe ouvir os credores, também não terá aqui lugar a possibilidade de se recorrer ao mecanismo previsto no art.º 227 do Código Civil, - culpa na formação dos contratos – uma vez que inexiste qualquer culpa da ré na não formalização do contrato que usou de um legítimo direito a não adjudicar o bem à Autora, impondo-se tão só devolver a quantia recebida de 10% do valor da licitação.

Aqui chegados, uma vez que, a Ré já devolveu à Autora a quantia paga por esta, nada há a determinar quanto a esta questão.”

Não podemos porém concordar com esta afirmação.

Os termos do contrato que foi celebrado entre o Administrador de Insolvência e a leiloeira, tendo em vista a realização do leilão, não são oponíveis à aqui Apelante, a não ser que tal situação tenha sido publicitada no leilão. Refiro-nos à questão da eventual necessidade de ulterior autorização da Assembleia de credores para a concretização da venda, pois  aquele contrato consubstancia relativamente á adquirente res inter alios acta,

Acontece que a Massa Insolvente reconhece que o leilão foi mandado realizar sem que o administrador de Insolvência tivesse obtido prévia autorização da Assembleia de Credores, quando aquela venda específica - venda do estabelecimento comercial - carece de autorização especial, nos termos do artigo 161º nº 3 al a) e b) do CRE.

Não tendo sido prestada autorização oportuna, decorrendo o leilão à revelia de tal autorização, e negando-se a massa insolvente a concretizar o negócio, coloca-se a questão de tal situação poder fazer constituir a Massa Insolvente em responsabilidade pré-contratual, atento o disposto no art. 227º do C.Civil.

Afastada na sentença, a qualificação jurídica feita pela ora apelante na petição inicial, de que a situação implicava ter sido celebrado um contrato promessa de compra e venda, devendo ser extraídas as consequências do incumprimento definitivo desse contrato, constata-se que a autora formulou ainda pedido de indemnização subsidiariamente para o incumprimento do acordo, algemado que a não celebração da escritura pública lhe causou danos de que pretende ser indemnizada.

Com efeito, na petição inicial, a ora Apelante formulou o seguinte pedido:

“g) Deve a Ré ser condenada a restituir todas as quantias que a A. transferiu para a concretização do negócio, no valor de 234.982,50€;

h) Condenar-se a Ré a pagar à A. a quantia 100.000,00€ (cem mil euros), a título de indemnização acrescido de juros de mora à taxa legal contados desde a citação até efetivo e integral pagamento”

Alegou que sofreu danos, com a não concretização da venda judicial, após a adjudicação da sua proposta de que pretende ser indemnizada.

Desta forma, impõe-se apurar a possibilidade de a recusa da massa insolvente em celebrar a escritura pública de compra e venda, (ao “revogar” o leilão) é ou não suscetível ou de a fazer incorrer em responsabilidade pré-contratual.

Mostram-se alegados factos na p.i, relativos aos danos que a autora alega ter sofrido.

Dispõe o art. 595º nº1 al. b) CPC que o despacho saneador destina-se a:

“(…) b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória“.

Como refere Abrantes Geraldes  [3]enquadram-se na previsão da norma as situações em que toda a matéria de facto se encontre provada por confissão expressa ou tácita por acordo ou documento; quando seja indiferente, para qualquer das soluções plausíveis, a prova dos factos que permanecem controvertidos, por serem manifestamente insuficientes ou inócuos para apreciar a pretensão do autor ou a exceção deduzida pelo réu; quando todos os factos controvertidos careçam de prova documental.

Contudo, naquelas situações limite, em que concluída a fase dos articulados, o juiz conclui, com recurso aos dispositivos de direito probatório material ou formal, pela existência de um leque de factos que ainda permanecem controvertidos e que, de acordo com as diversas soluções plausíveis, mostram algum relevo para a decisão cumpre atender ao critério do art. 596º nº 1 CPC, ou seja, deve orientar a decisão segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.

Também aqui Abrantes Geraldes   [4]refere o seguinte: “apesar de o juiz se considerar intimamente habilitado a solucionar o diferendo, partindo apenas do núcleo de factos incontroversos, pode isso não ser suficiente se, porventura, outras soluções jurídicas carecidas de melhor maturação e de apuramento de factos controvertidos puderem ser legitimamente defendidas”.

Por sua vez, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, em anotação a esta norma escrevem o seguinte: (…) A antecipação do conhecimento do mérito pressupõe que independentemente de estar em jogo matéria de direito ou de facto, o estado do processo possibilite tal decisão, sem necessidade de mais provas, e independentemente da mesma favorecer uma ou outra das partes.

Tal acontecerá quando:

a) toda a matéria esteja provada por confissão expressa ou tácita ou por acordo ou por documentos (…)

b) quando seja indiferente para qualquer das soluções plausíveis a prova dos factos que permaneçam controvertidos: se, de acordo com a soluções plausíveis da questão e direito, a decisão final de modo algum puder ser afetada com a prova dos factos controvertidos, não existe qualquer interesse na enunciação dos temas da prova e, por isso, nada impede que o juiz profira logo decisão de mérito; se o conjunto dos factos alegados pelo autor (factos constitutivos) não preenche de modo algum a as condições de procedência da ação, torna-se inútil a sua prova e por conseguinte inútil o prosseguimento da ação para a audiência final; mutatis mutandi quando se trate de apreciar de que forma os factos alegados pelo réu poderão interferir na decisão final, pois se tais factos, enquadrados na defesa por exceção, ainda que provados se revelam insuficientes ou inócuos para evitar a procedência da ação inexiste qualquer razão justificativa para o adiamento da decisão” .

A jurisprudência vem entendendo que, será prematuro o conhecimento do mérito da causa no despacho saneador quando a decisão apenas assenta numa das possíveis soluções da questão de direito. Existindo, na doutrina e na jurisprudência, soluções diferentes, no que respeita à questão em apreço, deve ser dada às partes a possibilidade de as discutirem e bem assim reunir no processo os necessários elementos para que possa ser acolhida uma ou outra das soluções plausíveis de direito.

Assim sendo, a decisão do processo na fase do saneador-sentença só poderá suceder quando, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, a matéria de facto não deixar dúvidas a ninguém sobre a sua procedência ou improcedência.

Veja-se a titulo de exemplo o acórdão desta Relação, de 4.2.2019,[5]  no qual se pode ler: “Apesar do juiz se considerar intimamente habilitado a solucionar o diferendo, partindo apenas do núcleo de factos incontroversos, pode isso não ser suficiente se, porventura, outras soluções jurídicas carecidas de melhor maturação e de apuramento de factos controvertidos puderem ser legitimamente defendidas, impedindo o conhecimento do mérito em sede de despacho saneador.”

Como se sabe, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (cf. art.º 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).

Assim sendo, considerando o leque de factos que ainda permanecem controvertidos e devendo o tribunal orientar a decisão segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, atento o critério do art. 596º nº 1 CPC, mostra-se prematura a decisão do tribunal a quo no saneador, não contendo os autos todos os elementos para poder ser proferida decisão de mérito nesta fase processual, pelo que se impõe a revogação do despacho saneador, para permitir que os autos prossigam a tramitação adequada com a realização da audiência de julgamento para prova dos factos controvertidos nos articulados.

Em face do exposto, o conhecimento das demais questões suscitadas no recuso mostra-se prejudicado

V - DECISÃO

Pelo exposto e em conclusão, acordam os Juízes que compõem este Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente, revogando o despacho proferido e determinando que, em consequência, os autos prossigam a tramitação adequada ao apuramento da veracidade dos factos acima referidos, que se mostram controvertidos, tendo em consideração as várias soluções de direito possíveis.

Custas pela Apelada.

Porto, 5 de março de 2024
Alexandra Pelayo
Alberto Taveira
Anabela Miranda

________________________
[1] In Código da Insolvência e Recuperação da Empresa, anotado, vol I, 2006, pg. 555
[2] In Manual de direito de Insolvência, 3ª edição, Almedina, pg. 341.
[3] in Temas da Reforma do Processo Civil, vol. II, 3ª edição revista e ampliada, Almedina, 2000, pag. 138.
[4] Mesmo loc.
[5] Disponível in www.dgsi.pt.