INVENTÁRIO PARA PARTILHA
RELAÇÃO DE BENS
RECLAMAÇÃO CONTRA A RELAÇÃO DE BENS
ÓNUS DA PROVA
Sumário

I - O acervo hereditário é constituído pelos bens patrimoniais pertencentes ao de cujus na data do respectivo óbito e pelos indicados no art. 2069º do Código Civil.
II - Nesta conformidade, para efeito de relacionamento dos bens, função que compete ao cabeça-de-casal, importa atender tão-só aos que existiam na esfera jurídica do inventariado à data do óbito.
III - Na reclamação apresentada por algum interessado directo à relação de bens, direito conferido pelo artigo 1104.º, al. d) do C.P.Civil, impende sobre o reclamante, em obediência ao artigo 342.º, n.º 1 do C.Civil, o onus probandi da existência de determinados bens na hipótese de acusar a falta dos mesmos na relação.
IV - Não tendo sido junto qualquer documento ou informação bancária que confirmasse a existência de um depósito bancário, da titularidade dos inventariados ou de algum deles, impunha-se dar como não provada essa reclamação dirigida à relação de bens tanto mais que as testemunhas ouvidas a esse respeito revelaram não ter conhecimento preciso e sustentado sobre esse facto.

Texto Integral

Processo n.º 3463/20.4T8VFR-A.P1

Relatora: Anabela Andrade Miranda

Adjunto: João Diogo Rodrigues

Adjunto: Fernando Vilares Ferreira


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Sumário

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Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I—RELATÓRIO

AA requereu inventário cumulado por morte de BB, falecida 19 de janeiro de 1992, e de CC, falecido em 24 de junho de 2001.

À data do decesso da inventariada BB eram seus herdeiros CC, o viúvo, e os quatro filhos: DD, AA, EE e FF.

À data do decesso do inventariado CC eram herdeiros os quatro filhos: DD, AA, EE e FF.


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Por testamento celebrado em 30 de dezembro de 1997, CC instituiu FF herdeiro da sua quota disponível, impondo ao instituído herdeiro o encargo de prestar assistência na saúde e na doença aos filhos do testador, DD e EE.

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Por sentenças proferidas em 7 de maio de 2019 e em 17 de setembro de 2020, respetivamente, foi decretado o regime de maior acompanhado em benefício dos interessados DD e EE, e nomeado acompanhante de ambos o seu irmão, aqui também interessado, FF.

Foi então nestes autos nomeada curadora especial GG para representar os interessados DD e EE.


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O cabeça-de-casal, DD, representado pela curadora especial, apresentou relação de bens junta aos autos em 15 de novembro de 2021.

A interessada AA apresentou reclamação à relação de bens, alegando, em síntese, a omissão de relacionação de diversos bens móveis, incluindo um depósito bancário no montante de 150.000,00€.


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O cabeça-de-casal respondeu afirmando, em suma, que parte dos bens móveis indicados não existem, outros encontram-se degradados, sem valor comercial. De resto, desconhece o depósito bancário.

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Proferiu-se decisão que julgou parcialmente improcedente a reclamação à relação de bens e, em consequência:

a) remeteu os interessados para os meios comuns relativamente à questão de saber se o dinheiro que integrava o certificado de aforro pertence ao acervo hereditário;

b) e declarou improcedente a reclamação apresentada quanto ao demais peticionado.


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Inconformada com a decisão, a interessada AA interpôs recurso finalizando com as seguintes

Conclusões

1- A 09/12/2020, a aqui Recorrente requereu, junto do Tribunal a quo, Inventário judicial por morte de seus pais, BB, falecida em 19 de janeiro de 1992 e de CC, falecido em 24 de junho de 2001;

 2-À data do decesso da inventariada BB, eram seus herdeiros CC e os quatros filhos, DD, AA, EE e FF;

3-À data do decesso do inventariado CC, eram seus herdeiros os quatro filhos mencionados no ponto anterior;

4-Nos presentes autos, foi nomeado Cabeça de Casal o interessado CC, que está a ser representado, também por nomeação do Tribunal a quo, pela sua curadora especial GG, filha do interessado FF;

5-Em 15 de novembro de 2021, o cabeça de casal, representado pela curadora especial, apresentou relação de bens junto aos autos;

6-Tendo, por requerimento de 14 de fevereiro e de 12 de abril de 2022 (e não do ano de 2020, conforme consta na sentença recorrida), apresentado Reclamação à Relação de Bens apresentada;

7-Alegando a omissão de determinados bens, nomeadamente, uma quantia de EUR 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros), que a Recorrente sempre pensou estar depositada em conta(s) bancária(s);

8-Na sequência das audiências de produção de prova realizadas em 10 de fevereiro, 9 e 23 de março de 2023, o Tribunal a quo proferiu a douta sentença a qual decidiu "(...) julgar parcialmente improcedente a reclamação à relação de bens e, consequentemente,

a)Remeter os interessados para os meio comuns relativamente à questão de saber se o dinheiro que integrava o certificado de aforro pertence ao acervo hereditário;

b)E declarar improcedente a reclamação apresentada quanto ao demais peticionado."

9-É sobre a decisão proferida pelo Tribunal a quo de "(...) declarar improcedente a reclamação apresentada quanto ao demais peticionado", que, a agora Recorrente vem recorrer, impugnando toda a decisão da matéria de facto, relativo ao bem reclamado pela aqui Recorrente, intitulado: "C- Do(s) depósito(s) bancário(s) dos inventariados no valor de 150.000,00€";

10-Decisão que adveio do resultado da apreciação dos meios de prova, e que o tribunal a quo resumiu no seguinte: "Em suma, conforme resulta das considerações expostas, nenhuma prova foi trazida para os autos, nem documental, nem testemunhal, nem por depoimento e declarações dos interessados que sustente que os inventariados, à data do óbito, eram titulares de contas bancárias com saldo no valor de 150.000€, sequer foi provado a existência de tal dinheiro."-,

11-Para assim ter decidido que "Concomitantemente, não deve ser aditado na relação de bens o depósito bancário/saldo no valor de 150.000,00€.";

12-Salvo o devido respeito, a decisão do Tribunal a quo enferma de erro de julgamento quanto à matéria de facto, por deficiente apreciação crítica e analítica dos meios de prova, essencialmente os que estavam e estão sujeitos à livre apreciação do Tribunal, como foi o caso da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, aliás a única;

Ora vejamos,

13-Relativamente ao bem reclamado denominado "C- Do(s) depósito(s) bancário(s) dos inventariados no valor de 150.000,00€", o Tribunal a quo fundamentou a sua decisão nos seguintes pontos de facto, que foram incorretamente apreciados:

a)Que "A testemunha HH (...) além de ouvir dizer que os inventariados tinham dinheiro, nada sabia."

b)E que "Tais testemunhas têm em comum o facto de serem apenas das relações de vizinhança e das relações de amizade da interessada AA, e no concerne aos valores monetários de que os inventariados eram ou não proprietários, claramente, sustentaram as suas afirmações em considerações subjetivas, com base naquilo que achavam ser as condições económicas dos vizinhos. Notoriamente sem qualquer conhecimento direto do facto aqui em discussão, não relevando, por isso para a convicção do Tribunal.";

14-Nas audiências de produção de prova realizadas, as únicas testemunhas que prestaram depoimentos foram: a D. II, o Sr. JJ e D. HH;

15-Dos depoimentos prestados por todas as testemunhas, dúvidas não existem de que o Tribunal a quo errou categoricamente na análise crítica e analítica dos meios de prova;

16-Essencialmente, naqueles meios de prova que estão sujeitos à livre apreciação da prova, nomeadamente, os factos controvertidos a partir da narração, que foi trazida pela prova testemunhal produzida em audiência de julgamento;

17-Caindo, assim, o Tribunal a quo em erro de julgamento da matéria de facto, quando julgou improcedência a reclamação apresentada pelo aqui recorrente, quanto à sua pretensão de que a quantia de 150.000 euros dos inventariados deve ser aditada à relação de bens apresentada pelo Cabeça de Casal.

E isto porque,

18-Em primeiro lugar, com o devido respeito, com os depoimentos prestados pelas testemunhas, nunca, em momento algum, poderia o Tribunal a quo enveredar pelo entendimento de que "Tais testemunhas têm em comum o facto de serem apenas das relações de vizinhança e das relações de amizade da interessada AA (...)";

19-Para, com isso, desvalorizar os depoimentos prestados pelas mesmas;

20-Quando todas as testemunhas demonstraram nos seus depoimentos prestados nas audiências de produção, de que eram vizinhos e amigos próximos de toda a família (Inventariados e interessados);

21-A este propósito, veja-se os depoimentos prestados pelas referidas testemunhas:

a)Depoimento da testemunha D.na II (de 62 anos):

-"(...) eu sabia que ela tinha bastante ouro (...) por boca dela (...) Sim, sim! Sim! Porque eu tinha muita confiança com ela e ela comigo." (do minuto 07:04 ao minuto 07:41 do seu depoimento sobre a inventariada).

-"(...) primeiro era muito bom. (...) antes de isso acontecer eles davam-se muito bem (...) isto o problema do irmão agora exigir-lhe que ela pague uma renda e essas coisas e a partir daí é que (...) sim! Exigir. Eu soube pela boca da AA que o irmão... para ela se calar, senão até lhe exigia que ela pagasse uma renda da casa onde ela está... até aí, estava tudo bem. Dou-me bem com eles todos, só que, a partir daí o FF ficou um bocadinho mais recuado. " (do minuto 10:15 ao minuto 11:10 do seu depoimento).

-"(...) como eu nessa altura estava em casa e fazia uma costura, às vezes por qualquer coisq ela chamava-me." (do minuto 13:39 ao minuto 13:43 do seu depoimento, sobre a inventariada).

b)Depoimento da testemunha Sr. JJ (de 64 anos):

-"Claramente!..." (do minuto 02:10 ao minuto 02:20 do seu depoimento, à questão sobre se conhecia aquela família);

-"Eu tenho as duas coisas. Eu dava-me muito bem com o falecido pai deles. Porque ele era barbeiro e eu era cliente dele. E conhecia-o... como eu tenho uma irmã minha que tem negócio de cortiça de rolhas e ele vinha lá ter. Ele tinha muito negócio com ela e ele vinha lá a casa...", (do minuto 02:21 ao minuto 02:55 do seu depoimento).

-"(...) ele falava-me da vida dele, ele dava-se muito bem comigo e abria-se muito da vida dele..." (do minuto 07:04 ao minuto 07:13 do seu depoimento, à questão sobre a partir de quando o inventariado tinha negócio de rolhas de cortiça).

-"... A D.AA entrava lá todos os dias (...) eu ia para lá todos os dias (...) e tinha grande relações com o FF (...)". (do minuto 40:07 ao minuto 41:00 do seu depoimento, à questão da M? Juíza, de como tinha conhecimento do negócio de rolhas de cortiça do inventariado).

c) Depoimento da testemunha D.a HH (de 66 anos):

-"Vivi muitos anos sempre perto da casa dela (...)". (do minuto 01:10 ao minuto 01:19 do seu depoimento, à questão, do mandatário da aqui Recorrente, se ela viveu sempre perto dos inventariados).

-"Sim! Sim! freguentava sim!" (do minuto 01:33 ao minuto 01:39 do seu depoimento, à questão, do mandatário da aqui Recorrente, se ela frequentava a casa dos inventariados).

"(...) A mãe trabalhava na fábrica onde eu trabalhava também e a AA também trabalhava... sim, sim também da D.g BB (...)". (do minuto 02:02 ao minuto 02:13 do seu depoimento).

-"De maneira alguma! Haver, o dinheiro havia, só que eles eram muito agarrados e... mas não passavam necessidade. Eles queriam muito dinheiro. O dinheiro era para forrar para um dia que precisassem. Mas é assim, não faltava nada na casa. Sempre gue lá estava eu via. Eles de comer. Tinham fruta tinham comida... a casa estava mobilada.... Era uma casa normal... A casa era própria, inclusive acho que foi o Sr. DD que a construiu (...) de maneira alguma, nunca tiveram. Problemas financeiros nunca tiveram (...)." (do minuto 02:42 ao minuto 03:52 do seu depoimento, à questão do mandatário da aqui Recorrente se eram pessoas carenciadas).

-"É assim... Eles eram... além de sermos vizinhos, o Sr. DD dava-se muito, muito bem com o meu pai! Até saiam algumas vezes juntos à noite..." (do minuto 18:15 ao minuto 18:36 do seu depoimento)

-"Sim. Eu trabalhei com ela (D.g BB) muitos anos. (...) não tinha tanta... conhecia-o (Sr. DD) perfeitamente porque eu frequentava a casa. E sei como ele era, que era uma pessoa bastante agarrada e que não se ia deixar levar, agora, a D.g BB, é claro que eu lidava com ela o dia-a-dia". (do minuto 21:59 ao minuto 22:23 do seu depoimento)

22- Da apreciação crítica e analítica dos depoimentos prestados, facilmente se conclui que a convicção do Tribunal a quo sempre deveria ter sido noutro sentido, ou seja:

a)Que estas testemunhas eram das relações de amizade e confiança dos inventariados e dos interessados e não só da aqui Recorrente;

b)Que eram frequentadores da casa dos inventariados e estes da casa das testemunhas;

Ou seja,

23-Se a testemunha II afirmou que com a inventariada D.9 BB, "(...) tinha muita confiança com ela e ela comigo" e que sempre se deu bem com todos os interessados, com exceção do interessado FF, que se começou a afastar desta amiga da família, a partir do momento que este constatou não ter o seu apoio na decisão de exigir à aqui Requerente uma renda por ocupar um imóvel da herança.

24-Já a testemunha JJ demonstrou conhecer bem os inventariados e sua família, afirmando ser amigo do inventariado DD e do interessado FF, pessoa com quem tinha uma grande relação de amizade, tendo afirmado, no seu depoimento, que "(...) dava-me muito bem com o falecido pai deles", não só por ser cliente da barbearia do inventariado, quer pelos negócios de rolhas que mantinham juntos, com também "(...) tinha grande relações com o FF".

25-Por último, a testemunha D.9 HH afirmou e demonstrou, que sempre foi não só amiga e colega de trabalho da inventariada BB e da aqui Recorrente, como foi também vizinha e frequentadora da casa dos inventariados, conhecendo muito bem a realidade daquela família, não tivesse também seu pai Qa falecido) sido um grande amigo do inventariado, o Sr. DD.

26-Não restam assim quaisquer dúvidas de que todas as testemunhas tinham relações de amizade não só com a interessada AA, como também com os restantes interessados e inventariados.

27-Pelo que, com o devido respeito, por não corresponder à realidade dos depoimentos presados, é falsa a decisão, sobre a matéria de facto, produzida pelo Tribunal a quo de que "Tais testemunhas têm em comum o facto de serem apenas das relações de vizinhança e das relações de amizade da interessada AA(...)", o que, desde já, a aqui Recorrente Impugna.

28-Em segundo lugar, e com o devido respeito, errou mais uma vez o Tribunal a quo na decisão da matéria de facto proferida, e que a aqui Recorrente também impugna, ao dar como provado, na sentença recorrida, de que "A testemunha HH (...), além de ouvir dizer que os inventariados tinham dinheiro, nada sabia."

29-Quando esta testemunha, do minuto 18:05 ao minuto 19:44 do seu depoimento, afirmou perentoriamente o seguinte: - "É assim... Eles eram... além de sermos vizinhos, o Sr. DD dava-se muito, muito bem com o meu pai! Até saiam algumas vezes juntos à noite. E ele estava uma vez lá em casa e disse: "Oh KK, eu tenho à volta de 30.000 contos". Na altura era o escudo. "Tenho muito dinheiro". A conversa não era comigo, mas era em minha casa. Eu estava presente, porque eu casei e fiquei a viver em casa dos meus pais. E ele foi lá, porque ele era trolha e foi lá para ver um problemazito que o meu pai tinha lá numa varanda e, pronto, começaram a conversar e ele disse: "Eu tenho muito dinheiro. Eu tenho à volta de 30.000 contos." Eu ouvi e fiquei calada. Só disse cá para mim "tanto dinheiro!" Sim, mas ele também fazia muito... Ele trabalhava... Eles trabalhavam muito. Ele era um senhor que fazia excursões, trabalhava na cortiça, prontos... E trabalhava por conta própria. E a mãe era muito poupada. Depois eram muito poupados. Eles eram muito poupados! Não tinham vícios. A senhora não ia a um cabeleireiro, não ia a lado nenhum... era muito simples. Era uma senhora muito simples."

30-Conforme se pode constatar, por este excerto e/ou por todo o seu depoimento, a testemunha HH demonstrou ter um real e direto conhecimento de que os inventariados tinham de facto dinheiro, que ascendia a 150.000 Euros;

31-É de notar que foi o próprio inventariado que confidenciou ao pai desta testemunha e na sua presente, que tinha 30.000 contos (150.000 euros) em dinheiro.

32-Portanto, dúvidas não subsistem de que a testemunha HH tinha e tem de facto conhecimento direto de que os inventariados tinham 150.000 Euros.

33-Já quanto as restantes testemunhas, o Tribunal a quo deu como provado que "a testemunhas II, tendo sido vizinha dos inventariados, referiu ter ouvido a inventariada dizer que "tinha muito dinheiro" e "ia deixar os filhos com a vida feita". A testemunha JJ, das relações de vizinhança e cliente na barbearia do inventariado, referiu ter ouvido o inventariado dizer que "tinha muito dinheiro", aliás, quando comprou o imóvel sito na Rua ... (descrito na Relação de bens) comentou ter posses para comprar outro igual ou melhor, e na sua versão, chegou a mencionar ter 30.000 contos (150.000€)".

34-Ou seja, todas as testemunhas presentes afirmaram que, no âmbito das relações de amizade e confiança que tinham com os inventariados, estes foram confessando terem muito dinheiro, chegando a quantificar o valor (150.000 Euros) às testemunhas JJ e HH.

35-Pelo que, mais uma vez, é incompreensível que o Tribunal a quo tenha, quanto à prova da existência deste bem, pronunciado, na sentença recorrida, de que "A testemunha (...), além de ouvir dizer que os inventariados tinham dinheiro, nada sabia."

36-Para, erradamente, concluir, que "Em suma, conforme resulta das considerações expostas, nenhuma prova foi trazida para os autos, nem documental, nem testemunhal (...) que sustente que os inventariados, à data do óbito, eram titulares de contas bancárias com saldo no valor de 150.000€, sequer foi provada a existência de tal dinheiro.";

37-Quando por via de uma análise crítica e analítica do depoimento prestado por esta testemunha, facilmente se entende que a decisão do Tribunal a quo deveria sim ter sido pela prova da existência daquela quantia, pronunciando-se, assim, pela inclusão daquela verba na relação de bem ou, quando muito, no pior dos cenários, ter convidado as partes para os meios comuns, nos termos do artigo 1093 do CPC;

38-Nos termos do n.º 5, do art.º 607 do CPC, o Julgador aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção firmada acerca de cada facto,

39-Contudo, e não obstante as provas produzidas em audiência de julgamento estarem, em regra, submetidas ao princípio da livre apreciação, impõe o n.º 4 daquela mesma norma, que o julgador exteriorize o inter valorativo, com uma explicação das razões que o levaram a considerar determinado facto provado ou não provado.

40-Ou seja, serão esses fundamentos indicados pelo julgador que revelarão as razões em que radica a sua decisão e que se mostrem determinantes para o juízo formulado.

41-Conforme bem refere Teixeira de Sousa, Ob. Cit., pág. 348, "o tribunal deve indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção", esclarecendo que "a experiência da motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão".

42-O mesmo será dizer que sinalizado o caminho percorrido no campo da motivação do julgador, torna-se possível assim aferir se, mediante a reponderação dos meios de prova, houve erro na apreciação da prova e no correspondente julgamento da matéria de facto.

43-Ora, no caso em concreto, confrontando a motivação do julgador com os meios de prova produzida, facilmente se conclui, conforme já foi demonstrado supra, que existe uma manifesta incongruência.

44-Ou seja, os depoimentos prestados pelas testemunhas em audiência de julgamento (nomeadamente da testemunha HH), relativamente à existência do bem que a Recorrente pretende que seja aditado na Relação de bens (a quantia de 150.000,00 EUR dos inventariados), conjugados com a restante prova produzida, facilmente se conclui que a decisão, do Tribunal a quo sobre a matéria de facto, traduz um resultado oriundo de uma deficiente apreciação crítica e analítica dos únicos meios de prova;

45-Tendo em conta o exposto, dúvidas não existem de que o Tribunal a errou na fixação dos factos provados, omitindo matéria factual de prova e relevante para a decisão do pleito, incorrendo assim em erro de julgamento da matéria de facto.

46-A douta sentença recorrida violou, assim, por má interpretação, o disposto nos artigos 59, n.º 2, alínea a) e 607º, n.º 4, ambos do CPC.

47-Pelo que, nos termos do art.º 662, do CPC, requer, a Recorrente, que a decisão da sentença recorrida sobre o bem intitulado "C- Do(s) depósito(s) bancário(s) dos inventariados no valor de 150.000,00€", deva ser objeto de reapreciação por parte deste douto tribunal.


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II—Delimitação do Objecto do Recurso

A questão principal decidenda, delimitada pelas conclusões do recurso, consiste em saber se deve ser considerado demonstrado que, à data do óbito dos inventariados, existia um depósito bancário no valor de 150.000,00€.


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Da Modificabilidade da Decisão sobre a matéria de facto

Nos termos do artº. 662º. do Código de Processo Civil, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

A possibilidade que o legislador conferiu ao Tribunal da Relação de alterar a matéria de facto não é absoluta pois tal só é admissível quando os meios de prova revisitados não deixem outra alternativa, ou seja, em situações que apontam em sentido contrário ao decidido pelo tribunal a quo.

Se a decisão do julgador está devidamente fundamentada, segundo as regras da experiência e da lógica, não pode ser modificada, sob pena de inobservância do princípio da livre convicção.[1]

A instrução do processo constitui uma das fases cruciais para o sucesso da pretensão formulada pelo autor ao tribunal.

Com efeito, se o autor não cumprir o ónus que sobre si impende de demonstração dos factos constitutivos do direito invocado, e que são controvertidos, o tribunal deverá, aplicando o direito, julgar improcedente a acção.

Estabelece, pois, o disposto no art. 341.º do C.Civil que “As provas têm por função a demonstração da realidade dos factos.”

Para efeitos processuais a prova deve definir-se como o conjunto de operações ou actos destinados a formar a convicção do juiz sobre a veracidade das afirmações feitas pelas partes[2]. (sublinhado nosso)

A fase de instrução, concretizadora do princípio do ónus da prova[3] no sentido de verificação daquilo que se alegou[4], através da produção dos meios de prova, é determinante na resolução do pleito.

Importa, antes de mais, ter presente o regime aplicável ao inventário.

No plano substantivo, falecida uma pessoa são chamados os sucessores, como determina o artigo 2024.º do C.Civil, à titularidade das relações jurídicas patrimoniais e consequente devolução dos bens que lhe pertenciam.

 Nesta conformidade, o acervo hereditário é constituído pelos bens patrimoniais pertencentes ao de cujus na data do respectivo óbito e pelos indicados no art. 2069º do Código Civil.

Para efeito de relacionamento dos bens, função que compete ao cabeça-de-casal, importa atender tão-só aos que existiam na esfera jurídica do inventariado à data do óbito.

Nas palavras de Lopes Cardoso[5] os bens da herança que hão-de figurar no inventário são os que se encontram na posse do inventariado ao tempo da sua morte, presumindo-se propriedade do falecido todos os objectos encontrados na sua residência.

Na reclamação apresentada por algum interessado directo à relação de bens, direito conferido pelo artigo 1104.º, al. d) do C.P.Civil, impende sobre o reclamante, em obediência ao artigo 342.º, n.º 1 do C.Civil, o onus probandi da existência de determinados bens na hipótese de acusar a falta dos mesmos na relação.

Na arguição da falta de bens, tem sido entendido, como reconheceu o mencionado autor[6], que o ónus da prova pertence a quem invoca a falta.

A interessada Recorrente, nesta instância recursiva, reiterou a sua posição sobre a existência de um depósito bancário no valor de € 150.000,00.

Baseia-se, em abono da sua tese, nos depoimentos prestados pelas testemunhas II, JJ e HH.

A Mma. Juíza justificou cabalmente a sua convicção nos seguintes termos:

“Quanto ao dinheiro, na base de dados do Banco de Portugal, que abrange o período a partir de 1 de março de 2011, apurou-se inexistirem quaisquer contas bancárias de que os inventariados fossem ou sejam titulares (cfr. ofício de 14/06/2022), documento do qual as partes foram devidamente notificados sem que se tenham pronunciado. E nenhum documento com data anterior ou posterior foi trazido aos autos para sustentar que em data prévia, concretamente à data do óbito, os inventariados fossem titulares de contas bancárias, e ainda (…).

Nesta sede destacam-se os depoimentos prestados pelos interessados FF e AA. Com efeito, o interessado FF prestou depoimento sendo manifesto estar ao corrente das questões atinentes à herança, afirmando no entanto, na sua versão, desconhecer que os pais alguma vez tivessem a predita quantia de 150.000,00€. Já a interessada AA, aqui reclamante, referiu ter ouvido várias pessoas dizer que os seus pais, os inventariados, “tinham muito dinheiro”, porém, a própria nunca viu o dinheiro, nunca soube onde estaria depositado ou guardado o dinheiro, nem nunca soube a que quantia correspondia esse “muito”. Sendo certo que apesar de no seu articulado ter identificado a quantia de 150.000,0€, mostrou-se não ter qualquer razão de ciência quanto ao predito valor, que quantificou naquela quantia, tal como poderia ter quantificado em qualquer outro montante, na medida em que demonstrou desconhecer a realidade que alegou. Na verdade, não se olvida da convicção pessoal da interessada, a qual, contudo, se mostra sustentada meramente no facto de o pai, num episódio, ter referido que “tinha muito dinheiro”, e outras vezes por ter ouvido amigos e vizinhos dos inventariados a comentar que os seus pais tinham muito dinheiro.

De resto, a curadora especial do cabeça-de-casal, GG, pelas razões já atrás aduzida, não tinha conhecimento direto também do facto aqui em discussão.

Por seu turno, a testemunha II, tendo sido vizinha dos inventariados, referiu ter ouvido a inventariada dizer que “tinha muito dinheiro” e “ia deixar os filhos com a vida feita”. A testemunha JJ, das relações de vizinhança e cliente na barbearia do inventariado, referiu ter ouvido o inventariado dizer que “tinha muito dinheiro”, aliás, quando comprou o imóvel sito na Rua ... (descrito na relação de bens), comentou ter posses para comprar outro igual ou melhor e, na sua versão, chegou a mencionar ter 30.000 contos (150.000€). A testemunha HH, em criança já frequentava a casa dos inventariados e chegou a ser colega de trabalho da interessada AA, porém, além de ouvir dizer que os inventariados tinham dinheiro, nada sabia.

Tais testemunhas têm em comum o facto de serem apenas das relações de vizinhança e das relações de amizade da interessada AA, e no que concerne aos valores monetários de que os inventariados eram ou não proprietários, claramente, sustentaram as suas afirmações em considerações subjetivas, com base naquilo que achavam ser as condições económicas dos vizinhos. Notoriamente sem qualquer conhecimento direto do facto aqui em discussão, não relevando, por isso, para a convicção do Tribunal.”

Não concordamos, salvo o devido respeito, com a avaliação que a Recorrente faz dos meios de prova.

Em primeiro lugar, estando em causa apurar a existência de um depósito bancário, impunha-se a junção de um documento ou de uma informação bancária que atestasse esse facto, e tal não sucedeu.

A verdade é que, como a Mma. Juíza observou, nem a própria Reclamante revelou ter conhecimento desse facto nem sequer do valor do depósito. Apenas se baseou no que “ouviu dizer” a terceiros, ou seja, que os pais tinham “muito dinheiro”, declaração vaga e sem sustentação credível.

Com efeito, os depoimentos prestados pelas testemunhas acima mencionadas, das relações de amizade da Recorrente, de forma alguma podiam ser considerados prova suficiente para que o julgador pudesse ficar convicto a esse respeito.

Limitaram-se a referir vagamente ter ouvido o inventariado declarar que tinha “muito dinheiro” (30 mil contos) mas não relataram qualquer outro pormenor relevante como por exemplo as circunstâncias específicas (tempo, lugar, motivo) em que ocorreu essa declaração, em que instituição(ões) bancária(s) estava depositado esse dinheiro e valor concreto.

Sendo indubitável que não se visa, como esclarecem A. Varela, M. Bezerra e Sampaio e Nóvoa[7] “a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente) como é, por exemplo, o desenvolvimento de um teorema nas ciências matemáticas”, é necessário “criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto.”[8]

Foi justamente a falta de produção de meios de prova susceptíveis de causar ao julgador esse estado de convicção sobre a existência do depósito bancário que determinou, e bem, uma resposta negativa do tribunal.

Por essas razões, acompanhamos a Mma. Juíza quando conclui que “nenhuma prova foi trazida para os autos, nem documental, nem testemunhal, nem por depoimentos e declarações dos interessados que sustente que os inventariados, à data do óbito, eram titulares de contas sequer foi provada a existência de tal dinheiro.”

Perante a manifesta falta de prova, não era admissível remeter os interessados para os meios comuns ao abrigo do artigo 1093.º, n.º 1 do C.Civil que apenas permite essa via no caso da matéria ser de natureza complexa e não ser conveniente a sua decisão no processo de inventário.

Assim sendo, mantém-se a decisão sobre a matéria de facto, que se encontra muito bem fundamentada.


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III—FUNDAMENTAÇÃO

Não provado: Depósito bancário no valor de € 150.000,00, da titularidade dos inventariados.


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Considerando que a reapreciação da solução jurídica dependia da alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto em causa, apenas resta confirmar a sentença, em relação à qual se adere.

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IV-DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso e em consequência, confirmam a decisão.

Custas pela Recorrente.

Notifique.


Porto, 5/3/2024
Anabela Miranda
João Diogo Rodrigues
Fernando Vilares Ferreira
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[1] cfr. neste sentido Ac. Rel. Porto, de 24/03/2014 in www.dgsi.pt.
[2] Cfr. Reis, Alberto dos, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 4.ª edição, pág. 239, citando nesse sentido vários autores.
[3] v. art. 342.º, n.º 1 do CCivil.
[4] Cfr. Reis, Alberto dos, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 4.ª edição, pág. 238.
[5] Partilhas Judiciais, vol. I, 6.ª edição, pág. 583.
[6] Ob. cit. pág. 728 e nota 2063.
[7] Manual de Processo Civil, 2.ª edição, pág. 435.
[8] Ob. cit. pág. 436.