DIREITO DE PREFERÊNCIA
REGISTO DA AÇÃO
Sumário

I – Por força das alterações introduzidas no Código do Registo Predial pelo Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de Julho, nada justifica a suspensão da instância até que seja comprovado o registo da acção ou o pedido desse registo, independentemente dos motivos da sua falta.
II – O direito de preferência atribuído por lei não precisa de ser registado para produzir efeitos em relação a terceiros, ainda que de boa fé. Não obstante, a acção de preferência e a respectiva sentença estão sujeitas a registo. Faltando este registo, o que deixa de produzir efeitos contra terceiros, nomeadamente eventuais subadquirentes, não é o direito real de preferência, mas o próprio facto sujeito a registo, isto é, a acção e a decisão aí proferida.
III – Assim, a falta de registo da acção de preferência intentada contra o alienante e o primeiro adquirente do imóvel – falta que as próprias partes podem suprir – é insusceptível de gerar a inutilidade da decisão que a julgue procedente essa acção, a qual produzirá os seus efeitos (retroactivos) entre as respectivas partes, sem impedir que o direito de preferência venha a ser exercido contra eventuais subadquirentes do mesmo imóvel.

Texto Integral

Proc. n.º 207/20.4T8PRT-A.P1



Acordam no Tribunal da Relação do Porto



I. Relatório

1. AA, residente no Bairro ... Porto, intentou a presente acção declarativa comum contra A..., S.A., com sede em Campo ..., ..., ..., ... Lisboa, e B..., Lda., com sede na Rua ...., ... Porto, tendo em vista o exercício do direito de preferência na aquisição de determinado bem imóvel ao abrigo do disposto no artigo 1091.º, n.º 1, al. a), do Código Civil (CC).
2. Findos os articulados, foi realizada audiência prévia, na qual o tribunal afirmou vislumbrar-se a possibilidade de conhecimento imediato da causa, deu cumprimento ao disposto no artigo 591.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil (CPC), e ordenou que os autos fossem conclusos a fim de ser proferida decisão por escrito, nos termos do disposto no artigo 595.º, n.º 2, do mesmo código.
3. Por requerimento de 15.06.2023, a autora requereu, para além do mais, o seguinte:
(…)
FALTA DE REGISTO DA AÇÃO
62.º
A ação não podia ter prosseguido para audiência prévia.
63.º
Da consulta dos autos não resulta que o Tribunal tenha procedido ao registo a ação, como é sua obrigação (artº 8ºB, nº 3 alínea a/ do CRPred.).
64.º
Conforme conhecida jurisprudência, “A obrigação de promover o registo da ação não impende sobre o autor, mas sim sobre o tribunal”.
65.º
Esta ação reveste natureza real, estando, pois, sujeita a registo predial (art. 2º, nº1, a) e 3º, nº1, a), do Cód. Reg. Predial).
66.º
Como claramente se diz no Acórdão do TRG de 23.11.2017 (Relator - Afonso Cabral de Andrade), atualmente, a regra em matéria de registo das ações reais é esta: deve o Tribunal promover oficiosamente o registo.
67.º
O referido artº 8.º-B do CRPredial (com a redação concedida pela Lei n.º 30/2017, de 30 de Maio), veio dizer quem são os sujeitos da obrigação de registar.
68.º
Depois de no seu nº 1 estabelecer o regime regra quanto à obrigação de registar, mas com a ressalva do disposto no nº 3.
69.º
Este, por seu turno, estatui que “estão ainda obrigados a promover o registo: a) Os tribunais no que respeita às acções, às decisões e a outros procedimentos e providências ou actos judiciais” (…).
70.º
Segundo Lebre de Freitas, in A acção declarativa comum, 4ª edição, fls. 70, “a promoção destas inscrições registais é feita pelo Tribunal, oficiosamente”.
71.º
Sendo certo que, nada impedindo a Autora de o requerer (de acordo com a norma geral de legitimidade do artº 36.º C. R. Predial), se o Dgº Tribunal entendesse diferentemente (ou seja, se entendesse que não caberia ao Tribunal promover oficiosamente aquele registo) deveria, então, nos termos do nº 3 do artº 590.º do CPC , emitir convite de suprimento de tal irregularidade (falta do registo da ação) – o que também não foi feito.
72.º
Na verdade, findos os articulados sem que se mostre comprovado o registo da ação, o Mtº Juiz deveria, em obediência à primazia dada pela nossa lei processual civil à solução material, exarar que os autos aguardassem o registo da ação.
73.º
E, não podendo esta prosseguir, convidar a Autora à junção do comprovativo do registo, nos termos previstos no citado nº 3 do artº 590º do CPC, e suspender a instância nos termos do artº 269º nº1, al. d), também do CPC.
74.º
É unânime tal orientação jurisprudencial, expressa em diversos acórdãos, designadamente: Relação de Coimbra, 10/5/88, Col. Jur., 1988, Vol. III, pg. 65; Relação de Évora, 4/5/89, Col. Jur. 1989, Vol. III, pg. 264; Relação de Évora, 26/10/89, Col. Jur. 1989, Vol. IV, pg. 265; Relação do Porto, 9/4/92, Col. Jur. 1992, Vol. II, pg. 233; Relação de Coimbra, 21/12/93, Col. Jur. 1993, Vol. V, pg. 52; Relação de Évora, 11/11/93, ibidem, pg. 218.
(…)
NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO
(…)
A INSTÂNCIA DEVE SER SUSPENSA ATÉ REALIZAÇÃO DO REGISTO DA AÇÃO NO COMPETENTE REGISTO PREDIAL.
4. Em 07.07.2023, depois de cumprido o contraditório, foi proferido despacho onde, para além do mais, se decidiu o seguinte:
(…)
Diligencie a secção pelo registo da presente acção, nos termos dos arts. 8º-B, nº 3, al. a), 8º-A, nº 1, al. b), 3º, nº 1, al. a), e 2º, nº 1, al. a), do Código de Registo Predial.
*
Pediu a A. a suspensão da instância até à realização do registo da acção em sede de registo predial.
Nos termos do despacho que antecede, o Tribunal procederá, oficiosamente, ao registo da acção.
Nesta sequência, entendemos que a falta de registo da acção de preferência não implica a suspensão da instância até à efectivação desse mesmo registo.
Com efeito, conforme referido no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 31-10-2019, in www.dgsi.pt, “Antes das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 116/2008, de 4 de Julho, o nº 2 do art. 3º do Código de Registo Predial dispunha que “as acções sujeitas a registo não terão seguimento após os articulados sem se comprovar a sua inscrição, salvo se o registo depender da respectiva procedência”. Porém, o diploma supra citado veio abolir esse nº 2, desaparecendo esse obstáculo legal ao andamento dos processos”.
Assim é porque o referido DL 116/2008 veio impor ao Tribunal, nos termos do referido art. 8º.-B, nº 3, al. a), a obrigação de promover o registo dessa acção.
Nestes termos, conclui aquele Acórdão que “(…) nada justifica a paralisação ou suspensão dos autos até à comprovação do referido registo, devendo, pelo contrário, o processo prosseguir a sua normal tramitação enquanto o tribunal realiza as diligências tendentes ao dito registo, nenhumas consequências advindo da eventual impossibilidade de efetivar tal registo ou de o efetivar sem dúvidas.”
Fazendo nossas tais palavras, importa rejeitar peticionada a suspensão da acção até à comprovação do registo da acção, devendo os autos prosseguir os seus normais termos.
Assim, indefiro a requerida suspensão da instância, mais determinando o prosseguimento dos autos.

*

Inconformada, a autora apelou desta decisão, formulando as seguintes conclusões:
«1. O recurso de apelação em causa deve ser admitido na 1ª instância nos termos da alínea h) do nº 2 do artº 644º do CPC, sob pena de perda da sua utilidade (no caso da sua interposição com o recurso da decisão final).
2. No caso, estando em causa a suspensão da instância, a impugnação da decisão com o eventual recurso da sentença final, nos termos do nº 3 do artº 644º do CPC, tornar-se-ia absolutamente inútil pois, a ser julgada procedente, a recorrente já não poderia aproveitar -se de tal decisão.
3. A presente ação reveste natureza real, estando, portanto, sujeita a registo predial (art. 2º, nº1,a) e 3º, nº1, a), do Cód. Reg. Predial), que deve ser requerido oficiosamente pelo Digº Tribunal, ao abrigo do art. 8º -B, nº 3, al. a) daquele diploma.
4. Sendo certo que o registo da acção judicial é inscrito como provisório por natureza, não o é menos que aquele (registo) constitui uma reserva de inscrição para o futuro, salvaguardando direitos que não são, de imediato, admissíveis a registo definitivo.
5. Além de que, a partir do momento do registo (provisório), qualquer interessado deixa de se poder prevalecer contra o autor da ação dos direitos que sobre o prédio venha a adquirir do réu (ou a registar).
6. Impossibilitando, no caos, que um terceiro interessado pudesse opor à Autora um direito incompatível com o direito de propriedade que esta adquire mediante o exercício da preferência.
7. Por outro lado, e não menos importante, através da conversão, o registo da ação conserva a prioridade que tinha enquanto vigorou como provisório (cfr. art. 6º, nº 3 do CRPredial), garantindo a eficácia direta da sentença que a julgue procedente contra os subadquirentes do réu.
8. Não obstante o que se expôs, findos os articulados não se mostra comprovado o registo da ação.
9. Acresce que, na pendência da ação (sem que já tivesse sido pedido o registo desta), da descrição predial nº ...46, desanexou-se o prédio inscrito na matriz urbana sob o artº ...17.
10. Esta passou a estar incluída na descrição predial nº ...68, apesar de esta informação não ter sido prestada nos autos.
11. Ora, o registo da ação foi pedido apenas quanto à descrição predial nº ...46; no entanto, na data de tal pedido, o imóvel inscrito na matriz sob o artº ...17 já não estava incluído naquela descrição.
12. Assim, não só o registo da ação não foi solicitado quanto ao imóvel objeto do direito de preferência, como deverá sê-lo, designadamente para evitar novas alterações registrais.
13. O que confirma que, ao arrepio do que invoca o douto despacho recorrido, a omissão do registo da ação poderá culminar na inutilidade da instauração da presente ação.
14. O que, a título de exemplo sucederá na hipótese (verosímil) de, no decurso da ação (não inscrita no registo), o imóvel ser vendido a terceiro de boa-fé.
15. Por estes motivos, fica demonstrada a obrigatoriedade ou, pelo menos, a conveniência da suspensão da instância até que o registo da ação se encontre efetivado nos termos defendidos, ao abrigo do disposto no artº 269 nº 1 al. c/ do CPC.
16. A douta decisão recorrida violou por erro de interpretação o disposto nos antes citados preceitos e diplomas legais, devendo ser revogada e substituída por outra que julgue no sentido antes defendido (ordenando a suspensão da instância até realização do registo da ação), assim se fazendo JUSTIÇA».
As rés apresentaram resposta a esta alegação, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
*

II. Objecto do Recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
A única questão a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, consiste em saber se deve ser determinada a suspensão da instância até que se mostre realizado o registo da acção.
*

III. Fundamentação
1. A factualidade a considerar na apreciação do presente recurso corresponde às ocorrências descritas nos pontos 1. a 4. do relatório deste aresto.
2. A recorrente veio insurgir-se contra a decisão que indeferiu o seu pedido de suspensão da instância até que se mostre realizado o registo da acção, alegando, em essência, que: a presente acção está sujeita a registo; este deve ser requerido oficiosamente pelo Tribunal; o pedido de registo já efectuado não teve em consideração a desanexação efectuada já na pendência da acção, mas antes daquele pedido, sendo certo que tal informação não havia sido prestada nos autos; a omissão do registo da ação poderá culminar na inutilidade da instauração da presente ação, como sucederá se no decurso da ação não inscrita no registo o imóvel for vendido a terceiro de boa-fé; por estes motivos, a acção devia ter sido suspensa ao abrigo do disposto no artigo 269.º, n.º 1, al. c), do CPC.
É, todavia, manifesta a falta de razão da recorrente.
Naturalmente não se questiona que a presente acção de preferência está sujeita a registo, nos termos previstos nos artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 3.º, n.º 1, al. a), do Código do Registo Predial (CRP), tal como não se questiona a obrigatoriedade (cfr. artigo 8.º-A, n.º 1, al. b), do CRP) e a oficiosidade (cfr. artigo 8.º-B, n.º 3, al. a), do CRP) desse registo.
E não foi diverso o entendimento do tribunal a quo, visto que, na sequência do requerimento apresentado pela autora em 15.06.2023, ordenou à secretaria que diligenciasse pelo registo desta acção, nos termos das normas legais antes citadas (cfr. pontos 3 e 4 do relatório).
Também não se questiona que, findos os articulados, o tribunal agendou uma audiência prévia, que veio a realizar-se, sem que aquele registo se mostrasse efectuado ou, sequer, pedido (sendo certo que a ora recorrente não se opôs a tal, só o tendo feito já depois de a audiência prévia estar finda e de ter sido ordenada a conclusão dos autos para prolação de decisão).
Como bem esclarece a decisão recorrida, até à entrada em vigor das alterações introduzidas no CRP pelo Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de Julho, o artigo 3.º, n.º 2, daquele código preceituava que as acções sujeitas a registo não tinham seguimento após os articulados sem se comprovar a sua inscrição (salvo se o registo dependesse da respectiva procedência). Nos termos do n.º 3, do mesmo artigo, sem prejuízo da impugnação do despacho do conservador, se o registo fosse recusado com fundamento em que a acção a ele não estava sujeita, a recusa fazia cessar a suspensão da instância a que se referia o número anterior.
Esta suspensão da instância destinava-se a permitir que a parte requeresse o registo (cfr. ac. do TRP, de 23.03.1989, CJ, ano XIV, 1989, tomo 2, p. 209) e que os serviços do registo predial se pronunciassem sobre a necessidade ou desnecessidade do mesmo (cfr. ac. TRP, de 02.04.1991, CJ, ano XVI, 1991, tomo 2, p. 251).
O referido Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de Julho, veio revogar aqueles n.ºs 2 e 3, do artigo 3.º, do CRP, ao mesmo tempo que atribuiu ao tribunal a incumbência de promover o registo das acções a ele sujeitas (o que não é o mesmo que comprovar a realização desse registo), com o claro propósito de eliminar um mecanismo que frequentemente constituía um sério entrave à celeridade processual, sem vantagens significativas, fosse na protecção dos interesses das partes ou dos interesses de terceiros. Note-se que, no regime actualmente vigente, para além da obrigação imposta ao tribunal de promover aquele registo, nada impede que os autores e/ou reconvintes interessados na sua realização diligenciem nesse sentido logo que deduzem a sua pretensão em juízo. Por outro lado, não sendo a ação e a respectiva sentença registadas, esta apenas terá eficácia inter partes, não sendo oponível a terceiros, pelo que a posição destes estará sempre acautelada.
Assim, como se concluiu no acórdão do TRG citado na decisão recorrida (proc. n.º 75/17.3T8MTR.G1, rel. Margarida Sousa), deixou de existir o descrito obstáculo legal ao prosseguimento das acções sujeitas a registo, nada justificando actualmente «a paralisação ou suspensão dos autos até à comprovação do referido registo, devendo, pelo contrário, o processo prosseguir a sua normal tramitação enquanto o tribunal realiza as diligências tendentes ao dito registo, nenhumas consequências advindo da eventual impossibilidade de efetivar tal registo ou de o efetivar sem dúvidas».
E se restassem algumas dúvidas a este respeito, as mesmas seriam dissipadas pelo teor do artigo 8.º-C, n.º 2, do CRP, nos termos do qual o registo das acções deve ser pedido até ao termo do prazo de 10 dias após a data da audiência de julgamento.
Em face do exposto, não se compreende que a recorrente invoque (tanto no requerimento de 15.06.2023, como na alegação deste recurso) a existência de uma orientação jurisprudencial uniforme no sentido da suspensão da instância das acções sujeitas a registo até que a realização deste esteja comprovada, citando arestos proferidos entre 1988 e 1993, isto é, muito anteriores à alteração legislativa antes analisada. Na verdade, desconhecemos qualquer jurisprudência publicada que preconize tal entendimento à luz das alterações introduzidas no CRP pelo já citado Decreto-Lei n.º 116/2008, de 4 de Julho.
Alega agora a recorrente que o pedido de registo entretanto formulado pelo tribunal a quo não teve em consideração a desanexação efectuada já na pendência da acção, mas antes daquele pedido, embora reconhecendo que tal informação não havia sido prestada nos autos.
Esta é uma questão totalmente nova, que não foi nem podia ter sido apreciada na decisão recorrida, pois, como a própria recorrente admite, não havia sido suscitada pelas partes nem constavam dos autos quaisquer elementos que permitissem ao Tribunal o seu conhecimento. Verifica-se, porém, que o Tribunal a quo já ordenou à secretaria que diligencie pelo registo da acção tendo em conta a aludida desanexação, como decorre do despacho proferido em 26.01.2024.
Em todo o caso, nada disto altera os termos em que se coloca a questão decidenda: como decorre do exposto anteriormente, o facto de não estar ainda comprovado o registo desta acção não determina a suspensão da instância após os articulados, independentemente dos motivos dessa falta de registo.
Alega ainda a recorrente que a omissão do registo da ação poderá culminar na inutilidade da instauração da presente ação, como sucederá se no decurso da ação não inscrita no registo o imóvel for vendido a terceiro de boa-fé, razão pela qual a acção devia ter sido suspensa ao abrigo do disposto no artigo 269.º, n.º 1, al. c), do CPC.
Mais uma vez, a recorrente suscita questões que nunca submeteu à apreciação do tribunal a quo e que, por isso, não foram apreciadas na decisão recorrida. Ora, como é pacificamente entendido pela jurisprudência e pela doutrina, os recursos visam o reexame, por parte do tribunal superior, de questões precedentemente resolvidas pelo tribunal a quo e não a pronúncia do tribunal ad quem sobre questões novas, a não ser que a própria lei estabeleça alguma excepção a este regra ou esteja em causa matéria de conhecimento oficioso (vide, por todos, o ac. do STJ, de 07.04.2055, rel. Ferreira Girão, disponível em www.dgsi.pt, onde se pode encontrar toda a jurisprudência citada sem indicação da fonte).
No caso concreto, como vimos, no requerimento de 15.06.2023 sobre que incidiu a decisão recorrida, a ora recorrente solicitou a suspensão da instância o abrigo duma suposta determinação legal e do disposto no artigo 269.º, al. d), do CPC, nos termos do qual a instância se suspende nos casos em que a lei o determinar especialmente. Foi com base na inexistência desta determinação especial da lei (que apenas existiu até 2008) que o tribunal a quo indeferiu o pedido de suspensão.
Só agora, em sede de recurso, a recorrente vem invocar outras razões que, no seu entendimento, justificam a suspensão da instância ao abrigo do disposto no artigo 269.º, n.º 1, al. c), do CPC (nos termos do qual a instância se suspende quando o tribunal ordenar a suspensão ou houver acordo das partes), nomeadamente a inutilidade da instauração da presente acção em que poderá culminar a omissão do registo da ação.
Mas sempre se dirá que este argumento não procede.
Para além da preferência de origem negocial, a lei concede a certos titulares de direitos reais ou de gozo sobre determinada coisa a preferência na sua venda ou dação em cumprimento. «Estamos, nessa situação, perante o que se denomina de preferências legais, as quais se caracterizam por terem sempre eficácia real, permitindo aos que dela disfrutam exercer o seu direito de preferência, mesmo perante o terceiro adquirente» – Carlos Lima, Direitos legais de preferência, in ROA 65 (2005), 3, p. 599 a 624, citado por Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Volume I, 8.ª edição, p. 252.
Assim, ao lado da preferência de origem negocial, temos os direitos legais de preferência, que são direitos reais de aquisição, oponíveis erga omnes, mesmo a posteriores adquirentes da propriedade, destinados, nuns casos, a facilitar a extinção de situações que não são as mais consentâneas com a boa exploração dos bens – como sejam a comunhão de direitos (artigos 1409.º e 2130.º do CC), a propriedade onerada com direitos reais limitados de gozo (artigos 1535.º e 1555.º, n.º 1, do CC) e a existência de terrenos agrícolas com área inferior à unidade de cultura economicamente aconselhável (artigo 1380.º do CC) – ou, noutros casos, a proporcionar o acesso à propriedade a quem está (ou esteve) a fruir os bens ao abrigo de um direito pessoal de gozo tendencialmente duradouro (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª edição, p. 389). Aqui se inclui o direito de preferência do arrendatário, em causa nestes autos.
Sendo o direito de preferência atribuído por lei, o mesmo não precisa de ser registado para produzir efeitos em relação a terceiros, ainda que de boa fé. Os direitos dos subadquirentes são, por conseguinte, ineficazes em relação ao titular do direito de preferência.
Não obstante, já vimos que a acção de preferência, bem como a respectiva sentença, estão sujeitas a registo. Contudo, faltando esse registo, o que deixa de produzir efeitos contra terceiros, nomeadamente eventuais subadquirentes, não é o direito real de preferência, mas o próprio facto sujeito a registo, isto é, a acção e a decisão aí proferida.
Deste modo, como se afirma no ac. do STJ, de 29.04.2014 (proc. n.º 353/2002.P1.S1, rel. Azevedo Ramos), na ausência de registo da acção e da posterior sentença, «o autor não fica impedido de fazer valer o seu direito contra terceiros para quem a coisa foi entretanto transmitida, mas para lograr obter o efeito a que se dirigia a primeira acção, necessita de os convencer em novo pleito».
Não sendo despicienda a diferença, a verdade é que a falta de registo da acção de preferência intentada contra o alienante e o primeiro adquirente do imóvel – falta que as próprias partes podem suprir, como é reconhecido pela recorrente – é insusceptível de gerar a inutilidade da decisão que julgue procedente essa acção, a qual produzirá os seus efeitos (retroactivos) entre as partes dessa acção, sem impedir que o mesmo direito de preferência venha a ser exercido contra eventuais subadquirentes do mesmo imóvel, como se infere do disposto no artigo 271.º, n.º 3, do CPC, que apenas regula as consequências processuais da falta de registo da acção.
Pelas razões expostas, nada impunha que o tribunal a quo determinasse a suspensão da instância, depois de findos os articulados ou em momento posterior, até que estivesse comprovado o registo da acção, nem a recorrente aduziu de forma oportuna a ocorrência de algum motivo justificado para essa suspensão à luz dos artigos 269.º, n.º 1, al. c), e 272.º, n.º 1, do CPC.
Improcedem, assim, todas as conclusões da recorrente, pelo que se impõe confirmar a decisão recorrida e condenar a recorrente nas custas da apelação (cfr. artigo 527.º, n.º 1, do CPC)

*

IV. Decisão
Pelo exposto, os Juízes da 2.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto julgam totalmente improcedente a apelação e, consequentemente, confirmam a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.

Registe e notifique.
*

Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
…………………………………………………………
…………………………………………………………
…………………………………………………………
*





Porto, 5 de Março de 2024
Artur Dionísio Oliveira
Fernando Vilares Ferreira
Alberto Taveira