AÇÃO ESPECIAL
FIXAÇÃO JUDICIAL DE PRAZO
IMPOSSIBILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Sumário

I – Ocorre impossibilidade superveniente da lide quando deixa de ser possível dar satisfação à pretensão que o demandante quer fazer valer no processo – seja por extinção do sujeito titular da relação sem sucessão nessa titularidade (impossibilidade subjectiva), por extinção do objecto do litígio (impossibilidade objectiva) ou por extinção dos interesses em litígio (impossibilidade causal).
II – Ocorre inutilidade superveniente da lide quando o escopo visado com a acção foi atingido por outro meio.
III – Em ambos os casos, a solução do litígio deixa de interessar, o que justifica a extinção da instância.
IV – O processo especial de fixação judicial de prazo não se destina a aferir a existência, a validade ou a eficácia da relação jurídica de onde emerge o direito a exercer ou o dever a cumprir; ao tribunal cumpre apenas verificar se está justificada a necessidade de fixação de um prazo para o exercício de um direito ou para o cumprimento de uma obrigação, no pressuposto da sua existência, e definir qual o prazo concretamente adequado.

Texto Integral

Proc. n.º 153/23.0T8MCN.P1




Acordam no Tribunal da Relação do Porto


I. Relatório

1. AA, residente na Av. ...., em Marco de Canaveses, intentou contra BB, residente na Av. ..., ..., em Marco de Canaveses, a presente acção especial de fixação judicial de prazo.
Alegou, em síntese, o seguinte: a requerente e o requerido foram casados, encontrando-se divorciados desde 30.11.2011; após o divórcio, por apenso aos respectivos autos, foi instaurado processo de inventário, no qual as partes chegaram a acordo quanto à partilha dos bens comuns; nos termos desse acordo foi, para além do mais, atribuída ao ora requerido a propriedade da casa de morada de família, tendo este pago as tornas devidas à ora requerente; foi igualmente atribuído ao requerido o passivo correspondente ao valor em dívida no contrato de mútuo que o casal havia celebrado com a Banco 1... (doravante Banco 1...) para a aquisição da referida casa, passando aquele a ser o único responsável pelo pagamento desse passivo; «o Requerido comprometeu-se com a requerente a dirigir-se ao banco Banco 1... e tratar da desoneração daquela no contrato de mutuo contratualizado por ambos com aquele banco» (sic), mas sem estabelecer um prazo certo para o fazer; apesar das insistências da requerente para que o requerido tratasse da referida desoneração, este nada fez; deste modo, «torna-se imperativa a necessidade de fixação do prazo para que o reu negoceie com o banco a sua desoneração do contrato de mútuo, fazendo todas as diligencias necessárias» (sic); a requerente reputa como adequada a fixação de um prazo máximo de 90 dias.
Concluiu pedindo a citação do requerido, nos termos do artigo 1027.º do CPC, seguindo-se os demais termos do processo.
2. Devidamente citado, o requerido declarou não pretender contestar o pedido, limitando-se a informar que aguarda que a Banco 1... «retire a Requerente do contrato de empréstimo» e que «[o] processo encontra-se na Banco 1... a aguardar que estes deem uma decisão se concordam que a Requerente saia do contrato de empréstimo», mais solicitando que, antes de proferir decisão, se notifique a Banco 1... «para informar a razão de não retirar a Requerente do empréstimo».
3. O Tribunal a quo ordenou a notificação da Banco 1... para esclarecer se a requerente já se encontra desonerada do pagamento do mútuo bancário em questão e, no caso negativo, indicar o respectivo motivo, o que aquela entidade bancária se escusou a fazer, invocando o sigilo bancário.
4. A requerente, alegando que o tribunal não está obrigado a realizar todas as diligências de prova requeridas pelas partes e que o próprio requerido pode prestar as informações pretendidas pelo tribunal, requereu o prosseguimento dos autos.
5. Em resposta, pelo requerido foi junto aos autos documento emitido pela referida entidade bancária, do qual resulta que o processo de desvinculação deu entrada no dia 02.03.2023, ainda antes de o réu ter sido citado para esta acção, mediante requerimento assinado pelo requerido e pela própria requerente. Mais informou ter a Banco 1... explicado que ainda não procedeu à desvinculação da mutuária em virtude de estar com problemas informáticos relativamente à retirada de um dos fiadores já falecidos. Nestes termos, julga «que o processo deverá ser considerado improcedente por inutilidade superveniente da lide, uma vez que depende de terceiros a concretização da desvinculação da Autora no contrato de mútuo e não do Réu».
6. A requerente pronunciou-se, afirmando que o documento agora apresentado está assinado e na posse do requerido há mais de 2 anos, que este apresentou o pedido de desvinculação depois de ter sido informado de que ia ser proposta esta acção e depois de se ter frustrado a primeira tentativa de conciliação. Mais afirmou que a sua desvinculação do contrato de mútuo não depende de terceiros, mas sim de o requerido reunir as condições necessárias impostas pelo banco para assumir, sozinho ou com fiador, o contrato de mútuo. Terminou requerendo o prosseguimento dos autos e a respectiva fixação de prazo.
7. Após pronúncia do requerido, onde este reitera, no essencial, a posição antes assumida, o tribunal a quo determinou a notificação das partes para juntarem aos autos documento subscrito pela Banco 1... onde esta instituição bancária informe a data em que foi pedida a desoneração da autora como mutuária e a razão pela qual tal pedido ainda não foi atendido.
8. A requerente alegou não poder obter essas informações, acrescentou desconhecer se os documentos e garantias exigidos pelo banco para exonerar a requerente já foram cumpridas e, atento o tempo já decorrido, requereu a alteração do pedido no sentido de ser fixado em 30 dias o prazo «para que o requerido conclua a desoneração da requerente» (sic).
9. Por sua vez, o requerido juntou aos autos uma declaração emitida pela Banco 1..., onde se afirma que em 02.03.2023 foi apresentado o pedido de desvinculação da mutuária AA, por motivo de divórcio, e que o processo de desvinculação se encontra em análise e decisão.
10. O Tribunal a quo determinou a notificação da Banco 1... para informar se o processo de desvinculação se encontra a aguardar algum elemento a fornecer pelo mutuário BB.
11. Entretanto, a requerida veio aos autos reiterar o teor do requerimento mencionado no ponto 8. e o requerido veio opor-se ao mesmo, reiterando o essencial da sua argumentação, mais afirmando que já propôs à instituição bancária outras garantias bancárias, nomeadamente o adicionamento de novo fiador, mas sem qualquer sucesso, e que, por carta de 4 de setembro de 2023, a Banco 1... lhe solicitou a entrega da última declaração de IRS (referente ao ano de 2022) e a demonstração de liquidação do IRS, sem ter requerido novo fiador.
12. O tribunal, depois de condenar a Banco 1... em multa por falta de colaboração, reiterou o seu anterior despacho, mais determinado a notificação do requerido para obter da mesma instituição bancária declaração que comprove o por si alegado – que o processo de desvinculação não se encontra a aguardar qualquer elemento a ser por si fornecido.
13. Em cumprimento do ordenado, a Banco 1... veio informar que a documentação solicitada ao requerido já foi entregue, encontrando-se o processo de desvinculação em análise, acrescentando que o mutuário será informado assim que haja decisão sobre o mesmo.
14. Também o requerido juntou aos autos o documento solicitado, mais concretamente uma declaração da Banco 1... de 27.09.2023, onde se afirma que foi entregue pelo mutuário BB toda a documentação solicitada, mediante carta registada de 30.08.2023, e que o processo de desvinculação se encontra em análise e decisão.
15. Veio então a requerente alegar que é o requerido quem tem de reunir as condições necessárias para que, sozinho ou com recurso a fiador, possa assegurar a sua posição no contrato de mútuo, e que, na hipótese de a Banco 1... indeferir a pretensão do requerido em assumir unilateralmente o contrato de mútuo, a requerente ficará, como tem estado, associada, indevidamente, àquele contrato de mútuo, com todos os prejuízos que daí lhe advêm, pelo que se impõe fixar em 30 dias o prazo para o requerido cumprir a sua obrigação, pedido que reitera.
16. Mais uma vez, o requerido veio opor-se, reiterando a sua argumentação.
17. Por considerar que o pedido da autora visa a fixação de prazo para o cumprimento de uma obrigação de meios e que a prova recolhida ao abrigo do artigo 6.º do CPC revela que tal obrigação já está cumprida, o tribunal a quo determinou a notificação das partes para que se pronunciem sobre a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.
18. A requerente opôs-se, afirmando que «requereu a fixação de prazo de 90 dias para que o Réu a desonere do mútuo que a vincula à Banco 1...» e não «para que o réu solicite a desoneração do contrato de mútuo ou que tome as diligências necessárias, o que interessa é o resultado».
19. O requerido reiterou que nada mais pode fazer, que não está obrigado a liquidar o empréstimo para desonerar a requerente, que não lhe é imputável o atraso da Banco 1... e que a concretização do pedido da requerente está dependente daquela instituição bancária.
20. Por despacho proferido em 07.11.2023, o tribunal a quo julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277.º, a. e), do CPC, mais condenando o requerido nas custas da acção, por ter dado causa à inutilidade.

*

Inconformada, a autora apelou desta decisão, formulando as seguintes conclusões:
«A). A recorrente encontra-se vinculada a um contrato de mútuo no banco Banco 1..., celebrado para a aquisição de habitação, a qual foi objeto de partilha e atribuída ao Recorrido.
B). O recorrido ficou responsável de tratar de todo o procedimento necessário à desvinculação da recorrente daquele contrato de mútuo.
C). O Recorrido comunicou à recorrente que durante o ano de 2022 iria resolver o assunto, uma vez que a sua declaração de IRS, referente ao ano de 2021 ultrapassaria o valor necessário para que o mesmo conseguisse garantia de pagamento sem necessidade de constituir novo fiador no contrato de mútuo.
D). Contudo, e encontrando-se já em curso o ano de 2023, o recorrido continua sem cumprir o acordado e retirar a autora do contrato de mútuo ao qual se encontra vinculada.
E) A recorrente, encontrando-se vinculada aquele contrato de mútuo, fica prejudicada quanto á possibilidade de contrair qualquer empréstimo bancário para seu benefício pessoal e familiar.
F). Face ao exposto, a recorrente instaurou ação judicial para fixação do prazo para que o Recorrente negoceie com o banco a sua desoneração do contrato de mútuo, fazendo todas as diligências necessárias.
G). Na ação de fixação de prazo foi proferida sentença que decretou a inutilidade superveniente da lide, sem que fosse fixado qualquer prazo e sem que se mostrasse concretizada a desoneração da recorrente do contrato de mútuo.
H). O recorrido, desde logo, na primeira comunicação que dirige ao tribunal, admite que não pretende contestar os factos e que, o processo encontra-se na Banco 1... a aguardar que estes deem uma decisão se concordam que a Requerente saia do contrato de empréstimo.
I). Em 5 de setembro de 2023 a Banco 1... vem informar aos autos que remeteu carta registada ao recorrente para aquele juntar nota de liquidação do próprio e da fiadora, desconhecendo-se a data em que o mesmo terá entregue os documentos.
J). A desvinculação da Recorrente do contrato de mútuo não depende de terceiros, depende sim de o próprio reunir as condições necessárias impostas pelo banco para assumir, sozinho ou com fiador, o contrato de mútuo, desonerando a recorrente desde contrato.
G). Foi este o motivo de a recorrente instaurar uma ação judicial de fixação de prazo para que o recorrido a desonere – neste caso, como já se referiu, – que aquele reúna as condições necessárias para a desoneração (todas as condições que os bancos exigem aos mutuários para sozinho ou com recurso a fiador, assumirem o pagamento das prestações do contrato de mútuo).
H). A recorrente alegou na sua petição que a sua vinculação àquele contrato de mútuo a prejudica quanto á possibilidade de contrair qualquer empréstimo bancário para seu benefício pessoal e familiar.
I). Se a finalidade da presente ação fosse uma obrigação de meios e não de resultado, a recorrente ficaria eternamente à espera da desoneração do contrato de mútuo.
J). Resulta claro que o pedido formulado pela recorrente – desoneração do contrato de mútuo – ainda não se encontra cumprido, e, não sendo fixado qualquer prazo, o recorrido conformar-se-á com qualquer resposta negativa do banco porque não sente qualquer pressão em desonerar a recorrente daquele contrato.
L). Se assim se conceber, o recorrido nunca se encontrará em mora.
M). Assim sendo, não se encontrando cumprida pelo recorrido a concretização de desoneração da recorrente do contrato de mútuo, pelo que, salvo devido respeito, não poderá ocorrer a inutilidade superveniente da lide, devendo os autos prosseguir os seus termos para a fixação do prazo para cumprimento da obrigação cujo pedido se encontra devidamente concretizado na petição inicial.
N). Os artigos 1026º e 1027º do CPC regulam a fixação judicial de prazo e destinam-se a adjetivar várias disposições do Código Civil, como sejam os artigos 411.º, 777.º, n.º 2 e, situação idêntica à que aqui se retrata a que se retrata no art. 907.º, n.º 2.
O). Com o recurso a este processo especial de jurisdição voluntária visa-se o preenchimento de uma cláusula acessória omissa, indispensável para exigir o cumprimento de uma obrigação e por isso determinar o início da mora.
P). Daí que o art. 1026.º do CPC consigne que o objetivo da ação para fixação de prazo consiste na possibilidade de o tribunal fixar um prazo para o exercício de um direito ou para o cumprimento de um dever.
Q). Se eventualmente o tribunal a quo tivesse dúvidas quanto à finalidade dos autos, era sua obrigação notificar a recorrente para o esclarecer, ou, em última análise, mandar aperfeiçoar a petição inicial apresentada, o que não sucedeu.
R). As disposições legais supramencionadas, relativas ao procedimento judicial para fixação de prazo, partem do princípio de que a obrigação é certa e existe, e, como vimos, o próprio recorrido a admitiu, sendo, porém incerto o prazo para cumprimento, daí a simplicidade dos presentes autos.
S). A recorrente justificou devidamente o seu pedido e indicou o lapso de tempo que refutou adequado para o cumprimento da obrigação – em 90 dias.
T). Contudo, verifica-se que, na presente data a obrigação não se mostra cumprida, nem a recorrente desvinculada do contrato de mútuo.
U). A recorrente instaurou a presente ação para fixação de prazo para obter, através dos meios judiciais, o que ela já tentara pelos meios extrajudiciais sem sucesso.
V). A declaração de inutilidade superveniente da lide, só porque o recorrido já apresentou um requerimento de desvinculação junto da entidade bancária, não resolve a questão que se pretende e não dá resposta ao pedido formulado na ação.
X). O que se pretende é que o recorrido obtenha da entidade bancária a desvinculação da recorrente, concretizando todas as diligências para o efeito.
Y). Não pode assim aceitar a sentença proferida que decreta a inutilidade superveniente da lide, uma vez que o tribunal estava suficientemente esclarecido quanto à finalidade da ação para fixação de prazo.
Z). Sendo omitida a fixação de prazo pelo tribunal, o recorrente nunca estará em mora e a presente ação será completamente inútil, assim como esvazia-se de conteúdo a própria utilidade do processo de jurisdição voluntária de fixação de prazo, o qual se destina tão só a FIXAR UM PRAZO adequado, razoável e necessário ao cumprimento de uma obrigação».
Terminou pugnando pela revogação da decisão recorrida e pela sua substituição por outra que determine a fixação de prazo para cumprimento de uma obrigação, nos exatos termos requeridos na petição inicial.
Não foi apresentada qualquer resposta à alegação da recorrente.
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II. Objecto do Recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
A única questão a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, consiste em saber se ocorre inutilidade superveniente da lide.
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III. Fundamentação
A.
A factualidade a considerar na apreciação do presente recurso corresponde às ocorrências descritas nos pontos 1. a 20. do relatório deste aresto.
B.
1. A impossibilidade e a inutilidade superveniente da lide são, nos termos do disposto no artigo 277.º, al. e), do CPC, causas de extinção da instância.
Embora a lei não defina nem enuncie as circunstâncias geradoras da impossibilidade ou inutilidade superveniente, é comummente aceite que esta ocorre quando, em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, a decisão a proferir já não pode ter qualquer efeito útil, ou porque não é possível dar satisfação à pretensão que o demandante quer fazer valer no processo ou porque o escopo visado com a acção foi atingido por outro meio.
Neste sentido, escreve-se o seguinte no ac. do TRL, de 02.07.2019 (proc. n.º 566/19.1YRLSB.L1-7, rel. Micaela Sousa, disponível em www.dgsi,pt, onde se pode consultar a demais jurisprudência citada sem indicação da fonte): «A instância pode extinguir-se por inutilidade ou impossibilidade superveniente da lide, o que se verifica quando, por facto ocorrido na sua pendência, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência requerida, situação em que não existe qualquer efeito útil na decisão a proferir por já não ser possível o pedido ter acolhimento ou o fim visado com a acção ter sido atingido por outro meio».
É, assim, frequente o tratamento conjunto e o uso indiscriminado dos conceitos de impossibilidade e inutilidade superveniente da lide.
Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra, 2019, p. 321) distinguem impossibilidade superveniente e inutilidade superveniente da lide, nos seguintes termos: «A impossibilidade superveniente da lide pode derivar de três ordens de razões: impossibilidade subjectiva nos casos de relações jurídicas pessoais que se extinguem com a morte do titular da relação, não ocorrendo sucessão nessa titularidade; impossibilidade objectiva nos casos de relações jurídicas infungíveis em que a coisa não possa ser substituída por outra ou o facto prestado por terceiro; impossibilidade causal quando ocorre extinção de um dos interesses em litígio, (v.g. por confusão).
A inutilidade superveniente decorre em geral dos casos em que o efeito pretendido já foi alcançado por via diversa, sendo o caso mais típico o do pagamento da quantia peticionada ou, em geral, o cumprimento espontâneo da obrigação em causa ou a entrega do bem reivindicado».
No mesmo sentido, mas analisando apenas o conceito de impossibilidade da lide, Alberto dos Reis (Código de Processo Civil anotado, vol. I, 3.ª ed., Coimbra, 1982, p. 393) escrevia que, para além das causas de extinção da instância mencionadas na versão originária do artigo 292.º do CPC de 1939 – e que não incluíam de modo expresso a impossibilidade ou a inutilidade superveniente da lide –, «há extinção da instância por impossibilidade da lide, ou porque se extinguiu o sujeito, ou porque se extinguiu o objecto ou porque se extinguiu a causa».
Igualmente no mesmo sentido, escreve-se no ac. do TRL, de 04.03.2010 (proc. n.º 119-A/2001.L1-2, rel. Ezagüy Martins) que «[a] impossibilidade superveniente da lide verifica-se quando por facto ocorrido na pendência da instância a pretensão do autor/exequente não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, e a inutilidade superveniente quando por via de um tal facto a pretensão do autor encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida».
De todo o modo, como referem José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto (Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, Coimbra, 1999, p. 512), citados no mesmo acórdão, «[n]um e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além, por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui, por ele já ter sido atingido por outro meio».
2. A pretensão submetida a juízo por via da presente acção traduz-se na fixação judicial de um prazo para o requerido cumprir a obrigação que assumiu perante a requerente, nos termos descritos na petição inicial.
O processo especial de fixação judicial de prazo está regulado nos artigos 1026.º e 1027.º do CPC, dispondo assim a primeira destas disposições legais: «Quando incumba ao tribunal a fixação do prazo para o exercício de um direito ou o cumprimento de um dever, o requerente, depois de justificar o pedido de fixação, indicará o prazo que repute adequado».
Pressuposto da procedência da acção especial de fixação judicial de prazo é, assim, que tal fixação incumba ao tribunal, como sucede nas situações previstas nos artigos. 411.º, 777.º, n.º 2, 777.º, n.º 3, 897.º, n.º 2, e 907.º, n.º 2, todos do CC.
Segundo Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2.ª ed., Almedina, 2022, p. 495), «[j]ustifica-se o recurso a este processo especial quando se torne necessário o estabelecimento de um prazo, quer pela própria natureza da prestação, quer por virtude das circunstâncias que a determinaram, quer por força dos usos, e as partes não acordem na sua fixação (…). Este processo visa o preenchimento de uma cláusula acessória omissa, indispensável para exigir o cumprimento da prestação e, por isso, determinar o início da mora».
Este processo especial não se destina a aferir a existência, a validade ou a eficácia da relação jurídica de onde emerge o direito a exercer ou o dever a cumprir; ao tribunal cumpre apenas verificar se está justificada a necessidade de fixação de um prazo para o exercício de um direito ou para o cumprimento de uma obrigação, no pressuposto da sua existência, e a definir qual o prazo concretamente adequado. Por isso, o requerente apenas terá que justificar o seu pedido de fixação judicial do prazo, sem estar obrigado a fazer prova dos fundamentos do direito ou do dever que invoca.
Deste modo, citando de novo os mesmos autores (ob. cit., p. 496), «[s]e o autor assumir, no próprio requerimento, que existe dissídio entre as partes quanto à exigibilidade da obrigação ou validade do contrato, o emprego deste processo nesse contexto integra uma excepção dilatória de erro na forma do processo, conducente à absolvição da instância, porquanto a forma processual é absolutamente inadequada».
No presente caso, a requerente alegou que, tendo sido atribuída ao requerido, no âmbito do inventário instaurado para partilha dos bens comuns do casal, a propriedade daquela que foi a casa de morada de família, bem como o passivo correspondente ao valor em dívida no contrato de mútuo que o casal celebrou com a Banco 1... para adquisição dessa casa, o requerido se comprometeu com a requerente «a dirigir-se ao banco Banco 1... e tratar da desoneração daquela no contrato de mutuo contratualizado por ambos com aquele banco». Mais alegou que as partes não estipularam qualquer prazo para o requerido cumprir a obrigação assim assumida, pelo que se torna «imperativa a necessidade de fixação do prazo para que o réu negoceie com o banco a sua desoneração do contrato de mútuo, fazendo todas as diligencias necessárias», em conformidade com o disposto no artigo 777.º do CC.
Perante esta alegação, verificamos que foi devidamente justificada a necessidade da pretendida fixação judicial do prazo. Na verdade, nos termos dos nos n.º 1 e 2, do artigo 777.º, do CC, cuja leitura não pode ser dissociada, a fixação do prazo só é deferida ao tribunal se o mesmo não resultar de uma disposição contratual ou legal, i. é, se estivermos perante uma obrigação pura, e se a sua fixação se tornar necessária pela própria natureza da prestação, por virtude das circunstâncias que a determinaram ou por força dos usos. Ora, no presente caso, não restam dúvidas de que a requerente invocou uma obrigação pura, cuja natureza – negociar com a Banco 1... e fazer todas as diligências necessárias à desvinculação da requerente do contrato de mútuo acima referido – torna necessária a fixação de um prazo para o requerido levar a cabo tal negociação e fazer as diligências que necessárias.
De resto, para além de não questionar a obrigação invocada, o requerido não pôs em causa a necessidade de se fixar um prazo para o seu cabal cumprimento.
Contudo, na contestação e nos requerimentos que apresentou posteriormente, o requerido veio alegar que, já na pendência desta acção, mais concretamente a partir de 02.03.2023, deu início às pretendidas negociações com a Banco 1..., requerendo por escrito a desvinculação da requerente, apresentando propostas de constituição de outras garantias, nomeadamente de novo fiador, e entregando os documentos solicitados pela referida entidade bancária, aguardando apenas a decisão da Banco 1..., nada mais havendo que lhe incumba fazer.
Tal alegação veio a ser confirmada pelos elementos documentais juntos aos autos tanto pelo requerido como pela Banco 1..., pois resulta desses documentos que o requerido já entregou toda a documentação que lhe foi solicitada pela Banco 1... e que o processo de desvinculação se encontra em análise, a aguardar decisão.
Nestes termos, o requerente entende que nada mais lhe incumbe fazer, pois não depende de si, mas sim de terceiros, a desvinculação da autora no contrato de mútuo. Dito de outra forma, considera que a sua obrigação já está cumprida, razão pela qual pediu que o processo seja considerado «improcedente por inutilidade superveniente da lide», numa formulação ostensivamente confusa o tecnicamente incorrecta.
Confrontada com as informações carreadas para os autos, antes descritas, a requerente não questionou a sua veracidade. Porém, defendeu que a obrigação do requerido não está cumprida, argumentando que a sua desvinculação do contrato de mútuo não depende de terceiros, mas sim de o requerido reunir as condições necessárias impostas pelo banco para assumir, sozinho ou com fiador, o contrato de mútuo. Mais afirmou que «requereu a fixação de prazo de 90 dias para que o Réu a desonere do mútuo que a vincula à Banco 1...» e não «para que o réu solicite a desoneração do contrato de mútuo ou que tome as diligências necessárias, o que interessa é o resultado».
Contudo, não foi isto que a requerente alegou na petição inicial para fundamentar o seu pedido. Como vimos, o que a requerente alegou e o requerido aceitou foi, tão só, o seguinte: «o Requerido comprometeu-se com a requerente a dirigir-se ao banco Banco 1... e tratar da desoneração daquela no contrato de mutuo contratualizado por ambos com aquele banco», sem estabelecer um prazo certo para o fazer, pelo que se torna «imperativa a necessidade de fixação do prazo para que o reu negoceie com o banco a sua desoneração do contrato de mútuo, fazendo todas as diligencias necessárias». Isto mesmo é reiterado na conclusão F) da alegação de recurso, onde se afirma que «a recorrente instaurou ação judicial para fixação do prazo para que o Recorrente negoceie com o banco a sua desoneração do contrato de mútuo, fazendo todas as diligências necessárias». Desta alegação não se extrai que o requerido se tivesse comprometido a obter a desvinculação da requerente, pois assumir a obrigação de negociar e fazer as diligências necessárias tendo em vista a desvinculação não é o mesmo que assumir a obrigação de obter essa desvinculação. De resto, nem vemos como o requerido pudesse obrigar-se validamente a obter este resultado, tendo em conta que, na falta de estipulação contratual a este respeito, aquele desvinculação nunca poderia decorrer de um simples acordo entre os mutuários, antes dependendo necessariamente da anuência da mutuante, que esta não está obrigada a conceder, podendo recusar a desvinculação sem ter de fundamentar essa decisão. Isso mesmo decorre dos artigos 405.º, n.º 1, 406.º, n.º 1, do CC.
Em suma, a obrigação invocada pela requerente é, como se afirma na decisão recorrida, uma obrigação de meios e não uma obrigação de resultado, ao contrário do que a recorrente veio posteriormente afirmar e, de forma pouco coerente, reiterar na sua alegação de recurso, designadamente nas conclusões G) (1.ª), I) (2.ª), J) (2.ª), M), X) e Y).
A incoerência da recorrente acaba por ser corroborada pela conclusão Q) da sua alegação de recurso, onde aquela afirma que «[s]e eventualmente o tribunal a quo tivesse dúvidas quanto à finalidade dos autos, era sua obrigação notificar a recorrente para o esclarecer, ou, em última análise, mandar aperfeiçoar a petição inicial apresentada, o que não sucedeu». Ora, não vemos que dúvidas se pudessem ter suscitado ao tribunal a quo perante a alegação da autora, não obstante o seu laconismo.
Mas sempre se dirá que mesmo que a alegação inicial da requerente tivesse o alcance que esta lhe pretende dar agora, da posição assumida pelas partes nos autos decorre que a constituição de tal obrigação de resultado estaria controvertida, o que teria impedido o recurso a este processo especial de fixação de prazo e imposto à requerente a proposição de uma acção para declaração do seu direito.
A recorrente veio também alegar que a sua desvinculação do contrato de mútuo não depende de terceiros, como afirma o recorrido, antes depende de este reunir as condições necessárias impostas pelo banco para assumir, sozinho ou com fiador, o contrato de mútuo; acrescenta que foi este o motivo da instauração desta ação judicial de fixação de prazo: que aquele reúna as condições necessárias para a desoneração – cfr. conclusões J) e G).
Também esta alegação corrobora a incoerência da posição da recorrente, na medida em que na mesma se descreve uma obrigação de meios: reunir as condições impostas pelo banco para a desvinculação da requerente.
Sucede que a requerente nunca alegou que o requerido se tivesse comprometido a praticar actos concretos e específicos tendo em vista a pretendida desvinculação, nem juntou aos autos qualquer documento onde esses actos pudessem ter sido discriminados (note-se que não resulta dos documentos juntos aos autos que o acordo invocado pela requerente e aceite pelo requerido tivesse integrado a transacção que foi homologada no processo de inventário, tudo indicando que se tratou de um acordo extrajudicial e verbal), tal como não alegou que esses actos permaneçam por praticar. Não o fez na petição inicial, nem o fez posteriormente, quando o requerido veio alegar que cumpriu cabalmente a obrigação por si assumida.
A requerente também nunca alegou que o requerido, podendo fazê-lo, se tivesse abstido de praticar algum acto ou cumprir algum requisito de que a Banco 1... tenha feito depender a pretendida desvinculação.
Recapitulando, a requerente limitou-se a alegar que o requerido se comprometeu a negociar com a Banco 1... sua desoneração do contrato, fazendo todas as diligencias.
Ora, já vimos que dos elementos juntos aos autos e não impugnados pelas partes decorre que, já na pendência da acção, o requerido deu início a essas negociações e forneceu todos os elementos que lhe foram solicitados pela Banco 1..., cuja decisão se aguarda. Nestes termos, a obrigação do requerido, tal como foi descrita pela requerente, foi cumprida por aquele já depois de intentada a presente acção, mesmo sem ter sido fixado judicialmente o prazo para esse efeito. A fixação de prazo para aquele efeito seria, agora, uma pura inutilidade.
É, assim, claro que ocorre uma situação de inutilidade superveniente da lide, como ajuizou o tribunal a quo, em virtude de já ter sido atingido por outro meio o resultado visado com esta acção, pelo que importa confirmar a decisão recorrida e condenar a recorrente nas custas da apelação (cfr. artigo 527.º, n.º 1, do CPC).
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IV. Decisão
Pelo exposto, os Juízes da 2.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto julgam totalmente improcedente a apelação e, consequentemente, confirmam a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.

Registe e notifique.
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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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Porto, 5 de Março de 2024
Artur Dionísio Oliveira
Lina Castro Batista
Rodrigues Pires