GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS EM INSOLVÊNCIA
SEGURANÇA SOCIAL
PENHOR
CRÉDITOS LABORAIS
Sumário

I - Perante a antinomia que se identifica entre as regras constantes do art. 333.º, nº 2, al. a) do Código do Trabalho (dispondo que os créditos laborais tem preferência sobre os créditos com idêntico privilégio do Estado), do art. 204.º, nº1 do Código Contributivo (que dispõe que os créditos do ISS se graduam logo após os referidos na alínea a) do n.º 1 do 747.º do CC), da prevalência do privilégio mobiliário geral do ISS sobre qualquer penhor (estabelecida pelo nº 2 do citado art. 204º) e da prevalência do penhor sobre o privilégio mobiliário geral (art. 749º, nº 1 e 666º, nº 1 do C. Civil) a solução está em efectuar (quando concorram na mesma graduação um credito garantido por penhor, um crédito do ISS, um crédito de trabalhadores e um crédito do Estado, todos estes com privilégio mobiliário geral) a seguinte graduação: 1.º: O crédito do ISS; 2.º: O crédito garantido por penhor; 3.º: Os créditos laborais; e 4.º: Os créditos do Estado (…)”.
II – A mesma solução resulta do reconhecimento da natureza de norma especial à que consta do nº 2 do art. 204º do Código Contributivo, relativamente às demais enunciadas.
III – Créditos da Autoridade Tributária provenientes de IRS e IRC, em sede de pagamento pelo produto de venda de um imóvel, dotados de privilégio imobiliário geral, devem ser graduados depois de um crédito do ISS, por dívidas de contribuições para a segurança social, também este beneficiário de idêntico privilégio.

Texto Integral

PROC. N.º 4033/20.2T8OAZ-B.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo de Comércio de Oliveira de Azeméis - Juiz 2

Rel. nº 844
Relator: Rui Moreira
Adjuntos: Fernando Vilares Ferreira
Ramos Lopes

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

1 - RELATÓRIO

Por sentença proferida em 7/1/2024, nestes autos apensos ao processo de insolvência de A... Lda.”, foram julgados verificados e graduados os créditos reclamados e reconhecidos pelo Administrador de Insolvência, com diferentes naturezas: garantidos, privilegiados, comuns e subordinados.
Assim, depois de se determinar que as custas da insolvência e dos seus apensos, bem como as despesas de liquidação, incluindo a remuneração variável do Senhor Administrador da Insolvência, e as dívidas da massa insolvente haveriam de sair precípuas do produto da liquidação dos bens apreendidos ou a apreender, foram graduados créditos nos termos e com os pressupostos que se passam a transcrever, na parte útil para o presente recurso:
“- Graduar os créditos verificados nos seguintes termos:
Através do produto da liquidação dos bens imóveis será(ão) pago(s):
- em primeiro lugar, as custas da insolvência e dos seus apensos, bem como as despesas de liquidação, incluindo a remuneração do/a Senhor/a Administrador/a da Insolvência, e as demais dívidas da massa insolvente;
- em segundo lugar, os créditos reclamados pelo Instituto da Segurança Social, I.P., no valor de € 355.347,65, e os créditos reclamados pela Autoridade Tributária, relativos a IRS e IRC, no valor de € 129.853,01 e € 169,09, de forma rateada, se necessário;
- em terceiro lugar, os créditos reconhecidos como créditos comuns, com rateio entre eles, se necessário.
- em último lugar, os créditos subordinados, pela ordem prevista no art. 48º do CIRE.

*
Através do produto da liquidação das acções da B... apreendidas, será(ão) pago(s):
- em primeiro lugar, as custas da insolvência e dos seus apensos, bem como as despesas de liquidação, incluindo a remuneração do/a Senhor/a Administrador/a da Insolvência, e as demais dívidas da massa insolvente;
- em segundo lugar, os créditos reconhecidos à B..., S.A.;
- em terceiro lugar, os créditos dos trabalhadores id. sob os nºs 3 a 8, 10 a 30, 35, 37 a 56, 59, 61 a 67, 72 a 76, 79 a 82, 84 a 94, 96 a 159, 162, 167 a 169, 171 a 190, 192 a 204 e do Fundo de Garantia Salarial, de forma rateada, se necessário;
- em quarto lugar, os créditos reclamados pelo Instituto da Segurança Social, I.P., no valor de € 355.347,65, e os créditos reclamados pela Autoridade Tributária, relativos a IVA, IRS e IRC, no valor de € 387.994,95, € 129.853,01 e € 169,09, de forma rateada, se necessário;
- em quinto lugar, os créditos reconhecidos como créditos comuns, com rateio entre eles, se necessário.
- em último lugar, os créditos subordinados, pela ordem prevista no art. 48º do CIRE.”
*
(…)
*
Desta decisão veio recorrer o credor Instituto da Segurança Social, IP
- na parte em que a mesma graduou em segundo lugar tanto os créditos por si reclamados, como os créditos reclamados pela Autoridade Tributária e Aduaneira, provenientes IRS e IRC, para pagamento “de forma rateada, se necessário”, pelo produto da venda dos bens imóveis apreendidos
- na parte em que, para pagamento pelo produto da venda das acções da B..., graduou, (em segundo lugar) os créditos reclamados pela B..., S.A., seguindo-se (em terceiro lugar) os créditos reclamados pelos trabalhadores e pelo FGS e, só subsequentemente (em quarto lugar), os créditos reclamados pelo Instituto da Segurança Social, I.P. e pela Autoridade Tributária e Aduaneira, provenientes de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), IRS e IRC, “de forma rateada, se necessário”.
*
Terminou o seu recurso formulando as seguintes conclusões:
1. O ora recorrente reclamou créditos no montante global de € 105.820,89 (€ 796.254,71 (setecentos e noventa e seis mil duzentos e cinquenta e quatro euros e setenta e um cêntimos),
2. Parte dos créditos reclamados, por se encontrarem vencidos nos 12 meses anteriores ao início do processo de insolvência, beneficiam, também, dos privilégios creditórios imobiliário e mobiliário geral (€ 355.347,65) – cf. artigo 97.º, n.º 1, alíneas a) e b), do C.I.R.E. e artigos 204.º e 205.º do C.R.C..
3. Tais créditos – assim como os créditos dos credores Autoridade Tributária e Aduaneira, B..., S.A., trabalhadores e FGS – foram objeto de reconhecimento pelo Sr. Administrador da Insolvência, nos termos do artigo 129.º do CIRE.
4. Por sentença proferida pelo Tribunal a quo, foram os aludidos créditos reconhecidos e graduados da seguinte forma: (…)
5. Acontece que a ordem de graduação da douta sentença, não tem, com o devido respeito, qualquer correspondência com os textos legais porque, na graduação do produto da venda dos imóveis, o crédito da Autoridade Tributária e Aduaneira se encontra graduado a par com o crédito do ISS, IP.
6. Violando, assim, a norma legal prevista no artigo 748.º, nº 1, do C.C., conjugada com as normas legais previstas no artigo 205.º do C.R.C., no artigo 111.º do C.I.R.S. e no artigo 116.º do C.I.R.C.
7. De acordo com o artigo 205.º do C.R.C., os créditos da Segurança Social gozam de privilégio imobiliário sobre os bens móveis existentes no património do contribuinte e, por isso, graduam-se logo após os créditos referidos no artigo 748.º do C.C..
8. É no aludido artigo 748.º do C.C. que se encontra prevista a ordem a que os créditos com privilégio imobiliário devem obedecer,
9. Nele se ditando que (apenas) terão prioridade os créditos do Estado – referentes a contribuição predial, a sisa e a imposto sobre as sucessões e doações – e os créditos das autarquias locais – devidos por contribuição predial.
10. Todavia, tais tributos já se encontram revogados por força do Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de novembro, que aprovou os novos Códigos do Imposto Municipal sobre Imóveis (C.I.M.I.) e do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (C.I.M.T.). 11. E, por essa razão, deve o artigo 748.º do C.C. ser interpretado com recurso a uma perspetiva atualista.
12. Ou seja, quando a mencionada norma legal faz alusão à contribuição predial, à sisa e ao imposto sobres as sucessões e doações, deve entender-se que o mesmo se refere ao IMI e ao IMT, respetivamente.
13. E, tendo em conta que o legislador foi taxativo no elenco dos impostos que considera ter prioridade na graduação dos privilégios imobiliários,
14. Dúvidas não podem existir de que os impostos sobre o rendimento, nomeadamente o IRS e o IRC, se encontram excluídos do âmbito de aplicação da referida norma legal.
15. A este respeito, vejam-se, designadamente, os Acórdãos proferidos pelo colendo Tribunal da Relação de Guimarães em 12/09/2019 e em 05/05/2022, no processo n.º 5170/17.6T8VNF-D e no processo n.º 3863/21.2T8VNF-A.G1, respetivamente e pelo Tribunal da Relação do Porto em 11/01/2024, no processo n.º 3129/22.0T8OAZ-A.P1 (disponíveis para consulta em www.dgsi.pt).
16. Pese embora não se negue que os créditos objeto da presente demanda (IRS, IRC e Segurança Social) gozam do mesmo privilégio creditório imobiliário,
17. Entende o ora recorrente que não é por gozarem do mesmo privilégio creditório que, necessariamente, terão que ter a mesma ordem de graduação.
18. E muito menos aceita a hipótese dos créditos decorrentes de IRS e de IRC se poderem sobrepor aos créditos da Segurança Social….
19. Já que, na verdade, é o crédito da Segurança Social que beneficia dessa preferência por força do preceituado no artigo 205.º do C.R.C.
20. Em razão disso, a ordem da graduação de créditos da decisão ora em crise devia ter sido distinta, na medida em que os créditos da Segurança Social sempre teriam que assumir uma posição preferente em relação aos créditos reclamados pela Autoridade Tributária e Aduaneira a título de IRS e de IRC.
21. Como tal, a ordem da graduação de créditos da decisão ora em crise deverá ser alterada, por outra que gradue os créditos reconhecidos da seguinte forma:
Através do produto da liquidação dos bens imóveis apreendidos será(ão) pago(s):
- em primeiro lugar, as custas da insolvência e dos seus apensos, bem como as despesas de liquidação, incluindo a remuneração do/a Senhor/a Administrador/a da Insolvência, e as demais dívidas da massa insolvente;
- em segundo lugar, os créditos reclamados pelo Instituto da Segurança Social, I.P., no valor de € 355.347,65;
- em terceiro lugar, os créditos reclamados pela Autoridade Tributária, relativos a IRS e IRC, no valor de € 129.853,01 e € 169,09;
- em quarto lugar, os créditos reconhecidos como créditos comuns, com rateio entre eles, se necessário;
- em último lugar, os créditos subordinados, pela ordem prevista no art. 48º do CIRE.
22. No caso em apreço, não tendo a sentença proferida pelo Tribunal a quo considerado a preferência dos créditos reclamados pelo aqui Apelante, dúvidas não restam de que terá violado o disposto nas normas legais previstas no artigo 748.º do C.C., conjugado com o artigo 111.º do C.I.R.S., o artigo 116.º do C.I.R.C. e o artigo 205.º do C.R.C..
23. Sem conceder, a douta sentença não tem igualmente correspondência com os textos legais, porquanto, no que concerne à graduação do produto da venda das ações da B... decidiu, por um lado, que o crédito da B... e os créditos laborais e do FGS se sobrepõem aos créditos reclamados pela Autoridade Tributária (a título de IVA e de IRS) e pelo ISS, IP com igual privilégio creditório mobiliário geral,
24. E, por outro lado, que os créditos da Autoridade Tributária se encontram em paridade com os créditos da Segurança Social.
25. Ao decidir desta maneira, violou o disposto nas normas legais previstas no artigo 747.º e 749.º do C.C. conjugados com o artigo 204.º do C.R.C., com o artigo 333.º do C.T., com o artigo 111.º do C.I.R.S. e com o artigo 116.º do C.I.R.C.
26. Os créditos da Segurança Social, relativos a quotizações e contribuições, os créditos da Autoridade Tributária, relativos a IVA, IRS e IRC, bem como os créditos salariais dos trabalhadores gozam de privilégios idênticos, nos termos das normas anteriormente referidas. 27. No entanto, quer o crédito dos trabalhadores emergente de contrato de trabalho, quer o crédito da Autoridade Tributária relativamente a IVA, IRS e IRC, cederiam face ao penhor, nos termos do artigo 749.º, n.º 1, do C.C.
28. Tal não sucede com os créditos da Segurança Social que gozam de privilégio mobiliário geral, na medida em que o artigo 204.º, n.º 2, do C.R.C., determina a prevalência destes créditos sobre o penhor.
29. O intérprete deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e exprimiu o seu pensamento de forma adequada (cf. artigo 9.º, n.º 3 do C.C.).
30. Com o C.R.C. de 2009, o legislador decidiu manter a primazia do privilégio mobiliário dos créditos da Segurança Social sobre o penhor anteriormente constituído, não obstante já vigorar na nossa ordem jurídica o atual regime de privilégios creditórios previsto no C.T.
31. Não ignorando a regra geral da ineficácia dos privilégios mobiliários gerais do artigo 749.º, nº 1, do C.C., contra terceiros titulares de direitos sobre as coisas abrangidas pelo privilégio, ao hierarquizar o privilégio mobiliário geral dos créditos da Segurança Social contra o penhor previamente constituído, o legislador colocou-o numa situação de primazia relativamente a todos os outros créditos dotados do mesmo privilégio, incluindo os créditos mencionados no artigo 333.º, nº 1, al. a) e nº 2, al. a), do C.T.
32. Essa opção legislativa justificou-se pela importância social de que cada vez maior reveste a garantia mobiliária e imobiliária dos créditos da Segurança Social, na medida em que a sustentabilidade desta assume hoje uma importância acrescida para o Estado e para os cidadãos, e quão dependente essa sustentabilidade está pela sua enorme repercussão social, que se sobrepõe ao direito individual às retribuições fundadas no contrato de trabalho.
33. “(…) Se os trabalhadores merecem toda a protecção que a lei lhes confere, não a merece menos a segurança social, ora plasmada no ISS; e, pelos altos valores sociais que este último prossegue - valores cujo correspondente direito se encontra consagrado no citado art.63.º da Constituição. ¬Nesse sentido“ (…) é logicamente inevitável que são eles que têm de consubstanciar a cúpula, a nível dos créditos ora em questão, da protecção que o legislador lhes quer conferir”. – cf. Ac. do STJ de 16/12/2009, relatado pelo Ex.mo Cons. Fernando da Costa Soares.
34. Com a atribuição de prioridade aos créditos laborais sobre os créditos referidos no nº 1, do artigo 747.º do C.C., o que o artigo 333.º, nº 2, alínea a), do C.T. visa conferir é uma preferência relativa aos créditos do Estado e das autarquias locais, e já não quanto a outros, mesmo os equiparados, como o caso do crédito da Segurança Social dotado desse privilégio.
35. Uma vez que o artigo 204.º, nº 1, do C.R.C. apenas impõe que a graduação dos créditos da Segurança Social se faça nos termos referidos na alínea a), do nº 1, do artigo 747.º do C.C., da conjugação deste preceito com o artigo 333.º, nº 2, al. a), do C.T., não se pode subverter a vontade do legislador ao remeter os créditos da Segurança Social com privilégio mobiliário geral, colocando-o numa posição subalterna face aos créditos laborais, e muito menos face aos créditos do Estado.
36. Esta interpretação é aquela que permite uma solução mais harmoniosa e uniforme, tendo em conta as normas em confronto.
37. Sobre a preferência dos créditos da Segurança Social relativamente aos créditos pignoratícios, laborais e fiscais, vejam-se, designadamente, os acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação do Porto em 11/12/2012 e em 26/09/2023, nos processos n.º 535/18.9T8AMT-C.P1 e n.º 943/19.8T8OAZ-B.P1, respetivamente.
38. Ao contrário do decidido na sentença recorrida, é o crédito da Segurança Social que beneficia de primazia face aos restantes, por força do preceituado no artigo 204.º do C.R.C. em conjugação com os artigos 747.º e 749 do C.C., e com o artigo 333.º do C.T.
39. Assim, a decisão recorrida deve ser alterada, graduando em primeiro lugar o crédito do ISS, com privilégio mobiliário geral; logo após o crédito garantido por penhor; ao que se seguem os créditos laborais com privilégio mobiliário geral e, por fim, o crédito da Autoridade Tributária e Aduaneira com privilégio mobiliário geral.
40. Em razão disso, a ordem da graduação de créditos da decisão ora em crise deverá ser alterada, por outra que gradue os créditos reconhecidos da seguinte forma:
Através do produto da liquidação das acções da B... apreendidas, será(ão) pago(s):
- em primeiro lugar, as custas da insolvência e dos seus apensos, bem como as despesas de liquidação, incluindo a remuneração do/a Senhor/a Administrador/a da Insolvência, e as demais dívidas da massa insolvente;
- em segundo lugar, os créditos reclamados pelo Instituto da Segurança Social, I.P., no valor de € 355.347,65;
- em terceiro lugar, os créditos reconhecidos à B..., S.A.;
- em quarto lugar, os créditos dos trabalhadores id. sob os nºs 3 a 8, 10 a 30, 35, 37 a 56, 59, 61 a 67, 72 a 76, 79 a 82, 84 a 94, 96 a 159, 162, 167 a 169, 171 a 190, 192 a 204 e do Fundo de Garantia Salarial, de forma rateada, se necessário;
- em quinto lugar, os créditos reclamados pela Autoridade Tributária, relativos a IRS e IRC, no valor de € 129.853,01 e € 169,09;
- em sexto lugar, os créditos reconhecidos como créditos comuns, com rateio entre eles, se necessário;
- em último lugar, os créditos subordinados, pela ordem prevista no art. 48º do CIRE.
41. A aplicação e interpretação das referidas normas legais, pelo tribunal a quo é desadequada, não restando dúvidas ao apelante que a sentença violou o disposto nas normas legais previstas nos artigos 747.º e 749 do C.C., conjugadas com o artigo 204.º do C.R.C. e com o artigo 333.º do C.T.
TERMOS EM QUE, nos melhores de Direito que V. Exas. Doutamente suprirão, deverá a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo ser revogada e substituída por outra que, na ordem da graduação dos créditos, por referência ao produto da venda dos bens imóveis, dê primazia aos créditos reclamados pelo ora recorrente em detrimento dos créditos reclamados pela Autoridade Tributária e Aduaneira a título de IRS e de IRC; e, por referência ao produto da venda das ações da B... dê primazia aos créditos reclamados pelo ora recorrente em detrimento do crédito pignoratício, dos créditos laborais e dos créditos reclamados pela Autoridade Tributária a título de IVA, IRS e IRC, assim se fazendo a costumada Justiça.”
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Não foi oferecida qualquer resposta ao recurso.
O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo.
Foi recebido nesta Relação, cabendo decidi-lo.
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2- FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC.
Assim, quanto ao recurso do ISS, cumprirá decidir
1. se, em função de uma concorrência de do seu crédito com os da Autoridade Tributária, provenientes de IRS e IRC, aquele seu crédito deve prevalecer sobre estes, ao serem feitos pagamentos pelo produto da venda dos imóveis apreendidos para a massa insolvente;
2 . se ao serem feitos pagamentos pelo produto da venda de acções da B..., o seu crédito deve ser graduado antes do do credor pignoratícios (a própria B...), do FGS, dos créditos dos trabalhadores e dos créditos Autoridade Tributária, provenientes de IVA, IRS e IRC.
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Na decisão destas questões, seguir-se-á de perto a decisão já proferida em situação congénere, constante do Ac. de 26/9/2023, proferido no proc. nº 943/19.8T8OAZ-B.P1, também relatado pelo aqui relator.
Ter-se-á presente a factualidade que consta do relatório que antecede, aceitando-se sem qualquer controvérsia a identificação, natureza e garantias dos créditos graduados na decisão recorrida.
Assim, importa ter presente, entre o mais, a afirmação constante da sentença recorrida, que não é alvo de qualquer impugnação, nos termos da qual o tribunal declarou:
“Do Penhor
Dispõe o art. 666º do C.C. que o penhor confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não susceptíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro.
(…)
Beneficiam desta garantia os créditos reconhecidos à B..., S.A., em relação às acções da B..., S.A. apreendidas.”
Além disso, na sequência da decisão sobre as impugnações oferecidas à lista de créditos reconhecidos, mostra-se junta, em 22/6/2023, a lista de créditos reconhecidos atualizada, conforme determinado por despacho judicial.
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A primeira questão a decidir, incluída no recurso do ISS, refere-se à graduação do créditos por si reclamado, na sua relação com os créditos reclamados pela Autoridade Tributária e Aduaneira, provenientes IRS e IRC, no tocante ao respectivo pagamento pelo produto da venda do bem imóvel apreendido.
Nesta parte, a sentença dispôs o pagamento dos créditos verificados, pela seguinte ordem:
- em primeiro lugar, as custas da insolvência e dos seus apensos, bem como as despesas de liquidação, incluindo a remuneração do/a Senhor/a Administrador/a da Insolvência, e as demais dívidas da massa insolvente;
- em segundo lugar, os créditos reclamados pelo Instituto da Segurança Social, I.P., no valor de € 355.347,65, e os créditos reclamados pela Autoridade Tributária, relativos a IRS e IRC, no valor de € 129.853,01 e € 169,09, de forma rateada, se necessário;
- em terceiro lugar, os créditos reconhecidos como créditos comuns, com rateio entre eles, se necessário.
- em último lugar, os créditos subordinados, pela ordem prevista no art. 48º do CIRE.
Alega, porém, o ISS que o seu crédito deve ser graduado depois da primeira categoria, ou seja: dívidas da massa insolvente, crédito do ISS (no valor referido), crédito da A.T, a título de IRS e IRC, créditos comuns, com rateio entre eles, se necessário; e créditos subordinados.
A questão não oferece dúvidas, sendo alvo de sucessiva jurisprudência.
Com efeito, dispõe o art. 205º do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social: “Os créditos da segurança social por contribuições, quotizações e respetivos juros de mora gozam de privilégio imobiliário sobre os bens imóveis existentes no património do contribuinte à data da instauração do processo executivo, graduando-se logo após os créditos referidos no artigo 748.º do Código Civil.”
O art. 748º do C. Civil, ao estabelecer privilégios creditórios imobiliários a favor do Estado, apenas prevê os créditos resultantes de IMI, IMT e Imposto sobre Sucessões e doações, ali não constando créditos fiscais por IRS ou IRC. Assim, apesar de os créditos por estes impostos gozarem igualmente de privilégio imobiliário geral, nos termos dos art.ºs 111.º do CIRS e 116.º do CIRC, não podem ter-se por equiparados aos previstos no art. 748º do C.Civil. E, como tal, cabendo graduar os créditos do ISS após os previstos no art. 748º do C.C., haverão estes de preceder sobre os seguintes créditos beneficiários também de privilégio imobiliário, quais sejam os resultantes de IRS e IRC.
Isto mesmo se decidiu, entre outros, no Ac. do TRP de 18-12-2018 (proc. nº 52/10.1TYVNG-A.P1, Relator: LEONEL SERÔDIO), disponível em dgsi.pt.
Quanto a esta questão, tem pois razão o apelante ISS, cabendo dar provimento ao seu recurso e substituir a decisão recorrida, nesta parte, por outra, que irá dispõe o seguinte:
Através do produto da venda/liquidação dos imóveis apreendidos será(ão) pago(s):
1º - As custas da insolvência e dos seus apensos, bem como as despesas de liquidação, incluindo a remuneração do/a Senhor/a Administrador/a da Insolvência, e as demais dívidas da massa insolvente;
2º - O crédito reconhecido ao Instituto da Segurança Social, I.P., no valor de valor de €355.347,65;
3º - Os créditos reclamados pela Autoridade Tributária, relativos a IRS e IRC, no valor de € 129.853,01 e € 169,09.
4º- Os créditos comuns, com rateio entre eles, se necessário.
5º - Os créditos subordinados, pela ordem prevista no art. 48º do CIRE.
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A questão a decidir de seguida, também incluída no recurso do ISS, refere-se à graduação do crédito por si reclamado, a obter pagamento por venda das acções da B..., na sua relação com os créditos reconhecidos aos trabalhadores e ao Fundo de Garantia Salarial, aos credores titulares de penhor sobre tais acções, à Autoridade Tributária e Aduaneira, provenientes de IVA, IRS e IRC, sem prejuízo de outros créditos graduados sucessivamente, mas que, por isso, mesmo, não conflituam com o do apelante.
A este propósito, a sentença em crise ordenou a graduação nos seguintes termos, quanto às acções da B...
- em primeiro lugar, as custas da insolvência e dos seus apensos, bem como as despesas de liquidação, incluindo a remuneração do/a Senhor/a Administrador/a da Insolvência, e as demais dívidas da massa insolvente;
- em segundo lugar, os créditos reconhecidos à B..., S.A.;
- em terceiro lugar, os créditos dos trabalhadores id. sob os nºs 3 a 8, 10 a 30, 35, 37 a 56, 59, 61 a 67, 72 a 76, 79 a 82, 84 a 94, 96 a 159, 162, 167 a 169, 171 a 190, 192 a 204 e do Fundo de Garantia Salarial, de forma rateada, se necessário;
- em quarto lugar, os créditos reclamados pelo Instituto da Segurança Social, I.P., no valor de € 355.347,65, e os créditos reclamados pela Autoridade Tributária, relativos a IVA, IRS e IRC, no valor de € 387.994,95, € 129.853,01 e € 169,09, de forma rateada, se necessário;
- em quinto lugar, os créditos reconhecidos como créditos comuns, com rateio entre eles, se necessário.
- em último lugar, os créditos subordinados, pela ordem prevista no art. 48º do CIRE
Na sua apelação, o ISS defende que o seu crédito deve ser graduado em segundo lugar, antes do crédito da B... garantido por penhor, dos dos trabalhadores e do FGS e dos da AT, por IVA, IRS e IRC.
Sobre esta matéria, este TRP, em acórdão de 16/6/2020 ( proc. nº 2720/18.4T8STS-C.P1, em dgsi.pt, redigido pelo também aqui relator), já se pronunciou em termos que nada justifica que sejam alterados e que, por isso, se passam simplesmente a repetir.
Ali se anotou algum incongruência do regime estabelecido, face ao qual se afigura que:
- o crédito privilegiado dos trabalhadores prevalece sobre o crédito privilegiado da Segurança Social (cfr. artigo 333º, nº 2, a) do Código do Trabalho e artigo 204º, nº 1 da Lei nº 110/2009) mas cede perante o crédito garantido por penhor (artigo 666º e 749º, nº1, do CC);
- o crédito privilegiado da Segurança Social prevalece sobre o crédito garantido por penhor (artigo 204º, nº 2 da Lei nº 110/2009);
- o crédito garantido por penhor prevalece sobre os créditos dos trabalhadores e sobre os créditos do Estado por impostos (artigo 666º e 749º, nº 1 do Código Civil).
Perante esta incongruência, são conhecidas diferentes respostas da jurisprudência.
Sem prejuízo do reconhecimento de uma pretensão de equidade a diferentes soluções, entendemos não as podermos acompanhar, antes se justificando afirmar a tese que vem invocada pelo ora apelante, quanto à precedência do seu crédito. Cremos até não se justificar a busca de argumentos complementares, perante as razões expostas nos Acórdãos do TRC de 21/5/2019 (proc. nº 4705/17.9T8VIS-B.C1) e de 28/5/2019 (proc. nº 3810/17.6T8VIS-B.C1), ambos disponíveis em dgsi.pt, pois que estas se impõem, determinando a solução do problema
Refere-se no sumário daquele primeiro acórdão: 1 - O privilégio mobiliário geral, não incidindo sobre coisa certa e determinada, mas sobre o património do devedor, não é um verdadeiro direito real; mas uma mera preferência de pagamento, que assume a eficácia que lhe é própria aquando do acto da penhora, ou seja, que confere preferência no pagamento em relação aos credores comuns. 2 - O penhor é uma garantia real completa, que confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito com preferência sobre os demais credores. 3 – Daqui decorre que o penhor prevalece contra e em relação aos privilégios mobiliários gerais de que gozam os créditos laborais e os créditos do Estado. 4 – E também seria assim em relação ao privilégio mobiliário geral de que gozam os créditos do ISS, se a lei – art. 204.º/2 do CRCSPSS – não determinasse, imperativamente, que este privilégio do ISS prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior. 5 - Perante o conflito (de disposições legais) que assim se estabelece entre o art. 333.º/2/a) do C. T. (ao dizer que os créditos laborais tem preferência sobre os créditos com idêntico privilégio do Estado), o referido art. 204.º/1 do CRCSPSS (quando diz que os créditos do ISS se graduam logo após os referidos na alínea a) do n.º 1 do 747.º do CC), a prevalência do privilégio mobiliário geral do ISS sobre qualquer penhor (estabelecida imperativamente pela lei) e a também referida prevalência do penhor sobre o privilégio mobiliário geral, a solução está em efectuar (quando concorram na mesma graduação um credito garantido por penhor, um crédito do ISS, um crédito de Trabalhadores e um crédito do Estado, todos estes com privilégio mobiliário geral) a seguinte graduação: 1.º: O crédito do ISS; 2.º: O crédito garantido por penhor; 3.º: Os créditos laborais; e 4.º: Os créditos do Estado (…)”.
Tal como se escreveu no anterior acórdão deste TRP, se logo neste sumário se surpreendem as razões da solução para a questão que nos ocupa, maxime a imperatividade da regra constante do art. 204.º/2 do CRCSPSS que determina que este privilégio do ISS prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior, o segundo dos acórdãos citados mais profundamente evidencia a impossibilidade de se optar por uma solução divergente, designadamente a defendida pelo apelante.
Além de citar Salvador da Costa (O Concurso de Credores, 2ª edição, Almedina, pág. 252.) e a sua afirmação de que “…no concurso entre o direito de crédito das instituições de segurança social garantido pelo referido privilégio mobiliário geral e o direito de crédito garantido por um direito de penhor, prevalece o primeiro” e Miguel Pestana de Vasconcelos (Direito das Garantias, 2013, 2º edição, Almedina, pág. 398) quando afirma: “Note-se, porém, que há um privilégio mobiliário geral que, de forma totalmente excepcional, vale contra terceiros, prevalecendo sobre qualquer penhor, mesmo que de constituição anterior: o privilégio mobiliário geral da segurança social que assegura os créditos por contribuições, quotizações e respectivos juros de mora (art. 204.º n.º 2 Código Contributivo, CRCSPSS). Nessa medida, é mesmo mais forte do que um privilégio especial, pois este não prevalece sobre garantias reais anteriores”, o mesmo acórdão salienta que, contra a opinião deste último autor, o próprio Tribunal Constitucional “já foi chamado a apreciar a constitucionalidade da norma que estabelece a prevalência do privilégio da segurança social relativamente ao penhor (norma que, à data, correspondia ao artigo 10º, nº 2, do Dec. Lei nº 103/80 e que corresponde actualmente ao artigo 204º, nº 2, do Dec. Lei nº 110/2009) e entendeu que não existia qualquer inconstitucionalidade (cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 64/2009 e 108/2009, de 10/02/2009 e 10/03/2009, respectivamente).”
E conclui que uma tal solução, de precedência do crédito da Segurança Social sobre um crédito garantido por penhor, não sofre qualquer desvio quando, no caso, concorram outros créditos tal como acontece no caso em apreço, designadamente créditos laborais e outros créditos da autoridade tributária, ambos beneficiários de privilégios creditórios mobiliários gerais.
Aí se diz “Ora, à luz destes princípios, pensamos que não poderá prevalecer a solução de graduar o crédito garantido por penhor à frente dos créditos da segurança social. E tal solução não pode prevalecer porque, além de não ter na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, contraria, aberta e frontalmente, a letra da lei (o artigo 204º, nº 2, do CRCSPSS), bem como o pensamento e vontade do legislador quando determinou, de forma expressa e sem margem para qualquer dúvida, que o privilégio dos créditos da segurança social prevalece sobre qualquer penhor. Importa notar que a prevalência do privilégio da segurança social relativamente ao penhor já constava do Dec. Lei nº 103/80 de 09/05 (cfr. artigo 10º, nº 2) e a transposição da norma em questão para a legislação actualmente em vigor evidencia o claro e firme propósito do legislador em assegurar a prevalência dos créditos por contribuições devidas à segurança social relativamente ao penhor, propósito que se insere na necessidade de assegurar a sustentabilidade da segurança social e o direito à segurança social que a todos é garantido pelo artigo 63º da Constituição da República. Pensamos, portanto, em face disso, que não poderá prevalecer a solução de graduar o crédito garantido por penhor à frente dos créditos da segurança social.
Mas se essa solução não é viável pelas razões apontadas, pensamos que também não poderá prevalecer a solução de graduar o crédito garantido por penhor atrás dos créditos dos trabalhadores e do Estado garantidos por privilégio mobiliário, uma vez que tal solução também não encontra o mínimo apoio na letra da lei e também contraria abertamente o pensamento e a vontade do legislador quando determinou (artigo 749º do CC) que tais privilégios não prevalecem sobre o penhor.
Pensamos, portanto, que a observância da lei e o respeito pelo pensamento e vontade legislativos impõem necessariamente que os créditos da segurança social sejam graduados com preferência relativamente aos créditos garantidos por penhor e que estes sejam graduados com preferência relativamente aos demais créditos garantidos por privilégio mobiliário, designadamente, os créditos laborais e os créditos do Estado.
É certo que a graduação dos créditos assim efectuada implica que os créditos dos trabalhadores e os créditos do Estado sejam graduados após os créditos da segurança social, quando é certo que, por aplicação dos artigos 204º, nº 1, da Lei nº 110/2009, 333º do Código do Trabalho e 747º do CC, os créditos da Segurança Social seriam graduados a par dos créditos do Estado e depois dos créditos dos trabalhadores. Importa notar, no entanto, que essa graduação nem sequer entra em colisão directa e frontal com o artigo 333º do Código do Trabalho, uma vez que aqui apenas se determina que os créditos dos trabalhadores são graduados antes dos referidos no artigo 747º do CC e esta disposição nem sequer alude aos créditos da segurança social (sendo que estes são graduados nos termos da alínea a) desse artigo 747º por força de disposição legal que consta de outro diploma) e, portanto, se os créditos dos trabalhadores forem graduados antes dos créditos do Estado e depois dos créditos da segurança social, estar-se-á a respeitar – ou pelo menos não se estará a desrespeitar abertamente – o citado artigo 333º onde não se determina (de modo expresso) que esses créditos sejam graduados antes da segurança social. Por outro lado, ainda que por aplicação das citadas normas legais os créditos da segurança social e os créditos do Estado devessem ser graduados a par, pensamos que a inobservância dessa regra será, apesar de tudo, menos ostensiva e assumirá uma menor gravidade quando comparada à inobservância das demais regras supra citadas por via das quais o legislador manifestou, de modo claro e expresso, a sua vontade de que o privilégio da segurança social prevalecesse sobre o penhor e que este prevalecesse sobre os demais privilégios.”
Ainda no mesmo sentido, cfr. Ac. do TRL de 2/7/2019, no proc. nº 2789/14.0T8SNT-K.L1, e Ac. do TRG de 12/9/2019, no proc. nº 5170/17.6T8VNF-D.G1, ambos disponíveis em dgsi.pt.
Acresce que, para além do acerto do que acima se transcreveu, a que aderimos na íntegra, perante a incongruência da descrita situação normativa, uma outra ordem de razões acaba por tornar incontornável a mesma solução.
Como se sabe, os critérios de superação de antinomias normativas são a hierarquia, a especialidade e a cronologia das regras em tensão (Baptista Machado (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, pg. 170)
No caso, os diplomas em conflito têm idêntica categoria hierárquica. O que convoca a aplicação do segundo critério: o da especialidade.
Como define Baptista Machado (ob. cit., pg. 95) normas especiais são aquelas que consagram uma disciplina nova ou diferente para círculos mais restritos de pessoas, coisas ou relações.
Segundo esta definição, a regra constante do art. 204º, nº 2 do CRCSPSS (Código Contributivo), aprovado pela lei nº 110/2009, assume a natureza de norma especial em relação às regras constantes quer do Código Civil, quer do Código do Trabalho, aprovado pela Lei nº 7/2009, na medida em que constitui uma disciplina específica e divergente relativamente às demais, visando dotar de uma inequívoca precedência o interesse de satisfação dos créditos da segurança social sobre os demais créditos do próprio Estado, de credores pignoratícios ou titulados por trabalhadores. Ou seja, estabelece uma regra específica para um determinado tipo de relação jurídica.
Podendo concordar-se ou não com tal solução – algo que aqui não compete apreciar - cabe reconhecer que ela nem sequer é nova ou única, pois que o Estado sempre lança mão dos mais diversos meios para conseguir o pagamento dos seus créditos de natureza fiscal, como forma de compensar o distanciamento que tem em relação ao devedor, quando comparado com outro tipo de credores, por regra mais lestos a tentarem obter pagamento dos seus valores.
Por conseguinte, também por aplicação do critério da especialidade caberá impor a aplicação da regra constante do nº 2 do art. 204º do CRCSPSS para a graduação dos créditos verificados, do que resulta a precedência do crédito da segurança social sobre os demais créditos graduados (salvo os referentes a dívidas da massa insolvente e custas do processo) e que devem ser pagos por via da venda das acções da B... e da C....
Resta, pois, conceder provimento ao recurso do ISS, também nesta parte, cabendo revogar em conformidade a decisão recorrida, a substituir por outra que, nesta parte, e para serem pagos pelo produto das vendas das acções da B..., gradua os créditos nos termos seguintes:
1º - As custas da insolvência e dos seus apensos, bem como as despesas de liquidação, incluindo a remuneração do/a Senhor/a Administrador/a da Insolvência, e as demais dívidas da massa insolvente;
2º - Os créditos reclamados pelo Instituto da Segurança Social, I.P., no valor de € 355.347,65;
3º - O crédito reconhecido à B..., S.A., garantido por penhor;
4º - Os créditos reconhecidos aos trabalhadores identificados na lista de créditos reconhecidos sob os nºs 3 a 8, 10 a 30, 35, 37 a 56, 59, 61 a 67, 72 a 76, 79 a 82, 84 a 94, 96 a 159, 162, 167 a 169, 171 a 190, 192 a 204 e do Fundo de Garantia Salarial, de forma rateada, se necessário, de forma rateada, se necessário;
5º - Os créditos reclamados pela Autoridade Tributária, relativos a IVA, IRS e IRC, no valor de € 387.994,95, € 129.853,01 e € 169,09, de forma rateada, se necessário
6º - Os créditos reconhecidos como créditos comuns, com rateio entre eles, se necessário;
7º - Os créditos subordinados, pela ordem prevista no art. 48º do CIRE.
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Terá, pois, provimento a presente apelação.
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Sumário (art. 663º, nº 7 do CPC).
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3 - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em conceder provimento ao recurso interposto pelo ISS, pelo que, revogando a decisão recorrida na parte correspondente, quanto aos pagamentos que hão-de ser feitos com o produto da venda dos imóveis apreendidos nos autos e das acções da B..., a substituem por outra que gradua os créditos verificados nos seguintes termos:
Através do produto da venda/liquidação dos imóveis apreendidos será(ão) pago(s):
1º - As custas da insolvência e dos seus apensos, bem como as despesas de liquidação, incluindo a remuneração do/a Senhor/a Administrador/a da Insolvência, e as demais dívidas da massa insolvente;
2º - O crédito reconhecido ao Instituto da Segurança Social, I.P., no valor de valor de €355.347,65;
3º - Os créditos reclamados pela Autoridade Tributária, relativos a IRS e IRC, no valor de € 129.853,01 e € 169,09;
4º- Os créditos comuns, com rateio entre eles, se necessário.
5º - Os créditos subordinados, pela ordem prevista no art. 48º do CIRE.
Pelo produto das vendas das acções da B..., serão pagos créditos pela ordem seguinte:
1º - As custas da insolvência e dos seus apensos, bem como as despesas de liquidação, incluindo a remuneração do/a Senhor/a Administrador/a da Insolvência, e as demais dívidas da massa insolvente;
2º - Os créditos reclamados pelo Instituto da Segurança Social, I.P., no valor de €355.347,65;
3º - O crédito reconhecido à B..., S.A.
4º - Os créditos reconhecidos aos trabalhadores identificados na lista de créditos reconhecidos sob os nºs 3 a 8, 10 a 30, 35, 37 a 56, 59, 61 a 67, 72 a 76, 79 a 82, 84 a 94, 96 a 159, 162, 167 a 169, 171 a 190, 192 a 204 e do Fundo de Garantia Salarial, de forma rateada, se necessário;
5º - Os créditos reclamados pela Autoridade Tributária, relativos a IVA, IRS e IRC, no valor de € 387.994,95, € 129.853,01 e € 169,09, de forma rateada, se necessário
6º - Os créditos reconhecidos como créditos comuns, com rateio entre eles, se necessário;
7º - Os créditos subordinados, pela ordem prevista no art. 48º do CIRE.
Em tudo o mais, se mantém a decisão recorrida.
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Custas pela massa insolvente.
Reg e not.

Porto, 5/3/2024
Rui Moreira
Fernando Vilares Ferreira
João Ramos Lopes