PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PLANO DE RECUPERAÇÃO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE DOS CREDORES
Sumário

I – O artigo 194.º do CIRE, que consagra e regula o princípio da igualdade entre os credores, configura uma norma imperativa, cuja violação consubstancia um vício não negligenciável, para os efeitos do artigo 215.º do CIRE.
II – Aquele artigo não impõe uma absoluta igualdade de tratamento de todos os credores, abrindo espaço para uma discriminação positiva, fundada em específicos fatores de diferenciação.
III – Haverá violação do princípio da igualdade sempre que o plano preveja o tratamento desfavorável de um ou mais credores em relação aos restantes e essa diferenciação não esteja justificada por razões objectivas.

Texto Integral

Processo, n.º 1034/23.2T8VNG.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
A..., Unipessoal, Lda., com sede na Praça ..., sala ..., ... Porto, intentou o presente processo especial de revitalização (PER), ao abrigo do disposto nos artigos 17.º-A e seguintes do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), tendo em vista dar início a negociações com os seus credores de modo a concluir com estes um acordo de pagamento conducente à sua revitalização.
Recebido o requerimento e nomeado administrador judicial provisório (AJP), foi apresentada lista provisória de créditos, a qual foi objecto de diversas impugnações, já apreciadas e definitivamente decididas
Concluídas as negociações, em 12.06.2023 a requerente depositou no tribunal a versão final do plano de recuperação conducente à revitalização da empresa, tendo sido publicada no portal Citius a indicação desse depósito.
Não obstante as considerações produzidas por vários credores, entre eles as aqui recorridas B..., Lda. e AA, a requerente não depositou nova versão do plano, o que foi anunciado no portal Citius.
Mediante requerimento de 27.07.2023, as referidas credoras declararam o seu voto contra o plano apresentado e requereram a não homologação do mesmo, ao abrigo do disposto no artigo 17.º-F, n.º 3, do CIRE, alegando que foi violado o princípio da igualdade entre os credores, pois a devedora nunca negociou com diversos desses credores, incluindo as ora recorridas, apesar das diversas interpelações e manifestações para esse efeito. Mais alegaram que o verdadeiro objetivo da devedora, no caso de o plano ser aprovado e homologado, é obrigar um conjunto de credores a perderem as suas garantias reais para dissipar livremente o património e não lhes pagar um cêntimo. Alegaram ainda que não podem ser olvidadas «todas situações que, em concreto, não poderão levar à homologação do plano, designadamente, (a) a violação da igualdade de credores na negociação, (b) a violação da igualdade de tratamento de credores vertida no plano, (c) a previsão de venda de bens que já não pertencem à insolvente porque foi decretada a execução especifica, (d) a violação de direito de cessão de créditos e do direito de preferência e (e) económica e financeiramente o plano apresentado não ter qualquer viabilidade», mais remetendo para o exposto nos requerimentos anteriormente apresentados (designadamente, os requerimentos apresentados pelas requerentes em 06.03.2023, ref. 44908461, em 13.03.2023, ref. 44998023, em 19.05.2023, ref. 45622033, e em 20.06.2023, ref. 459089967).
A devedora pronunciou-se, afirmando que inexistiu qualquer violação do princípio da igualdade entre os credores, como se infere da mera leitura do plano, pois o mesmo não prevê a perda de garantias reais (nas quais não se inclui o arresto), não concede tratamento desfavorável e discriminatório a nenhum dos credores e, por conseguinte, também não concede a nenhum tratamento favorável, com a excepção do empreiteiro, mas por razões fundadas e objectivamente justificadas, dando cumprimento ao dever de tratar de igual forma situações iguais, e distinguir o que é distinto.
També o AJP se pronunciou, afirmando que não descortina no requerimento apresentado pelas agora recorridas a alegação de matéria que traduza a violação do princípio da igualdade tal como é consagrado no artigo 194.º do CIRE. Mais referiu que, face ao limite temporal para apresentação do plano final, apenas foi possível encetar reuniões com alguns credores e não com a totalidade, tendo a devedora comunicado sempre o resultado das reuniões e o seu impacto no plano final e tendo o decurso dos trabalhos ocorrido sob a fiscalização do signatário. Referiu ainda que a leitura do Plano demonstra que inexiste tratamento desproporcional e desfavorável de alguns credores em detrimento de outros, não prevendo perdão de dívida, mas antes o pagamento de 100% do capital a todos os credores.
O plano foi votado por credores cujos créditos representam 75% do total dos créditos relacionados com direito de voto; 93% do total dos votos expressos são favoráveis, todos eles não subordinados.
Foi proferida sentença que recusou a homologação do plano de revitalização apresentado pela devedora.

*
Inconformada, a requerente apelou desta sentença, apresentando a respectiva alegação, que termina com as seguintes conclusões:
«I – A não homologação do plano de revitalização apresentado nos autos pela Devedora Recorrente vai contra a vontade de 93% dos votos expressos, que totalizam 75% dos credores com direito a voto;
II – Os credores manifestaram de forma clara, em número de votantes, diversidade de titulares de créditos, natureza de credores e montante dos créditos, que pretendiam aprovação do plano, confiando na viabilidade da Devedora, e opondo-se, implicitamente, à declaração da sua insolvência;
III - O plano apresentado prima pela ambição, mas também pelo pragmatismo, e visa minorar ao máximo os prejuízos dos credores, ressarcindo-os pela totalidade do capital do crédito, e num curto espaço de tempo, o que é inédito relativamente à maioria dos planos apresentados e aprovados;
IV – Inexiste desigualdade no tratamento dos credores, sendo que, a pequena diferença existente entre credores comuns que têm créditos emergentes de sinais passados, e os outros – com excepção do empreiteiro –, é justificada, e não viola de forma grave o princípio da igualdade entre credores;
V – Ademais, os credores afectados pela alegada violação, e supostamente prejudicados, são poucos e, na sua maioria, votou favoravelmente o plano, ou absteve-se;
VI – O plano é claro quanto ao valor a ressarcir aos credores com sinais passados, é em singelo, independentemente de terem ou não direito ao sinal em dobro decretado por sentença judicial;
VII – A previsão do direito de preferência a favor da Devedora em caso de cessão de crédito em nada prejudica os credores, porquanto, nada perdem caso aquela exerça o direito, e, por outro lado, sempre seria necessário que o credor quisesse ceder, e a Devedora tivesse como adquirir…
VIII – No âmbito do PER, a intervenção do Juiz é restrita, traduzindo-se o interesse público aqui na primazia da vontade dos credores, confiando-se, quase plenamente, nos mesmos, no administrador judicial provisório, bem como, de certa forma, no devedor, no sentido de salvaguardarem os abusos prejudiciais para os credores e para a saúde da economia.
IX - O PER é um instrumento de recuperação ajustado à visão do legislador do CIRE, segundo a qual o juiz não tem que se imiscuir nos interesses dos credores e no modo de melhor os tutelar, que é tarefa que aos próprios cabe em exclusivo.
X – Não foi considerado o facto de a situação dos credores, ao abrigo do PLANO, ser mais favorável do que seria num cenário de liquidação da empresa.
XI – A decisão recorrida violou, assim, entre outros normativos que Vossas Excelências doutamente suprirão, o disposto nas alíneas b), e9 e g) do n.º 7 do artigo 17.º-F do CIRE».
Terminou pugnando pela revogação da sentença recorrida e pela homologação do plano de revitalização apresentado nos autos.
*
As credoras B..., Lda. e AA apresentaram resposta, formulando as seguintes conclusões:
«I. A doutra sentença não merece reparos;
II. O plano apresentado jamais poderia ser homologado, sob pena de violação do princípio da igualdade e proporcionalidade dos credores;
III. O plano apresentado pela devedora trata de forma diferente os credores, apresentando três formas de pagamento diferentes para os credores comuns;
IV. O plano apresentado configura um tratamento desfavorável, discriminatório e injustificado dos credores comuns dos fornecedores e prestadores de serviços, por comparação com os créditos, também comuns, dos promitentes compradores, assim, se mostrando violado o princípio da igualdade entre credores, consagrado no artigo 194.º do CIRE, inexistindo qualquer razão objectiva para tal tratamento desfavorável, o que justifica a recusa da sua homologação;
V. O plano de revitalização apenas prevê o pagamento em singelo do sinal pago pelos promitentes compradores, em total desrespeito pelas sentenças já transitadas em julgado que reconhecem aos credores o direito ao dobro do sinal;
VI. Verifica-se uma violação ao princípio da igualdade dos credores;
VII. A afectação do princípio da igualdade traduz uma violação grave, não negligenciável, das regras aplicáveis ao plano de insolvência e, consequentemente, causa fundada de recusa da sua homologação;
VIII. Admitir-se um direito de preferência à devedora na concessão dos créditos, traduzir-se-á num prejuízo grave para os credores;
IX. Ao conceder-se preferência à devedora na cessão de créditos, está a favorecer um ou alguns credores em detrimento de outros;
X. A recorrente ao alegar que foi feita pela “esmagadora maioria dos credores” é tentar ludibriar o Tribunal, pois vasta (sic) a análise da votação para perceber que foi feita efectivamente por credores estrategicamente escolhidos;
XI. É a própria devedora a confessar o tratamento desigual entre credores ao afirmar que existe uma “pequena diferença entre credores comuns” e que os “credores afectados (…) são poucos”;
XII. Estamos perante um plano com violação da igualdade de credores na negociação, com violação da igualdade de tratamento de credores vertida no plano, com previsão de venda de bens que já não pertencem à insolvente porque foi decretada a execução especifica, com violação de direito de cessão de créditos e do direito de preferência e que é económica e financeiramente o plano apresentado não ter qualquer viabilidade.
XIII. A douta sentença não violou o artº 17º - F nº 7 al. b, e) e g) do CIRE».
Terminaram pugnando pela total improcedência da apelação e pela confirmação da decisão recorrida.
*
II. Objecto do Recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
Tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelo recorrente, importa decidir se o plano de revitalização apresentado pela devedora deve ser homologado, nomeadamente por não violar o princípio da igualdade dos credores, não ser ininteligível e não colocar os credores comuns numa situação previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano.
*
III. Fundamentação
A. Os Factos
São os seguintes os factos julgados provados pelo tribunal de primeira instância:
1. “A..., Unipessoal, Lda.” apresentou processo de revitalização em 1/2/2023, juntando uma lista provisória de credores na qual fez inserir como credoras B..., Lda. e AA.
2. Por despacho de 9/2/2023 foi admitido o processo, tendo-se nomeado um Administrador Judicial Provisório (AJP).
3. C..., Lda. requereu, em 28/2/2023, a junção aos autos de uma comunicação remetida nos termos e para os efeitos do disposto no nº 7 do art. 17º-D do CIRE.
4. BB requereu, em 1/3/2023, a junção aos autos de uma comunicação remetida nos termos e para os efeitos do disposto no nº 7 do art. 17º-D do CIRE.
5. CC requereu, em 1/3/2023, a junção aos autos de uma comunicação remetida nos termos e para os efeitos do disposto no nº 7 do art. 17º-D do CIRE.
6. DD, requereu, em 2/3/2023, a junção aos autos de uma comunicação remetida nos termos e para os efeitos do disposto no nº 7 do art. 17º-D do CIRE.
7. EE requereu, em 3/3/2023, a junção aos autos de uma comunicação remetida nos termos e para os efeitos do disposto no nº 7 do art. 17º-D do CIRE.
8. B..., Lda. e AA requereram, em 6/3/2023, a junção aos autos de uma comunicação remetida nos termos e para os efeitos do disposto no nº 7 do art. 17º-D do CIRE.
9. Em 6/3/2023 o Sr. AJP juntou aos autos a lista provisória de credores cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
10. Em 10/3/2023, FF e GG requereram a junção aos autos de uma comunicação remetida nos termos e para os efeitos do disposto no nº 7 do art. 17º-D do CIRE.
11. Na mesma data HH requereu a junção aos autos de uma comunicação remetida nos termos e para os efeitos do disposto no nº 7 do art. 17º-D do CIRE.
12. Em 15/3/2023 II requereu a junção aos autos de uma comunicação remetida nos termos e para os efeitos do disposto no nº 7 do art. 17º-D do CIRE.
13. Na mesma data a D... Unipessoal, Lda. requereu a junção aos autos de uma comunicação remetida nos termos e para os efeitos do disposto no nº 7 do art. 17º-D do CIRE.
14. JJ e KK, LL, MM, NN e OO e mulher PP, em 16/3/2023, requereram a junção aos autos de comunicações remetidas nos termos e para os efeitos do disposto no nº 7 do art. 17º-D do CIRE.
15. Em 17/3/2023 QQ, RR, SS e “E..., SA” requereram a junção aos autos de comunicações remetidas nos termos e para os efeitos do disposto no nº 7 do art. 17º-D do CIRE.
16. Em 21/3/2023 TT requereu a junção aos autos de uma comunicação remetida nos termos e para os efeitos do disposto no nº 7 do art. 17º-D do CIRE.
17. UU e VV requereram, em 3/4/2023, a junção aos autos de comunicações remetidas nos termos e para os efeitos do disposto no nº 7 do art. 17º-D do CIRE.
18. Em 17/4/2023 WW requereu a junção aos autos de uma comunicação remetida nos termos e para os efeitos do disposto no nº 7 do art. 17º-D do CIRE.
19. Foram apresentadas inúmeras impugnações à lista provisória de credores apresentada pelo Sr. AJP.
20. Em 16/5/2023 a credora C..., Lda. alegou nos autos que “até à presente data e de acordo com a informação prestada pelo AJP, não decorriam conversações com vista à negociação entre os Credores e a Devedora. E tanto não decorrerão que, até à presente data, a Requerente e demais credores nunca foram contactos para efeitos de negociações, não obstante de terem manifestado oportunamente a sua vontade de participar nas mesmas e, sem prejuízo, das impugnações apresentadas à lista provisória de créditos.”
21. Em 19/5/2023 as credoras B..., Lda. e AA apresentaram requerimento no qual referem que “Até à presente data as credoras não foram notificadas para qualquer tentativa de negociação, sendo que interpelaram a devedora para que informasse sobre o estado das negociações, mas sem qualquer resposta.”
22. Em 25/5/2023 os credores FF e GG vieram aos autos comunicar que “até à presenta data ainda não foram notificados/contatados pela devedora para qualquer tentativa de agendamento de reunião para negociações, ou apresentação de proposta de pagamento.”
23. Em 12/6/2023 foi apresentado o plano pela devedora.
24. Nesse plano consta, designadamente, que:
“Quanto aos “Créditos Privilegiados dos Credores Hipotecários
Plano de Regularização:
A proposta de pagamento do crédito reconhecido à data do trânsito em julgado da sentença de homologação do plano será nas seguintes condições:
Pagamento de 100% dos créditos reconhecidos à data de homologação do plano decorridos 180 dias após a data do trânsito em julgado da sentença de homologação do plano. Sobre o capital em dívida vencer-se-ão juros constantes do contrato de empréstimo quer vencidos quer vincendos.
No caso particular de credor hipotecário cujo valor do crédito dependa do desfecho da acão judicial, como é o caso da F..., Lda., o pagamento decorrerá após o despacho da sentença da acão em curso (Processo n.º 21008/22.0T8PRT) e do pedido de reconvenção.
Créditos Comuns
Plano de Regularização:
Pagamento dos créditos comuns relacionados aos credores com contratos promessa de compra e venda de imóveis, será efetuado nos seguintes termos:
• Pagamento do valor correspondente a 100% do valor em singelo dos sinais passados, numa só prestação, no prazo máximo de 12 meses a contar da data do trânsito em julgado da sentença de homologação do plano, sem lugar a juros vencidos e vincendos
Pagamento dos créditos comuns a Prestadores de serviços, entre outros credores comuns não referidos nos pontos anteriores:
• Pagamento de 100% dos créditos reconhecidos à data da sentença de homologação do plano em 8 (oito) prestações trimestrais crescentes, vencendo-se a primeira decorridos 12 meses após a data do trânsito em julgado da homologação do plano, sendo que nas primeiras 4 prestações trimestrais será amortizado 30% do valor da dívida e nas restantes 4 (quatro) prestações trimestrais 70% do valor da dívida.
• Perdão de 100% dos juros vencidos e vincendos.
Pagamento dos créditos comuns ao Empreiteiro, G..., Lda., entre outros credores comuns não referidos nos pontos anteriores:
• Pagamento de 100% do crédito reconhecido à data da sentença de homologação do plano, assim que se reiniciarem os trabalhos de construção do edifício da Rua ..., ....
Créditos sob condição
Verificando-se a condição a que o crédito está sujeito será efetuado o seu pagamento nos seguintes termos:
• considerando o tipo e natureza do crédito será aplicado o correspondente plano de pagamento previsto nos pontos anteriores;
• o valor do crédito cuja condição se verifica, acresce ao valor em dívida ao respectivo credor na data da verificação da condição.
• mantém-se o número de prestações vincendas, à data da verificação da condição aumentando-se assim o valor da prestação.
Manutenção das garantias existentes
As garantias existentes – reserva de propriedade e hipotecas - mantêm-se sem qualquer alteração. Caso o plano seja aprovado, tal não constitui novação da dívida mantendo-se as garantias nos exatos termos inicialmente prestados.
No que concerne a penhoras e arrestos, deverão ser levantados imediatamente após o trânsito em julgado da sentença homologatória do plano (…)
Cláusula de cessão de créditos
Não será permitido durante a vigência do plano a cedência a terceiros de créditos sem a autorização da devedora e a preferência na compra desse crédito nas mesmas condições e igual valor (…)
Derrogações de preceitos legais
O tratamento diferenciado relativo aos créditos comuns dos prestadores de serviços e fornecedores relativamente ao empreiteiro G..., Lda. depreende-se com:
- O facto deste fornecedor e prestador de serviços ter necessidade de receber o seu valor em dívida de forma que consiga dar continuidade aos trabalhos de execução da obra de empreitada adjudicada referente ao prédio da Rua ..., ..., potenciando, desse modo, o prosseguimento da atividade e pagamento aos demais credores.
25. Em 20/6/2023 a credora BB apresentou requerimento cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido requerendo que fosse notificada a sociedade devedora, no sentido de retificar/alterar o Plano nos termos supra expostos e melhor explanados nos artigos 11.º e seguintes, ou seja, constituição de garantia real sobre a universalidade do património da sociedade Devedora, por forma assegurar o pagamento dos seus credores, hipoteca esta que será prestada e registada no prazo máximo de 15 dias a contar da sentença que venha a homologar o plano, sem qualquer despesa a suportar pelos credores, quer na sua constituição, quer quanto aos seu cancelamento, bem como, fiscalização do plano pelo Senhor Administrador Judicial Provisório.
26. Na mesma data o credor XX apresentou um requerimento cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, requerendo que a devedora fosse notificada para completar o plano com informações ou reformulá-lo, querendo, sob pena do mesmo não reunir condições de aprovação – al f) nº 1 do artº 17º- F do CIRE.
27. Nesse requerimento, entre outras coisas, o aludido credor refere que “o plano não identifica quais os credores comuns que considera integrados na subclasse daqueles com contratos promessa de compra e venda de imóveis, nem sequer quais os outros credores comuns que integra nas subclasses dos decorrentes de prestação e serviços ou do empreiteiro.
Indicação e identificação que se revela crucial para se poder aferir da credibilidade (e até o teor do plano), porquanto credores há, como o aqui requerente, cujos créditos decorrem, não da existência de contratos promessa de compra e venda de imóveis, ou da sua resolução, mas, sim, do seu incumprimento definitivo.
E sobre isso, credores há, também, cujos créditos decorrentes do incumprimento definitivo foram já declarados por sentenças judiciais transitadas em julgado.
Assim se impondo a discriminação e identificação dessa subclasse de credores comuns para se poder compreender o próprio plano apresentado.
Sendo que na hierarquia do plano relativa aos credores comuns, afigura-se, por um lado que a exclusão do crédito do empreiteiro (credor G..., Lda) é a única em relação aos credores por prestação de serviços e aos outros credores comuns (que não os respeitantes a contratos promessa),
Mas, por outro lado já não, pois em relação ao crédito do dito empreiteiro novamente se refere que a tal crédito serão equiparados os de outros credores comuns não referidos nos pontos anteriores.
Ora, ou esses outros credores comuns (que não o empreiteiro e os credores por contratos promessa), terão tratamento idêntico ao previsto para os credores por prestação de serviços,
Ou então, é absolutamente ininteligível e incompreensível a que credores a Requerente se refere quando integra outros credores comuns não referidos nos pontos anteriores na subclasse do crédito do empreiteiro G..., Lda.
Para além disso, afigura-se não ser avançada qualquer razão, máxime válida, operante e devidamente explicitada, para a discriminação positiva do credor empreiteiro.
Muito menos existindo, ou sendo revelada no plano, qualquer razão (válida) para discriminar negativamente os credores cujos créditos decorram de contratos promessa de compra e venda de imóveis e sua resolução, dos demais credores comuns, pois em relação aos decorrentes de contrato promessa se prevê a perda de significativas quantias (de valor igual às quantias entregues a título de sinal), mas aos demais já nenhum sacrifício se lhes impõe (…)
Para além disso, incompreensível e absolutamente injustificada é, também, a pretendida proibição da cessão de créditos.
Não se vislumbrando, nem sendo avançada qualquer razão, jurídica ou de facto, que permita restringir um direito que os credores têm, e que, no limite, lhes permite obter ressarcimento, parcial ou total, mas antecipado, dos seus créditos, e que em nada prejudica a requerente.
Sendo ainda mais incompreensível o direito de preferência que esse pretender ver constituído a favor da Requerente, pois então, a pretexto de uma preferência, a devedora iria favorecer um dos seus credores em detrimento dos demais.”
28. Em 20/6/2023 as credoras B..., Lda. e AA apresentaram nos autos um requerimento cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido requerendo que fosse ordenado à Devedora para reformular o plano, sob pena de o mesmo não poder ser aprovado, nos termos do artº 17º- F nº 7 do CIRE.
29. Na mesma data o credor WW apresentou requerimento cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido no qual refere designadamente, que “Da análise ao referido PER verifica-se que quanto aos credores comuns cujo fundamento do seu crédito se reconduz à resolução de Contrato Promessa de Compra e Venda e reclamação do valor do dobro do sinal, haverá que sublinhar que tal situação não ocorreu por incumprimento dos prazos ou por dificuldades e atrasos para a conclusão das obras nas frações prometidas vender mas – pelo contrário – no que ao aqui requerente se refere, emerge do facto de a insolvente ter alienado, a terceiro, por preço ainda superior, a fração prometida alienar, com o recebimento integral do respetivo preço aí acordado.
Ora, tal facto redunda na constatação de que a insolvente não só reteve, desde 28 de outubro de 2018, o valor do sinal de € 30.000,00 (trinta mil euros), a que acrescem os reforços, pelo mesmo título, efetuados até 28/02/2021, no valor de 10.000,00 € (dez mil euros), como, ainda, beneficiou, posteriormente, da totalidade do preço pelo qual alienou a fração a um terceiro.
Ou seja, a insolvente capitalizou-se muito para além do valor comercial de venda das frações que alienou e, ainda assim, aqui somente se propõe devolver o valor do sinal em singelo.
Tal facto não pode deixar de ser objeto de censura e tal comportamento não poderá deixar de se refletir no teor do presente PER.”
30. YY e ZZ apresentaram, em 20/6/2023 um requerimento cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, no qual referem, designadamente, que “Analisado o plano, ponto 8 a fls. 20 do plano, concluem os Credores subscritores que não está previsto a forma específica de pagamento dos créditos comuns que não estão abarcados por nenhum dos parágrafos deste ponto 8;
Nem está prevista uma regra para pagamento de créditos comuns – digam-se – gerais.
Assim, vem-se requerer, a final, que seja esclarecida a forma de pagamento dos créditos comuns que detêm, dado não serem referente a contratos-promessa, prestação de serviços ou empreitada”
31. A devedora, em 26/6/2023, apresentou requerimento no qual refere que mantem o plano apresentado sem alterações cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
32. No requerimento mencionado em 31 é mencionado pela devedora, entre outras coisas, que:
“a pretensão manifestada de constituição de garantia real a favor de todos os credores afigura-se, para lá manifestamente exagerada, inviável e inviabilizadora da prossecução da actividade.
Não prevendo os credores que avançam com essa exigência o afugentamento dos potenciais compradores e financiadores quando vissem inscrita nas certidões de registo predial hipoteca com dezenas de beneficiários, bem como, não indicam como seria constituída existindo a reserva de propriedade sobre o bem de ..., e o de Matosinhos e fracção K já terem hipotecas constituídas, e ainda imputando à Devedora os elevados custos daí decorrentes com a constituição e distrates, as consequências da não apresentação dos distrates atempadamente, etc.. Com o devido respeito, pretendem esses credores garantias para lá do razoável, a roçarem o devaneio…
(…) Outra questão suscitada, reporta-se à obrigação de conceder preferência à A... na aquisição dos créditos em caso de cessão, e não proibição de cessão, e é coerente com que já constava dos contratos promessa de compra e venda, e visa a protecção dos demais credores, ao potenciar a concentração de créditos.
No que respeita à categorização dos créditos comuns e ao modo do seu pagamento, inexistem dúvidas, porquanto, os créditos correspondentes a sinais referentes a contratos promessa não cumpridos, serão reembolsados em singelo, e no prazo de 12 meses após o trânsito em julgado da homologação do plano, os demais créditos comuns, com excepção do titulado pelo empreiteiro, pelas razões já expostas no plano a fls. 21 e 37, serão pagos, em singelo, em 24 meses, após 12 meses de carência, em 8 prestações trimestrais, as primeiras 4 perfazendo 30% do respectivo valor, e as seguintes correspondendo aos restantes 70%.”
33. Em 28/6/2023 foram apreciadas as impugnações deduzidas à lista provisória de credores, sendo que tal decisão veio a ser retificada em 10/7/2023, dando-se aqui por reproduzidas essas decisões.
34. Em 14/7/2023 determinou-se que fosse publicado no portal Citius anúncio advertindo da não junção de nova versão do plano já apresentado e publicitado, correndo desde essa publicação o prazo de votação de 10 dias nos termos do disposto no n.º 3 do art. 17.ºF do C.I.R.E.
35. O anúncio mencionado em 34 foi publicado em 17/7/2023.
36. Em 27/7/2023 os credores B..., Lda. e AA apresentaram requerimento requerendo a não homologação do plano cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
37. A devedora pronunciou-se quanto ao requerimento mencionado em 36 através de um requerimento junto aos autos em 31/7/2023 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
38. Em 1/8/2023 o Sr. AJP juntou o resultado da votação do plano, esclarecendo que votaram credores que representam 75% e que houve uma votação favorável de 93% (sendo que nenhum dos votantes se inseria na natureza de subordinados).
*
B. O Direito
1. Na sua versão originária, o CIRE abandonou o primado da recuperação da empresa que caracterizava o anterior Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de Abril, e elegeu como principal finalidade do processo de insolvência a satisfação dos credores, por via da liquidação do património do devedor ou pela forma prevista num plano de insolvência, o qual se poderia basear na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, conforme preceituado na primeira versão do artigo 1.º do CIRE, que referia em primeiro lugar a liquidação do património e só depois a recuperação da empresa. Concomitantemente, o novo código desjudicializou o processo de insolvência e colocou nas mãos dos credores o destino do devedor, erigindo-os em verdadeiros “proprietários económicos” da empresa.
Em 2012, com a pressão da crise económica e do acordo de ajuda financeira ao Estado Português firmado com a denominada troika (Banco Central Europeu, o Fundo Monetário Internacional e a União Europeia), a Lei n.º 17/2012, de 20 de Abril, introduziu profundas alterações no CIRE. Mantendo o primado da satisfação dos credores e a ampla desjudicialização do processo de insolvência, passou a privilegiar a recuperação da empresa como mecanismo para atingir aquela finalidade.
Logo no seu artigo 1.º, passou a preceituar que o processo de insolvência «tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores».
Paralelamente, criou um processo pré-insolvencial (o PER, previsto no artigo 1.º, n.º 2, e regulado nos artigos 17.º-A a 17.º-I) destinado a permitir aos titulares de empresas que se encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda sejam suscetíveis de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização.
De harmonia com o disposto no artigo 17.º-F, n.º 7, do CIRE, nos 10 dias seguintes à recepção do plano de recuperação que tiver sido aprovado nos termos dos números anteriores, o juiz decide se deve homologar ou recusar a homologação desse plano, aplicando, com as necessárias adaptações, as regras previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 194.º a 197.º, no n.º 1 do artigo 198.º e nos artigos 200.º a 202.º, 215.º e 216.º.
Os preceitos destes artigos 215.º e 216.º regulam a não homologação do plano de insolvência, em termos inteiramente aplicáveis à não homologação do plano de recuperação aprovado no âmbito do PER.
O artigo 215.º regula a não homologação oficiosa do plano, nos seguintes termos:
O juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando, no prazo razoável que estabeleça, não se verifiquem as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os actos ou executadas as medidas que devam preceder a homologação.
Como referem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 3.ª ed., 2015, p. 781), «normas procedimentais são, pois, todas aquelas que regem a atuação a desenvolver no processo, que incluem os passos que nele devem ser dados até que a assembleia de credores decida sobre as propostas que lhe foram presentes (…). Normas relativas ao conteúdo serão, por sua vez, todas as respeitantes à parte dispositiva do plano, mas além delas, ainda aquelas que fixam os princípios a que ele deve obedecer imperativamente e as que definem os temas que a proposta deva contemplar».
Em qualquer dos casos, apenas as violações não negligenciáveis das normas em causa justificam a não homologação do plano, como preceitua o artigo 215.º do CIRE.
Citando de novo Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, «são não negligenciáveis, todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza. Diversamente, são desconsideráveis as infrações que atinjam simplesmente regras de tutela particular que podem, todavia, ser afastadas com o consentimento do protegido», acrescentando os mesmos autores que importa, assim, «sindicar se a nulidade observada é susceptível de interferir com a boa decisão da causa, o que significa valorar se interfere ou não com a justa salvaguarda dos interesses protegidos ou a proteger – nomeadamente no que respeita à tutela devida à posição dos credores e do devedor nos diversos domínios em que se manifesta – tendo em conta o que é, apesar de tudo, livremente renunciável» (ob. cit., p. 782).
Entre as normas relativas ao conteúdo do plano de recuperação, o próprio artigo 17.º-F, n.º 7, do CIRE destaca, entre outras, a do artigo 194.º do CIRE, que consagra e regula o princípio da igualdade entre os credores, reflexo da já referida primazia que o CIRE veio conferir à satisfação dos direitos dos credores, mesmo no confronto com a protecção da empresa (cfr. ac. do TRG, de 10.04.2012, proc. n.º 2261/11.0TBBRG-E.G1, rel. Ana Cristina Duarte). Tratando-se de uma norma imperativa, a sua violação consubstancia um vício não negligenciável, para os efeitos do artigo 215.º do CIRE (cfr. ac. do TRC, de 26.04.2022, proc. n.º840/21.7T8ACB.C1, rel. Maria João Areias).
Por sua vez, o artigo 216.º regula a não homologação a solicitação dos interessados, preceituando o seguinte no seu n.º 1:
O juiz recusa ainda a homologação se tal lhe for solicitado pelo devedor, caso este não seja o proponente e tiver manifestado nos autos a sua oposição, anteriormente à aprovação do plano de insolvência, ou por algum credor ou sócio, associado ou membro do devedor cuja oposição haja sido comunicada nos mesmos termos, contanto que o requerente demonstre em termos plausíveis, em alternativa, que:
a) A sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, designadamente face à situação resultante de acordo já celebrado em procedimento extrajudicial de regularização de dívidas;
b) O plano proporciona a algum credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos sobre a insolvência, acrescido do valor das eventuais contribuições que ele deva prestar.
Por força do disposto no artigo 17.º-F, n.º 3, no âmbito do PER, o prazo para a solicitação da não homologação do plano, “nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 215.º e 216.º, com as devidas adaptações”, é de 10 dias a contar da publicação no portal Citius do anúncio advertindo da junção ou não junção de nova versão do plano.
No presente caso, as recorridas declararam o seu voto contra o plano apresentado e, concomitantemente, solicitaram a não homologação do mesmo dentro do prazo legalmente previsto, como decorre dos pontos 35 e 36 dos factos provados.
O Tribunal a quo decidiu não homologar o plano de recuperação conducente à revitalização da empresa apresentado pela devedora, apesar de este ter sido aprovado pela maioria de credores exigida pela lei, por considerar, em essência, que (i) o conteúdo do referido plano viola o princípio da igualdade dos credores, (ii) é em parte ininteligível e (iii) coloca pelo menos os credores comuns (que não o empreiteiro ou os promitentes compradores) numa situação previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano.
É contra esta decisão que se insurge a recorrente, argumentando que não se verifica nenhum dos fundamentos invocados na decisão recorrida para a não homologação do plano.
Importa, nestes termos, analisar cada um destes fundamentos.
Excluída da nossa análise, por não integrar o objecto do recurso interposto, está a questão da violação da igualdade dos credores na negociação (em virtude de a devedora nunca ter negociado com diversos desses credores, incluindo as recorridas, apesar das diversas interpelações e manifestações para esse efeito), que havia sido alegada pelas recorridas no requerimento em que solicitaram a não homologação do plano de recuperação e que o tribunal a quo julgou improcedente, sem que as recorridas tenham impugnado validamente esta decisão, maxime por via de recurso subordinado – limitando-se a reiterar, de forma inconsequente, que o plano viola a igualdade dos credores na negociação –, e sem que se vislumbrem quaisquer razões válidas para a alterar oficiosamente.
2. Como vimos, o Tribunal a quo decidiu não homologar o plano de recuperação aprovado por considerar que o seu conteúdo viola o princípio da igualdade entre os credores, previsto no artigo 194.º do CIRE.
Dispõe assim este artigo 194.º:
1 – O plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas.
2 – O tratamento mais desfavorável relativamente a outros credores em idêntica situação depende do consentimento do credor afectado, o qual se considera tacitamente prestado no caso de voto favorável.
3 – É nulo qualquer acordo em que o administrador da insolvência, o devedor ou outrem confira vantagens a um credor não incluídas no plano de insolvência em contrapartida de determinado comportamento no âmbito do processo de insolvência, nomeadamente quanto ao exercício do direito de voto.
Por sua vez, o artigo 196.º, n.º 1, do mesmo código acrescenta que o plano de insolvência pode, nomeadamente, conter as seguintes providências com incidência no passivo do devedor:
a) O perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto ao capital, quer quanto aos juros, com ou sem cláusula «salvo regresso de melhor fortuna»;
b) O condicionamento do reembolso de todos os créditos ou de parte deles às disponibilidades do devedor;
c) A modificação dos prazos de vencimento ou das taxas de juro dos créditos;
d) A constituição de garantias;
e) A cessão de bens aos credores.
Estas normas consagram, sem qualquer equívoco, a possibilidade de o plano prever a alteração, a redução ou a extinção de créditos sobre o devedor, independentemente da sua natureza ou da qualidade dos seus titulares, desde que tais medidas não violem o princípio da igualdade plasmado no artigo 194.º ou as demais regras consagradas no título IX.
Ao dispor que o plano obedece ao princípio da igualdade dos credores, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas, o n.º 1 deste artigo 194.º consagra uma dimensão material do princípio da igualdade, pondo em evidência as duas vertentes que o caracterizam: a necessidade de tratar do mesmo modo o que é semelhante e de tratar de modo diferenciado o que é distinto. Isto, sem prejuízo da possibilidade de os credores atingidos pela violação do princípio da igualdade darem a sua anuência, nos termos previstos no n.º 2, do mesmo artigo 194.º.
Como se escreve no ac. do TRC de 26.04.2022, já antes citado, «os credores não têm de ser tratados todos da mesma maneira, abrindo-se espaço para uma discriminação positiva, fundada em específicos fatores de diferenciação, dentro dos quais se poderão contar a data da constituição, a fonte ou a proveniência do crédito e o respetivo montante, desde que a diferenciação se revele materialmente fundada. A proibição da violação do principio da igualdade não significa uma situação de igualdade absoluta em todas as situações, nem proíbe diferenças de tratamento, apenas impedindo que o tratamento diferenciado se funde em fatores de diferenciação ilegítimos ou outros que que “se apresentem contrários à dignidade humana, incompatíveis com o princípio do Estado de direito democrático, ou simplesmente arbitrários ou pertinentes”.»
Em consonância com o exposto, a jurisprudência dos tribunais superiores vem defendendo de forma consistente que haverá violação do princípio da igualdade sempre que o plano preveja o tratamento desfavorável de um ou mais credores em relação aos restantes e essa diferenciação não esteja justificada por razões objectivas (cfr. ac. do TRL, de 27.10.2020, proc. n.º 27086/19.1T8LSB.L1-1, rel. Manuela Espadaneira Lopes).
Neste sentido, refere-se o seguinte no ac. do TRE, de 24.05.2018, citado no referido aresto do TRL:
«Relativamente ao sentido e alcance do princípio da igualdade dos credores consagrado no art. 194.º do CIRE, a jurisprudência que vem sendo consolidada pelos Tribunais Superiores assenta, designadamente e no que aqui importa salientar, nos seguintes vetores:
- estabelecendo o plano de revitalização do devedor diferenciações entre os credores, é necessário que nele se justifique o diferente tratamento, com a indicação das razões objetivas que lhe estão subjacentes; [Ac. STJ de 24/11/2015 (José Rainho)]
- necessário se torna, desde logo, justificar no próprio plano o diferente tratamento, com a indicação das razões objetivas para essa diferença; [Ac. STJ de 08/10/2015 (Júlio Gomes), processo n.º 1898/13.8TYLSB.S1]
- o princípio da igualdade dos credores não proíbe ao plano de insolvência que faça distinções entre eles; proíbe apenas diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, sem uma justificação razoável, segundo critérios objetivos relevantes; [Ac. TRC de 01/04/2014 (Henrique Antunes).]
(…)
- o carácter estratégico de alguns credores é insuficiente para derrogar o princípio da igualdade dos credores de uma mesma classe quando faz recair sobre alguns deles, de forma desproporcionada, as perdas, ou seja, quando a revitalização do devedor é conseguida à custa do sacrifício grave ou severo de apenas alguns dos credores da mesma classe; [Ac. TRC de 17/03/2015 (Henrique Antunes)].
(…)
- ainda que alguma diferenciação se justifique, importa atentar na razoabilidade e no carater proporcional da diferenciação imposta pelo plano; [Ac. STJ de 24/11/2015 (José Rainho)].
- as diferenciações entre credores não podem radicar na própria necessidade de aprovação do plano; pelo contrário, é este que, na sua substância, tem que respeitar, tanto quanto possível, o princípio da igualdade entre os credores. [Ac. TRP de 14/05/2013 (Vieira e Cunha)].
Impõe-se, pois, tratar de forma idêntica todos os credores, mas levando em linha de conta a qualidade, natureza e finalidade dos respetivos créditos».
No caso concreto, a decisão recorrida fundamentou assim a violação deste princípio:
«No plano apresentado verificamos que a devedora prevê um tratamento diferenciado para os credores comuns. (…)
Analisado o que consta do plano parece resultar do mesmo que a devedora distingue:
1) os créditos comuns relacionados aos credores com contratos promessa de compra e venda de imóveis prevendo, quanto a estes, o pagamento do valor correspondente a 100% do valor em singelo dos sinais prestados, numa só prestação, no prazo máximo de 12 meses a contar da data do trânsito em julgado da sentença de homologação do plano, sem lugar a juros vencidos e vincendos;
2) os créditos comuns a Prestadores de serviços, entre outros credores comuns não referidos no ponto anterior prevendo, quanto a estes, o pagamento de 100% dos créditos reconhecidos à data da sentença de homologação do plano em 8 (oito) prestações trimestrais crescentes, vencendo-se a primeira decorridos 12 meses após a data do trânsito em julgado da homologação do plano, sendo que nas primeiras 4 prestações trimestrais será amortizado 30% do valor da dívida e nas restantes 4 (quatro) prestações trimestrais 70% do valor da dívida, com perdão de 100% dos juros vencidos e vincendos
3) “os créditos comuns ao Empreiteiro, G..., Lda., entre outros credores comuns não referidos nos pontos anteriores”, prevendo um pagamento de 100% do crédito reconhecido à data da sentença de homologação do plano, assim que se reiniciarem os trabalhos de construção do edifício da Rua ..., ....
Posteriormente à apresentação do plano e porque alguns credores vieram aos autos suscitar questões quanto ao mesmo e propor alterações quanto ao seu teor a devedora veio aos autos esclarecer (em 26/6/2023) que “No que respeita à categorização dos créditos comuns e ao modo do seu pagamento, inexistem dúvidas, porquanto, os créditos correspondentes a sinais referentes a contratos promessa não cumpridos, serão reembolsados em singelo, e no prazo de 12 meses após o trânsito em julgado da homologação do plano, os demais créditos comuns, com excepção do titulado pelo empreiteiro, pelas razões já expostas no plano a fls. 21 e 37, serão pagos, em singelo, em 24 meses, após 12 meses de carência, em 8 prestações trimestrais, as primeiras 4 perfazendo 30% do respectivo valor, e as seguintes correspondendo aos restantes 70%.”
Lendo esse esclarecimento prestado pela devedora cremos que podemos concluir que a mesma prevê pagar os créditos comuns correspondentes a sinais referentes a contratos promessa não cumpridos, em singelo, no prazo de 12 meses após o trânsito em julgado da homologação do plano
Prevê pagar ao empreiteiro G..., Lda. 100% do crédito reconhecido à data da sentença de homologação do plano, assim que se reiniciarem os trabalhos de construção do edifício da Rua ..., ....
E prevê pagar os demais créditos comuns reconhecidos, designadamente a fornecedores e prestadores de serviços, em 24 meses, após 12 meses de carência, em 8 prestações trimestrais, as primeiras 4 perfazendo 30% do respetivo valor, e as seguintes correspondendo aos restantes 70%.
Concluímos, assim, que há um tratamento diferenciado no plano quanto ao pagamento dos credores comuns, sendo certo que a devedora explicitou que o tratamento diferenciado previsto quanto ao empreiteiro é justificado pelo facto deste fornecedor e prestador de serviços ter necessidade de receber o seu valor em dívida de forma que consiga dar continuidade aos trabalhos de execução da obra de empreitada adjudicada referente ao prédio da Rua ..., ..., potenciando, desse modo, o prosseguimento da atividade e pagamento aos demais credores.
Ora, desde logo pode questionar-se se o tratamento favorável que é feito a favor do empreiteiro é justificável, ou seja, se essa violação do princípio da igualdade entre os credores se justifica.
Seguindo de perto a jurisprudência defendida pelo Supremo Tribunal de Justiça de 24/11/2015, processo 212/14.0TBACN.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt “Estabelecendo o plano de revitalização do devedor diferenciações entre os credores, é necessário que nele se justifique o diferente tratamento, com a indicação das razões objetivas que lhe estão subjacentes. II. A simples menção de que existe necessidade do devedor vir a ser apoiado financeiramente no futuro pelas instituições financeiras credoras, não constitui razão objetiva justificadora da desigualdade de tratamento estabelecido no plano, quando tal menção não está acompanhada de uma vinculação efetiva, concreta e programada de apoio por parte dessas instituições financeiras. III. A circunstância de alguns credores poderem ser estratégicos para a atividade do devedor não é, só por si, suficiente para derrogar o princípio da igualdade e o da proporcionalidade em prejuízo de outros credores.”
No entender deste tribunal é aceitável o tratamento diferenciado previsto a favor do empreiteiro porquanto se este não receber o montante em dívida não executará a obra que está em curso e, se não o fizer, a devedora teria que alienar o prédio em questão sem que as frações a construir no mesmo estivessem concluídas, o que implicaria que receberia pela venda do mesmo um valor consideravelmente inferior àquele que receberá caso a construção das frações seja terminada.
A verdade é que, embora se considere que esse tratamento diferenciado é adequado, proporcional e necessário e, consequentemente, atendível, não se alcança, desde logo, por que razão é feita uma diferenciação entre os créditos comuns relacionados aos credores com contratos promessa de compra e venda de imóveis e os demais créditos comuns, designadamente dos prestadores de serviços e fornecedores.
Na verdade, quanto aos primeiros, como acima dissemos, a devedora prevê pagar 100% do valor pago a título de sinal em singelo no prazo máximo de 12 meses a contar do trânsito em julgado da sentença de homologação do plano; quanto aos demais já prevê pagar 100% dos seus créditos em 8 prestações trimestrais crescentes, vencendo-se a primeira decorridos 12 meses após a data do trânsito em julgado da homologação do plano, sendo que nas primeiras 4 prestações trimestrais será amortizado 30% do valor da dívida e nas restantes 4 prestações trimestrais 70% do valor da dívida.
Ou seja, os promitentes compradores receberiam a totalidade do valor dos sinais pagos em singelo 12 meses após o trânsito em julgado da decisão de homologação do plano, enquanto os demais credores comuns receberiam o valor dos seus créditos em 8 prestações trimestrais, sendo que a primeira apenas se venceria 12 meses após a data do trânsito em julgado da homologação do plano.
Assim, se um credor (A) tivesse reconhecido um crédito de €100.000,00 correspondente ao valor do sinal pago num contrato promessa de compra e venda e o trânsito em julgado da sentença homologatória do plano ocorresse na presente data (27/9/2023) esse mesmo credor receberia os €100.000,00 em setembro de 2024; já o credor (B) que tivesse reconhecido um crédito no mesmo valor com origem em fornecimento de materiais à devedora receberia esse valor não em setembro de 2024, mas, sim, em 8 prestações trimestrais, sendo que a primeira prestação se venceria em setembro de 2024.
Ou seja, esses mesmos €100.000,00 iriam ser pagos em 24 meses após setembro de 2024.
O plano apresentado trata, pois, de forma desigual os credores comuns cujos créditos decorrem de contratos promessa de compra e venda de imóveis e os demais credores comuns (designadamente prestadores de serviços e fornecedores), sem que a devedora tivesse justificado a razão para existir esse tratamento desigual.
Ora, a verdade é que não se encontra qualquer razão plausível para existir esse tratamento desigual que viola o princípio da igualdade.
Com efeito, é certo que os promitentes compradores que pagaram sinais em consequência da celebração de contratos promessa de compra e venda de imóveis acabaram por financiar a atividade da insolvente.
A verdade é que os prestadores de serviços e os fornecedores da devedora também acabaram por financiar a sua atividade já que ao fornecerem-lhe bens e serviços que vieram a ser aplicados nas obras que a mesma estava a levar a cabo sem terem recebido o respetivo preço, também permitiram que a mesma visse as suas obras avançarem.
O plano apresentado configura um tratamento desfavorável, discriminatório e injustificado dos credores comuns dos fornecedores e prestadores de serviços, por comparação com os créditos, também comuns, dos promitentes compradores, assim, se mostrando violado o princípio da igualdade entre credores, consagrado no artigo 194.º do C.I.R.E. inexistindo qualquer razão objetiva para tal tratamento desfavorável, o que justifica a recusa da sua homologação por parte deste tribunal».
Embora se afigure incompleta, na medida em que não aborda todas as nuances do caso concreto, esta análise acaba por resistir à argumentação esgrimida pela recorrente e por se revelar acertada.
A recorrente afirma que não existe desigualdade no tratamento dos credores pois «a pequena diferença existente entre credores comuns que têm créditos emergentes de sinais passados, e os outros – com excepção do empreiteiro –, é justificada, e não viola de forma grave o princípio da igualdade entre credores». Neste sentido alega que estes credores também têm previsto receber 100% do capital, que parte deles não financiou a empresa, pois não entregou quaisquer quantias em dinheiro nem forneceu materiais para as obras, resultando os seus créditos essencialmente da prestação de serviços jurídicos, e que a diferenciação reside apenas no tempo de pagamento, recendo uns no prazo de um ano e outros no prazo de três anos, muito inferior ao que habitualmente é previsto. Mais alega que a diferenciação de tratamento se justifica, essencialmente, pelo facto de, ao contrário dos primeiros, estes não verem frustrada a possibilidade de celebrarem contratos promessa de compra e venda de fracções, vendo negado um direito que está para lá do valor monetário envolvido.
Esta argumentação não colhe. Em primeiro lugar porque do plano apresentado não constam estas ou quaisquer outras justificações para o diferente tratamento aí dispensado aos créditos comuns não emergentes de contratos promessa (com excepção do crédito de G..., Lda.), como era exigível que constasse, não obstante as diversas observações apresentadas por diversos credores após a publicitação daquele plano. Em segundo lugar porque, para além de vaga e imprecisa, a afirmação de que parte dos referidos credores não financiou a empresa tem ínsito que outra parte o fez, o que basta para infirmar esta justificação. Em terceiro lugar, também não podemos subscrever a afirmação de que o pagamento de umas dívidas a um ano e de outras a três anos não gera desigualdade, antes se afigurando manifesto que gera, sendo irrelevante que estes três anos se situem aquém do que é habitual – afirmação que não temos como demonstrada –, pois a verdade é que, de acordo com o plano, alguns dos créditos comuns seriam satisfeitos na totalidade no prazo máximo de um ano, enquanto outros apenas o seriam no prazo de três anos. Por último, a alegação de que o benefício concedido aos promitentes compradores está justificado pela circunstância de lhes ter sido negado um direito – a possibilidade de celebrarem o contrato definitivo – que está para além do valor monetário envolvido, revela-se falaciosa, pois neste momento estão apenas em causa créditos pecuniários, cujos valores já tiveram em conta o não cumprimento dos contratos promessa.
Mais ponderoso se afigura o argumento, igualmente expendido pela recorrente, de que «os credores afectados pela alegada violação, e supostamente prejudicados, são poucos e, na sua maioria, votou favoravelmente o plano, ou absteve-se». Na verdade, já vimos que o artigo 194.º, n.º 2, do CIRE permite que os credores atingidos por um tratamento mais desfavorável o consintam, presumindo-se que o fazem quando votam favoravelmente o plano aprovado. No caso, isso sucedeu com a esmagadora maioria dos credores. Contudo, como reconhece a própria recorrente, alguns credores comuns atingidos por este diferente tratamento abstiveram-se, sem que daí se possa inferir o seu consentimento, e um credor – C...., Lda. – votou contra. Mas isso significa que diversos credores não prestaram o consentimento previsto no artigo 194.º, n.º 2, do CIRE, pelo que se mantém a violação do princípio da igualdade consagrado nessa norma.
A decisão recorrida identificou como tendo sido alvo de um tratamento mais desfavorável apenas os titulares de créditos comuns não relacionados com contratos promessa de compra e venda de imóveis, excluindo o credor G..., Lda.
Mas, como veremos melhor infra, do conteúdo do plano resulta ainda um tratamento mais desfavorável dos créditos comuns relacionados com contratos promessa de compra e venda que correspondem ao recebimento do sinal em dobro. Na verdade, a respeito dos “créditos comuns relacionados aos credores com contratos promessa de compra e venda de imóveis” consta do plano que será efectuado o “pagamento do valor correspondente a 100% do valor em singelo dos sinais passados, numa só prestação, no prazo máximo de 12 meses a contar da data do trânsito em julgado da sentença de homologação do plano, sem lugar a juros vencidos e vincendos”. Nada mais se dizendo quanto a esta categoria de créditos, impõe-se concluir que, nos casos em que os promitentes compradores tenham direito à restituição do sinal em dobro, o plano prevê uma redução de 50% destes créditos, o que não ocorre relativamente a quaisquer outros credores, sejam os promitentes compradores a quem seja devida apenas a restituição do sinal em singelo, sejam os demais titulares de créditos comuns.
Acresce que esta redução não foi consentida por diversos credores que se afirmam com direito à restituição do sinal em dobro, designadamente as ora recorridas, que votaram contra a aprovação do plano, e o credor XX, que se absteve, mas que no requerimento que havia apresentado em 20.06.2023 manifestou a sua discordância relativamente a esta redução.
Mais uma vez, este diferente tratamento dos créditos comuns não está justificado no plano aprovado, nem se vislumbra o que o possa justificar.
Na sua alegação, a recorrente afirma o seguinte:
«O reembolso dos sinais entregues é a solução mais viável, possível e equilibrada para ambas as partes e foi aceite pela maioria dos credores na negociação e votação. Sendo uma solução transversal a todos os credores na mesma situação, independentemente de lhes ser reconhecido o direito ao sinal em dobro. A declaração de sinal em singelo é inequívoca, o reembolso é efectuado em igualdade de circunstâncias a todos os credores com sinal passado, nos mesmos termos, conferindo-lhes um plano de igualdade».
Mas a verdade é que esta medida não trata de forma igual todos os credores comuns, pois uns recebem 100% do capital em dívida, ao passo que outros apenas recebem 50%, nem atende à diferente situação dos promitentes compradores com direito a receber o sinal em singelo e dos promitentes compradores com direito a receber o sinal em dobro. A circunstância de os primeiros não terem direito ao sinal em dobro ou terem aceitado receber apenas o sinal em singelo não justifica que os segundos vejam reduzidos os seus créditos ao valor do sinal em singelo.
Em suma, pelas razões apontadas na decisão recorrida, às quais acrescem as razões agora mencionadas, julgamos inteiramente acertada a decisão do tribunal a quo de considerar que o plano aprovado viola o princípio da igualdade previsto no artigo 194.º do CIRE e que tal violação configura uma violação não negligenciável de uma norma imperativa aplicável ao seu conteúdo, o que justifica a não homologação do referido plano.
3. A decisão recorrida baseou-se ainda na ininteligibilidade parcial do plano, com os seguintes fundamentos:
«Com efeito, compulsados os autos, resulta dos mesmos, designadamente da decisão proferida quanto as impugnações da lista provisória, que há credores que são promitentes compradores a quem foi já reconhecido um crédito sobre a devedora correspondente, não ao valor em singelo do sinal que pagaram, mas, sim, correspondente ao dobro do sinal pago. E isto porque a devedora quanto a alguns desses promitentes compradores incumpriu já definitivamente os contratos-promessa, designadamente ao ter alienado a terceiros a fração prometida vender aos credores, tornando impossível o cumprimento do contrato-promessa. Veja-se que, aliás, há credores que viram já reconhecido o direito a receberem o sinal em dobro em ações judiciais em que já foram proferidas decisões transitadas em julgado.
Ora, o plano apresentado pela devedora prevê, como acima dissemos, o pagamento dos créditos comuns relacionados aos credores com contratos promessa de compra e venda de imóveis da seguinte forma: “pagamento do valor correspondente a 100% do valor em singelo dos sinais passados, numa só prestação”.
A questão que se nos coloca é a seguinte: como é que pagará os créditos reconhecidos aos promitentes compradores a quem foi já reconhecido o direito a receberem os sinais em dobro?
O plano não é claro quanto a essa questão, não esclarecendo cabalmente como é que prevê pagar esses créditos, pelo que se nos afigura que é ininteligível.
Com efeito, a devedora pagará a esses credores o valor do sinal pago em singelo ao fim de 12 meses da homologação do plano numa única prestação, pagando o restante valor nos termos previstos para os demais credores comuns (com exceção do empreiteiro G...,Lda.), ou seja, pagaria esse valor “em 8 (oito) prestações trimestrais vencendo-se a primeira decorridos 12 meses após a data do trânsito em julgado da homologação do plano, sendo que nas primeiras 4 prestações trimestrais será amortizado 30% do valor da dívida e nas restantes 4 prestações trimestrais 70% do valor da dívida”?
Ou a intenção da devedora é pagar todos os créditos reconhecidos aos promitentes compradores (quer os que apenas viram reconhecido o sinal pago, quer os que viram reconhecidos os sinais em dobro) numa única prestação a pagar 12 meses após a homologação do plano?
Em nosso entender, o plano não é claro e a aposição da expressão “em singelo” torna o plano ininteligível.
Salientamos que no presente processo, após a apresentação do plano por parte da devedora, o credor XX apresentou um requerimento, requerendo que a devedora fosse notificada para completar o plano com informações ou reformulá-lo.
Nesse requerimento, entre outras coisas, o aludido credor refere que “o plano não identifica quais os credores comuns que considera integrados na subclasse daqueles com contratos promessa de compra e venda de imóveis, nem sequer quais os outros credores comuns que integra nas subclasses dos decorrentes de prestação e serviços ou do empreiteiro.
Indicação e identificação que se revela crucial para se poder aferir da credibilidade (e até o teor do plano), porquanto credores há, como o aqui requerente, cujos créditos decorrem, não da existência de contratos promessa de compra e venda de imóveis, ou da sua resolução, mas, sim, do seu incumprimento definitivo.
E sobre isso, credores há, também, cujos créditos decorrentes do incumprimento definitivo foram já declarados por sentenças judiciais transitadas em julgado.
Assim se impondo a discriminação e identificação dessa subclasse de credores comuns para se poder compreender o próprio plano apresentado.”
A devedora, notificada desse requerimento, limitou-se a vir aos autos dizer que “No que respeita à categorização dos créditos comuns e ao modo do seu pagamento, inexistem dúvidas, porquanto, os créditos correspondentes a sinais referentes a contratos promessa não cumpridos, serão reembolsados em singelo, e no prazo de 12 meses após o trânsito em julgado da homologação do plano, os demais créditos comuns, com exceção do titulado pelo empreiteiro, (…) serão pagos, em singelo, em 24 meses, após 12 meses de carência, em 8 prestações trimestrais, as primeiras 4 perfazendo 30% do respetivo valor, e as seguintes correspondendo aos restantes 70%.”
Essa alegação nada esclarece.
Diferente seria se a devedora se tivesse limitado a dizer que os créditos comuns reconhecidos aos credores/promitentes-compradores serão reembolsados no prazo de 12 meses após o trânsito em julgado da homologação do plano, e os créditos comuns reconhecidos aos demais credores, com exceção do titulado pelo empreiteiro, seriam pagos em 24 meses, após 12 meses de carência, em 8 prestações trimestrais, as primeiras 4 perfazendo 30% do respetivo valor, e as seguintes correspondendo aos restantes 70%.
De qualquer forma, como acima dissemos, mesmo que fosse essa a intenção da devedora, a verdade é que essa previsão de pagamento consubstanciaria uma violação do princípio da igualdade de credores, por configurar um tratamento mais desfavorável e discriminatório dos credores comuns que não fossem promitentes-compradores».
Desde já adiantamos que não podemos subscrever esta análise.
O plano apresentado pela devedora e que veio a ser aprovado não prima pela clareza, não obstante as observações aduzidas por diversos credores, que aquela obstinadamente desconsiderou.
Todavia, não cremos que essa falta de clareza importe a sua ininteligibilidade, nomeadamente no que concerne aos créditos dos promitentes compradores a quem é devida a restituição do sinal em dobro. Não cremos, sequer, que a interpretação do plano no que a estes créditos concerne se reconduza a uma das duas hipóteses formuladas na decisão recorrida (pagamento da totalidade do crédito numa única prestação 12 meses após a homologação ou pagamento do sinal em singelo nesses termos e da parte restante em 8 prestações trimestrais, vencendo-se a primeira decorridos 12 meses após a data do trânsito em julgado da homologação do plano).
O plano aprovado distingue três categorias de créditos: créditos privilegiados dos credores hipotecários; créditos comuns; créditos sob condição.
E subdivide os créditos comuns em três sub-categorias: créditos comuns relacionados aos credores com contratos promessa de compra e venda de imóveis; créditos comuns a prestadores de serviços, entre outros credores comuns não referidos nos pontos anteriores; créditos comuns ao Empreiteiro, G..., Lda., entre outros credores comuns não referidos nos pontos anteriores.
No que concerne aos créditos comuns relacionados aos credores com contratos promessa de compra e venda de imóveis, prevê apenas o pagamento do valor correspondente a 100% do valor em singelo dos sinais passados, numa só prestação, no prazo máximo de 12 meses a contar da data do trânsito em julgado da sentença de homologação do plano, sem lugar a juros vencidos e vincendos. Ora, resultando dos autos que pelo menos parte destes promitentes compradores tem direito à restituição do sinal em dobro, o plano só pode ser interpretado no sentido de reduzir estes créditos ao valor do sinal em singelo, conforme já referimos anteriormente.
O plano também prevê que ao pagamento dos créditos sob condição, «considerando o tipo e natureza do crédito será aplicado o correspondente plano de pagamento previsto nos pontos anteriores».
Se todos os créditos correspondessem à devolução dos sinais em singelo tivessem sido relacionados como créditos comuns sem condição e se todos os créditos correspondentes à devolução de igual valor, por força da obrigação da devolução do sinal em dobro, tivessem sido relacionados como créditos comuns sob condição, as dúvidas de interpretação do plano suscitadas na decisão recorrida seriam inteiramente pertinentes, caso em que efectivamente se imporia concluir pela ininteligibilidade do plano de recuperação, nesta parte. Mas não é isso que sucede, como facilmente se depreende dos elementos constantes dos autos e é expressamente afirmado pelo tribunal a quo na decisão que incide sobre as impugnações apresentadas à lista provisória, onde se pode ler o seguinte: «Antes de entrarmos na análise das impugnações cumpre salientar que, relativamente ao contrato-promessa de compra e venda em que foram entregues sinais, haverá lugar ao reconhecimento do crédito igual ao valor do sinal entregue, em singelo, nas situações em que a devedora está em mora quanto ao cumprimento desse contrato, sendo que o valor do sinal em dobro pode ser reconhecido condicionalmente ficando dependente do incumprimento definitivo do contrato; por outro lado, haverá que reconhecer um crédito igual ao sinal em dobro quando já há incumprimento definitivo do contrato-promessa, sendo certo que, nas situações em que a devedora prometeu vender um imóvel a um credor e, posteriormente, veio a vender esse mesmo imóvel a um terceiro, já se verifica o incumprimento definitivo do contrato-promessa porque a obrigação de celebrar o contrato definitivo já se tornou impossível por causa imputável à devedora. Esse é o regime que resulta das normas previstas no Código Civil, designadamente, nos artigos 410.º, 442.º e 801.º desse diploma legal» (cfr. p. 32 da decisão em causa). A título de mero exemplo, verifica-se que foram relacionados dois créditos do credor XX: um crédito comum sem condição, no valor de 204.975,40 €, correspondente ao dobro do sinal entregue no âmbito de um determinado contrato promessa; um crédito comum sob condição, no valor de 140.000,00 €, correspondente ao dobro do sinal entregue no âmbito de outro contrato promessa de compra e venda. Diferentemente, tendo as recorrentes reclamado crédito correspondentes ao dobro dos sinais entregues, foram reconhecidos sem qualquer condição os valores correspondentes aos sinais entregues e sob condição os valores remanescentes.
Verifica-se, portanto, que foram relacionados como créditos comuns os valores correspondentes ao dobro dos sinais entregues, nuns casos sem condição e noutros sob condição. Mas se assim é, não restam dúvidas de que o plano prevê apenas o pagamento dos sinais em singelo, tanto nos casos em que esses créditos já são certos, como nos casos em que permanecem sob condição. Nestes casos, sendo reconhecidos, o plano apenas prevê o pagamento do sinal em singelo, em caso algum sendo admitido o pagamento do sinal em dobro.
De resto, isso mesmo foi afirmado assertivamente pela devedora por diversas vezes, designadamente no requerimento de 26.06.2023, em que esta se pronuncia sobre as diversas observações apresentadas pelos credores a respeito do plano de recuperação apresentado, e na alegação deste recurso, onde se pode ler o seguinte: «O reembolso dos sinais entregues é a solução mais viável, possível e equilibrada para ambas as partes e foi aceite pela maioria dos credores na negociação e votação. Sendo uma solução transversal a todos os credores na mesma situação, independentemente de lhes ser reconhecido o direito ao sinal em dobro. A declaração de sinal em singelo é inequívoca, o reembolso é efectuado em igualdade de circunstâncias a todos os credores com sinal passado, nos mesmos termos, conferindo-lhes um plano de igualdade. Ou seja, plano é claro quanto a esse ponto, não merecendo qualquer outra interpretação, nomeadamente, a que consta da douta sentença recorrida. Aliás, essa dúvida em momento algum foi suscitada nos autos, nomeadamente pelos credores a quem foi reconhecido esse direito».
Nestes termos, o plano não padece da apontada ininteligibilidade, sem prejuízo da violação do princípio da igualdade já antes apreciado.
Sempre se dirá que, a haver alguma ininteligibilidade no plano em apreço, a mesma diria respeito ao âmbito da terceira das sub-categorias dos créditos comuns acima enunciadas, como foi oportunamente alertado pelos credores, nomeadamente pelo credor XX, no seu requerimento de 20.06.2023. Vimos que a primeira daquelas sub-categorias integra apenas os créditos comuns relacionados aos credores com contratos promessa de compra e venda de imóveis; a segunda integra os créditos comuns a prestadores de serviços, entre outros credores comuns não referidos nos pontos anteriores, ou seja todos os créditos que não integrem a categoria de créditos privilegiados dos credores hipotecários ou a (sub)categoria dos créditos comuns relacionados aos credores com contratos promessa de compra e venda de imóveis; a terceira sub-categoria está descrita assim: créditos comuns ao Empreiteiro, G..., Lda., entre outros credores comuns não referidos nos pontos anteriores. Não se consegue compreender quem são estes outros credores comuns não referidos nos pontos anteriores, pois estes não existem. De resto, como acaba por ser consensual entre todos os interessados, a discriminação desta terceira sub-categoria teve em vista conferir um tratamento diferenciado ao credor G..., Lda., pelas razões explicitadas no próprio plano, as quais não se aplicam a outros credores. Em todo o caso, cremos que, mais do que uma situação de ininteligibilidade, estamos perante uma redacção vazia de conteúdo, que apenas merece uma interpretação abrogante.
4. O terceiro fundamento invocado pelo tribunal a quo para a não homologação do plano de recuperação prende-se com a circunstância de este colocar pelo menos os credores comuns (que não o empreiteiro ou os promitentes compradores) numa situação previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano.
A este respeito, diz-se o seguinte na decisão recorrida:
«Por outro lado, no plano apresentado a devedora prevê que “Não será permitido durante a vigência do plano a cedência a terceiros de créditos sem a autorização da devedora e a preferência na compra desse crédito nas mesmas condições e igual valor (…)”.
O referido credor XX, após a apresentação do plano, apresentou um requerimento no qual referiu que “incompreensível e absolutamente injustificada é, também, a pretendida proibição da cessão de créditos.
Não se vislumbrando, nem sendo avançada qualquer razão, jurídica ou de facto, que permita restringir um direito que os credores têm, e que, no limite, lhes permite obter ressarcimento, parcial ou total, mas antecipado, dos seus créditos, e que em nada prejudica a requerente.
Sendo ainda mais incompreensível o direito de preferência que esse pretender ver constituído a favor da Requerente, pois então, a pretexto de uma preferência, a devedora iria favorecer um dos seus credores em detrimento dos demais.”
A devedora, quanto a essa questão, veio dizer que “Outra questão suscitada, reporta-se à obrigação de conceder preferência à A... na aquisição dos créditos em caso de cessão, e não proibição de cessão, e é coerente com que já constava dos contratos promessa de compra e venda, e visa a protecção dos demais credores, ao potenciar a concentração de créditos.”
Como é sabido, nos termos do artigo 577.º, n.º 1, do Código Civil “O credor pode ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito, independentemente do consentimento do devedor, contanto que a cessão não seja interdita por determinação da lei ou convenção das partes e o crédito não esteja, pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor”.
No caso dos promitentes-compradores parece resultar da alegação da devedora que foi previsto nos contratos-promessa que outorgou a proibição de cessões de créditos sem a sua autorização já que refere que a cláusula aposta no plano é coerente com o que já constava dos contratos-promessa.
A verdade é que, quanto aos demais credores reconhecidos, não se alcança qualquer razão que justifique a proibição da cedência dos seus créditos a terceiros sem a sua autorização.
Com efeito, não se vislumbra qualquer razão para não ser permitido a qualquer credor/fornecedor da devedora ceder os seus créditos a terceiros sem autorização da devedora, sendo certo que esse credor poderá ter interesse na cessão ainda que parcial dos seus créditos, recebendo antecipadamente um qualquer valor, sendo que nesse caso a devedora não seria prejudicada em nada já que continuaria obrigada a pagar ao cessionário o mesmo crédito.
Por outro lado, não se vislumbra por que razão a devedora refere que a “obrigação de conceder preferência à A... na aquisição dos créditos em caso de cessão (…) visa a protecção dos demais credores, ao potenciar a concentração de créditos.”.
É caso para perguntar: de que forma é que os demais credores são protegidos pelo facto de se atribuir esse direito de preferência a favor da devedora?
Ao atribuir-se esse direito de preferência aquilo que poderia acontecer é que se um credor tivesse alguém interessado na aquisição do seu crédito por um determinado valor, a atribuição desse direito de preferência, no caso de a devedora pretender preferir, implicaria que a devedora pagaria logo a esse credor o montante acordado com o cessionário.
Nesse caso, o credor em causa poderia ser beneficiado em relação aos demais porquanto poderia receber antes dos outros o valor, ainda que parcial, do seu crédito.
Acresce que não se alcança por que razão a devedora refere que tal potencia a concentração de créditos.
Salvaguardando o devido respeito, afigura-se-nos que a cláusula prevista no plano em que a devedora prevê que “Não será permitido durante a vigência do plano a cedência a terceiros de créditos sem a autorização da devedora e a preferência na compra desse crédito nas mesmas condições e igual valor (…)” coloca os credores, pelo menos os credores comuns que sejam fornecedores e/ou prestadores de serviços, numa situação previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano.
Com efeito, se em relação aos credores/promitentes compradores poderá resultar dos contratos-promessa que os mesmos estariam impedidos de ceder os seus créditos a terceiros sem autorização da devedora, não havendo, nesse caso, qualquer situação menos favorável para os mesmos, já quanto aos credores que são fornecedores e/ou prestadores de serviços, se o plano não for homologado, os mesmos poderiam livremente ceder os seus créditos.
Ora, homologando-se o plano e constando, do mesmo, essa cláusula, os mesmos ficariam colocados numa situação previsivelmente menos favorável do que a que interviriam na ausência de qualquer plano».
A este respeito, a recorrente vem agora reiterar que já constava dos contratos promessa uma cláusula de concessão de preferência à promitente vendedora em caso de cessão da posição contratual, acrescentando que se pretendeu manter o mesmo regime no que concerne aos créditos (subentendendo-se que se está a referir aos demais créditos não emergentes de contratos promessa de compra e venda), que esta concessão de preferência não inibe a cessão do crédito, apenas obrigando o cedente a ceder ao preferente, desde que este cumpra com as mesmas obrigações do cessionário, podendo até favorecer os cedentes, que assim poderão receber mais rapidamente, e que se trata de uma condição habitualmente constante de planos de revitalização, com especial acuidade nas empresas dedicadas à promoção imobiliária e do sector da construção.
Mais uma vez, a alegação do recorrente revela-se falaciosa.
Em primeiro lugar porque parte do pressuposto de que a cláusula em apreço estipula apenas o direito de preferência da devedora no caso de cessão do crédito a terceiros. Mas a verdade é que essa cláusula tem um alcance mais amplo, consagrando também, textualmente, uma proibição de cessão de créditos a terceiros sem a autorização da devedora.
Em segundo lugar porque confunde a cessão de créditos, regulada nos artigos 577.º e seguintes do CC, com a cessão da posição contratual, regulada nos artigos 424.º e seguintes do mesmo código. Mas, como resulta destes diferentes regimes legais, estas são realidades com contornos distintos.
Em terceiro lugar, porque equipara a preferência, que afirma ter sido estipulada nos contratos promessa que celebrou com diversos dos seus actuais credores, no caso de cessão da posição naqueles contratos, que naturalmente pressupõe a vigência dos mesmos (e que o artigo 424.º do CC faz depender do consentimento do outro contraente) e a preferência, constante do plano aprovado, no caso de cessão dos créditos decorrentes do não cumprimento daqueles contratos (que o artigo 577.º permite independentemente do consentimento do devedor, desde que «a cessão não seja interdita por determinação da lei ou convenção das partes e o crédito não esteja, pela própria natureza da prestação, ligado à pessoa do credor»). Mas a verdade é que estas preferências não são equiparáveis.
Em todo o caso, não constando do plano apenas a preferência na cessão dos créditos a terceiras pessoas, mas também a proibição dessa cedência sem autorização da devedora, nada de semelhante tendo ficado estipulado nos contratos promessa de compra e venda de cujo incumprimento emergem tais créditos, impõe-se concluir que a homologação do plano teria como consequência colocar todos os credores, sem excluir os promitentes compradores, numa situação menos favorável do que a que teriam na ausência de qualquer plano.
Este facto não constitui um fundamento de não homologação oficiosa do plano, enquadrável no artigo 215.º do CIRE, podendo apenas configurar um fundamento de não homologação a solicitação dos interessados, nos termos e nas condições previstas no artigo 216.º do mesmo código.
Tais condições estão verificadas no caso concreto, visto que a não homologação do plano de recuperação foi solicitada por duas credoras que manifestaram nos autos a sua oposição a esse plano antes da aprovação do mesmo, tendo as mesmas demonstrado em termos plausíveis que a sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, nos termos anteriormente expostos.
Nos termos expostos, embora com uma argumentação não inteiramente coincidente, concordamos com a conclusão do tribunal a quo de o plano aprovado não deve ser homologado porque viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 194.º do CIRE, mas também porque a previsão de uma cláusula que não permite, durante a vigência do plano, a cedência a terceiros de créditos sem a autorização da devedora (para além da preferência na compra desse crédito) colocaria, pelo menos, os credores comuns numa situação previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano.
Impõe-se, assim, confirmar a decisão recorrida e condenar a recorrente nas custas da apelação (cfr. artigo 527.º, n.º 1, do CPC).
*
V. Decisão
Pelo exposto, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto julgam improcedente a apelação e confirmam a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.
*
Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
………………………………
………………………………
………………………………
*
Porto, 5 de Março de 2024
Artur Dionísio Oliveira
Rui Moreira
Rodrigues Pires