EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
DOLO
DESPACHO LIMINAR
Sumário

Para efeitos da exclusão do benefício da exoneração do passivo restante, prevista no artigo 245.º, n.º 2, al. b) do CIRE, o dolo que releva não se afere exclusivamente pelo facto que directamente produz danos na esfera jurídica do lesado, mas ainda relativamente ao facto que faz nascer na esfera jurídica do devedor o dever de indemnizar, designadamente não celebrando contrato de seguro válido e eficaz e circulando com o veículo sem seguro, ou permitindo que o veículo circule sem seguro conduzido por outrem.

Texto Integral

Processo n.º 2498/19.4T8STS-B.P1– Apelação

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

Sumário:
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AA, com os sinais dos autos, veio deduzir pedido de insolvência de pessoa singular (apresentação), tendo, nesse âmbito, requerido a exoneração do passivo restante.
Foi proferido despacho de concessão da exoneração do passivo restante à insolvente, nos termos do artigo 244.°, 1, do CIRE, com exclusão do crédito reclamado pelo credor Fundo de Garantia Automóvel (FGA). O referido credor, por requerimento de 6.3.2023, havia requerido a exclusão da exoneração do passivo restante do seu crédito resultante da sub-rogação nos direitos do lesado por via da satisfação de indemnização atribuída por sentença datada de 27.03.2019, proferida no âmbito do processo judicial n.° 733/18.5T8PVZ, que corre termos no Juízo Local Cível da Póvoa do Varzim - Juiz 1 do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, resultante da circunstância de o veículo propriedade e conduzido pela insolvente circular circular sem seguro de responsabilidade civil à data do sinistro.
Do despacho vem recorrer a insolvente, apresentando as seguintes conclusões:
1o Vem o presente recurso da decisão proferida no processo de insolvência, que concedeu a exoneração do passivo restante á recorrente, com exclusão do crédito do Fundo de Garantia Automóvel, no valor de €55.179.76. de tal exoneração, cf. Art° 245 n.°2 al. b do CIRE.
2o A questão a decidir é saber se o crédito do Fundo de Garantia automóvel deve ser excluído da exoneração do passivo restante por força do disposto no art.° 245 n.° 2 al. b) do CIRE ou não.
3o Defende o Fundo de Garantia Automóvel, a nosso ver, mal, que o facto negligente é o acidente de viação e o facto doloso é a inexistência de seguro válido e eficaz á data do acidente, mostrando-se assim preenchidos as condições para a aplicação da al. b) do n.° 2 do art.° 245 do CIRE.
4o No caso dos autos, verifica-se que estamos perante um crédito reclamado pelo Fundo de Garantia Automóvel e que tem a sua origem no pagamento de uma indemnização por parte desta entidade em virtude da ocorrência de um acidente de viação em que a insolvente foi responsável.
5o A sub-rogação do FGA decorre do facto de o veículo que teve intervenção no acidente não possuir, aquando desse sinistro, seguro válido e eficaz, o que configura conduta contravencional.
6o A exclusão da exoneração, prevista na ai. b) do art.°245. estatui como pressuposto que o crédito excluído da exoneração preencha dois requisitos legais, cumulativos, a saber:
c) Que se trate de crédito indemnizatório por factos ilícitos e dolosos praticados pelo devedor insolvente; e,
d) Que esse direito de crédito tenha sido reclamado nessa qualidade, isto é. que o credor o tenha reclamado, no âmbito do processo de insolvência, junto do administrador de insolvência, alegando precisamente facticidade da qual decorra que se trata de um crédito indemnizatório destinado a indemnizá-lo por prejuízos sofridos em consequência directa e necessária de conduta ilícita e dolosa do devedor insolvente.
7o Inexistem nos autos, quaisquer factos que permitam concluir que a insolvente actuou com dolo, no acidente de viação em que interveio.
8o Assim, o crédito indemnizatório reclamado pelo FGA. que foi reconhecido pelo administrador de insolvência, como comum, não integra a excepção à exoneração a que alude a al. b) do n.° 2 do art.° 245 do CIRE, porquanto, não consubstancia um crédito indemnizatório devido por factos ilícitos e dolosos praticados pela insolvente, aqui recorrente.
A decisão recorrida violou por erro de interpretação e aplicação o disposto na al. b) do n.° 2 do art.° 245 do CIRE, pelo que deve ser revogada por Acórdão que conceda a exoneração do passivo restante á insolvente sem qualquer exclusão.

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Contra-alegou o FGA, sustentando a improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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Delimitando-se o objecto do recurso pelas conclusões da alegação do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigos 635º, nº 3 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil (CPC), a questão suscitada no presente recurso consiste em saber se o crédito do fundo de garantia automóvel se enquadra no disposto no nº 2, al. b) do artigo 245º do CIRE.
A factualidade com relevância para a decisão é a que decorre do precedente relatório.
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Nos termos do art. 245.º, nº 2, al. b), do CIRE, a exoneração do devedor não abrange (…) as indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamadas nessa qualidade. No caso vertente, depara-se um crédito reclamado pelo Fundo de Garantia Automóvel que resulta do pagamento feito por este no âmbito de um acidente de viação em que foi responsável a insolvente. Na verdade, preceitua o art. 54.º, nº 1 do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, que “satisfeita a indemnização, o Fundo Garantia Automóvel fica sub-rogado nos direitos do lesado, tendo ainda direito ao juro de mora legal e ao reembolso das despesas que houver feito com a instrução e regularização dos processos de sinistro e de reembolso.” Essa sub-rogação do FGA resultou da circunstância de o recorrido não ter, à data do sinistro, um seguro válido e eficaz, o que configura uma conduta contravencional. A sub-rogação, em termos sucintos, constitui uma forma de transmissão de créditos que assenta no respectivo cumprimento por terceiro, o qual, por isso, se substitui ao credor primitivo, mantendo-se o devedor obrigado, agora perante o novo credor (mera modificação subjectiva da titularidade do direito). Correspondendo ao conceito da sub-rogação uma ideia de substituição pessoal, ou seja, de uma pessoa tomar o lugar de outra, assumindo a sua posição numa dada relação jurídica a qual não se extingue, subsistindo ainda que subjectivamente modificada. Na definição doutrinal, a sub-rogação é a substituição do credor na titularidade do direito a uma prestação fungível pelo terceiro que cumpre em lugar do devedor ou que faculta a este os meios necessários ao cumprimento (cf. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 4ª ed., p. 324).
No caso em apreço, o FGA, ao indemnizar o lesado, nos termos da legislação relativa ao seguro automóvel, satisfez o crédito indemnizatório deste e, por isso, substituiu-se a ele, na titularidade de tal direito de crédito. Um dos efeitos da sub-rogação é a transmissão para o terceiro que paga dos poderes que competiam ao credor originário, na medida da satisfação dada ao direito deste (art. 593º nº 1 do CCivil). Conclui-se, assim, que está em causa nesta indemnização uma relação jurídica que não se extinguiu mas apenas foi subjectivamente modificada, que decorre da culpa da condutora do veículo propriedade da insolvente no âmbito do acidente de viação. Ou seja, no âmbito desse acidente, estamos, naturalmente, perante uma responsabilidade civil extracontratual da insolvente, por factos ilícitos (vide arts.483º e sgs. do Código Civil). A esta circunstância adiciona-se ainda o facto de a intervenção do recorrido decorrer de um acto doloso da insolvente – a inexistência de seguro automóvel válido e eficaz. A existência do Fundo de Garantia Automóvel, criado pelo Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, obedece justamente a um interesse da comunidade de acorrer aos lesados em acidente de viação nos casos em que o responsável pelo acidente não é conhecido, ou em que o condutor não tem contrato de seguro válido e eficaz ou a seguradora se torna insolvente.
Sustenta, por sua parte, a insolvente que não teve intenção de praticar o facto, ou não agiu com dolo, pelo que, na sua tese, a exclusão do benefício da exoneração do passivo restante, prevista no artigo 245.º, n.º 2, al. b) do CIRE, abrange apenas as indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, ou seja, reportando-se àqueles que o devedor praticou lesando os direitos de outrem, tendo plena consciência disso mesmo, e com intenção/ vontade de praticar esse dano. Vejamos.
Existe dolo quando o resultado do comportamento do agente tenha sido por ele previsto e querido, seja porque actuou propositadamente para atingir o fim ilícito (dolo directo), porque actuou para atingir um fim lícito, mas sabendo que da sua acção resultaria inevitavelmente um fim ilícito (dolo necessário), ou ainda porque actuou para atingir um fim lícito, mas com consciência de que do seu acto podia advir um fim ilícito e querendo o acto mesmo nessa hipótese (dolo eventual). Vide, sobre esta matéria, ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, I, p. 521 e segs. e PESSOA JORGE, Lições de Direito das Obrigações, Edição AAFDL, 1967, p. 561. Ora, o dolo que releva para efeitos do no artigo 245.º, n.º 2, al. b) do CIRE não se afere exclusivamente pelo facto que directamente produz danos na esfera jurídica do lesado, mas ainda relativamente ao facto que faz nascer na esfera jurídica do devedor o dever de indemnizar, concretamente o consentimento na circulação do veículo sem seguro válido e eficaz. Como se escreveu no Ac. desta Relação e Secção de 07-07-2016 (Proc.º 853/15.8T8STS.P1, relatado pelo Conselheiro Fernando Samões) “o dolo decorre da inexistência de seguro automóvel, válido e eficaz, da responsabilidade do mesmo devedor, na qualidade de proprietário do veículo interveniente no acidente. Enquanto proprietário, ele tinha o dever não só de celebrar o contrato de seguro, mas também de não circular sem seguro. Não celebrando tal contrato e circulando com o veículo sem seguro, agiu com dolo, senão directo, pelo menos eventual”. O mesmo valendo para a simples permissão de que o veículo circule sem seguro conduzido por outrem, se apenas isso fosse imputável à recorrente, que não coloca de todo em crise que detivess a direcção efectiva do dito veículo e, bem assim, a sua qualidade de proprietária do mesmo.
Conclui-se, assim, estarmos perante uma indemnização que cabe na previsão do art. 245.º, nº 2, al. b), do CIRE. na medida em que está em causa uma indemnização devida por facto ilícito, existindo dolo por parte da devedora quanto à inexistência de seguro válido e eficaz. No mesmo sentido podemos encontrar ainda, entre outros, o Ac. desta Relação e Secção de 17-06-2014 (Proc.º 2573/13.9TBVCD-C.P1, rel. Des. José Igreja Matos) e o Ac. da Relação de Guimarães de 24-04-2014 (Proc.º 124/12.1TBPCRF-F.G1, in dgsi.pt).
Procede, pelo exposto, o recurso, devendo entender-se que a indemnização ao FGA se enquadra no estatuído no art. 245.º n.º 2, al. b) do CIRE e está excluída dos efeitos da exoneração

Decisão.
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso, em função do que confirmam a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.

Porto, 5/3/2024
João Proença
Rodrigues Pires
Alberto Taveira