QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA COMO CULPOSA
ADMINISTRADOR
GERENTE
CULPA
INIBIÇÃO
Sumário

I - A venda do património da devedora a outra sociedade constituída, pouco tempo antes do encerramento daquela, com o mesmo sócio único, a mesma sede, e o mesmo objecto social, para além de ter impossibilitado o prosseguimento da actividade da devedora, beneficiou os interesses do seu legal representante, que se mantém a gerir o mesmo negócio, sem o passivo acumulado na insolvente.
II - Esta situação preenche as hipóteses previstas no artigo 186.º, n.º 2, als. d) e f) do CIRE, devendo a qualificação da insolvência como culposa afectar o gerente.
III - Os direitos económicos não são absolutos e, por esse motivo, podem ser objecto de compressão, decorrente da lei, quando seja necessário tutelar interesses colectivos relevantes como sucede com a protecção da economia na vertente empresarial e da confiança no tráfico jurídico.
IV - Nesta conformidade, as inibições dos administradores/gerentes, decretadas como efeito imperativo da qualificação da insolvência como culposa, constituem restrições àqueles direitos constitucionais (liberdade da iniciativa privada e escolha de profissão) permitidas pela Constituição da República Portuguesa.
V - Na fixação da medida da inibição relevam o grau de culpa, a gravidade do comportamento do afectado, incluindo o número das circunstâncias qualificadoras preenchidas, as consequências lesivas, o valor do passivo, a contribuição isolada ou não para a criação ou agravamento da insolvência, e todas as circunstâncias agravantes e atenuantes emergentes das circunstâncias do caso concreto.

Texto Integral

Processo n.º 3073/22.1T8STS-B.P1

Relatora: Anabela Andrade Miranda

Adjunto: Alberto Taveira

Adjunta: Lina Castro Baptista


*

………………………………

………………………………

………………………………


*

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I—RELATÓRIO

A sociedade “A..., Lda.”, foi declarada insolvente, por sentença de 09.01.2023, e aberto o incidente de qualificação da insolvência, com caráter pleno.

A Sra. Administradora da Insolvência apresentou o seu parecer, em 21.4.2023, concluindo pela qualificação da insolvência como culposa e pela afetação do requerido AA.

O Ministério Público pronunciou-se em 02.05.2023, propondo a qualificação da insolvência como culposa, com afetação do gerente AA. Para o efeito, convocou a factualidade alegada pela Sra. Administradora da Insolvência no seu parecer apresentado ao abrigo do disposto no art. 188º, n.º 6 do CIRE e o disposto nas alíneas b) do n.º 2 e a) e b) do n.º 3 do art. 186º do CIRE.


*

Proferido o despacho de 03.05.2023, foi a insolvente notificada e o requerido citado, tendo apresentado oposição em 30.5.2023, onde concluíram pela qualificação da insolvência como fortuita.

Responderam a esta oposição os credores “B..., Lda.”. e BB.


*

Proferiu-se sentença que decidiu:

a)Qualificar como culposa a insolvência de “A..., Lda.”;

b)Declarar afetado pela qualificação referida em a) AA;

c)Decretar a inibição do afectado pelo período de 4 (quatro) anos, para administrar patrimónios de terceiros;

d)Declarar o afectado inibido, pelo período de 4 (quatro) anos, para exercer o comércio e ocupar qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa;

e)Condenar o requerido a indemnizar os credores da insolvente em 30% dos créditos reconhecidos, considerando as forças do seu património.


*

Inconformados com a sentença, a Insolvente e o Afectado interpuseram recurso finalizando com as seguintes

Conclusões

Nos presentes autos, a insolvente e o seu Administrador não realizaram atos de dissipação, ocultação e muito menos realizaram atos em proveito de terceiros, e, sempre colaboraram com a AI, quando tiveram conhecimento da sua declaração de vontade de comunicar, pelo que não ocorre os elementos objetivos e subjetivos do n.º 1 e das als. b) e g) do n.º 2, do artº 186º do CIRE, conjugados com o nº 3 do mesmo artigo, não atuaram com culpa grave, não ocorre nexo de causalidade entre a conduta e o ato de insolvência, pelo que, a insolvência deveria ser qualificada como fortuita por não ocorrer os elementos objetivos nem subjetivos, nos termos do artº 186º do CIRE, deveria ser qualificada como fortuita.

Porquanto:

I - Ocorre inexistência de culpa grave no incumprimento dos deveres de apresentação à insolvência e de colaboração nos termos do n.º 1 e nº 3 do artº 186º do CIRE.

II - A Insolvente e o seu Administrador, não agravaram, não dissiparam nem ocultaram bens e muito menos realização atos de em proveito próprio ou de terceiros, o valor do imobilizado do conhecimento da Exmª AI correspondeu ao valor do mercado, não ocorre favorecimento e muito menos prejuízo, pelo que falece o argumento invocado pelo tribunal a quo.

III- Outrossim, ocorre ausência de nexo de causalidade entre os factos e a criação, ou seja, a Insolvente e o seu Administrador não realizaram atos de dispor os bens em proveito de terceiro não ocultaram bens nem dissiparam, não obstruíram o trabalho da Exmª Srª AI, se a venda causasse prejuízos a Exmª AI teria realizado atos de resolução, facto, que não o realizou porque tinha conhecimento que a venda não prejudicou os credores.

IV - É unanimemente que se reconhece, o sentido conferido à norma pela expressão "sempre" que a integra (neste sentido Luís Menezes Leitão, CIRE Anotado, 2012, em anotação ao preceito; e por exemplo, Ac. do TRP, de 4/6/2012, proc. nº 3063/10.7TBVFR-B.P1, in www.dgsi.pt), isto é tem de existir o nexo causal, a Insolvente e o seu Administrador não provocaram a insolvência, nem tão pouco destruíram ou danificaram bens, muito menos venderam bens a terceiros com prejuízo para a Insolvente ou credores e sem olvidar, sempre colaboraram com a Exmª AI, quando as comunicações ou as declarações chegaram ao seu conhecimento, pelo que ocorre ausência de culpa.

V - Ademais, na esteira das regras citadas, pelo TRC, em Ac. de 28/5/2013 (em www.trc.pt, proc. nº 102/12.0TBFAG-B.C1) que "A ocultação prevista no art. 186º, nº 2, a), do CIRE (Ref. 22/2004) basta-se com uma atuação que, alterando a situação jurídica do bem - por ex: vendendo um imóvel a terceiro, com uma relação próxima directa ou indirecta com o alienante, ou ocultando o preço recebido, in casu, a Insolvente e o seu Administrador, não ocultaram os bens os bens foram vendidos a custo de mercado, bens em segunda mão, venda realizada legalmente, a venda foi legal e constitucional, pelo preço do mercado, o valor entrou na Insolvente, não foi desviada.

VI - Por sua vez, a previsão constante das als. b) e g) dirige-se a situações em que o devedor oculta ou dissipa o património de forma a obter uma vantagem pessoal ou para terceiros concomitantemente com o prejuízo dos credores, facto, não ocorre, a Insolvente e o seu Administrador sempre atuaram como bonus pater de familias, sempre zelaram pelo cumprimento das obrigações e evitaram agravamento da Insolvente, pelo que, não ocorre um nexo de causalidade provocada pela conduta da Insolvente e do seu Administrador, em que não tiveram vantagem com a venda, a venda, foi pelo preço do mercado e não de favorecimento, a venda legal.

VII - Não ocorre a subsunção da realidade apurada dos factos à norma do artº 186º do CIRE, os atos realizados não preenchem os pressupostos da norma do artº 186º do CIRE, pelo que a qualificação da insolvência de ser qualificada como fortuita, porque não se encontram preenchidos os elementos objetivos, subjetivos e nexo causal, do n.º 1, e, das als. b) e g) do n.º 2 e n.º 3 do artº 186º do CIRE, que para ocorrer qualificação da insolvência como culposa é pacífico na jurisprudência, exigir prova do nexo de causalidade entre a atuação presumida e a situação de insolvência prevista no n.º 1 do art.º 186 do CIRE- vd. neste sentido, entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15/07/2009 e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21/04/2009, in. www.dgsi.pt , é necessária a verificação de três requisitos para que possa concluir-se que a insolvência é culposa: que tenha havido comportamentos que tenham criado ou agravado a situação de insolvência; que tal conduta seja dolosa, ou pelo menos que haja culpa grave; que tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo, em que a culpa nos termos do disposto no artº 487 nº 2 do C. Civil a culpa é apreciada, na falta de outro citério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, tal como nos diz o Acórdão Tribunal da Relação de Lisboa de 9/10/2014, in. www.dgsi.pt.

VIII - É claro que a inibição para o exercício da sua atividade por quatro anos, colide com os direitos fundamentais da liberdade de trabalho, na dimensão de liberdade da escolha do género de trabalho, e da liberdade de iniciativa económica privada (artºs 47 nº 1, 58 nº 1 e 61 nº 1 da CRP) Direitos que também podem ser concebidos como manifestações do direito geral de personalidade ou mesmo como direito de personalidade Cfr. Rabindranath Capelo de Sousa, O direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, 1995, págs. 262 e Leite de Campos, Lições de Direitos da Personalidade, separata do BFDUC, Coimbra, 1995, pág. 105.. Mas dessa colisão não decorre, como corolário que não possa ser recusado, a ilegitimidade constitucional daquela norma da lei ordinária.

IX - A liberdade de iniciativa económica privada – que se desdobra na liberdade de iniciar uma actividade económica (liberdade de criação de empresa ou de estabelecimento), e é neste sentido um direito pessoal, e na liberdade de organização, gestão e actividade da empresa (liberdade de empresa, do empresário ou liberdade empresarial), faceta em que assume a natureza de direito institucional – pode ser objecto de limites ou restrições mais ou menos extensos.

X – A INSOLVENTE E O SEU GERENTE NÃO ATUARAM COM DOLO OU CULPA GRAVE, a inibição do administrador do ente administrado declarado insolvente, em que a escolha da profissão ou trabalho assume-se como um direito subjectivo que não tem apenas um conteúdo negativo – de direito de defesa – mas inclui uma dimensão positiva ligada ao direito ao trabalho e, bem assim, um aspecto de liberdade no exercício da profissão, sem a qual, naturalmente, a liberdade de escolha nada valeria Acs. do TC nºs 328/94 e 446/91, www.tribunalconstitucional.pt..

XI - Mas este conteúdo da liberdade de escolha da profissão não impede, naturalmente, que, por exemplo, no tocante especificamente à profissão de comerciante, em princípio aberta a todas as pessoas singulares, a lei ordinária possa estabelecer proibições gerais – como que ocorre com o comércio bancário ou com a actividade seguradora que só podem ser exercidas por sociedades anónimas autorizadas – ou incompatibilidades – como as que ferem os magistrados judiciais e do Ministério Público – ou impedimentos – como o que limita os agentes de comércio (artºs 14 nº 1 b) do RGIC, 7 nº 1 a) do DL nº 94-B/98, de 17 de Abril, 13 nº 1 do EMJ, aprovado pela Lei nº 21/85, de 30 de Julho, 60 nº 1 da LOMP, aprovada pela Lei nº 47/86, de 15 de Outubro e 253 do Código Comercial, respectivamente). Do mesmo modo, não vulnera aquela liberdade, a exigência de determinadas qualificações para o exercício de certa profissão ou de preenchimento de certos requisitos de idoneidade para aceder a esse exercício.

XII - Abstraindo da oscilação semântica do princípio constitucional estruturante da proibição do excesso ou, na acepção mais comum, das várias dimensões do princípio, igualmente estruturante, da proporcionalidade, a que, de resto, não é imune a própria jurisprudência constitucional Jorge Reis Novais, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Editora, 2004, págs. 160 e ss. Este autor decompõe o princípio da proporcionalidade em sentido lato – ou como acha preferível, da proibição do excesso – em três subprincípios ou elementos: o princípio da idoneidade, o princípio da indispensabilidade ou da necessidade e o princípio da proporcionalidade em sentido estrito – ops. cit., págs. 162 e 163. Já, por exemplo, o Ac. nº 634/93 – ATC, 26º vol., págs. 205 e ss. – desdobra o princípio da proporcionalidade em três subprincípios: o princípio da adequação; da exigibilidade; o princípio da justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito., deve ter-se por certo que princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso representa, seguramente, um dos principais instrumentos de controlo da adequação substancial de medidas restritivas de direitos fundamentais e, por essa via, um limite externo à liberdade de conformação do legislador (artº 18 nº 2 da CRP).

XIII- Perante o espaço de conformação do legislador e a função negativa de controlo que o princípio desempenha, o tribunal deve limitar-se a aferir se a regulação legislativa que estabeleça uma restrição do direito, da liberdade ou da garantia fundamental, é adequada ou idónea para a prossecução do fim visado pela lei, se é necessária ou indispensável por não existir meio menos lesivo para o direito, liberdade ou garantia restringida igualmente apto para a prossecução da finalidade visada, e, finalmente, se existe uma justa medida entre a restrição e o resultado que ela permite obter, de modo a que medida legal restritiva não se mostre desproporcionada, excessiva, desrazoável, relativamente ao fim alcançado.

XIV – Na espécie sujeita, a sentença apelada concluiu pela qualificação como culposa da insolvência com fundamento na existência de culpa grave do recorrente na omissão de requerer o processo de insolvência e, ao que parece, de promover a elaboração, a fiscalização e o depósito das contas anuais na conservatória do registo comercial (artº 186 nº 3 a) e b) do CIRE). E diz-se ao que parece, no tocante ao último dos fundamentos indicados, visto que a sentença apelada não se deteve no seu exame, tendo-se limitado, a este propósito a indicar a norma legal que o prevê: o artº 186 nº 3 do CIRE).

XV – Sendo isto exacto, então segue-se, como corolário que não pode ser recusado, que não houve, no caso, violação, pelo devedor ou pelo recorrente, do apontado dever de apresentação e, consequentemente, que não há, em boa verdade, razão para concluir pelo carácter culposo da insolvência, sempre seria exigível, pelas razões apontadas, a prova da relação ou nexo de causalidade entre essa conduta e a criação ou o agravamento da situação de insolvência do devedor, no caso, porém, não está demonstrado – nem, aliás, uma tal exigência surge sequer individualizada na sentença apelada – qualquer facto relativo à relação de causalidade entre aquela conduta e a criação, ou o agravamento, do estado de insolvência.

XVI - Nestas condições, qualquer daquelas condutas do recorrente, ainda que lhe devessem ser assacadas, mesmo de forma presuntiva, a título de culpa grave, sempre seriam inidóneas para qualificar a insolvência como culposa, não é, pois, juridicamente exacta e, por isso, deve ser revogada e substituída por outra que declare o carácter fortuito da insolvência e subtraia o recorrente às consequências da afectação.


*

O Ministério Público respondeu, concluindo da seguinte forma:

1.º A sentença recorrida fez adequada integração dos factos invocados nos articulados em ordem à decisão do incidente de qualificação da insolvência de ‘A..., Ld.ª’ e AA.

2.º A mesma sentença valora adequadamente a prova documental e testemunhal produzida, acolhendo – e dando como provados – factos extraídos de alegações de credor e corroborados quer no parecer do administrador de insolvência, quer na pronúncia do Ministério Público.

3.º Nesse contexto não merece reparo a seleção dos factos dados como provados ou não provados na sentença, a respectiva motivação e a subsunção jurídica que da mesma resultou, norteada pelos princípios gerais aplicáveis como o da livre apreciação da prova, mas também alicerçada em documentação pertinente.

4.º Quanto à qualificação da matéria de facto, a verdade é que a argumentação dos ora recorrentes se traduz no questionar não da matéria de facto dada como provada mas no colocar em causa da convicção do julgador, a qual, como se sabe, se forma livremente, com base nos elementos de prova globalmente considerados em conjugação com as regras da experiência comum.

5.º Assim sendo, os ora recorrentes acabam por cair no domínio insindicável da convicção do julgador, convicção essa, aliás, que, como se viu, se mostra, em sede de decisão ora recorrida, formal e substancialmente sustentada na sua motivação, que explica rigorosamente o processo lógico, racional e coerente que permitiu ao julgador firmar a sua convicção.

6.º Em suma, a sentença recorrida merece preservação pelo cuidado enquadramento dos factos e correta aplicação da lei, para o que não faltou prova documental fiável e coerente, meramente complementada pelos depoimentos prestados em audiência, não sendo de lhe assacar as contradições e as nulidades invocadas.


*

II—Delimitação do Objecto do Recurso

As questões principais decidendas, delimitadas pelas conclusões do recurso, consistem em saber se a insolvência deve ser qualificada como culposa e, na afirmativa, se a inibição a que deve ser sujeito o afectado é inconstitucional e excessiva.


*

III—FUNDAMENTAÇÃO

FACTOS PROVADOS

1.A sociedade “A..., LDA. foi constituída por contrato de sociedade registado na Conservatória do Registo Comercial pela Ap. ..., com sede na Rua ..., freguesia ..., concelho da Maia.

2.A sociedade referida em 1 foi constituída com o capital social de €5.000,00, distribuído por uma quota de €2.500,00, atribuída a CC, e uma quota de €2.500,00, atribuída a AA.

3.Foram, então, designados como gerentes CC e AA.

4.A indicada sociedade apresenta como objeto social restauração e hotelaria.

5.Pela Ap. ... foi registada a alteração ao contrato de sociedade, passando a sociedade indicada em 1 a obrigar-se através da intervenção de um gerente.

6.Pela Ap. ... foi registada a cessação de funções de gerente de CC, por óbito ocorrido em 28.11.2014.

7.Através da Menção Dep. 65/2016-01-11, encontra-se registada a transmissão da quota de €2500,00, pertencente a CC, a favor de DD.

8.AA adquiriu a quota de €2500,00, pertencente a DD, tendo levado a registo esta aquisição em 27.7.2020.

9.A sociedade referida em 1 depositou na Conservatória do Registo Comercial as contas anuais dos anos de 2013, 2014, 2015 e 2019.

10.Por petição inicial de 21.10.2022, a sociedade B..., LDA. requereu em tribunal a declaração da insolvência da sociedade referida em 1, alegando para o efeito, ademais, que lhe forneceu diversos bens, que apenas em parte foram pagos, e que a indicada sociedade não tem bens nem rendimentos que lhe permitam pagar o valor em dívida, conforme se aferiu em processo executivo que instaurou previamente contra aquela sociedade.

11.Por requerimento de 6.12.2022, a sociedade indicada em 1 apresentou contestação ao pedido de insolvência deduzido em 21.10.2022, opondo-se à declaração da insolvência.

12.Após julgamento e por sentença proferida em 9.1.2023, já transitada em julgado, foi declarada a insolvência da sociedade indicada em 1.

13.Por despacho proferido em 6.7.2023, foi encerrado o processo de insolvência, por insuficiência da massa insolvente para o pagamento das custas do processo e demais dívidas da massa insolvente, nos termos do disposto no art. 232º, n.º 2 do CIRE.

14.Na mesma data foi declarado formalmente encerrado o estabelecimento comercial/industrial da insolvente, com efeitos à data da declaração de insolvência, e determinado o cumprimento do disposto no artigo 65.º, n.º 3, do CIRE.

15.Não foram apreendidos quaisquer bens para a massa insolvente.

16.A Sra. Administradora da Insolvência reconheceu créditos sobre a insolvência no valor global de € 225.091,16, conforme apenso da reclamação de créditos que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

17.Entre os créditos reconhecidos constam, ademais, os seguintes:

a.Autoridade Tributária e Aduaneira - € 1.769,54, relativo a IRS/DMR, de natureza privilegiada, por ter sido constituído no ano anterior ao do início do processo de insolvência, e €45.875,14, relativo a IRS/DMR, IVA, IRC, de natureza comum, por ter sido constituído há mais de um ano por referência à data da instauração do processo de insolvência;

b.Instituto da Segurança Social, IP - € 93.706,77, sendo €10.993,90 de natureza privilegiada, por se referir a contribuições vencidas no ano precedente ao da instauração da ação de insolvência, e o restante de natureza comum, estando em causa contribuições vencidas entre 09/2017 e 09/2021.

18.A sede social da sociedade indicada em 1 manteve-se, sempre, fixada na Rua ..., Maia, correspondendo ao local do estabelecimento que era explorado pela A..., sob a denominação social “C...”.

19.No Relatório a que alude o artigo 155º do CIRE foi confirmada a situação de incapacidade financeira da A..., LDA. para a satisfação da totalidade do passivo, mercê da ausência de atividade, e de património.

20.A sociedade A... LDA. encontra-se inativa desde 09.11.2020, e com a sua atividade cessada em sede de IVA desde 31.03.2021, ao abrigo do disposto no artigo art.º 34 nº 1 a) CIVA.

21.Ao longo dos anos 2017, 2018, 2019, 2020 e 2021, a sociedade indicada em 1 apresentou os seguintes valores nas respetivas IES:

22.De acordo com os valores inscritos nas demonstrações financeiras, ao longo dos últimos anos de atividade, o volume de negócios da A... LDA. variou sempre de uma forma negativa.

23.De acordo com o balanço da A..., LDA. ao longo dos anos (2017 a 2021), a sua situação líquida é sempre negativa.

24.A sociedade indicada em 1 encontra-se em situação de falência técnica, desde [pelo menos] o ano 2017, resultando do seu balanço que o capital próprio reflete o que resta do património da empresa após a liquidação de todas as suas obrigações e este é negativo todos os anos: 2017: € (183 814,55) 2018: € (227 722,19) 2019: € (287 109,53) 2020: € (342 023,50) 2021: € (389 001,80)

25.Através de uma análise global aos rácios da A..., LDA., verifica-se que todos eles se degradaram ao longo dos anos, evidenciando valores negativos, o que revela problemas de tesouraria:

26.O rácio de autonomia financeira apresentou valores sempre negativos ao longo dos períodos em análise, tendo-se a situação deteriorado de ano para ano.

27.Em termos de liquidez geral, este rácio deve ser superior a 1, de forma a possibilitar que a empresa apresente capacidade para satisfazer as suas obrigações a curto prazo com os ativos circulantes, o que não se verifica em nenhum dos períodos em análise.

28.A rúbrica “Estado e Outros Entes Públicos” cresceu ao longo dos últimos anos:

29.Assim como o passivo global da sociedade:

30.No ano de 2021, a sociedade A... LDA. não declarou vendas/prestações de serviços:

31.De acordo com os elementos comunicados pela A..., LDA. ao e-fatura, a última fatura emitida por esta foi em 09.11.2020.

32.Não é conhecido qualquer giro comercial/atividade à sociedade indicada em 1, após 09.11.2020.

33.No exercício de 2021 a A..., LDA. declarou valores na rúbrica «outros rendimentos», no valor de EUR 9.796,05, que corresponde a correções relativas à estimativa de férias e subsídio de férias.

34.No ano de 2021, a sociedade indicada em 1 manteve “gastos com pessoal”, na ordem dos EUR 55.205,85:

35.Os vínculos laborais existentes à data do encerramento das portas da A..., LDA., em 11/2020, vieram a ser cessados no decurso do ano de 2022, a saber:

✓ EE, NISS ..., com início a 03/02/2020 e fim a 04/08/2022, por motivo de «transmissão de empresa» a favor da Sociedade AA, UNIPESSOAL, LDA.

✓ FF, NSS ..., com início a 01/07/2015 e fim a 31/07/2022, por motivo de «cedência definitiva de trabalhador» a favor da Sociedade D..., UNIPESSOAL, LDA.

✓ GG, NISS ..., com início a 01/04/2015 e fim a 04/08/2022, por motivo de «transmissão de empresa» a favor da Sociedade AA, UNIPESSOAL, LDA.

✓ BB, NISS ..., com início a 10/11/2017 e fim a 10/09/2021, por motivo de «justa causa iniciativa do trabalhador».

✓ HH, NISS ..., com início a 27/01/2020, sem que tenha sido comunicada a cessação do vínculo.

36.A Sociedade D..., UNIPESSOAL, LDA. beneficiou do labor prestado pelos trabalhadores cujo vínculo permanecia inscrito na A..., LDA., referidos em 35 e com exceção da última.

37.A sociedade D..., UNIPESSOAL, LDA., NIPC ..., foi constituída em 15.10.2020, com um capital social de EUR 1.000,00 (mil euros), pertencente a AA, NIF ..., sede na Rua ..., ..., Maia e objeto social restauração e hotelaria.

38.Entre os créditos reclamados nos autos pela AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA, nos termos do disposto no artigo 128º do CIRE, referidos em 17, encontram-se os seguintes:

Tributo
IVA
IVA
IVA
IVA
IRS/DMR
IRS/DMR
IRS/DMR
IRS/DMR
IRS/DMR
IRS/DMR
IRS/DMR
39.Entre os créditos reclamados nos autos pelo INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, IP, nos termos do disposto no artigo 128º do CIRE, referidos em 17, encontram-se os seguintes:

PeríodoContribuições (total dívida)
09/2017 a 12/2017 € 4.622,34
02/2018 a 12/2018 € 22.118,29
01/2019 a 04/2019; 06/2019 a 10/2019 e 12/2019 € 20.864,72
01/2020 a 12/2020 € 21.386,06
01/2021 a 12/2021 € 16.611,05
01/2022 a 08/2022 €7.510,64
40.À data da declaração de insolvência da A..., LDA., a mesma era proprietária de um veículo de matrícula ..-..-IV, marca SEAT, modelo ..., no estado avariado, com um estimado valor de realização não superior a EUR 200,00.

41.Não foi encontrado à sociedade indicada em 1 qualquer outro ativo passível de apreensão e realização pecuniária para a massa insolvente.

42.Em 09.11.2020 a A..., LDA. emitiu 4 (quatro) faturas a favor da “AA, UNIPESSOAL, LDA.”, NIPC ..., concretamente:

➢ Fatura-Recibo ..., no valor de EUR 12.350,00 + IVA

➢ Fatura-Recibo ..., no valor de EUR 4.746,33+IVA

➢ Fatura-Recibo ..., no valor de EUR 332,08+IVA

➢ Fatura-Recibo ..., no valor de EUR 11,98+IVA.

43.Pela Fatura-Recibo ..., foram transmitidos os seguintes bens:

1 Bancada refrigerada

1 Churrasqueira a carvão estática

1 fogão a gás com 8 queimadores com 2 fornos

3 fritadeiras a gás silko

1 banho maria com estufa aço inox

1 armário vertical congelados

1 armário vertical peixe

1 armário vertical legumes

1 máquina de lavar louça

1 câmara modelar desmontável

1 câmara conservação diversos

1 forno convetor elétrico silko

1 escaparate central aço inox com 2 prateleiras

3 escaparate em aço inox com 2 prateleiras

2 escaparate em aço inox com 1 prateleira

2 pio em aço inox

1 armário de chão com 4 prateleiras e portas

1 escaparate aço inox com 1 prateleira com cepo corte

2 escaparate aço inox com 1 prateleira

1 pio aço inox

1 pio lava mãos aço inox com torneira pedal misturadora

3 estantes inox

1 bloco com 4 gavetas

2 Tv. 32 Nevir

2 micro ondas

1 armário refrigeração 2 portas

1 máquina picar carne

1 fiambreira

1 computador Asus

1 impressora Brother.

44.Pelas Faturas-Recibo nº ..., ... e ..., foram transmitidos “PRODUTOS ALIMENTARES, à taxa de 6%; 13% e 23%”.

45.Após a transmissão dos equipamentos/bens referidos em 43 e 44, da A..., LDA. a favor da D..., UNIPESSOAL, LDA., em 09.11.2020, a sociedade referida em 1 deixou de exercer a sua atividade.

46.A sociedade elaborou as contas anuais (IES) até ao exercício de 2021, inclusive.

47.O Requerido, enquanto gerente da sociedade A..., LDA. sabia, e não podia ignorar, o aumento continuado do passivo da sociedade.

48.O maior aumento do passivo ocorre no ano de 2019, na ordem dos 19% face ao ano de 2018.

49.Durante o exercício de 2021 – ano em que já não apresentava atividade – a sociedade A... LDA. continuou a aumentar o seu passivo, ora no valor de EUR 46.505,33.

50.Desde finais do ano de 2017 a A..., LDA. vem a endividar-se, designadamente, perante o Estado e a Segurança Social, no valor total de EUR 141.425,65, o que representa cerca de 60% do passivo total desta sociedade.

51.Mesmo assim, continuou a exercer a sua atividade até 11/2020, data em que procede à transmissão do ativo que sustentava o exercício da sua atividade.

52.No momento da cessação da atividade (31.03.2021), a A... apresentava um passivo em valor não inferior a EUR 355.866,51.

53.Sabia o Requerido, Gerente da A..., LDA., na data indicada em 52, e não podia ignorar, que após a alienação do ativo, em novembro de 2020, e cessação da atividade em sede de IVA, em 31.3.2021, a indicada sociedade seria incapaz, e continuaria incapaz, de liquidar o passivo vencido.

54.Mesmo assim, não apresentou a sociedade A..., LDA. à insolvência.

55.Em março de 2022 a A..., LDA. foi inscrita na Lista Pública de Execuções, pelo motivo “inexistência de bens”.

56.Ao manter o vínculo laboral com os trabalhadores indicados em 35, após o encerramento da atividade em novembro de 2020, o passivo da A..., LDA. agravou-se perante a Segurança Social e a Autoridade Tributária.

57.As contribuições e quotizações acumuladas entre 11/2020 e 08/2022 totalizam o valor de EUR 27.968,94.

58.Por conta de IRS/DMR, respeitante ao período 11/2020 a 07/2022, acumulou a A... perante a AUTORIDADE TRIBUTÁRIA um valor em dívida de EUR 6.585,47.

59.Os Trabalhadores, que estiveram na base das contribuições/ IRS/DMR vencidas após o encerramento de portas transitaram para a sociedade D..., UNIPESSOAL, LDA. em 31/07/2022 e 04/08/2022.

60.Os gastos com o pessoal contabilizados no ano de 2021 (ano em que já não apresentava atividade), totalizaram a quantia de EUR 55.205,85.

61.A Sociedade AA, UNIPESSOAL, LDA. beneficiou, por seu turno, do labor prestado pelos Trabalhadores cujo vínculo permanecia a favor da A..., para além de que não lhe viu imputado o inerente custo.

62.Com esta atuação, o passivo da A..., LDA. foi agravado, tendo desse passivo aproveitado a sociedade D..., UNIPESSOAL, LDA., da qual é único sócio e gerente o requerido AA.

63.O Gerente da A..., LDA., ora requerido, não podia ignorar e não ignorava a situação financeira em que esta sociedade se encontrava, desde logo pelo incumprimento das obrigações resultantes do exercício da atividade comercial desde finais do ano de 2017.

64.Com o não depósito das contas anuais dos exercícios de 2016, 2017, 2018, 2020 e 2021 ficou vedado, a todos os interessados, o conhecimento da posição da empresa nestes mesmos anos.

65.Na conta bancária titulada pela A..., LDA. junto da Banco 1..., NIB  ..., após a data do encerramento de portas, verificou-se a existência de vários movimentos a débito e crédito.

66.O Gerente da A..., LDA. providenciou pelo depósito, na conta bancária atrás referida, de várias quantias, em parte mediante transferências bancárias identificadas pela ordenante “TRF. D... Unip.”, outras identificadas pela conta ordenante “TR IPS Júlio Coelho Azevedo”, e para as quais não foi apresentada qualquer obrigação de pagamento subjacente, totalizando estas o valor aproximado de EUR 21.000,00.

67.Além das referidas transferências bancárias, foram efetuados na indicada conta bancária, entre 11/2020 e 08/2022, vários depósitos, identificados como “entregas em numerário”, totalizando estes ao valor aproximado de EUR 42.000,00.

68.Com os valores relativos às referidas transferências e aos indicados depósitos, foram efetuados vários pagamentos a Fornecedores e ao Estado, entre 11/2020 e 08/2022, em montante aproximado de 61.000,00 EUROS.

69.Tais pagamentos correspondiam a cheques pré-datados (a 90 e 120 dias), entregues a Fornecedores antes do encerramento de portas da A..., LDA., como E..., Lda. e F..., Lda..


*

IV-DIREITO

No presente incidente de qualificação da insolvência, o tribunal considerou-a culposa, fundamentando-se no disposto no art. 186º, n.º 1 e n.º 2, als. b) e g) e n.º 3, al. a) do CIRE.

O regime da qualificação da insolvência é uma novidade introduzida no C.I.R.E. que sofreu a influência do direito espanhol, ou seja, do regime homólogo consagrado na recente Ley Concursal, de Julho de 2003.[1]

Como esclarece Catarina Serra[2], o objectivo do incidente é apurar se houve culpa de algum ou de alguns sujeitos na criação ou no agravamento da situação de insolvência e aplicar certas medidas (sanções) aos culpados.

Segundo o artigo 186.º, n.º 1 do CIRE a insolvência deve ser qualificada como culposa na hipótese de ter sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

Nos termos do n.º 2, do art. 186º, do C.I.R.E.: «Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto tenham:

a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;

b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;

c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;

d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;

e) Exercido, a coberto da personalidade colectiva da empresa, se for o caso, uma actividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;

f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto;

g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;

h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;

i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no n.º 2 do artigo 188.°».

Nos termos do n.º 3, do art. 186.º, do C.I.R.E., «Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular, tenham incumprido:

a) O dever de requerer a declaração de insolvência;

b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou a obrigação de as depositar na conservatória do registo comercial».

Verificando-se qualquer uma das situações previstas no n.º 2 do art. 186.º do C.I.R.E presume-se que a insolvência é culposa, sendo considerado, pela doutrina e jurisprudência, que estamos perante uma presunção iuris et de iure, ou seja, inilidível de acordo com o preceituado no art. 350.º do C.Civil.

Como esclareceu o Tribunal Constitucional “E assim, uma vez verificado o facto típico previsto na lei (nas várias alíneas deste nº 2), “fica, desde logo, estabelecido o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas do n.º 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento”[3].

Ao invés, quando os administradores, de direito ao de facto, incumpram as obrigações elencadas nas alíneas do n.º 3 do citado preceito legal, e apesar de se presumir a culpa grave dos administradores, para que a insolvência seja qualificada como culposa, a lei exige a prova do nexo de causalidade entre esse incumprimento e a situação de insolvência ou o seu agravamento.

No caso sub judice o tribunal, perante a matéria de facto provada, concluiu, como vimos, estarem preenchidas as alíneas b) e g) do n.º 2 e a alínea a) do n.º 3 do art.º 186.º do CIRE.

Quadro Factual

Nos autos provou-se que, em 09.11.2020, a Insolvente emitiu quatro faturas a favor da “D..., Unipessoal, Lda.”, concretamente a Fatura-Recibo ..., no valor de EUR 12.350,00 + IVA, Fatura-Recibo ..., no valor de EUR 4.746,33+IVA, Fatura-Recibo ..., no valor de EUR 332,08+IVA, Fatura-Recibo ..., no valor de EUR 11,98+IVA.

Pela Fatura-Recibo ..., foram transmitidos os seguintes bens:1 Bancada refrigerada, 1 Churrasqueira a carvão estática, 1 fogão a gás com 8 queimadores com 2 fornos, 3 fritadeiras a gás silko, 1 banho maria com estufa aço inox, 1 armário vertical congelados,1 armário vertical peixe, 1 armário vertical legumes, 1 máquina de lavar louça, 1 câmara modelar desmontável, 1 câmara conservação diversos,1 forno convetor elétrico silko, 1 escaparate central aço inox com 2 prateleiras, 3 escaparate em aço inox com 2 prateleiras, 2 escaparate em aço inox com 1 prateleira, 2 pio em aço inox, 1 armário de chão com 4 prateleiras e portas, 1 escaparate aço inox com 1 prateleira com cepo corte, 2 escaparate aço inox com 1 prateleira,1 pio aço inox, 1 pio lava mãos aço inox com torneira pedal misturadora, 3 estantes inox, 1 bloco com 4 gavetas, 2 Tv. 32 Nevir, 2 micro ondas, 1 armário refrigeração 2 portas, 1 máquina picar carne,1 fiambreira,1 computador Asus, 1 impressora Brother. Pelas Faturas-Recibo nº ..., ... e ..., foram transmitidos “PRODUTOS ALIMENTARES, à taxa de 6%; 13% e 23%”.

A sociedade “D..., Unipessoal, Lda.”, para a qual foram transmitidos, por venda, os bens da Insolvente e deslocados os trabalhadores, foi constituída em 15.10.2020, com um capital social de €1.000,00 pertencente ao Recorrente, com sede na Rua ..., ..., Maia, sendo o objeto social a restauração e hotelaria.

Após a transmissão dos equipamentos/bens a favor da referida “D..., Unipessoal, Lda.”, em 09.11.2020, a Insolvente deixou de exercer a sua atividade no seu estabelecimento “C...”.

Os trabalhadores, que estiveram na base das contribuições/IRS/DMR vencidas após o encerramento de portas, transitaram para a sociedade “D..., Unipessoal, Lda.” em 31/07/2022 e 04/08/2022.

A sociedade “D..., Unipessoal, Lda.” beneficiou, assim, do labor prestado pelos trabalhadores cujo vínculo permanecia a favor da Insolvente, pelo que não lhe foi imputado os inerentes custos.

Deste quadro factual resulta que o Recorrente, sócio único da Insolvente,[4] após ter decorrido o curto período de 20 dias subsequente à constituição de uma sociedade unipessoal em seu nome, transferiu (através da venda) todo o equipamento e bens alimentares para aquela sociedade, que passou a exercer a mesma actividade de restaurante no mesmo local com os trabalhadores da Insolvente.

Ora, nos termos do n.º 2, al. d) do citado preceito legal considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros.

Esta hipótese é preenchida quando, por negócio jurídico ou por mera cedência, os bens da insolvente são transferidos para o administrador ou para terceiros.[5]

E também deve ser considerada culposa, nos termos da alínea f) do art. 186.º, n.º 2 do CIRE, quando os administradores façam dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse directo ou indirecto.

Foi justamente o que sucedeu no presente caso por ter ficado provado que o Recorrente vendeu a uma sociedade por si constituída, os bens da devedora, transferiu os funcionários, e continuou a exercer o objecto social da devedora exactamente no mesmo local através da nova sociedade unipessoal.

Consequentemente, a sociedade insolvente, com a venda de todos os seus bens e transferência dos trabalhadores, ficou impossibilitada de prosseguir a sua normal actividade e de obter receitas.

Por outro lado, o recebimento do preço decorrente da venda dos mencionados bens não foi suficiente para pagar aos credores, sendo evidente que a falta de obtenção de receitas, por falta de actividade, cessada em 09/11/2020, determinou o inevitável agravamento da situação económico-financeira da empresa.

Esta actuação do Recorrente, que se traduziu na deslocação de todo o património e dos funcionários em benefício de uma sociedade terceira agravou, de forma irreversível, a situação de insolvência da empresa devedora.

Na nossa perspectiva os factos provados são susceptíveis de também integrar as hipóteses previstas nas alíneas a) e e g) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE por ter agravado o passivo com a cessação da actividade e por ter feito uma exploração deficitária ao imputar os custos do pessoal na Insolvente apesar do estabelecimento estar encerrado.

Em suma, a venda de todo o equipamento e bens alimentares para outra sociedade, da qual também é o único sócio-gerente, determinou a cessação da actividade da devedora e consequente falta de obtenção de lucros, o que consubstancia uma gestão ruinosa para a estabilidade económico-financeira da empresa; e ao manter no quadro da empresa devedora, mesmo nessa situação, os funcionários contribuiu para que os custos aumentassem atendendo a que não havia receitas, ou seja, esta tomada de decisão é susceptível de integrar o conceito de exploração deficitária que agravou inevitavelmente a insolvência.

O incumprimento do Recorrente foi ainda subsumido na alínea a) do n.º 3 do art. 186º do CIRE que se refere ao dever de requerer a declaração de insolvência.

Este dever deve ser observado dentro dos trinta dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, ou seja, da impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas, ou à data em que devesse conhecê-la-cfr. artigo 18.º, n.º 1 conjugado com o artigo 3.º, n.º 1 do CIRE.

Sobre este normativo, Carvalho Fernandes e João Labareda[6] esclarecem que “…a apresentação do devedor insolvente nas condições estabelecidas no artigo consubstancia um comportamento que lhe está normativamente imposto e, por isso, constitui um dever autónomo em sentido técnico próprio.”

Acrescentando que a razão de ser deste dever “é a de propiciar, o mais rapidamente possível, a solução da situação de acordo com os parâmetros legais, na convicção de que o seu arrastamento apenas pode gerar mais inconvenientes e prejuízos”.[7]

Neste particular ficou provado que a devedora encontra-se em situação de insolvência técnica desde, pelo menos, o ano 2017, resultando do seu balanço que o capital próprio reflete o que resta do património da empresa após a liquidação de todas as suas obrigações e este é negativo todos os anos: 2017: € (183 814,55) 2018: € (227 722,19) 2019: € (287 109,53) 2020: € (342 023,50) 2021: € (389 001,80).

Com efeito, desde finais do ano de 2017 a Insolvente tem contraído dívidas, designadamente, perante o Estado e a Segurança Social, no valor total de € 141.425,65, o que representa cerca de 60% do passivo total desta sociedade.

Provou-se que o Recorrente, enquanto gerente da Insolvente sabia, e não podia ignorar, o aumento continuado do passivo da sociedade, sendo que o maior aumento do passivo ocorreu no ano de 2019, na ordem dos 19% face ao ano de 2018.

Mesmo assim continuou a exercer a sua atividade até Novembro de 2020, data em que, como acima se verificou, procedeu à transmissão do ativo que sustentava o exercício da sua atividade.

No momento da cessação da atividade em sede de IVA, (31.03.2021), a Insolvente apresentava um passivo em valor não inferior a € 355.866,51.

Sabia o Recorrente, gerente da Insolvente, e não podia ignorar, que após a alienação do ativo, em novembro de 2020, e cessação da atividade em sede de IVA, em 31.3.2021, a indicada sociedade seria incapaz, e continuaria incapaz, de liquidar o passivo vencido.

De qualquer modo, segundo o disposto no artigo 18.º, n.º 3 do CIRE, esse conhecimento, no caso concreto, considera-se presumido, de forma inilidível, por terem decorrido pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado das obrigações elencadas na al. g), n.º 1 do art. 20.º do CIRE.

Durante o exercício de 2021–ano em que já não apresentava atividade–a Insolvente continuou a aumentar o seu passivo, no valor de € 46.505,33.

Apesar da devedora ter cessado a respectiva actividade, decidiu manter os funcionários, onerando-a com os encargos sociais e tributários.

Porém, mesmo perante tão grave situação económico-financeira, não apresentou a sociedade à insolvência.

Conclui-se, sem qualquer dúvida, que foi efectivamente violado o dever de apresentação à insolvência e que essa conduta omissiva determinou o agravamento da insolvência.

Por todas estas razões, a sentença que qualificou a insolvência como culposa deve ser confirmada.

O Recorrente insurge-se contra a medida das inibições a que foi condenado, invocando, além do mais, a afectação dos direitos fundamentais à liberdade de escolha de profissão, ao trabalho e à iniciativa empresarial, consagrados respectivamente nos arts. 47.º, 58.º e 61.º da CRP.

Na sentença foi decretada a inibição do afectado pelo período de quatro anos, para administrar patrimónios de terceiros e para exercer o comércio e ocupar qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa.

Os administradores, de direito ou de facto, afectados pela qualificação da insolvência como culposa, devem ser identificados na sentença, que fixará o respectivo grau de culpa, e, além do mais, inibe-os para administrarem patrimónios de terceiros, para o exercício do comércio bem como a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa por um período de 2 a 10 anos e (cfr. art. 189.º, n.º 2[8], als. a) a c) do CIRE).

A natureza da inibição é discutida na doutrina, sendo considerada por Coutinho de Abreu[9], uma situação de incompatibilidade absoluta, uma vez que está mais em causa a tutela do mercado comercial em geral perante o insolvente e afetados.

Nas palavras de Luis Carvalho Fernandes e João Labareda[10] a sanção de inibição é fundamentada por uma atitude de desconfiança quanto à actuação, na área económica, em relação a quem, pelo seu comportamento, como dolo ou culpa grave, de algum modo contribuiu para a insolvência.

Estas inibições a que fica sujeito o afectado, têm, em certa medida, natureza sancionatória, alicerçada, como esclareceu o Tribunal Constitucional, em razões de prevenção de condutas culposamente atentatórias da segurança do comércio jurídico em geral.[11]

Tânia Cunha e Maria João Machado[12] explicam que “O efeito previsto na al. b) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE resulta de uma inovação legislativa, sem correspondência na legislação anterior, e a sua atual formulação foi enunciada numa das mais importantes reformas do CIRE, levada a cabo pela Lei n.º 16/2012, de 20/04. Antes dessa alteração, e adotando a expressão “inhabilitación” do regime da Ley Concursal espanhola, o legislador decretava a inabilitação das pessoas afetadas, o que implicava que ficassem impedidas de praticar atos de disposição e de administração dos seus bens, salvo se agissem mediante autorização de curador. Dada a falta de regulação específica, a doutrina sustentava a aplicação do regime civil da inabilitação (regulado nos artigos 152.º e 157.º do Código Civil (CC), na redação anterior à Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto), porém, não é possível aplicar na lei insolvencial um regime civil que “implica restrições ao direito fundamental à capacidade civil. (…)

Quanto à inibição para o exercício do comércio, o legislador pretendeu demonstrar a preocupação com a segurança do comércio e do tráfico jurídico em geral, impedindo que quem contribuiu para a situação de insolvência ou seu agravamento pratique atos de comércio, direta ou indiretamente, realizados em nome próprio ou em nome alheio, ou atos praticados enquanto comércio profissional. No que respeita à sua natureza, a inibição da prática de atos de comércio não constitui uma incapacidade para o exercício do comércio, mas uma incompatibilidade absoluta, fruto da qualificação da insolvência como culposa. (…)”

Relativamente aos direitos económicos em causa, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 180/2022, de 16/03/2022,[13] observou que “O Tribunal Constitucional tem entendido que na primeira das dimensões compreendidas no artigo 61.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa a liberdade de iniciativa privada se pode entender análoga a direitos, liberdades e garantias, partilhando do respetivo regime constitucional (cfr. artigo 17.º da Constituição da República; v., sobre esta matéria, acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 76/85, 187/2001, 358/2005, 304/2010, 274/2012, 75/2013 e 545/2015). Empresta-se reforço a esta noção quando se leve em conta que a liberdade de escolha e de exercício de profissão e a liberdade de iniciativa privada possuem um espaço de sobreposição, concorrendo por vezes à proteção de uma mesma posição jurídica. De facto, o direito a escolher profissão e o direito a iniciar uma atividade económica operam ambos nos casos em que dado profissional pretende iniciar uma atividade dotada de alcance económico. O direito a abrir uma loja de comércio, um estabelecimento de carpintaria ou uma oficina de mecânica, por exemplo, tanto recebe cobertura da liberdade de escolha de profissão (de lojista, de carpinteiro, de mecânico, etc.), como da liberdade de iniciativa económica, já que a atividade profissional escolhida importa também a criação de uma estrutura de meios apta ao desenvolvimento de uma atividade nesses termos que opera como aplicação de capitais, possuindo por isso atributos enquanto investimento que exorbitam o âmbito estritamente ocupacional do seu titular (notando esta incidência, v. J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, op. cit., p. 656).

Estaremos perante uma restrição legal nos casos em que o âmbito de proteção de um direito fundado numa norma constitucional é direta ou indiretamente limitado através da lei. De um modo geral, as leis restritivas de direitos «diminuem » ou limitam as possibilidades de ação garantidas pelo âmbito de proteção da norma consagradora desses direitos e a eficácia de proteção de um bem jurídico inerente a um direito fundamental (J. J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2.ª Ed., Almedina, p. 1276; sobre o conceito, em sentido mais amplo, v., também, JORGE REIS NOVAIS, As Restrições aos Direitos Fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição, Coimbra Editora, 2003, pp. 157).”

Sendo indubitável que as inibições, que afectam os administradores/gerentes, configuram restrições aos mencionados direitos económicos protegidos pela Lei Fundamental, importa saber se são admitidas e justificadas em face dos interesses que com esses direitos colidem.

A doutrina pronunciou-se no sentido da conformidade das citadas normas com a Constituição da República Portuguesa.

O Tribunal Constitucional teve oportunidade de apreciar a eventual desconformidade das normas com os princípios e direitos plasmados na Constituição, e no Acórdão n.º 570/2008, de 26/11/2008[14], citando o Ac. n.º 564/2007, entre outros, conclui-se pela constitucionalidade das mesmas.

Especificamente sobre a al. c) do n.º 2 do art.º 189.º do CIRE-inibição para o exercício do comércio, o Acórdão n.º 530/2012 do TC[15] decidiu não julgar inconstitucional atendendo a que a Constituição admite restrições quando está em causa o interesse colectivo e a defesa da credibilidade da vida comercial.

Nessa linha de orientação, o Acórdão da Relação de Coimbra, de 02/07/2012[16], analisou detalhadamente a temática, pelo que, atendendo à relevância da sua narrativa, transcreve-se a parte que interessa:

“O fundamento ou a razão material da inibição – que não é um conteúdo do estado de insolvência - é uma coisa que se explica por si: a defesa geral da credibilidade do comércio e dos cargos cujo exercício é vedado ao atingido pela qualificação da insolvência Oliveira Ascensão, Direito Civil, Teoria Geral, 2ª edição, vol. I, Introdução, As Pessoas, Os Bens, Coimbra Editora, 2000 pág. 213 e Efeitos da Falência sobre a Pessoa e Negócios do Falido, RFDUL, vol. XXXVI, 1995, nº 2, págs. 326 e 327. O CIRE, continuando uma larga tradição, denomina este efeito da qualificação da insolvência de inibição. Mas esta expressão não deve induzir a conclusão que se trata de uma incapacidade de exercício, já que não assenta numa verdadeira capitis diminutio nem é ordenada para a protecção do sujeito atingido por ela. (…) É-lhe, por isso, absolutamente estranha qualquer finalidade sancionatória ou punitiva; não se trata nunca de punir o dolo ou a culpa constitutiva ou agravadora da situação de insolvência, mas de tutelar um interesse colectivo axiológica e sistemicamente relevante.

É claro que essa inibição colide com os direitos fundamentais da liberdade de trabalho, na dimensão de liberdade da escolha do género de trabalho, e da liberdade de iniciativa económica privada (artºs 47 nº 1, 58 nº 1 e 61 nº 1 da CRP) Direitos que também podem ser concebidos como manifestações do direito geral de personalidade ou mesmo como direito de personalidade a se. Cfr. Rabindranath Capelo de Sousa, O direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, 1995, págs. 262 e Leite de Campos, Lições de Direitos da Personalidade, separata do BFDUC, Coimbra, 1995, pág. 105. Mas dessa colisão não decorre, como corolário que não possa ser recusado, a ilegitimidade constitucional daquela norma da lei ordinária.

Como a jurisprudência constitucional tem afirmado repetidamente, nem a liberdade de escolha da profissão nem a liberdade de iniciativa privada são direitos absolutos e legalmente incondicionáveis, antes estão, ambos, nos termos expressos pela própria Constituição, sujeitos, no seu exercício, às restrições legais impostas pelo interesse colectivo ou inerentes à própria capacidade dos interessados ou ao interesse geral (artºs 47 nº 1 e 61 nº 1) Cfr., v.g., os Acs. do TC nºs 474/89 e 187/01, ATC, 14º vol., pág. 77 e ss., e www.tribunalconstitucional.pt., respectivamente.

A liberdade de iniciativa económica privada – que se desdobra na liberdade de iniciar uma actividade económica (liberdade de criação de empresa ou de estabelecimento), e é neste sentido um direito pessoal, e na liberdade de organização, gestão e actividade da empresa (liberdade de empresa, do empresário ou liberdade empresarial), faceta em que assume a natureza de direito institucional – pode ser objecto de limites ou restrições mais ou menos extensos. O direito fundamental correspondente só pode exercer-se nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e mostra-se constitucionalmente funcionalizado ao interesse geral (artº 61 nº 1 da CRP). Não é, portanto, um direito absoluto, nem tem sequer os seus limites constitucionalmente garantidos Cfr. v.g., Acs. do TC nºs 76/85, ATC 5º vol., pág. 207 e 328/94, www.tribunalconstitucional.pt.. Não sendo um direito absoluto, é meramente consequencial a maior amplitude da liberdade de conformação do seu conteúdo do legislador ordinário.

Não é, assim, de modo algum constitucionalmente inadmissível uma restrição desse direito para a qual possa ser dada uma razão material radicada no interesse colectivo ou geral como aquela que justifica, no caso de falência qualificada por dolo ou culpa grave, a inibição do administrador do ente administrado declarado insolvente.

De resto, a medida responde mesmo a interesses ou exigências constitucionalmente atendíveis como a garantia do eficiente funcionamento dos mercados e do equilíbrio da concorrência entre as empresas (artº 81 f), 1ª parte, da CRP). A situação de insolvência perturba a eficiência do mercado e rompe o equilíbrio da concorrência entre as empresas, componente principal de uma economia de mercado. Neste contexto é constitucionalmente compreensível uma medida que, no limite, visa obstar a futuras insolvências em prejuízo definitivo de outros operadores económicos ou daqueles que, por qualquer título, estabeleçam vínculos de conteúdo patrimonial, v.g. os trabalhadores, com o insolvente.

A liberdade de escolha da profissão ou trabalho assume-se como um direito subjectivo que não tem apenas um conteúdo negativo – de direito de defesa – mas inclui uma dimensão positiva ligada ao direito ao trabalho e, bem assim, um aspecto de liberdade no exercício da profissão, sem a qual, naturalmente, a liberdade de escolha nada valeria Acs. do TC nºs 328/94 e 446/91, www.tribunalconstitucional.pt..

Mas este conteúdo da liberdade de escolha da profissão não impede, naturalmente, que, por exemplo, no tocante especificamente à profissão de comerciante, em princípio aberta a todas as pessoas singulares, a lei ordinária possa estabelecer proibições gerais – como que ocorre com o comércio bancário ou com a actividade seguradora que só podem ser exercidas por sociedades anónimas autorizadas – ou incompatibilidades – como as que ferem os magistrados judiciais e do Ministério Público – ou impedimentos – como o que limita os agentes de comércio (artºs 14 nº 1 b) do RGIC, 7 nº 1 a) do DL nº 94-B/98, de 17 de Abril, 13 nº 1 do EMJ, aprovado pela Lei nº 21/85, de 30 de Julho, 60 nº 1 da LOMP, aprovada pela Lei nº 47/86, de 15 de Outubro e 253 do Código Comercial, respectivamente). Do mesmo modo, não vulnera aquela liberdade, a exigência de determinadas qualificações para o exercício de certa profissão ou de preenchimento de certos requisitos de idoneidade para aceder a esse exercício.

E também não há razão sólida para concluir que a norma questionada se encontra ferida com a mácula da inconstitucionalidade por violação dos princípios, de matriz constitucional, da proibição do excesso, da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade.”[17]

Numa palavra, os direitos económicos não são absolutos e, por esse motivo, podem ser objecto de compressão decorrente da lei quando seja necessário tutelar um interesse colectivo relevante como é o caso da protecção da economia na vertente empresarial e da confiança no tráfico jurídico.

Não ocorrendo as apontadas inconstitucionalidades materiais, cumpre verificar se a medida fixada pelo tribunal, efeito imperativo da insolvência culposa, atendendo à moldura abstracta de 2 a 10 anos, deve ser considerada excessiva.

No que tange aos critérios que o juiz se deve socorrer para fixar a medida da inibição tem sido maioritariamente entendido que relevam, para esse efeito, o grau de culpa, a gravidade do comportamento do afectado, incluindo o número das circunstâncias qualificadoras preenchidas[18], as consequências lesivas, o valor do passivo, a contribuição isolada ou não para a criação ou agravamento da insolvência, e todas as circunstâncias agravantes e atenuantes emergentes do caso concreto.[19]

Ora, do circunstancialismo acima descrito decorre um grau elevado de culpa do Recorrente, na forma de dolo directo[20], uma vez que, ao invés de requerer a insolvência ainda a agravou com o encerramento do restaurante e subsequente transferência de todo o património e dos trabalhadores para uma nova sociedade, por si constituída em que é o único sócio, provocando um aumento do passivo com tal actuação e beneficiando dos bens, equipamentos e trabalhadores através dessa sociedade, libertando-se, desta forma, do passivo.

A gravidade do comportamento manifesta-se no elevado valor do passivo, designadamente ao Estado, no seu aumento com os custos do pessoal (apesar de ter cessado a actividade e beneficiando a nova sociedade) no longo tempo (cerca de cinco anos) em que a empresa se encontra numa situação de insolvência sem ter sido cumprido o dever de apresentação em tribunal para que a mesma fosse decretada.

Não se apurou qualquer circunstância atenuante da culpa ou da ilicitude.

Assim sendo, e em obediência ao princípio da aplicação uniforme do direito,[21] afigura-se-nos que a medida das inibições deverá situar-se quase a meio da moldura abstracta, tal como foi equacionado e bem pelo tribunal a quo, não merecendo, por isso, ser objecto de alteração.

Improcede, pelas razões aduzidas, o recurso.


*

V-DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso, e em consequência, confirmam a sentença.

Custas pelos Recorrentes.

Notifique.


Porto, 5/3/2024
Anabela Miranda
Alberto Taveira
Lina Baptista
_______________
[1] Serra, Catarina, “O Novo Regime Português da Insolvência, uma Introdução”, 2.ª edição, Almedina, 2005, pág. 67.
[2] Lições de Direito da Insolvência, 2018, Almedina, pág. 156.
[3] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 570/2008, Processo n.º 217/08, de 26/11/2008, DR, 2.ª série, n.º 9 de 14.01.2009, consultável em www.tribunalconstitucional.pt.
[4] Após ter adquirido a quota do outro sócio em 27/07/2020.
[5] Neste sentido, v, Acs. desta Relação do Porto de 29/06/2017 e de 21/02/2019, consultáveis em www.dgsi.pt.
[6] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição, pág. 188 notas 5.
[7] Ob. cit., pág. 189, nota 6.
[8] Alterado pela Lei n.º 16/2012 de 20.04.
[9] Direito Comercial, vol. I, 9.ª edição, Almedina, 2013, págs 141 e segs.
[10] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição, pág. 695, nota 9.
[11] Ac.TC de 173/2009 de 04.05 que decretou inconstitucional, com força obrigatória geral, a inabilitação civil do afectado pela qualificação da insolvência.
[12] A Responsabilidade pela Insolvência Culposa, Revista Julgar on line, Abril de 2013.
[13] Disponível em www.tribunalconstitucional.pt
[14] Rel. Vitor Gomes, disponível em www.tribunalconstitucional.pt.
[15] Disponível em www.tribunalconstitucional.pt.
[16] Rel. Henrique Antunes, disponível em www.dgsi.pt.
[17] No mesmo sentido, v. TRG Ac. de 14/09/2017, disponível em www.dgsi.pt
[18] Neste sentido, v. Ac. TRL de 28/02/2023, rel Fátima Reis Silva, disponível em www.dgsi.pt
[19] V., entre outros, Acs. STJ de 06/09/2022 (José Rainho), TRG de 31/01/2019 (Joaquim Boavida) e 19/01/2023 (José Alberto Moreira Dias) e TRL, de 28/02/2023 (Fátima Reis Silva) disponíveis em www.dgsi.pt.
[20] Ou seja, a realização do tipo objectivo de ilícito surge como o verdadeiro fim da conduta (art. 14.º-1), nas palavras de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Coimbra Editora, tomo I, 2.ª edição, pág. 367.
[21] V. Ac. TRG de 20/09/2018 (Pedro Damião Cunha) e jurisprudência aí citada, disponível em www.dgsi.pt.