SENTENÇA LIDA POR "APONTAMENTO"
INEXISTÊNCIA JURÍDICA
PRINCÍPIO NE BIS IN IDEM
CRIME DE RECEPTAÇÃO
Sumário

I–A sentença que não foi reduzida a escrito e meramente lida “por apontamento” é juridicamente inexistente, com a consequente nulidade insanável da sessão de julgamento onde tais factos ocorreram que deverá repetir-se com cumprimento das exigências referentes à elaboração, leitura e subsequente depósito.

II–Validamente, o recorrente apenas foi sujeito a uma audiência de julgamento e a uma sentença condenatória (pois que os anteriores atos não mantêm qualquer validade jurídica) não se verificando, por isso, a violação do princípio ne bis in idem.
III–Não exige o tipo legal do crime de recetação que o agente tenha conhecimento das circunstâncias em que foram praticados os crimes de furto, bastando o conhecimento da proveniência ilícita do bem.
(Sumário da responsabilidade da relatora)

Texto Integral

Acordam em conferência na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

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Relatório

Nos presentes autos foi submetido a julgamento, em processo comum com intervenção de tribunal singular, o arguido AA, natural de …, nascido em ...-...-1962, filho de BB e CC, titular do CC n° …, residente na ....

Por sentença de 06/09/2023, foi decidido condenar o arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de recetação, p. e p. pelo disposto no art. 231.°, n.° 1, do Código Penal na pena de 2 (dois) anos de prisão e pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelos artigos 255.°, al. a), 256.°, n°s 1, als. a), e), e f), e 3, do Código Penal na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão.
Em cúmulo jurídico destas penas foi o arguido condenado na pena única de 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova.
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Discordando da decisão recorrida, veio o arguido interpor recurso da mesma, pugnando pela respetiva absolvição, concluindo nas alegações:
«A)-O Recorrente foi absolvido de todos os crimes dos quais vinha acusado numa sentença que lhe foi lida no dia 27 de janeiro de 2022.
B)-A sentença não foi objeto de depósito, mas não pode deixar de produzir efeitos jurídicos, já que, ainda que esteja em causa uma nulidade insanável, a mesma carece de ser declarada em sede própria, tendo-se violado o disposto no artigo 119.° do CPP.
C)-Neste caso, torna-se evidente que o Arguido foi julgado duas vezes, sendo que, no primeiro caso, o julgamento foi precedido de inquérito e acusação, no segundo caso, o mesmo foi feito sem tais garantias, passando por cima de uma sentença.
D)-Nos termos do artigo 373.° do Código Penal, o arguido considera-se notificado da Sentença no dia da respetiva leitura, sendo a mesma, de todo o modo, plenamente eficaz, tendo este preceito sido violado no caso concreto.
E)-Por outro lado, os comandos legais utilizados para repetir o julgamento não são aplicáveis no caso.
F)-De facto, a Meritíssima Juíza recorreu ao artigo 328.°, n.° 1, do Código Penal que nada tem que ver com o caso, pois que, a audiência ocorreu de forma contínua até ao momento da sua intervenção, caso em que foi repetida, mais de um ano e meio depois de ter sido concluída.
G)-Por outro lado, o artigo 328.°-A não tem aplicação no caso já que diz respeito à substituição de juízes para emissão da própria sentença: no caso concreto, a sentença já tinha sido emitida, apenas não depositada, pelo que nada impedia que o Meritíssima Juíza recorresse às gravações para reproduzir a sentença emitida (ou concluir o que considerasse pertinente).
H)-Havendo gravação das sessões de julgamento nada podia justificar a repetição das audiências, atento, em especial, que os alegados crimes foram cometidos "entre setembro a novembro de 2014", portanto, cerca de 9 anos antes da data em que ocorreram as novas audiências.
I)-Por outro lado, o artigo 328.°-A do CPP foi aditado pela Lei n.° 27/2015, de 14 de abril, previamente à data dos factos, violando-se o disposto no n.° 3 do artigo 18.° e do n.° 4 do artigo 29.°, ambos da constituição, bem como no n.° 2 do artigo 5.° do CPP.
J)-Com efeito, a aplicação retroativa desta lei agravou de forma muito sensível e evitável a posição do Arguido, já que o obrigou a sujeitar-se a novo julgamento, mesmo depois de já ter sido absolvido no juízo originário do Tribunal.
K)-Acresce que o Despacho que determinou a repetição da audiência de julgamento não contém qualquer fundamentação, violando assim o n.° 2 do artigo 328.°- A do CPP, aplicável ex vi do n.° 5 do mesmo artigo.
Sob outro prisma,
L)-A decisão violou o disposto nos artigos 4.° e 5.° do Código Penal uma vez que os factos - de acordo com a fundamentação do Tribunal a quo - foram praticados em … e ….
Por outro lado,
M)-O Tribunal, para fundamentar a condenação pela prática do crime de recetação, de modo meramente conclusivo, refere que o Arguido sabia que os veículos tinham sido adquiridos ilicitamente, mas não refere de que modo, em que data e porquê.
N)-O Tribunal não escrutinou sobre o conhecimento do Arguido da proveniência ilícita, sendo que, para a verificação daquele tipo de crime, tem de se verificar dolo, ou seja, o Arguido tem de ter conhecimento da proveniência ilícita dos bens adquiridos.
O)-E tal conhecimento não consta, a não ser de modo meramente conclusivo, da sentença aqui em crise.
Noutro prisma,
P)-Os factos 6 a 13 e 15 a 21 não correspondem à realidade dos factos, desde logo, porque o Arguido não sabia que os veículos tinham sido furtados, não sabia de qualquer falsificação e, muito menos, falsificou seja o que for, o que resulta, desde logo, do seu depoimento, conforme resumido na sentença recorrida, sendo certo que nenhum elemento de prova corrobora a factualidade dada como assente pelo Tribunal.
Q)-Ao invés dos factos 6 a 13 e 15 a 21, o Tribunal deveria ter dado como provado, tão-só, que o Arguido adquiriu dois veículos sem indagar da legalidade da sua aquisição pelo alienante, ainda que, em rigor, tal seja muito difícil de fazer no estrangeiro.
R)-No que respeita aos documentos do Reino de …, s.m.o., nada há a concluir, já que os mesmos foram recebidos por parte do vendedor, sendo impossível ao Arguido ou a qualquer pessoa saber que os documentos que aparentavam ser do Reino de … tinham sido alterados na referência dos automóveis.
S)-Por outro lado, quanto ao crime de falsificação, desta factualidade fica claro que o Arguido não quis prejudicar alguém ou obter alguma vantagem ilícita.
Finalmente,
T)-Atento o que se referiu no ponto V.1. supra, os crimes - a considerar-se terem sido praticados - são puníveis com penas de prisão de até 6 meses (recetação, 231.°, n.° 2) e até 5 anos (falsificação de documentos, p. 256.°, n.° 1 e 3), à data da sentença já se havia verificado a prescrição de ambos os crimes, atento o disposto nas alíneas c) e d) do n.° 1 do artigo 118.°, considerando, ademais, a regra prevista no n.° 3 do artigo 121.° do Código Penal.»
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O recurso foi admitido, por tempestivo e legal, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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O MINISTÉRIO PÚBLICO respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela respetiva improcedência, alegando, em síntese:
«1.Nos presentes autos teve lugar uma sessão de julgamento no dia 2 de janeiro de 2021, o qual foi presidido pelo Juiz que então se encontrava a assegurar o serviço do presente Juízo Local Criminal.
2.Nessa sessão de julgamento foi designado o dia 18 de novembro de 2021, pelas 14h00m, para a leitura da respetiva sentença, tendo esta data sido posteriormente dada sem efeito por 4 (quatro) vezes.
3.–No dia 27 de janeiro de 2022 teve lugar nos presentes autos uma diligência a que se chamou “leitura de sentença”, sem que da respetiva tenha sido feita constar a decisão final - sentença.
4.–A referida diligência não foi gravada, e nenhuma sentença (escrita) e assinada foi junta ao processo, depositada ou registada. Nem nessa data, nem posteriormente.
5.–O Senhor Magistrado Judicial que então se encontrava a assegurar o serviço do presente Juízo Local Criminal e que havia assegurado o julgamento e assistido à produção de prova, foi desligado do serviço, deixando de exercer a magistratura, sem que a sentença (escrita) haja sido junta ao processo, assinada, depositada ou registada. 
6.–Por despacho datado de 27 de janeiro de 2023 foi declarada a ineficácia da prova produzida e determinada a repetição do julgamento, o qual foi notificado ao arguido recorrente e à sua mandatária, tendo transitado em julgado.
7.–Aquilo que ocorreu na sessão de julgamento do dia 27 de janeiro de não foi a leitura de uma sentença previamente elaborada, mas apenas a transmissão do resultado e do sentido da decisão do Senhor Juiz que se encontrava a assegurar o serviço do presente Juízo Local Criminal e que havia presidido ao julgamento, resultado e sentido, esses, que deveriam ser feitos constar da sentença escrita que, processualmente, nunca existiu, porque nunca foi junta ao processo, assinada, depositada e registada.
8.–Nos presentes autos inexistiu uma sentença em momento anterior à prolação daquela que ora é posta em crise, inexiste também o necessário depósito e, consequentemente, qualquer trânsito de um julgado prévio.
9.–Não foi, por isso, violado o princípio do ne bis in idem.
10.–O arguido não invocou qualquer invalidade da decisão datada de 27 de janeiro de 2023, nos termos do disposto nos artigos 119.° e seguintes do Código de Processo Penal, bem como dela não interpôs recurso, pelo que tal decisão transitou em julgado, não podendo ser agora sindicada.
11.–Sem prejuízo, o artigo 328.°-A, do Código de Processo Penal (normal penal adjetiva), foi introduzido neste diploma por via da Lei n.° 27/2015, de 14 de abril, a qual, nos termos do seu artigo 7.°, entrou em vigor 30 dias após a sua publicação, ou seja, em 14 de maio de 2015.
12.–Tendo os presentes autos sido autuados, como inquérito, no dia 8 de julho de 2015, o referido normativo já se encontrava em vigor, inexistindo, pois, qualquer aplicação retroativa da lei penal no caso concreto, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 5.°, do Código de Processo Penal. 
13.–A decisão proferida nos presentes autos no dia 27 de janeiro de 2023 configura um despacho, para o qual não se encontra legalmente prevista a sanção de nulidade por falta de fundamentação.
14.–Nessa medida, a eventual inobservância do dever de fundamentação apenas poderia corresponder a uma mera irregularidade, sujeita ao regime previsto no artigo 123.° do Código de Processo Penal.
16.–A lei penal portuguesa é aplicável a factos cometidos fora do território nacional por quem seja português, como é o caso do arguido, nos termos do disposto no artigo 5.°, n.° 1, alínea e), do Código Penal.
17.–O crime de falsificação de documento foi cometido pelo arguido em território nacional, conforme resulta da factualidade dada como provada.
18.–O prazo de prescrição do procedimento criminal pelos crimes imputados ao arguido ainda não decorreu, porquanto, mesmo sem atender às causas de suspensão e interrupção verificadas no caso concreto e previstas nos artigos 120.°, n.° 1, alíneas a) e e) e 121.°, n.° 1, alíneas a), b) e d), todos do Código Penal, ainda não decorreram 10 anos sobre a data dos factos que lhe são imputados.
19.–Perante a prova produzida e analisada em julgamento, outra decisão não poderia ter tomado o tribunal a quo que não a de condenar o recorrente pela prática dos crimes pelos quais estava acusado. 
20.–Analisando, na sua globalidade, a motivação de recurso apresentada pelo recorrente, verifica-se que a sua discordância assenta na valoração da prova efetuada pelo tribunal a quo, valoração essa, livremente formada e fundamentada, a qual é a convicção lógica em face da prova produzida e das regras do normal acontecer, pelo que deve ser acolhida a opção do julgador que beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova.
21.–No caso em apreço, não existem dúvidas de que a prova foi apreciada segundo as regras do artigo 127.° do Código de Processo Penal, com respeito pelos limites ali impostos à livre convicção, pelo que bem andou o tribunal a quo ao dar como provados os factos constantes da matéria de facto provada.
22.–Deverá, pois, ser mantida a sentença recorrida.»
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Neste Tribunal, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, subscrevendo a posição assumida pelo Ministério Público na 1ª instância, sustentando a improcedência do recurso.
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Notificado o parecer, não mereceu o mesmo resposta.
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Teve lugar a Conferência.
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2.–QUESTÕES A DECIDIR NO RECURSO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extraiu da motivação apresentada para fundamentar a sua impugnação da decisão da primeira instância, sem prejuízo das questões que forem de conhecimento oficioso (artigos 403.º, 410.º e 412.º, n.º 1 do Cód. Processo Penal e AUJ n.º 7/95, de 19/10/95, in D.R. 28/12/1995).
Não se vislumbrando questões de conhecimento oficioso a impor a apreciação do Tribunal, atendendo às conclusões apresentadas, cumpre apreciar e decidir:
• Da violação do princípio ne bis in idem;
• (In)competência territorial;
• Do erro de julgamento – rejeição formal do recurso;
• Do crime de recetação;
• Da prescrição.
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3.–FUNDAMENTAÇÃO

3.1-Decisão recorrida

Transcreve-se a decisão recorrida na parte atinente à matéria de facto, relevante para apreciação das questões suscitadas em recurso:

«A)-Factos provados:
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos com relevo para a boa decisão:
1.–No dia 19 de junho de 2015, pelas 12 horas, o filho do arguido, DD, circulava com a viatura ..., modelo ..., e Número de Identificação de Veículo (NIV) n° …, na ..., junto ao ..., em …, tendo apostas a matrícula ……HKP.
2.–Nessas circunstâncias, o referido condutor fazia-se acompanhar de duas fotocópias representativas do que poderiam ser documentos originais espanhóis de um "permisso de circulation" e de uma "tarjeta de inspeccion de vehiculo", correspondentes a um veículo da matrícula mencionada mas correspondente a um outro veículo com NIV ….
3.–Não estando o arguido, que compareceu no local, na posse de documentos originais conformes com o número do veículo, foi efetuada pesquisa na base de dados do sistema Shengen (pedido n° ..., datado de 01-10-2014), verificando-se que o mesmo constava para apreensão por furto ocorrido em ....
4.–Nessa data, através da GNR e na sequência da apreensão do veículo, teve o arguido conhecimento de que o veículo constava como furtado em ....
5.–Nessa sequência ainda, o arguido justificou a posse do veículo por tê-lo adquirido na ..., pelo montante de 30.000,00€ (trinta mil euros) através de uma firma denominada ...", sediada em ... e da qual era sócio e gerente, sem contudo deter qualquer documento que atestasse a aquisição por si ou por aquela empresa.
6.–Em data não concretamente apurada, mas que se situa no período compreendido entre os meses de setembro a novembro de 2014, o arguido deslocou-se a ..., onde adquiriu o supra mencionado veículo, bem como outro veículo da mesma marca, modelo …, com o NIV n° ....
7.–Ambos os veículos foram adquiridos naquele país ao mesmo indivíduo, cuja identidade não se logrou apurar, tendo o arguido trazido os veículos para território nacional com documentos e matrículas … falsos, respetivamente, as matrículas …EE e …FF 989, com datas de emissão do ano de 2013.
8.–Em data posterior, ainda no mesmo período, o arguido substituiu os documentos e matrículas alemãs falsos, por documentos e matrículas espanholas igualmente falsas, em tudo semelhantes às usadas no Reino de …, apondo no ... a já mencionada matrícula … HKP, e no ..., modelo …, a matrícula …VP.
9.–Sendo que à semelhança do veículo com matrícula … HKP, também a matrícula …HVP do veículo ..., constava do "permisso de circulation" como respeitante a um outro veículo com NIV ....
10.–E de igual modo constando da base de dados do sistema Shengen (pedido n° ..., datado de 10-10-2014), verificando-se constar para apreensão por furto também ocorrido em ....
11.–Sendo que nestas circunstâncias, o arguido, ou pessoas consigo relacionadas, passaram a detê-los e a circular em território espanhol e nacional com os citados veículos cientes de que os documentos e matrículas apostas eram falsificados.
12.–O arguido passou ainda a deter na sua posse o veículo ... (NIV n° ...), com os documentos e matrículas ....HVP falsificados, no período que mediou a apreensão do veículo ... em 19-06-2015 e a sua apreensão em 08-09-2015, ciente não só, de que tais documentos e matrículas eram falsificados, como o mesmo era igualmente proveniente de furto em ....
13.–Não fosse a instauração do presente inquérito para investigação dos factos relativos ao veículo …HKP, e o arguido teria mantido o veículo …HVP na sua posse até que lograsse obter outros documentos igualmente falsificados que lhe permitissem circular com o veículo ocultando a sua proveniência ilícita.
14.–Tanto que, em data não apurada mas certamente após e próxima do dia 20 de fevereiro de 2015, o arguido dirigiu-se á agência de documentação "... e ...", à data sita em ..., a fim de lograr obter os referidos documentos e com eles as matrículas portuguesas para os dois veículos.
15.–Com esse propósito e ainda assim, o arguido, por si ou por pessoa a seu mando, em cópias dos mesmos falsificados, no campo correspondente aos N1V dos "permisso de circulation" e das "tarjeta de inspeccion de vehiculo", alterou os números que ali se encontravam passando a fazer constar deles os números dos chassis respeitantes aos veículos.
16.–Com as cópias assim falsificadas e a aparência de terem sido emitidas pelas autoridades do Reino de …, o arguido entregou-as na "... e ...", para que esta desse inicio às formalidades de legalização, o que veio a suceder.
17.–O arguido só não logrou a legalização fraudulenta dos dois veículos devido à fiscalização da GNR e à consequente instauração dos presentes autos.
18.–O arguido agiu com o propósito concretizado de deter veículos que provinham de pessoa que não era o seu legítimo proprietário, mas sim que havia sido subtraída ao seu legítimo dono, sem consentimento e contra a vontade deste, visando a oportuna falsificação dos documentos que titulam a propriedade dos veículos, dissimulando a sua proveniência, a fim se se apropriar deles, fazendo- os seus.
19.–O arguido estava ciente de que detinha e circulava em veículos com documentos e matrículas falsificadas, bem como ciente de que, ao alterar os números de chassis dos veículos, ainda que se tratando de fotocópias de impressos de "permissos de circulation" do Reino de …, os mesmos eram idóneos a conseguir o propósito de obter a legalização fraudulenta dos mesmos, deste modo abalando a fé pública e a sua credibilidade, o que quis.
20.–O arguido agiu com o propósito de encobrir a proveniência ilícita dos veículos e dos crimes de furto de que tinham sido alvo, e ainda assim não se absteve dessa conduta, o que quis. 
21.–O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
22.–O arguido foi julgado e condenado por sentença de 19.06.2008, transitada em julgado no dia 21.07.2007, proferida no Proc. n° 22/05.5IDLSB, que correu termos no 1º juízo criminal de Sintra, pela prática, no dia 01.07.2002, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo disposto no artigo 105°, n° 1 do RGIT, tendo- lhe sido aplicada uma pena de 300 dias de multa à taxa diária de € 7,00.
23.–O arguido foi julgado e condenado por sentença de 2010/04/28, transitada em julgado no dia 2010/06/04, proferida no Proc. n° 101/05.9IDLSB, que correu termos na 1ª secção - J1 do juízo de média instância criminal de Sintra, pela prática, no dia 2002/08/02, de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo disposto no artigo 205°, n° 1 do Código Penal, tendo-lhe sido aplicada uma pena de 300 dias de multa à taxa diária de € 10,00.
24.–O arguido foi julgado e condenado por sentença de 2013/05/14, transitada em julgado no dia 2013/06/13, proferida no Proc. n° 1507/11.0IDLSB, que correu termos na 2ª secção - J3 do juízo de média instância criminal de Sintra, pela prática, no mês de abril de 2011, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo disposto no artigo 105°, n° 1 do RGIT, tendo-lhe sido aplicada uma pena de 300 dias de multa à taxa diária de € 5,00.
25.–O arguido foi julgado e condenado por sentença de 2016/02/03, transitada em julgado no dia 2016/03/04, proferida no Proc. n° 499/14.8T9SNT, que correu termos no JL Criminal de Sintra – J1, pela prática, no dia 2007/10/06, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelo disposto nos artigos 105°, n° 1 e 107° do RGIT, tendo-lhe sido aplicada uma pena de 6 meses de prisão, que foi suspensa na execução pelo período de 1 ano.
26.–O arguido foi julgado e condenado por sentença de 2014/02/05, transitada em julgado no dia 2014/03/07, proferida no Proc. n° 1047/11.7IDLSB, que correu termos no JL Criminal de Sintra - J4, pela prática, no ano de 2011, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo disposto no artigo 105°, n° 1 do RGIT, tendo-lhe sido aplicada uma pena de 360 dias de multa à taxa diária de € 5,00.
27.–O arguido foi julgado e condenado por sentença de 2014/06/20, transitada em julgado no dia 2014/09/05, proferida no Proc. n° 1435/12.1IDLSB, que correu termos no JL Criminal de Sintra - J2, pela prática, no dia 2012/05/16, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo disposto no artigo 105°, n° 1 do RGIT, tendo-lhe sido aplicada uma pena de 360 dias de multa à taxa diária de € 5,00.
28.–O arguido foi julgado e condenado por sentença de 2020/10/08, transitada em julgado no dia 2020/11/09, proferida no Proc. n° 6072/18.4T9SNT, que correu termos no JL Criminal de Sintra - J3, pela prática, nos dias 2017/11/15 e 2015/01/20, de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo disposto no artigo 105°, n° 1 do RGIT e de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelo disposto nos artigos 105°, n° 1 e 107° do RGIT, tendo-lhe sido aplicada, em cúmulo jurídico, uma pena única conjunta de 2 anos e 9 meses de prisão, que foi suspensa na execução por igual período, com a condição de, no período da execução, pagar os montantes em dívida, acrescidos dos legais acréscimos.
29.–O arguido foi julgado e condenado por sentença de 2022/11/16, transitada em julgado no dia 2022/12/16, proferida no Proc. n° 1121/20.9T9SNT, que correu termos no JL Criminal de Sintra - J3, pela prática, no dia 2020/02/01, de um crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelo disposto nos artigos 105°, n° 1 e 107° do RGIT. Por analogia com o disposto no artigo 6º, alínea a) da Lei n° 37/2015, de 05.05, manteve-se a pena aplicada no Proc. n° 499/14.8T9SNT do JL Sintra J1, tendo os factos sido considerados integrados na continuação da actividade criminosa a que alude o Proc. n° 499/14.8T9SNT.
30.–O arguido é … da empresa "..." (…) e retira por mês um vencimento pelo menos equivalente a um salário mínimo nacional.
31.–Tem o 12° ano.
32.–Vive com a mulher e com quatro filhos, maiores de idade, que estudam e trabalham.
33.–A mulher do arguido é … e recebe por mês cerca de € 1.700,00.
34.–Tem dívidas entre € 600.000,00 e £ 700.000,00.
35.–Deixou de pagar o empréstimo da casa em 2008.

B)-Factos não provados:
Não se provaram quaisquer outros factos, sendo que aqui não importa considerar as alegações meramente probatórias, conclusivas e de direito, que deverão ser valoradas em sede própria.
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C)-Motivação:
A convicção do Tribunal foi adquirida a partir da análise crítica do conjunto da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, bem como da prova documental junta aos autos e com recurso a juízos de experiência comum e à livre apreciação do julgador, nos termos do disposto no artigo 127° do Código de Processo Penal.
No que concerne aos factos descritos nos pontos 1) a 21), o Tribunal teve em atenção a vasta prova documental e pericial que se encontra junta aos autos, a saber: os autos de apreensão de fls. 8 e 50; as informações obtidas junto do sistema Schengen, que constam de fls. 12, 27, 79 e 137, de onde resulta que os dois veículos da marca ... que foram adquiridos pelo arguido haviam sido furtados em ...; as fotografias dos veículos, juntas a fls. 17 a 19, 57 a 60 e 37 a 39; o certificado internacional de seguro automóvel junto a fls. 14; as informações prestadas pelas autoridades alemãs e espanholas, juntas a fls. 30 a 34,47 a 50, 68 a 78, 103, 137 e 142; os autos de exame directo, juntos a fls. 35 e 53; os certificados de conformidade dos dois veículos, juntos a fls. 42,43 e 85 a 90; as "tarjetas" de inspecção e carta verde de seguro, juntas a fls. 42, 43, 50 e 51; as cotas de fls. 84 a 90; os documentos de fls. 120 e 127 e 135 e ss. relativos aos furtos dos veículos em ...; as perícias do LPC de fls. 97 a 100 e 352 a 355.
O Tribunal teve, ainda, em atenção os depoimentos das testemunhas GG e HH (militares da GNR que o abordaram o filho do arguido, quando este conduzia o veículo ..., tendo procedido à apreensão do veículo após terem constatado que o mesmo constava do sistema Schengen como sendo um veículo a apreender por ter sido furtado em ...), II (tratou do processo inicial de legalização dos veículos) e JJ (inspector chefe da Polícia Judiciária).
Desvalorizou as declarações prestadas pelo arguido em audiência de julgamento, na medida em que se revelaram incoerentes e pouco consistentes.
É importante salientar que os factos pelos quais o arguido vem acusado, muito dificilmente seriam susceptíveis de demonstração por meio de prova directa, recorrendo o Tribunal, necessariamente, a prova indirecta, assente num conjunto de factos que indiciam com elevada densidade a autoria dos factos praticados. Se assim não fosse, a esmagadora maioria (quiçá, a totalidade) dos casos ficaria impune, com graves prejuízos para a boa administração da justiça.
No mesmo sentido, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu que "o juízo valorativo do tribunal tanto pode assentar em prova directa do facto, como em prova indiciaria da qual se infere o facto probando, não estando por isso excluída a possibilidade do julgador, face às circunstâncias do caso, valorar preferencialmente a prova indiciária, podendo esta, por si só, conduzir à sua convicção. (...) Em muitos casos, a prova indiciária, circunstancial ou indirecta é mesmo o único meio de chegar ao esclarecimento de um facto criminoso e à descoberta dos seus autores" (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.06.2010, disponível no site www.dgsi.pt).
Idêntico entendimento foi explanado pelo mesmo Tribunal Superior ao afirmar que "a prova indiciária é suficiente para determinar a participação no facto punível se da sentença constarem os factos-base (requisito de ordem formal) e se os indícios estiverem completamente demonstrados por prova directa (requisito de ordem material), os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e, sendo vários, estar inter-relacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência" (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.07.2007, disponível no site www.dgsi.pt).
Começando por analisar as declarações que o arguido prestou em audiência de julgamento, o mesmo contou ao Tribunal que um amigo o apresentou a um indivíduo conhecido por "KK" ou "LL", que viveu muitos anos na ... e se dedicava ao comércio de veículos automóveis alemães (veículos em segunda mão).
O arguido contou ao "KK" que sempre foi apaixonado por veículos automóveis da marca ... e que pretendia comprar um ..., modelo …, em segunda mão.
Com esse intuito, viajou com o "KK" para ..., onde acabou por comprar um ..., mas do modelo ..., uma vez que o preço estava muito apelativo. O negócio foi discutido entre o "KK" e um outro indivíduo, tendo ambos falado em …. O arguido trouxe o veículo para Portugal, tendo-lhe sido dito que não podia conduzir aquele veículo em Portugal uma vez que tinha matrícula ….
Mais tarde, já em Portugal, o "KK" contactou-o novamente e disse-lhe que finalmente tinha conseguido um …, modelo …, também a um preço simpático. O arguido lá acabou por aceitar e encontrou-se com o "KK" em …, perto de sua casa. Este veículo também tinha matrícula ….
O arguido pagou os veículos em numerário e não lhe foram entregues facturas ou recibos comprovativos dos pagamentos.
Uma vez que não podia conduzir os referidos veículos em Portugal, por terem matrículas …, o intermediário "KK", sabendo que o arguido era gerente de uma empresa sediada em ..., denominada ...", disse-lhe que era mais rentável se os dois veículos tivessem matrículas …, pois iria pagar menos imposto automóvel. Deste modo, o "KK" levou as chapas de matrícula … e, mais tarde, trouxe chapas de matrícula … e os novos documentos das viaturas.
O arguido, quando se apercebeu que não podia conduzir os veículos com as chapas de matrícula …, depois de ter sido fiscalizado na ... e pago uma coima, pediu ao "KK" que tratasse da legalização dos carros em Portugal. Este foi consigo a um escritório na zona de ..., o arguido entregou os documentos que o "KK" lhe havia dado e não teve mais notícias da legalização das viaturas. Ligou várias vezes para agência responsável pela legalização das viaturas em Portugal, mas o processo não foi concluído.
Antes de ter sido abordado pela GNR e de ter iniciado o processo de legalização das duas viaturas, o arguido contactou o "KK" e disse-lhe que se apercebeu havia uma discrepância entre os números do NIV do ... e os números que constavam do documento que tinha em seu poder (um dos números não coincidia). O "KK" respondeu-lhe que só podia ter sido um engano em ..., que ia tratar do assunto e, cerca de quinze dias depois, entregou-lhe os documentos corrigidos. Foram cópias destes documentos que o arguido apresentou para dar início ao processo de legalização das viaturas em Portugal.
Numa primeira análise às declarações do arguido, verificamos, desde logo, que os contornos do negócio de aquisição das duas viaturas exorbitam manifestamente a normalidade do comércio jurídico, impondo que se conclua que o arguido não pôde deixar de ter conhecimento da proveniência ilícita dos dois veículos, designadamente que os mesmos provinham da prática de factos ilícitos típicos contra o património.
Na verdade, o arguido começou por dizer que o intermediário "LL" ou "KK" foi-lhe apresentado por um amigo que também se dedicava à importação de veículos automóveis. Ora, se era intenção do arguido adquirir um veículo automóvel importado, o normal seria que tivesse recorrido ao seu amigo, que era da sua confiança, e não a um terceiro desconhecido.
Por outro lado, o intermediário "LL" foi-lhe indicado como sendo uma pessoa que viveu na ... e que se dedicava à compra e venda de veículos automóveis em segunda mão, tendo conhecimentos privilegiados na .... No entanto, o arguido não conseguiu explicar por que motivo é que, em vez de ir à ... comprar o … que pretendia (e onde o "KK" tinha conhecimentos privilegiados), acabou por comprar um veículo automóvel em ....
Acresce que, segundo referiu o arguido, deslocou-se uma primeira vez a ... com o "KK" e, aí chegados, encontraram-se com indivíduos de nacionalidade … ou da ..., que falavam uma língua estranha. Estes indivíduos começaram a discutir entre eles e quase andaram à pancada porque os carros já estavam reservados a outros compradores, tendo o arguido regressado a Portugal sem comprar qualquer carro.
Depois, regressou novamente a ..., tendo adquirido um... a um desses indivíduos. Nessa altura, esse indivíduo falou com o "KK" em …. No entanto, também se fica sem compreender, uma vez que o arguido não logrou explicar ao Tribunal de forma convincente, por que motivo é que arguido foi para ... com a intenção de comprar um ..., modelo …, e acabou por comprar um ..., modelo ....
E certo que referiu que este veículo estava a um preço simpático, tendo pago € 30.000,00 pelo mesmo. Mais tarde, referiu o arguido, sempre o poderia vender e comprar finalmente o carro dos seus sonhos, o ....
Contudo, pouco tempo depois - refere o arguido - foi contactado pelo "KK", que lhe disse que tinira aparecido um .... Deu-lhe dois dias para angariar € 60.000,00, o arguido juntou este dinheiro e encontrou-se com o KK para receber o carro e entregar-lhe a quantia de € 60.000,00, o que fez.
Nesta altura, o arguido atravessava dificuldades económicas, tendo o arguido mencionado que os trabalhadores da empresa que geria ficaram sem receber salários. Também referiu que está sem pagar o empréstimo da casa desde 2008. Ou seja, se o arguido atravessava dificuldades financeiras, como é que adquiriu dois automóveis da marca ... num curto espaço de tempo, para seu uso pessoal, tendo pago as quantias de € 30.000,00 e de € 60.000,00?
Por outro lado, o arguido referiu que pagou sempre em numerário, tendo, na primeira aquisição, viajado para ... com cerca de € 45.000,00 no bolso.
Também admitiu que não lhe entregaram facturas, nem comprovativos dos pagamentos. Ora, sendo arguido …, não é credível que tivesse entregue um montante total de € 90.000,00, em numerário, sem qualquer documento comprovativo, a pessoas que não conhecia.
Em suma, na sua versão dos factos o arguido viajou para ..., onde adquiriu uma primeira viatura (...) a um desconhecido (um … ou um …, que quase andou à pancada com outrem quando o arguido se deslocou a ... pela primeira vez), a quem entregou € 30.000,00 em dinheiro, não recebeu documento comprovativo da aquisição da viatura e do pagamento, a viatura tinha matrícula …e deveria ser legalizada em ....
Na segunda aquisição, também entregou € 60.000,00 ao "KK" - a mesma pessoa que o tinha levado a ... -, tendo recebido um ... de matrícula alemã, que deveria ser legalizada em ..., não tendo o arguido recebido documento comprovativo da aquisição da viatura e do pagamento.
Nada disto faz sentido!!
O arguido, quando adquiriu as duas viaturas da forma em que o fez tinha perfeito conhecimento da proveniência ilícita das mesmas, até porque, mais tarde, optou pela legalização das mesmas em Portugal (já depois da legalização em ...), apresentando documentos falsos.
E não se diga que o arguido acreditava que os vendedores das viaturas, ao lhe exigirem o pagamento em numerário, sem lhe entregarem qualquer documento comprovativo do pagamento/aquisição das viaturas, se estavam - apenas - a furtar ao pagamento de impostos / mais valias.
Mais do que isso, apurou-se que o arguido bem sabia que as viaturas que adquiriu provinham a factos ilícitos típicos contra o património. Só assim se compreende a conduta que adoptou quando foi abordado pelos militares da GNR e quando deu início ao processo de legalização das duas viaturas em Portugal, apresentando os documentos de fls. 42, que correspondem à versão corrigida do documento de fls. 51, ambos em seu poder.
Os militares da GNR GG e HH contaram ao Tribunal que fiscalizaram o veículo ..., que era conduzido pelo filho do arguido. Chamou-lhes à atenção o tipo de papel dos documentos que foram exibidos e verificaram que o NIV do veículo não correspondia ao NIV constante dos documentos que lhes foram entregues. Após, aperceberam-se que o veículo constava do sistema Schengen como tendo sido furtado em ..., tratando-se de um veículo a apreender, o que fizeram (ver auto de apreensão de fls. 8).
Contaram, ainda, que o filho do arguido telefonou ao pai e que este compareceu, tendo o arguido referido aos militares da GNR que o veículo foi adquirido na ... pelo preço de € 30.000,00 e que aqueles eram os documentos que lhe tinham sido entregues.
Aqui chegados, importa questionar:
Se o arguido adquiriu o veículo em ..., porque é que não o referiu aos militares da GNR, ademais quando estes o informaram que o veículo ... tinha sido furtado em ...?
E por que motivo é que referiu que o veículo foi adquirido na ... quando, na verdade, o comprou em ...?
Uma vez que os militares da GNR se aperceberam da discrepância entre os NIV's constantes do chassis do veículo e dos documentos do carro, por que motivo é que o arguido, como seria de esperar, não tratou de esclarecer os militares da GNR contando, de imediato, a mesma versão que contou em audiência de julgamento?
Em audiência de julgamento, o arguido, questionado sobre esta discrepância, explicou que - antes de dar início ao processo de legalização dos veículos em Portugal - apercebeu-se que um dos números que constava do chassis do veículo era diferente do número indicado nos documentos … do carro. Telefonou ao "KK", que lhe disse que tinha sido um engano em ... e que ia corrigir este lapso. Cerca de quinze dias depois, o "KK" entrega-lhe novos documentos com o NIV correcto.
Ora, a ser assim, o normal e expectável seria que o arguido, vendo que os militares da GNR se tinham apercebido do mesmo "lapso", tivesse esclarecido os senhores militares, contando-lhes o que havia sucedido. Nada disto aconteceu.
Outras notas:
- O arguido referiu aos Militares da GNR que aqueles eram os únicos documentos que tinha do veículo ....
- Referiu em julgamento que foi o próprio arguido que entregou os documentos à agência responsável pela legalização das viaturas e que entregou cópias dos documentos com o NIV corrigido (que lhe tinham sido entregues pelo "KK" quando foi detectada a divergência do NIV).
- O processo de legalização dos veículos em Portugal teve início no mês de fevereiro de 2015, por impulso do arguido, tendo entregue em cópias dos documentos dos veículos (no que respeita ao ..., o NIV já se encontrava corrigido).
- No dia 19 de junho de 2015, quando foi fiscalizado pelos militares da GNR, foi exibido um documento, cujo NIV não correspondia ao NIV aposto no chassis do veículo.
- Os documentos exibidos aos militares da GNR e os documentos que o arguido entregou para dar início ao processo de legalização em Portugal são falsos, na medida em que os veículos foram furtados em ... e as matrículas espanholas correspondem a veículos com outros NIV's.
Aqui chegados, concluímos que o arguido, quando foi abordado pela GNR, tinha os dois documentos em seu poder - o documento com o NIV corrigido, cuja cópia entregou à agência responsável pela legalização das viaturas e o documento que exibiu aos militares da GNR.
O arguido era o beneficiário e principal interessado na falsificação dos documentos e das chapas de matrícula espanholas.
Deste modo, tendo os dois documentos na sua posse, bem sabia que aqueles veículos provinham da prática de factos ilícitos típicos contra o património, actuando com a intenção de encobrir a proveniência ilícita dos veículos e dos crimes de furto de que tinham sido alvo, circulando em veículos com documentos e matrículas falsificadas, bem como ciente de que, ao alterar os números de chassis dos veículos, ainda que se tratando de fotocópias de impressos de "permissos de circulation" do Reino de …, os mesmos eram idóneos a conseguir o propósito de obter a legalização fraudulenta dos mesmos, deste modo abalando a fé pública e a sua credibilidade, o que quis.
Referiu a II. Mandatária do arguido que este esteve sempre de boa fé, que não tinha conhecimento da proveniência ilícita das viaturas e que foi o arguido que informou os OPC's que, para além do veículo ..., tinha adquirido uma outra viatura nos mesmos termos.
Ora, a boa fé do arguido é contrariada pela forma como adquiriu os dois veículos, pela conduta do arguido junto dos miliares da GNR (o que referiu e o que omitiu) e pelo facto de, quando foi abordado pela GNR, ter na sua posse documentos do veículo ... corrigidos (cujas cópias apresentou quando deu inicio ao processo de legalização) e documentos referentes à mesma via tura com o NIV errado.
A fazer fé na versão do arguido, este não poderia ter na sua posse documentos com o NIV errado, necessários para que o "KK" procedesse à sua correcção em .... De qualquer forma, após a correcção efectuada pelo "KK", os documentos com o NIV incorrecto perderiam utilidade. Por conseguinte, o arguido teria exibido os documentos "corrigidos" aos militares da GNR e não, como fez, referindo a estes Militares que aqueles eram os únicos documentos que tinha.
E certo que o arguido contribuiu para a apreensão do veículo …. Contudo, nessa altura, o processo de legalização das viaturas já estava em curso, pelos que os OPC's sempre iriam tomar conhecimento da existência da segunda viatura.
Caso tivesse actuado de boa fé, o arguido, quando se apercebeu que o veículo ... tinha sido furtado em ..., teria informado os militares da GNR da existência de um segundo veículo (…). Em vez disso, nada fez; esperou cerca de três meses e só depois se lembrou de informar os OPC's da existência do veículo …, numa altura que já tinha iniciado a legalização das duas viaturas, o que facilmente chegaria ao conhecimento da investigação criminal.
A prova dos antecedentes assentou no CRC que se encontra junto aos autos.
No que respeita às condições de vida do arguido - pontos 30) a 35) - teve-se em atenção as declarações que prestou em audiência de julgamento.»
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3.2-Violação do princípio ne bis in idem
Sustenta o recorrente ter sido julgado duas vezes no mesmo processo, tendo a sentença recorrida (condenatória) violado a anterior decisão (absolutória).
Mais alega que o despacho que determinou a repetição da audiência não se encontra devidamente fundamentado, que o Tribunal a quo recorreu ao disposto no art. 328.º do Cód. Processo Penal fora das condições legais e aplicou o art. 328.º-A do Cód. Processo Penal retroativamente, previamente à data dos factos, violando-se o disposto no n.° 3 do artigo 18.° e do n.° 4 do artigo 29.°, ambos da constituição, bem como no n.° 2 do artigo 5.° do CPP.
Relevam, para apreciação da argumentação recursiva, os seguintes atos processuais:
- Em 2/11/2021, foi realizada audiência de julgamento, presidida pelo, então, Juiz de Direito, Dr. MM, finda a qual se designou o dia 18/11/2021, às 14H00, para leitura da sentença.
- Nesta data, foi o Sr. Advogado informado que não iria ter lugar a leitura da decisão (Ref. 134000419).
- 20/11/2021, foi designado para leitura da sentença o dia 5 de dezembro de 2021, pelas 14H00 (Ref. 134000247);
- 6/12/2021, foi dada sem efeito a data designada para leitura e ordenada a conclusão dos autos a 13/12/2021 (Ref. 134334411)
- Em 15/12/2021 foi designado o dia 6 de janeiro, pelas 14H, para leitura da decisão (Ref. 134393675)
- Em 4/01/2022 consignou o Sr. Funcionário ter tentado a notificação do adiamento da leitura da decisão (Ref. 134773806)
- Em 10/01/2022 foi designado o dia 27 de janeiro, pelas 9H30, para leitura da decisão (Ref. 134868046)
- Em 27/01/2022 consta do processo ata, com a Ref. 135266142, onde se consignou ter o Sr. Juiz procedido à leitura da sentença, de que os presentes foram notificados.
- Com a mesma data foi aberta conclusão nos autos (Ref. 135269057) que permanece sem despacho.
- Não consta dos autos, nem foi depositada, a sentença a cuja leitura se disse ter procedido na ata de 27/01/2022.
- Em 27/01/2023 foi proferido o seguinte despacho (Ref. 142190331):
«O Exmo. Colega que presidiu à audiência de julgamento foi desligado do serviço, não exercendo mais funções de Magistrado Judicial.
É do meu conhecimento funcional que a providência cautelar de suspensão da eficácia, à qual foi atribuída o nº 19/22.0YFLSB, intentada pelo Exmo. Colega em reacção à deliberação do plenário do CSM que o desligou do serviço, foi julgada improcedente.
Por conseguinte, de harmonia com o disposto nos artigos 328º, nº 1 e 328A, nºs 1 e 5, segunda parte, do Código de Processo Penal, declaro a ineficácia da prova produzida em audiência de julgamento, devendo a mesma ser repetida na integra.
Notifique.
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Audiência de julgamento:
Para a realização da audiência de julgamento, designo o dia 26.04.2023, às 9h30m (possível extensão para o período da tarde, em caso de necessidade).
Notifique, cumprindo previamente o disposto no artigo 151º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 312º, nº 4 do Código de Processo Penal.
Oportunamente, junte CRC actualizado.»
- Este despacho foi notificado ao M.º P e ao arguido em 1/02/2023, não tendo merecido qualquer reação.
- Nessa sequência, teve lugar audiência de julgamento, com sessões nos dias 14 e 30/6 e 3/7/2023, após o que foi proferida a sentença recorrida, lida e depositada em 6/09/2023.
Ponderando esta tramitação processual, ressalta desde logo, a existência de caso julgado formal no que respeita ao despacho proferido pelo Tribunal a quo em 27/01/2023, em que se determinou a ineficácia da prova anteriormente produzida e se ordenou a repetição do julgamento.
O recorrente foi notificado do mencionado despacho e nada requereu, pelo que sob o mesmo se formou caso julgado formal, impondo-se aos termos processuais subsequentes (art. 620.º do Cód. Processo Civil, aplicável ex vi do art. 4.º do Cód. Processo Penal).
Não pode, por isso, sob tal decisão incidir o recurso interposto da sentença condenatória proferida após o julgamento que veio a ter lugar na sequência da questionada decisão interlocutória.
Mas ainda que assim não fosse, sempre seriam de arredar os argumentos que o recorrente vem esgrimir.
Singelamente, no que concerne à invocada ausência de fundamentação, vigorando no processo penal o princípio da tipicidade dos vícios (art. 118.º do Cód. Processo Penal), o ato só gera nulidade quando expressamente previsto. O art. 328.º-A, n.º 2 do Cód. Processo Penal não tipifica como nulidade a falta de fundamentação do despacho, pelo que sempre estaríamos perante uma irregularidade que, por não arguida no prazo legal, se encontraria sanada (art. 123.º, do Cód. Processo Penal).
E, tendo o presente processo sido instaurado em 8/07/2015, o art. 328.º-A do Cód. Processo Penal (aditado pela Lei n.º 27/2015, de 14 de abril, em vigor a partir de 14 de maio de 2015), em face do que dispõe o art. 5.º do Cód. Processo Penal é plenamente aplicável, não se compreendendo como possa a tal propósito pretender o recorrente sustentar a violação dos apontados preceitos constitucionais (o que só pode ter na génese a confusão com as regras de aplicação no tempo da lei penal substantiva) que, como é por demais devidamente, foram plenamente observados.
No mais, é desapropriado trazer à colação o princípio ne bis in idem.
O referido princípio «….comporta duas dimensões: (a) como direito subjetivo fundamental, garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra actos estaduais violadores desse direito (direito de defesa negativo); (b) como princípio constitucional objectivo (dimensão objectiva do direito fundamental), obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgador material de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto. (…)
A Constituição proíbe rigorosamente o duplo julgamento e não a dupla penalização, mas é óbvio que a proibição do duplo julgamento pretende evitar tanto a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela prática da infracção, como a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do «mesmo crime».1
Na dimensão que poderia, em abstrato, aqui relevar, determina este princípio que ninguém pode ser julgado, nem punido, mais do que uma vez pelos mesmos factos (art. 29.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa) e manifestamente tal não acontece na situação que nos ocupa.
É certo que o que se verificou nos presentes autos - em que o recorrente foi sujeito a duas audiências de julgamento e viu adiada, por inúmeras vezes, a leitura da decisão sem qualquer justificação atendível - é de lamentar, em nada prestigiando a administração da justiça, mas tal não determina que os princípios constitucionais que regem o processo penal não tenham sido observados.
Quanto à circunstância que o recorrente invoca – de ter sido absolvido na “primeira sentença”-, não pode este Tribunal tê-la por verificada.
A única coisa que consta do processo é uma ata em que se refere ter tido lugar a leitura da sentença, mas esta, em desconformidade com o determinado nos arts. 372.º, 374.º e 379.º do Cód. Processo Penal, não foi redigida e depositada nos autos.
Como tem vindo a ser reconhecido pela jurisprudência2, a sentença que não foi reduzida a escrito e meramente lida “por apontamento” é juridicamente inexistente, com a consequente nulidade insanável da sessão de julgamento onde tais factos ocorreram que deverá repetir-se com cumprimento das exigências referentes à elaboração, leitura e subsequente depósito.
É o que foi feito nos autos, sendo que toda a anterior produção de prova (que teve lugar em 2021) foi declarada ineficaz.
Validamente, o recorrente apenas foi sujeito a uma audiência de julgamento e a uma sentença condenatória (pois que os anteriores atos não mantêm qualquer validade jurídica) não se verificando, por isso, a violação do princípio ne bis in idem.
Falece o recurso, nesta parte.

3.3-(In)competência territorial
Alega o recorrente que a decisão violou o disposto nos artigos 4.° e 5.° do Código Penal uma vez que os factos - de acordo com a fundamentação do Tribunal a quo - foram praticados em … e ….
Mas, também aqui, é manifesto que não assiste razão ao recorrente.
Como se refere nos pontos 1, 2, 3 e 11, 12, 14, 15 e 16 da matéria de facto provada, as ações pelas quais foi o recorrente condenado tiveram lugar em território nacional.
É certo que a aquisição das viaturas terá tido lugar em ... (pontos 6 e 7), mas o recorrente trouxe as mesmas para território nacional, conservando-as aqui na sua posse, circulando as mesmas com a documentação falsificada, pelo que a conduta típica enunciada no art. 231.º do Código Penal aqui se consumou.
E como determina o art. 5.º, n.º 1, al. e) do Código Penal, a lei penal portuguesa é aplicável a factos cometidos fora do território nacional por portugueses que se encontrem em Portugal.
Por isso, os tribunais nacionais são competentes para apreciação dos factos.

3.4-Erro de julgamento - rejeição (formal) do recurso
Dispõe o artigo 412.º, n.º 3 do Cód. Processo Penal que as conclusões do recurso, em caso de impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto, devem especificar os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (al. a), as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (al. b) e as provas que devem ser renovadas (al. c).
De acordo com o art. 428.º do Cód. Processo Penal, o Tribunal da Relação conhece de facto e de direito, mas os seus poderes de cognição são limitados.
Por isso, o mecanismo de impugnação da matéria de facto ali previsto visa corrigir erros manifestos, ostensivos de julgamento, por apelo à prova produzida e que se extraíam do registo da mesma, não legitimando a repetição do julgamento pelo tribunal ad quem.
Para operar eficazmente, com vista a detetar erros de julgamento de facto, esta reapreciação é limitada aos pontos de facto concretos que o recorrente considera julgados de forma incorreta e às razões concretas invocadas para sustentar essa discordância.
Aqui, ao contrário do que ocorre com os vícios previstos no art. 410.º, n.º 2 do Cód. Processo Penal, a apreciação da matéria de facto não se restringe ao texto da decisão, alargando-se ao que se pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas com as balizas delimitadas pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de tríplice especificação imposto pelo n.º 3, do artigo 412.º do Cód. Processo Penal.
Para dar cumprimento às exigências legais da impugnação ampla tem o recorrente de especificar, nas conclusões, quais os pontos de facto que considera terem sido incorretamente julgados, quais as provas (específicas, concretas) que impõem decisão diversa da recorrida, bem como referir (por transcrição ou indicação da gravação áudio) os concretos segmentos, excertos que, no seu entender, obrigam (e não apenas permitem) à alteração da matéria de facto.
O devido cumprimento do ónus de especificação na impugnação ampla da matéria de facto importa não só a individualização das passagens que alicerçam a impugnação, mas também relacionar o conteúdo específico de cada meio de prova suscetível de impor essa decisão diversa com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado.
E esta concretização mostra-se essencial, por a intervenção do Tribunal de recurso em sede de fixação da matéria de facto ser necessariamente cirúrgica, com possibilidade de corrigir erros notórios e flagrantes do julgador de primeira instância, mas não equivalendo essa intervenção a um novo julgamento.
E julgando o tribunal de acordo com as regras da experiência e a livre convicção e só sendo admissível a alteração da matéria de facto quando as provas especificadas conduzam necessariamente a decisão diversa da recorrida, a demonstração desta imposição compete ao recorrente.
Na presente situação, o recorrente enuncia a intenção de recorrer da matéria de facto, mas não observa o ónus de impugnação especificada.
Identifica os factos que considera incorretamente julgados e contém observações genéricas sobre a valoração da prova efetuada pelo Tribunal a quo, mas não indica, especificadamente, quais os concretos meios de prova que impõem decisão diversa da recorrida. Muitos menos se estabelece qualquer relação entre estes.
Limita-se o recorrente a aludir à negação do arguido, não enfrentando as razões objetivas enunciadas pelo Tribunal recorrido, nomeadamente no que respeita aos enunciados pressupostos da prova indireta dos factos.
Em suma, do que se alega não se pode extrair o motivo pelo qual se impõe uma distinta decisão no que concerne à matéria de facto.
Na verdade, o recorrente limita-se a referir as respetivas razões de discordância quanto ao entendimento do Tribunal na valoração dos elementos probatórios, sem que indique qual o erro concreto em que o Tribunal possa ter incorrido naquela valoração.
E por o recurso não se destinar à reapreciação global da causa, mas sim à intervenção cirúrgica em situações de manifesta desconformidade com os elementos probatórios recolhidos no processo, é que se impõe ao recorrente o ónus de individualizar os pontos concretos que considera incorretamente julgados bem como os elementos de prova que impõem (e não apenas que sustentam) a versão alternativa proposta (o que o recorrente não fez).
É certo que o artigo 417.º, n.º 3 do Cód. de Processo Penal, prevê que “Se das conclusões do recurso não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos ns. 2 a 5 do artigo 412.º, o relator convida o recorrente a completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afetada”.
Porém, o n.º 4 da mesma disposição legal estabelece que “O aperfeiçoamento previsto no número anterior não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação”.
E, no caso concreto, na motivação apresentada pelo recorrente, nada mais se alega, não contendo, igualmente, nenhum dos elementos legalmente exigidos para que o recurso possa, nesta parte, ser conhecido.
Assim, revela-se inútil promover a correção formal das conclusões.
Como anota PEREIRA MADEIRA3, «A falta de motivação não se confunde com falta ou insuficiência de conclusões. Na verdade, aquelas podem ser corrigidas a convite do relator (art. 417º, nºs 3 e 4). Porém, a motivação não pode deixar de existir, sendo portanto insusceptível de correcção, (sob pena de nunca estar determinado o objecto do recurso) até porque é por ela que se afere o limite da legalidade de correcção ou aditamento das conclusões em falta.».
No mesmo sentido, também, SIMAS SANTOS e LEAL-HENRIQUES, Recursos Penais, 9ª edição, Rei dos Livros, 2020, pág.114.
Trata-se, no caso dos autos, de uma deficiência da estrutura da motivação, equivalente a uma falta de motivação, que coloca até em crise a delimitação do âmbito do recurso. Conferir-se possibilidade de correção das conclusões, nestas condições, equivaleria, na verdade, à concessão de novo prazo para recorrer, o que não se pode considerar compreendido no próprio direito ao recurso.
Este entendimento é também sufragado pelo Tribunal Constitucional (designadamente, nos acórdãos nos 259/2002, 140/2004, 322/04, 357/2006, 529/03 e 685/2020, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), que distingue a deficiência resultante da omissão na motivação das especificações previstas na lei - caso em que o vício será insanável-, da omissão de levar as especificações constantes da motivação às conclusões – caso em que se impõe o convite à correção.
Pelo exposto, não contendo, quer a motivação, quer as conclusões apresentadas pelo recorrente, os elementos legalmente impostos para que, nesta parte, se possa conhecer do recurso interposto - por não ter indicado nenhum dos elementos que permitiriam a este Tribunal ad quem sindicar a prova – impõe-se decidir pela rejeição formal do recurso, na parte em que se questiona a convicção do Tribunal sobre a matéria de facto, nos termos do disposto nos artigos 412.º, nsº 2 e 3 , 414.º, n.º 2, 417.º, nos 3 e 6, alínea b) e 420.º, n.º 1, alíneas b) e c), todos do Cód. Processo Penal.

3.5-Do crime de recetação:
Questiona o recorrente a condenação pela prática do crime de recetação, na medida em que se refere, de modo meramente conclusivo, que o Arguido sabia que os veículos tinham sido adquiridos ilicitamente, mas não refere de que modo, em que data e porquê.
Pretende o recorrente ver a sua conduta integrar o n.º 2 do art. 231.º e não o n.º 1, pelo qual foi condenado.
Determina o n.º 1 do art. 231.º do Código Penal que “Quem, com intenção de obter, para si ou para outra pessoa, vantagem patrimonial, dissimular coisa ou animal que foi obtido por outrem mediante facto ilícito típico contra o património, a receber em penhor, a adquirir por qualquer título, a detiver, conservar, transmitir ou contribuir para a transmitir, ou de qualquer forma assegurar, para si ou para outra pessoa, a sua posse, é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.”
Já o n.º 2 tipifica a conduta de “Quem, sem previamente se ter assegurado da sua legítima proveniência, adquirir ou receber, a qualquer título, coisa ou animal que, pela sua qualidade ou pela condição de quem lhe oferece, ou pelo montante do preço proposto, faz razoavelmente suspeitar que provém de facto ilícito típico contra o património é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 120 dias.”.
O Tribunal a quo deu como provado (12, 18 e 20) que o recorrente sabia serem as viaturas provenientes de furto em ....
E justificou o motivo pelo qual deu por provada tal circunstância, como ressalta da motivação, não exigindo o tipo legal em causa que o agente tenha conhecimento das circunstâncias em que foram praticados os crimes de furto, bastando o conhecimento da proveniência ilícita do bem.

Refere a este propósito o Tribunal a quo:
«O crime de receptação está sistematicamente inserido no capítulo IV do Código Penal, relativo aos crimes contra o património em geral. Para estes efeitos, entende-se por património o conjunto de relações jurídicas encabeçadas por um sujeito, que tem por objecto último coisas dotadas de utilidade.
Como refere Pedro Caeiro, "a norma posta no n° 1 contém o tipo fundamental da receptação, que consiste em o agente estabelecer, através de várias modalidades de acção descritas, uma relação patrimonial com uma coisa obtida por outrem mediante um facto criminalmente ilícito contra o património, seguindo a conduta guiada pela intenção de alcançar, para si ou para terceiro, uma vantagem patrimonial: o conteúdo último reside, pois, na perpetuação de uma situação antijurídica (...), aprofundando a lesão de que foi alvo a vítima do facto anterior (facto referencial) ao diminuir a possibilidade de restaurar a relação dela com a coisa" (cfr. Pedro Caeiro, in "Comentário Conimbricense ao Código Penal", Tomo II, p. 475).
O legislador pretendeu, com a criminalização deste tipo de crime, tutelar o património das vítimas lesadas pelo crime referencial e, simultaneamente, a segurança do comércio jurídico. Trata-se, pois, de um bem jurídico complexo e plurifacetado.
De uma forma resumida, podemos dizer que punível é a conduta daquele que, com a intenção de obter uma vantagem patrimonial, recebe ou transmite uma coisa que foi obtida através da prática de um facto típico e ilícito conda o património.

São assim elementos objectivos do tipo em análise:
a.-A existência de uma coisa obtida mediante a prática de um facto ilícito contra o património.
b.-O sujeito activo que praticou o facto referencial é pessoa diversa do receptador.
c.-Modalidades de acções típicas: dissimular o bem, recebe em penhor, adquirir por qualquer título, deter o bem, conservar ou transmitir e contribuir para a transmissão da coisa, bem como, assegurar a posse da coisa para si ou para terceiro.
Primeiramente, é necessário que o bem em causa provenha da prática de um facto ilícito típico (relação de acessoriedade necessária) contra a propriedade, razão pela qual se costuma afirmar que o crime de receptação é susceptível de perpetuar uma situação antijurídica preexistente.
Em segundo lugar, o agente do facto referencial tem que ser pessoa diferente do receptador. No entanto, não é necessário que a coisa tenha sido directamente transmitida ao receptador pelo agente que praticou o crime base.
O crime de receptação configura várias modalidades de acções típicas e diferentes finalidades a prosseguir pelo receptador: a dissimulação do bem, a recepção em penhor, a aquisição por qualquer título, a detenção, a conservação ou a transmissão e contribuição para a transmissão da coisa e, por fim, assegurar a posse da coisa para si ou para terceiro.
Por dissimulação do bem entende-se a "perpetuação da lesão patrimonial", através da qual o "receptador esconde a coisa do seu titular. A dissimulação pode ser fáctica (física) e jurídica" (cfr. Pedro Caeiro, op. cit, p. 480).
É punível, ainda, a conduta daquele que recebe a coisa em penhor.
A "aquisição por qualquer título" exige o "deslocamento fáctico da coisa para a esfera de disponibilidade do agente (embora não necessariamente conducente à detenção física da coisa). (...) A lei limita a acção punível à "aquisição" da coisa, pelo que só integram esta modalidade os actos que permitam ao adquirente dispor dela ut domino" (cfr. Pedro Caeiro, op. cit, p. 481).
"A detenção da coisa consiste em o agente dominar materialmente a coisa: a causa desse poder é irrelevante (posse formal - já que a posse causal se encontra, por definição excluída - ou mera detenção). A incriminação da simples detenção (não prevista nomeadamente pela lei alemã) alarga substancialmente o campo de punibilidade" (cfr. Pedro Caeiro, op. cit, p. 482).
Diferente da mera detenção do bem, a conservação implica que a relação de detenção se tenha prolongado no tempo.
A transmissão da coisa ocorre com a transferência do domínio fáctico para a esfera de outrem.
Por fim, o artigo incrimina a conduta daquele que "assegura a posse da coisa para si ou para terceiro".
No que tange ao tipo subjectivo, podemos afirmar que o crime de receptação configurado no n° 1 do artigo 231° do Código Penal é um crime necessariamente doloso, exigindo, ainda, que o agente tenha actuado com um dolo específico.
O artigo em causa determina que o agente, sabendo que o bem provém de um facto ilícito contra o património, tenha actuado com a "intenção de obter, para si ou para outra pessoa, vantagem patrimonial". No entanto, como bem alerta Pedro Caeiro, "a vantagem patrimonial procurada pelo agente não coincide necessariamente com a noção de enriquecimento - aumento do valor patrimonial de enriquecimento - do agente. Uma das formas que essa vantagem pode revestir encontra-se certamente na aquisição da coisa por preço inferior ao seu valor - mas essa é, apenas, uma das formas de obter a vantagem". Poderá traduzir-se, ainda, no facto de "o agente não poder obter a coisa receptada, ou não poder obtê-la nos mesmos termos, se ela não tivesse sido furtada, roubada, etc." (cfr. Pedro Caeiro, op. cit, p. 495).
No caso em apreço, apurou-se que o arguido adquiriu dois veículos automóveis da marca ..., modelos ... e Vogue, com os NIV's SALVA2BC4CH655489 e SALGA2JF3DA101942, respectivamente, que haviam sido furtados em ... em momento anterior.
Encontram-se preenchidos os elementos do tipo objectivo de ilícito do crime de receptação do n° 1 do artigo 231° do Código Penal.
No que respeita ao tipo subjectivo de ilícito, apurou-se que o arguido agiu com o propósito concretizado de deter veículos que provinham de pessoa que não era o seu legítimo proprietário, mas sim que havia sido subtraída ao seu legítimo dono, sem consentimento e contra a vontade deste, visando a oportuna falsificação dos documentos que titulam a propriedade dos veículos, dissimulando a sua proveniência, a fim se se apropriar deles, fazendo-os seus.
Agiu com o propósito de encobrir a proveniência ilícita dos veículos e dos crimes de furto de que tinham sido alvo, e ainda assim não se absteve dessa conduta, o que quis.».
E não podemos deixar de subscrever estes considerandos.
Inexistindo modificação da matéria de facto, inexiste igualmente fundamento para alterar o enquadramento jurídico-penal operado pelo Tribunal a quo.
Os factos provados consubstanciam, assim, a conduta típica do crime de recetação do n.º 1 do art. 231.º do Cód. Penal e do crime de falsificação de documento, p. e p. pelos artigos 255.°, al. a), 256.°, n°s 1, als. a), e), e f), e 3, do Código Penal, nada havendo a apontar ao juízo subsuntivo levado a cabo pelo Tribunal recorrido.

3.6-Da prescrição
Por último, alega o recorrente que, sendo os crimes puníveis com penas de prisão de 6 meses e até 5 anos (falsificação de documentos, p. 256.°, n.° 1 e 3), à data da sentença já se havia verificado a prescrição, atento o disposto nas alíneas c) e d) do n.° 1 do artigo 118.°, considerando, ademais, a regra prevista no n.° 3 do artigo 121.° do Código Penal.
Mas também aqui é manifesto que nenhuma razão lhe assiste.
O recorrente foi condenado pela prática de um crime de recetação, p. e p. pelo disposto no art. 231°, n° 1, do Cód. Penal (com pena de prisão até 5 anos ou multa até 600 dias) e de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelos artigos 255°, al. a), 256°, n°s 1, als. a), e), e f), e 3, do Código Penal (com pena de prisão de 6 meses a 5 anos ou com pena de multa de 60 a 600 dias).
Por isso, considerando o disposto no art. 118.º, n.º 1, al. b) do Cód. Penal, o prazo de prescrição é de 10 anos.
Reportando-se os factos mais antigos a setembro/novembro de 2014, independentemente das causas de suspensão e interrupção da prescrição previstas nos arts. 120.º e 121.º do Cód. Penal, ainda não decorreram 10 anos sobre a data dos factos pelos quais foi condenado.
Improcede, por isso, o recurso na sua totalidade.
*

4.–Decisão

Pelo exposto acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em:
- Rejeitar o recurso da matéria de facto e,
- No mais, julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, assim se confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo arguido/recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 Uc´s (art. 420.º, n.º 3, 513.º, n.º 1 do Cód. Processo Penal, art. 8.º, n.º 9 do RCP e tabela III anexa ao mesmo).
Notifique.
*


Lisboa, 9 de abril de 2024


Mafalda Sequinho dos Santos - Relatora
João Ferreira - 1.º Adjunto
Carlos Espírito Santo - 2.º Adjunto



1.Constituição da República Portuguesa Anotada, J.J. GOMES CANOTILHO E VITAL MOREIRA, 3.ª ed. rev., Coimbra Editora, pág. 194.
2.Ac. TRP 13/07/2011, Processo n.º 49/08.5GCVFR.P1, Relatora OLGA MAURÍCIO  https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRP:2011:49.08.5GCVFR.P1.C0/
Ac.TRP 11/04/2018, Processo n.º 19383/09.0TDPRT-A.P1, Relator VÍTOR MORGADO  https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRP:2018:19383.09.0TDPRT.A.P1.2A/;
Ac. TRC de 19/10/2016, Processo n.º 16/12.4GFCVL.C1, Relatora ISABEL VALONGO,  https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRC:2016:16.12.4GFCVL.C1.6D/
Ac. TRC 24/05/2017, Processo n.º 631/16.7 T8CVL.C1, Relatora BRIZIDA MARTINS https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRC:2017:631.16.7.T8CVL.C1.EB/
Ac. TRC de 13/11/2019, Processo n.º 301/15.3GAMIR.C1, Relator LUÍS TEIXEIRA  https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRC:2019:301.15.3GAMIR.C1.22/
Ac. TRL de 23/06/2005, Processo n.º 4544/2005-9, Relator ALMEIDA CABRAL  https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRL:2005:4544.2005.9.49/.
3.Código de Processo Penal Comentado, 4ª ed. revista, Almedina, 2022, pág. 1397.